APRENDER COM AS CRIANÇAS

Setembro 7, 2008

 

1. Dentro da tradição do pensamento ocidental, Bento de Espinosa mostrou na sua Ética, Parte III, Proposição VI (tradução portuguesa, Lisboa, Relógio d’Água, 1992, p. 275-276), através do célebre conatus essendi [= esforço para permanecer no ser], que é próprio do indivíduo – o homem como o cão, a pedra, a árvore – lutar pela sua auto-conservação ou permanência (ou perseverança) no ser.

 

2. Penso ser nesse horizonte de apego ao seu bem-estar e comodidade, que os jovens adultos de hoje evitam os filhos, pois os consideram cada vez mais como um impecilho à sua perseverança no ser, isto é, ao seu conforto e bem-estar, como alguém que vem desarranjar o seu mundo, tempo, horário, comodidade.

 

3. Mas Setembro traz de novo para a rua as crianças que há, a caminho da escola ou de regresso a casa. E cabe aqui a palavra certeira do poeta francês Charles Péguy (1873-1914), morto em 5 de Setembro de 1914, no dealbar da primeira guerra mundial: «Mandam-se os filhos à escola, diz Deus,/ mas penso que é para que esqueçam o pouco que sabem./ Estaria muito mais correcto mandar à escola os pais,/ porque são eles que precisam dela,/ admitindo sempre que fosse eu o mestre dessa escola».

 

4. Charles Péguy foi sempre uma criança deslumbrada, encandeado pela esperança. Escreveu, no Pórtico do mistério da segunda virtude, que a esperança é como uma menininha que todas as manhãs nos vem trazer o café à cama e dar os bons dias. Tem sempre e só nove anos. É a mais nova das suas irmãs (fé e caridade). Pequenina e frágil como a chama de uma vela, no meio das duas irmãs mais velhas, parece, à primeira vista, que é levada por elas; mas, na verdade, é ela, na irrequieta graciosidade dos seus nove anos, que as empurra. É ela que nos empurra. Frágil como a chama de uma vela, ela é, todavia, forte, de tal modo que nenhuma tempestade, nem sequer a morte, a consegue apagar.

 

5. Frágil, forte esperança. Menininha irrequieta que vai na procissão saltando à corda. Chama que nos anima e nos aquece. Esfuziante graciosidade que pode transformar a nossa vida de gente grande e importante em dádiva de amor e de alegria ou simples dança de roda. Lúcida obstinação daqueles que se atrevem a pensar que o mundo será melhor amanhã. Ou coragem generosa daqueles que decidem lançar a mão ao arado, sabendo que só os seus filhos farão a colheita. Visão longimirante e tranquila daqueles que sabem que o futuro não é apenas o que resta do nosso presente, que há que ciosamente acautelar do estorvo das crianças, mas que sabem que as crianças é que são o futuro grande e verdadeiro.

 

6. Meu irmão de Setembro, já sabes que a escola vai abrir por estes dias. Deixa-te guiar pela pequena esperança. Fica atento como quem espera e se espanta. Levanta os olhos. Dança. Quem sabe? Quando o mestre é Deus e a lógica a do Evangelho, bem «pode a semente germinar antes do campo/ e a espiga amadurar antes do tempo!» Fica atento! Na língua hebraica, «estar atento» diz-se significativamente sîm leb [= «pôr o coração»]. Só estamos verdadeiramente atentos às pessoas ou coisas em quem ou em que pomos o coração. É urgente estar atento, amar, vigiar. O nosso coração pode ficar embotado, posto apenas na sedução, no dinheiro, no prazer. Uma paixão pode cegar-nos. Considera a triste lição de Fortaleza (Brasil), quando, em 12 de Agosto de 2001, seis portugueses foram sequestrados, roubados, massacrados e enterrados ainda vivos no chão de uma barraca.

 

 

António Couto