Neste Natal aposta na paz
Limpa o teu olhar de traves e de medos
De torpedos
Deita fora as velhas espingardas
Despede os guardas
Sê simples e frontal
Feliz Natal!
1. Os Evangelhos afirmam, de maneira inequívoca, o nascimento de Jesus em Belém da Judeia (Mateus 2; Lucas 2). Para tanto, o Evangelho de Lucas mostra-nos José e Maria a partirem de Nazaré, na Galileia, para se irem recensear em Belém, na Judeia, pois o Imperador César Augusto tinha ordenado o recenseamento do inteiro «mundo habitado», a chamada oikouménê, e cada um devia registar-se na sua terra de origem. Nesse sentido, o Evangelho afirma também as origens betlemitas de José (Lucas 2,4). Fica então por explicar o facto de José, natural de Belém, ter fixado residência em Nazaré. E somos levados a presumir que José teria partido de Belém para Nazaré no quadro da política da colonização da Galileia muito estimulada desde a época de Alexandre Janeu (103-76 a.C.). Assim se repovoava e se rejudaizava a Galileia, ao tempo ocupada por uma população de origens etnicamente diversificadas.
2. Tendo, pois, partido para Belém, José e Maria, que estava grávida (Lucas 2,5), foram naturalmente procurar abrigo na casa da família de José. O Evangelista, sempre cuidadoso nos pormenores, anota, todavia, que «não havia lugar para eles na sala» (Lucas 2,7b). Na «sala». O texto grego emprega para «sala» o termo katályma. Katályma não é uma «hospedaria», como vulgarmente se diz. Quando quer dizer «hospedaria», o texto grego do mesmo Evangelho emprega o termo pandocheîon (Lucas 10,34). Katályma é uma «sala», a «sala de hóspedes» da casa de família em que José e Maria procuraram abrigo. E foi assim que, não havendo lugar apropriado na «sala de hóspedes» da casa, Maria deu à luz no estábulo anexo à mesma «sala», o lugar onde os ocupantes da «sala de hóspedes» deixavam os animais. É assim também compreensível que Jesus seja deitado na manjedoura (Lucas 2,7a).
3. Estamos, portanto, longe do ambiente de uma gruta de montanha, em que habitualmente montamos o cenário do presépio. Estamos no curral anexo à «sala de hóspedes» de uma casa normal de Belém. É esse o cenário do Natal. Esse curral ainda hoje pode ver-se na cripta da Basílica da Natividade, em Belém. É um rectângulo de 12,30 metros de comprimento por 3,50 metros de largura, que as grandiosas construções de Constantino (ano 326) e de Justiniano (ano 540), entretanto surgidas, sempre respeitaram. Esse estreito rectângulo continua a guardar e a mostrar a mais estreme e pura página de amor algum dia escrita sobre a terra.
4. Um curral como cenário do nascimento de Jesus. Cenário pobre. Rico de amor e de ternura. Os olhos tranquilamente fchados do Menino que serenamente dorme. Os olhos atentamente carinhosos e cariciosamente vigilantes de Maria e de José. Os olhos sempre meigos e mansos dos animais do curral. Chegam entretanto os pastores, igualmente pobres, igualmente ricos. Chegam os Magos com presentes, como que a dizer que é este o Rei verdadeiro, que leva a cumprimento a figura de Saul, primeiro Rei de Israel, «a quem não foram levados presentes» (1 Samuel 10,27). Parece-me ver que ali mesmo ao lado estamos nós, bem aconchegados nas nossas casas ricas e fechadas. Ali mesmo ao lado estamos nós. Ali mesmo ao lado. Vejo que chega entretanto Herodes. Vem com ar sombrio e olhar carregado. Bate à nossa porta. E entra. É como se nos conhecêssemos desde há muito tempo. Conspiramos. Da cumplicidade dos olhares saem gritos e barulhos. Olhar assim é como terçar armas. Ali ao lado a paz mais estreme. Aqui a guerra. De que lado estás tu, meu irmão de Dezembro?
António Couto