1. A maioria dos nossos contemporâneos pensa tranquilamente que a questão de saber se há um Deus ou não, se o mundo é o único ser ou não, é uma questão que pertence à fé, que o mesmo é dizer, segundo eles, que pertence à ordem arbitrária da afectividade e do sentimento, mas não da razão e do conhecimento. É o chamado fideísmo, segundo o qual a fé não é um assentimento da razão, mas apenas do sentimento.
2. Nesta ordem de ideias, continuam a pensar tranquilamente os nossos contemporâneos, que a Bíblia, o judaísmo e o cristianismo não têm conteúdos que seja necessário estudar. São apenas da ordem do sentimento. E, nesse sentido, sempre segundo os nossos tranquilos contemporâneos, essas «coisas da fé» ou se têm ou não se têm, sentem-se ou não se sentem. Ponto final.
3. E, todavia, quando os nossos ilustrados contemporâneos repetem tranquilamente que o universo físico é o único ser, não é seguramente pela razão e pelo conhecimento que o fazem. É uma afirmação puramente gratuita, arbitrária e sentimental. Da ordem da razão é o passo que se segue: se o universo físico é o único ser, então tem de ser eterno, já que é impossível que a totalidade do ser tenha saído do nada, em virtude do princípio, que permanece firme desde Parménides, de que «do nada, nada vem». Se o universo físico é o único ser, é da ordem da razão que seja eterno. Mas é também da ordem da razão que seja sem evolução nem entropia. Vale aqui a pergunta que deixou Empédocles, no seu fragmento 17: «de quem receberia o crescimento, se é o único ser?» E Melisso de Samos explicita bem que, se o universo é o único ser, então tem de ser «eterno, infinito, uno e absolutamente idêntico. Não pode perecer nem crescer; não pode ter sofrimento nem penas. Porque se tal acontecesse, já não seria uno, uma vez que se veria alterado e não seria idêntico a si mesmo, já que o sofrimento, por exemplo, que antes não existia no seu seio, teria chegado a existir… Por isso, se algo mudasse, mesmo que fosse um só cabelo ao longo de dez mil anos, pereceria completamente através do tempo». De facto, depois de se ter afirmado a priori que o universo é o único ser, e depois de se ter admitido a eternidade do universo, se se admite agora que ele se consome, então é óbvio que já se deveria ter consumido há uma eternidade.
4. Afirmar que o universo físico é o único ser é uma afirmação completamente arbitrária. Que seja eterno e imutável é mesmo refutável pela ciência moderna. Apenas se mantém o princípio de que «do nada, nada vem». Afinal, é o ateísmo que é fideísta. A Bíblia, o judaísmo e o cristianismo contêm um pensamento bem mais exigente e fundamentado: o ser não é único nem unívoco; é análogo, isto é, há duas classes de ser: o ser criado e o ser incriado; o universo físico não é o único ser nem o ser absoluto, eterno e imutável; o ser absoluto, eterno e imutável, é o Deus criador, e o universo físico foi criado e mantém-se em estado de criação pelo Deus criador. A vida e o pensamento não vêm do nada, isto é, da não-vida e do não-pensamento. Vêm do Deus criador, Vida e Pensamento ele mesmo. O nascimento e a morte não são meras aparências ou ilusões no seio do único ser imutável. São verdadeiros acontecimentos que remetem para o Deus criador.
5. O nascimento como Dom entra-nos em casa sobretudo em Dezembro com o Natal. A morte como Dom visita-nos sobretudo em Novembro, que é o mês que tradicionalmente dedicamos aos fiéis defuntos. Os defuntos não são simplesmente aqueles que já morreram, isto é, aqueles que já não vêem nem ouvem nem têm memória, como pensamos nós, pagãos modernos, muitas vezes, na esteira do que pensavam os gregos, que remetiam os mortos para o Hades [= lugar onde não se vê], mas aqueles que, sem perder a sua identidade pessoal e as marcas da sua história pessoal concreta, foram assumidos, por graça, a viver a Vida grande do Deus criador.
António Couto