A FÉ É TAMBÉM UM ACTO DE INTELIGÊNCIA

Outubro 25, 2008

 

1. A maioria dos nossos contemporâneos pensa tranquilamente que a questão de saber se há um Deus ou não, se o mundo é o único ser ou não, é uma questão que pertence à fé, que o mesmo é dizer, segundo eles, que pertence à ordem arbitrária da afectividade e do sentimento, mas não da razão e do conhecimento. É o chamado fideísmo, segundo o qual a fé não é um assentimento da razão, mas apenas do sentimento.

 

2. Nesta ordem de ideias, continuam a pensar tranquilamente os nossos contemporâneos, que a Bíblia, o judaísmo e o cristianismo não têm conteúdos que seja necessário estudar. São apenas da ordem do sentimento. E, nesse sentido, sempre segundo os nossos tranquilos contemporâneos, essas «coisas da fé» ou se têm ou não se têm, sentem-se ou não se sentem. Ponto final.

 

3. E, todavia, quando os nossos ilustrados contemporâneos repetem tranquilamente que o universo físico é o único ser, não é seguramente pela razão e pelo conhecimento que o fazem. É uma afirmação puramente gratuita, arbitrária e sentimental. Da ordem da razão é o passo que se segue: se o universo físico é o único ser, então tem de ser eterno, já que é impossível que a totalidade do ser tenha saído do nada, em virtude do princípio, que permanece firme desde Parménides, de que «do nada, nada vem». Se o universo físico é o único ser, é da ordem da razão que seja eterno. Mas é também da ordem da razão que seja sem evolução nem entropia. Vale aqui a pergunta que deixou Empédocles, no seu fragmento 17: «de quem receberia o crescimento, se é o único ser?» E Melisso de Samos explicita bem que, se o universo é o único ser, então tem de ser «eterno, infinito, uno e absolutamente idêntico. Não pode perecer nem crescer; não pode ter sofrimento nem penas. Porque se tal acontecesse, já não seria uno, uma vez que se veria alterado e não seria idêntico a si mesmo, já que o sofrimento, por exemplo, que antes não existia no seu seio, teria chegado a existir… Por isso, se algo mudasse, mesmo que fosse um só cabelo ao longo de dez mil anos, pereceria completamente através do tempo». De facto, depois de se ter afirmado a priori que o universo é o único ser, e depois de se ter admitido a eternidade do universo, se se admite agora que ele se consome, então é óbvio que já se deveria ter consumido há uma eternidade.

 

4. Afirmar que o universo físico é o único ser é uma afirmação completamente arbitrária. Que seja eterno e imutável é mesmo refutável pela ciência moderna. Apenas se mantém o princípio de que «do nada, nada vem». Afinal, é o ateísmo que é fideísta. A Bíblia, o judaísmo e o cristianismo contêm um pensamento bem mais exigente e fundamentado: o ser não é único nem unívoco; é análogo, isto é, há duas classes de ser: o ser criado e o ser incriado; o universo físico não é o único ser nem o ser absoluto, eterno e imutável; o ser absoluto, eterno e imutável, é o Deus criador, e o universo físico foi criado e mantém-se em estado de criação pelo Deus criador. A vida e o pensamento não vêm do nada, isto é, da não-vida e do não-pensamento. Vêm do Deus criador, Vida e Pensamento ele mesmo. O nascimento e a morte não são meras aparências ou ilusões no seio do único ser imutável. São verdadeiros acontecimentos que remetem para o Deus criador.

 

5. O nascimento como Dom entra-nos em casa sobretudo em Dezembro com o Natal. A morte como Dom visita-nos sobretudo em Novembro, que é o mês que tradicionalmente dedicamos aos fiéis defuntos. Os defuntos não são simplesmente aqueles que já morreram, isto é, aqueles que já não vêem nem ouvem nem têm memória, como pensamos nós, pagãos modernos, muitas vezes, na esteira do que pensavam os gregos, que remetiam os mortos para o Hades [= lugar onde não se vê], mas aqueles que, sem perder a sua identidade pessoal e as marcas da sua história pessoal concreta, foram assumidos, por graça, a viver a Vida grande do Deus criador.

 

António Couto


POR UMA EUROPA COM ANQUISES, ENEIAS, IULO E CRISTO

Outubro 14, 2008

 

1. A Europa foi durante muito tempo um conceito vago. Nas suas famosas Histórias, o historiador grego Heródoto (484-425 a.C.) refere que a Europa e a terra dos gregos era o que ficava para cá das fronteiras dos Persas, que consideravam a Ásia como a sua terra.

 

2. Eneias, o herói virgiliano que, no Livro Segundo da Eneida, parte de Tróia em direcção ao Lácio carregando aos ombros o velho pai Anquises e apertando a mão do seu pequeno filho Iulo, pode constituir o arquétipo literário, universalmente reconhecido, que serve para dar corpo plástico ao tema: «Os fundamentos de uma Europa em construção».

 

3. Com a formação dos Estados Helénicos e do Império Romano construiu-se um continente, que veio mais tarde a ser a Europa, mas com fronteiras muito diferentes. Começou por integrar as terras à volta do Mediterrâneo, que se sentiam unidas por laços culturais, comunicações e trocas comerciais, idêntico sistema político. Em termos religiosos, foi o Cristianismo que desde cedo veio dar uma maior consistência a esta bacia do Mediterrâneo.

 

4. Todavia, com a marcha triunfal do Islão no séc. VII e princípios do séc. VIII, o Mediterrâneo foi cortado ao meio, de tal modo que aquilo que até aí era um continente, fica então dividido em três: Ásia, África e Europa. Por volta do ano 700, este espaço cultural e religioso perde definitivamente a zona meridional do Mediterrâneo, mas estende-se para Norte, incluindo as Gálias, a Bretanha e a Germânia, até à Escandinávia. E em finais do séc. VIII, princípios do IX, com Carlos Magno (742-814), para alguns historiadores o verdadeiro fundador da Europa, consolida-se esta nova Europa, herdeira cultural do antigo Império Romano, que agora se vê como que renascido e fortemente impregnado pelo Cristianismo. Carlos Magno foi coroado em Roma, no Natal de 800, pelo Papa Leão III.

 

5. Entretanto, com o fim do Império Carolíngio, esta ideia de Europa desvanece-se, para voltar a aparecer de novo no início dos tempos modernos, em 1493, por causa do perigo turco. Mas só no séc. XVIII se afirmará de forma universal.

 

6. Se o Império Romano teve no Ocidente uma história atribulada, no Oriente, com centro em Constantinopla, resistiu até ao séc. XV, irradiando o lume Cristão pelo mundo eslavo. Quando, em 1493, Constantinopla é tomada pelos turcos, a herança bizantina transfere-se para Moscovo, deslocando-se então as fronteiras da Europa para Norte e para Oriente, até aos Urais. Mas enquanto a Oriente a Europa se expande para a Ásia, a Ocidente expande-se para fora das suas fronteiras geográficas e chega ao Novo Mundo, do outro lado do Atlântico, que então recebe o nome de América. Esta é também a altura em que a própria Europa se divide em duas metades: uma latino-católica, e outra germânico-protestante.

 

7. O espaço Europeu foi, no decurso do século XX, sacudido por duas guerras. Após a devastação da Segunda Guerra Mundial, os pais da União Europeia – Adenauer, Schumann, De Gasperi – vêem com clareza que esta nova Europa tem de procurar os seus fundamentos na herança Cristã que a foi moldando ao longo dos séculos. Todavia, com o tempo, foram os aspectos económicos que foram privilegiados, esquecendo-se cada vez mais os fundamentos espirituais. Pouco a pouco eclipsaram-se os valores cristãos, desapareceu o sagrado, a família entrou em declínio, hipotecou-se o futuro por falta de nascimentos.

 

8. Ensina a demografia que, para a simples manutenção da população de um determinado território, é requerida uma média de nascimentos de 2,1 filhos por mulher. Ora, neste começo do século XXI, Portugal decresce à média de 1,3 filhos por mulher, a Espanha à média de 1,1, a Itália e a Alemanha à média de 1,3, a França à média de 1,7. E é sabido que estes índices, sobretudo na França, Itália e Alemanha ainda se ficam a dever muito à presença árabe e africana. E os demógrafos vão avisando que, se nada for alterado, no final deste século XXI, já não haverá Europa, mas Eurábia ou Eurásia.

 

9. Assistimos hoje a uma Europa velha, doente, esquecida e triste, que já não gosta de si mesma nem da sua própria história, que já não luta nem sonha, mas que ainda pensa que se pode voltar a reunir à volta de uma lareira sem lume, de uma mesa sem pão ou de uma Constituição sem conteúdos, inspirada, dizem, em «heranças culturais, religiosas e humanistas» mais ou menos virtuais, de que ninguém diz nem sabe nem quer saber o nome. Mas eu digo que é cada vez mais uma Europa sem Cristo, sem Eneias e sem Iulo. E só com Anquises não vamos longe.

 

António Couto


SITUAÇÕES AD GENTES NA IGREJA EM PORTUGAL

Outubro 7, 2008

1. Introdução: a missão de coração a coração

 

Em 2004, por ocasião dos 1250 anos do martírio de S. Bonifácio, Apóstolo da Alemanha, o Cardeal Karl Lehmann, Arcebispo de Mogúncia (Mainz), dirigiu à sua Diocese uma Carta Pastoral, intitulada Testemunho missionário, em que se lê:

 

«Tornámo-nos um mundo velho. Deixámo-nos vencer pelo cansaço (…). É necessário um radical revigoramento missionário da nossa Igreja. Não se trata apenas de reformar as estruturas. É preciso começar por cada um de nós. Se não estivermos entusiasmados pela profundidade e pela beleza da nossa fé, não podemos verdadeiramente transmiti-la nem aos vizinhos nem aos filhos nem às gerações futuras. (…) É necessário também ganhar outras pessoas para a nossa fé cristã e arrastar os cristãos que cederam ao cansaço ou que até abandonaram a Igreja (…). Devemos difundir verdadeiramente o Evangelho de casa em casa, de coração a coração»[1].

 

Nesta Carta Pastoral, o Cardeal Lehmann traça um quadro realista de uma Igreja que parece envelhecida e cansada, mas aponta também, com mestria e clarividência, as coordenadas que devem moldar o rumo do futuro: não basta reformar por fora estruturas e edifícios; é preciso reformar por dentro, mudar o coração, acendê-lo com a luz nova de Cristo e do seu Evangelho.

A Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, n.º 46 (Paulo VI, 8 de Dezembro de 1975), depois de falar da importância da pregação feita para todos, refere logo também a validade e a importância da transmissão «de pessoa para pessoa». E a Nota Pastoral da CEI, significativamente intitulada O rosto missionário das paróquias num mundo em mudança (n. 6)[2], acentua que «para a evangelização é essencial a comunicação de crente para crente, de pessoa a pessoa», aspecto que volta a ser salientado na recente Nota doutrinal sobre alguns aspectos da evangelização, n.º 11, da Congregação para a Doutrina da Fé, de 3 de Dezembro de 2007[3].

No mesmo sentido, na cerimónia de encerramento do Congresso Internacional realizado em Roma, de 09 a 11 de Março de 2006, para celebrar e reflectir sobre o Decreto Conciliar Ad Gentes, no quadragésimo ano da sua promulgação (07 de Dezembro de 1965), referiu o Papa Bento XVI, entre outras coisas, que:

 

«Não são, de facto, somente os povos não-cristãos e as terras distantes, mas também os âmbitos sócio-culturais, e, principalmente os corações, os verdadeiros destinatários da actividade missionária do Povo de Deus».

 

E, nas palavras proferidas antes da Oração do Angelus do 80.º Dia Missionário Mundial (22.10.2006), Bento XVI acentuou esta dinâmica, afirmando agora que «A missão parte do coração».

 

Identidade, intimidade e íntimo dizer de um Deus que nos ama: «Por isso, vou falar-lhe ao coração» (Os 2,16), e nos programa: «Falai ao coração de Jerusalém!» (Is 40,2). Leia o resto deste artigo »


ASSIS E A PARÁBOLA DOS TRÊS ANÉIS

Outubro 1, 2008

 

 

1. A Igreja celebra no dia 4 de Outubro a memória de S. Francisco de Assis.

 

2. A colina de Assis, com vistas sobre o Tibre e o Topino, ficará para sempre ligada ao irmão Francisco, por isso Francisco de Assis, que aí nasceu e morreu (1182-1226). Era rico. A sua juventude foi cheia de festas e folguedos. Mobilizado para a guerra, foi feito prisioneiro, adoeceu, e passou longos tempos de convalescença… e meditação. Num processo complexo, que se veio a consumar em 1208, uns dizem que em 9 de Fevereiro, outros que em 24 de Abril, ao ouvir proclamar o Evangelho de Mateus 10,6-14, fez-se luz na sua alma, e Francisco fez-se pobre e irmão de todos, para a todos saber levar a paz de Cristo.

 

3. Muitos seguiram os caminhos de Francisco. Pouco antes da sua morte, sentindo-se já sem forças, Francisco juntou à sua volta os muitos irmãos que o seguiam, despediu-se deles, e disse-lhes mais ou menos isto: «Irmãos, vamos ver se começamos a fazer alguma coisa, porque até agora ainda não fizemos nada».

 

4. Assis evoca, portanto, o Santo dos caminhos da paz, o irmão Francisco, o muito que fez e o muito que está ainda sempre por fazer. Reunindo em Assis os seus irmãos, em 1986, e de novo, no dia 24 de Janeiro de 2002, João Paulo II disse a este mundo violento que está ainda tanta coisa por fazer nos domínios da paz, da justiça e do perdão. E convidou-nos a deixar «soprar» o vento novo do Espírito, capaz de avivar as brasas da fraternidade em cada homem, debaixo de qualquer céu.

 

5. Esta mobilização pela paz como «trabalho de casa» para todos os homens e mulheres lembra-me a «história dos três anéis», que é uma novela que circulava na Idade Média entre os judeus de Espanha, que aparece recolhida no Decamaron, de Boccaccio (1313-1375), e que atingiu a máxima dimensão com o escritor alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) que a incluiu no seu poema dramático Nathan der Weise [= «Natã, o sábio»], escrito em 1779.

 

6. A novela dos três anéis conta-nos que havia, no Oriente, um homem muito rico, que possuía um anel que tinha o condão de tornar feliz e querido por Deus e pelos homens aquele que o usasse. Ao longo de muitas gerações, o precioso anel transitou sempre de pai para filho, sendo herdado pelo filho predilecto. Até ao dia em que um pai se encontrou na difícil situação de ter de escolher o herdeiro do anel entre três filhos igualmente queridos. Para resolver a situação, aquele pai optou por mandar fazer, às escondidas, mais dois anéis iguais, no aspecto, ao original. Pouco antes de morrer, aquele pai entregou a cada filho um anel, ficando cada um deles a pensar que tinha sido o escolhido pelo pai para herdar o precioso anel. Mas quando os três filhos se encontraram frente a frente, cada um com o seu anel, aperceberam-se logo de que tinha havido falcatrua, e começou logo ali a guerra pelo reconhecimento do anel verdadeiro. Depois de muitos anos de guerra e sofrimento, os três irmãos decidiram comparecer perante um juiz, para que este dirimisse a questão. Depois de ouvir a história das virtualidades do anel, segundo a qual o anel verdadeiro tinha o condão de tornar o seu portador querido pelos outros, o juiz quis então saber qual dos três irmãos era o mais querido pelos outros. Como nenhum dos três ousasse responder, o juiz compreendeu que estava perante três malvados merecedores de castigo. Mas, em vez de os castigar, achou melhor tecer algumas considerações: «Pensai que o vosso pai não vos enganou, mas que não quis submeter-se à tirania de um único anel verdadeiro». E deu-lhes um conselho: «Adiemos a questão de saber qual é o único anel verdadeiro, e que cada um se esforce, entretanto, por fazer com que o seu anel seja verdadeiro, procurando ser querido pelos outros. E lá há-de um dia vir um juiz, daqui a milhares de anos, que, analisando o que entretanto conseguirdes fazer, ditará a sentença definitiva».

 

7. Foi num dia de Fevereiro de 1209, talvez no dia 9, que Francisco de Assis encontrou o caminho do amor, da paz e da fraternidade. É bom que o vento de Assis se reacenda outra vez no coração deste mundo. E há tanta coisa por fazer pela paz, meu irmão de Outubro. E ainda estás a tempo de fazer com que o teu anel seja o verdadeiro.

  

António Couto