I. TEXTUALIDADE E IDENTIDADE DO SAPIENCIAL BÍBLICO
Classificam-se habitualmente com o nome de «Sapienciais» os seguintes Livros do Antigo Testamento: Job, Salmos, Provérbios, Qohelet (ou Eclesiastes), Cântico dos Cânticos, Sabedoria e Ben Sira (ou Eclesiástico). Esta arrumação é hoje manifestamente insuficiente, pois há muitos outros textos esparsos no corpo do Pentateuco e dos Livros Históricos e Proféticos – nomeadamente os Livros do Génesis, Rute, Tobias, Judite, Ester, Macabeus, Daniel, Baruc e Jonas – que apresentam marcas de teor sapiencial. Mas vistas as coisas mais a fundo, teremos de reconhecer que é o inteiro Livro da Bíblia que apresenta um travejamento sapiencial, dado que, nas palavras argutas de Baruc e de Ben Sira, «a Sabedoria é o Livro» (Ecli 24,23; Br 4,1).
A Sabedoria é como a respiração: não se dá por ela
Se nos ajustarmos à arrumação clássica, a primeira coisa que se pode dizer da Sabedoria é o quanto é fácil não falar da Sabedoria. A locução «A Lei e os Profetas» diz todo o Antigo Testamento, sem que seja necessário acrescentar «os Sábios». A Sabedoria é amiúde considerada expletiva ou decorativa, pelo que tem sido muitas vezes marginalizada ou até omitida nos estudos do Antigo Testamento1 . Os Provérbios recolhidos por Salomão, por Ezequias ou por Jesus Ben Sira, são, com certeza, interessantes. Mas um provérbio não é uma revelação. O domínio do provérbio é o do já dito. A língua é o que já lá está antes de nós, e o provérbio, que é a mais pequena moeda da conversação e a mais pequena medida da poesia2 , é o que já está na língua3 .
É ainda fácil não falar da Sabedoria, porque a Sabedoria desce à nossa terra e se insinua nas pregas do nosso quotidiano. A Sabedoria é a vida no que a vida tem de mais elementar. É aquilo em que não pensamos, tão natural o achamos. Como quando respiramos. A Sabedoria não tem idade. É o que continua lá desde sempre4. Simplesmente. A matéria da Sabedoria faz a conversação que se tem com os mais pequenos, com quem está a começar, as crianças e os pobres. A Sabedoria é o regresso a casa, ao elementar, à família, ao lar, à sociedade do homem e da mulher, e da criança que os continua5 . É o regresso ao tempo de nascer, de crescer e de morrer e de acreditar na própria existência, que é a esperança na forma mais radical que se possa conceber6 . O tempo da Sabedoria é, muitas vezes, um tempo sem grande história, sem acontecimentos. Um tempo sem acontecimentos não se conta; canta-se. O tempo da poesia não é o tempo das datas; é o tempo das estações7 . Ao longo do Livro dos Provérbios, de Job, de Qohelet, os Sábios podem escrever acerca da Sabedoria e de Deus como se nada soubessem da história bíblica8.
Nesse sentido, Job é um estrangeiro, um homem simplesmente, e o nome de YHWH apenas por uma vez aparece na boca das personagens do Livro, e é porque é citado um provérbio que o contém: «YHWH o deu, YHWH o tirou! Bendito seja o nome de UHWH!» (Jb 1,21). Leia o resto deste artigo »