PAULO, MODELO DE EVANGELIZADOR (10)

Janeiro 31, 2009

10. Paulo, Tito e Corinto ou a história do anel verdadeiro

Para introduzir a temática comovente do reencontro de Paulo com a sua comunidade de Corinto, momentaneamente perdida, e ganha por Tito, que foi bem sucedido na sua viagem missionária a Corinto por solicitação de Paulo (2 Cor 8,16-17; 12,18), começo por evocar a «história dos três anéis»[1]. Trata-se de uma novela que circulava na Idade Média entre os judeus de Espanha, que aparece recolhida no Decameron, de Boccaccio (1313-1375), e que atingiu a máxima dimensão com o escritor alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), que a incluiu no seu poema dramático Nathan der Weise [= «Natã, o sábio»], escrito em 1779.

A novela dos três anéis conta-nos que havia, no Oriente, um homem muito rico, que possuía um anel que tinha o condão de tornar feliz e querido e estimado por Deus e pelos homens aquele que o usasse. Ao longo de muitas gerações, o precioso anel transitou sempre de pai para filho, sendo herdado pelo filho predilecto. Até ao dia em que um pai se encontrou na difícil situação de ter de escolher o herdeiro do anel entre três filhos igualmente queridos. Para resolver a situação, aquele pai optou por mandar fazer, às escondidas, mais dois anéis iguais, no aspecto, ao original. Pouco antes de morrer, aquele pai entregou a cada filho um anel, ficando cada um deles a pensar que tinha sido o escolhido pelo pai para herdar o precioso anel. Mas quando os três filhos se encontraram frente a frente, cada um com o seu anel, aperceberam-se logo de que tinha havido falcatrua, e começou logo ali a guerra pelo reconhecimento do anel verdadeiro. Depois de muitos anos de guerra e sofrimento, os três irmãos decidiram comparecer perante um juiz, para que este dirimisse a questão. Depois de ouvir a história das virtualidades do anel, segundo a qual o anel verdadeiro tinha o condão de tornar o seu portador querido e estimado pelos outros, o juiz quis então saber qual dos três irmãos era o mais querido pelos outros. Como nenhum dos três ousasse responder, o juiz compreendeu que estava perante três malvados merecedores de castigo. Mas, em vez de os castigar, achou melhor tecer algumas considerações: «Pensai que o vosso pai não vos enganou, mas que não quis submeter-se à tirania de um único anel verdadeiro». E deu-lhes um conselho: «Adiemos a questão de saber qual é o único anel verdadeiro, e que cada um de vós se esforce, entretanto, por fazer com que o seu anel seja o verdadeiro, agindo de maneira a tornar-se querido e estimado pelos outros. E lá há-de vir, um dia, um juiz, daqui a milhares de anos, que, analisando o que entretanto conseguirdes fazer, ditará a sentença definitiva». Leia o resto deste artigo »


PAULO, MODELO DE EVANGELIZADOR (9)

Janeiro 31, 2009

9. A outra rede da missão: muitos e bons cooperadores

Porque o amor de Cristo tomou conta dele e de nós (e de nós?) (hê agápê toû Christoû synéchei hêmâs) (2 Cor 5,14), programando-o inteiramente, transvasava dele. Não admira que Paulo tenha sabido rodear-se de MUITOS e BONS COOPERADORES (synergoí), quer presbíteros (presbýteroi) que «trabalham na palavra e na instrução (kopiôntes en lógô kaì didaskalía)» (1 Tm 5,17), quer cristãos, mulheres e homens, empenhados no «trabalho do amor» (ho kópos tês agápês) (1 Ts 1,3), a quem Paulo trata com elevada estima e entranhado afecto, como documenta, por exemplo, o chamado «Capítulo das Saudações» no final da Carta aos Romanos[1]:

 

 

«16,1Recomendo-vos Febe, nossa irmã (adelphê hêmôn), diaconisa (diákonos) da Igreja de Cêncreas, 2para que a recebais no Senhor (en kyríô), de modo digno dos santos (hágioi), e a assistais em tudo o que de vós necessitar, pois também ela foi benfeitora (prostátis) de muitos, e até de mim próprio. 3Saudai Prisca (diminuitivo: Priscila) e Áquila, meus cooperadores (synergói) em Cristo Jesus (en Christô Iêsoû), 4os quais, para salvar a minha vida, expuseram a sua cabeça; e não sou apenas eu que lhes estou agradecido, mas também todas as igrejas dos gentios. 5Saudai também a Igreja que se reúne em sua casa. Saudai o meu querido (agapêtós) Epéneto, que constitui as primícias da Ásia para Cristo. 6Saudai Maria, que muito trabalhou (kopiáô) por vós. 7Saudai Andrónico e Júnia, meus parentes e companheiros de prisão, que se distinguiram entre os apóstolos (apóstoloi), e me precederam em Cristo (en Christô). 8Saudai Ampliato, que me é muito querido (agapêtós) no Senhor (en kyríô). 9Saudai Urbano, nosso cooperador (synergós) em Cristo (en Christô), e o meu querido (agapêtós) Estáquio. 10Saudai Apeles, provado em Cristo (en Christô). Saudai os da casa de Aristóbulo. 11Saudai Herodião, meu parente. Saudai os da casa de Narciso, que estão no Senhor (en kyríô). 12Saudai Trifena e Trifosa, que trabalharam (kopiáô) no Senhor (en kyríô). Saudai a querida (agapêtê) Pérside, que muito trabalhou (kopiáô) no Senhor (en kyríô). 13Saudai Rufo, o eleito no Senhor (en kyríô), e sua mãe, que é também a minha. 14Saudai Assíncrito, Flegonte, Hermes, Pátrobas, Hermas, e os irmãos (adelphói) que estão com eles. 15Saudai Filólogo e Júlia, Nereu e sua irmã, e Olimpas, e todos os santos (hagíoi) que estão com eles» (Rm 16,1-15).

 

O que se pode aprender, em termos teológicos e pastorais, de uma lista de nomes!

Na peugada de Paulo, o desafio da formação séria, cuidada e alargada dos ministros ordenados e dos fiéis leigos não pode deixar de nos ocupar e preocupar também hoje. Vê-se bem que a coesão desta premurosa rede eclesial assenta, não apenas em sentimentos humanos de afecto – ainda que importantes –, mas «em Cristo» (en Christô) ou «no Senhor» (en Kyríô), locução tipicamente paulina que atravessa este pequeno texto de lés a lés (10 vezes), e que é um dos grandes marcadores do inteiro Corpus Paulinum com 130 citações: 83 vezes «em Cristo»; 47 vezes «no Senhor»[2]. Em outro lugar, advertirá Paulo que Jesus Cristo é o único fundamento (themélion) posto (keímenon) para sempre por Deus (1 Cor 3,11), donde deriva a nossa existência, coerência e identidade[3].

O título de diákonos dado a Febe traduz a qualidade de «servidora» de Cristo, do Evangelho e da Comunidade, que caracteriza esta mulher de Cêncreas. É um título que Paulo se dá si mesmo e dá outros também a outros seus cooperadores[4]. O nome grego prostátis só se encontra neste lugar, e esta única vez, em todo o grego bíblico. Deriva de uma raiz que significa: 1) «tomar cuidado de», «ajudar a»; 2) «dirigir», «presidir», «liderar». O primeiro significado é normalmente o que se aplica a Febe, que é assim vista como uma pessoa rica e influente, que se aproxima do grego profano e do latim patrona, e que se dispõe a prestar a todos os cristãos, nomeadamente a Paulo, os auxílios necessários. O segundo significado é de excluir, sobretudo porque o texto a apresenta como sendo «benfeitora» até do próprio Paulo. Benfeitora sim, dirigente ou líder não[5].

Por outro lado, o trabalho (kópos / kopiáô) de Paulo e de Timóteo e de tantos cooperadores (synergoí) de Paulo é um dos marcadores do trabalho apostólico[6]. Em 1 Tm 4,10, o verbo kopiáô [= trabalhar] aparece unido por um kaí [= e] epexegético ao verbo agônízô [= lutar] – kopiômen kaì agônizómetha [= «trabalhamos e lutamos»] –, pelo que o trabalho da evangelização não se faz sem luta[7], o mesmo sucedendo em Cl 1,29, em que a evangelização de Paulo aparece traduzida pelo verbo kopiáô logo seguido pelo particípio do verbo agonízôkopiô agônizómenos – [= «trabalho lutando»]. Entenda-se bem. Esta luta (agôn), que enche a vida de Paulo e dos seus cooperadores (1 Ts 2,2), e também a vida de Paulo e dos cristãos (Rm 15,30), não é uma guerra, mas o amor (agápê), a luta do amor, tendo os dois termos gregos a mesma raiz etimológica. Quem ama, luta. Paradoxo do amor: o amor faz-te feliz, matando-te! Quanto mais amas, lutas, e te matas a amar, mais te encontras: «Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; ao contrário, quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á» (Lc 9,24). Leia o resto deste artigo »


PAULO, MODELO DE EVANGELIZADOR (8)

Janeiro 29, 2009

8. Metodologia maternal e paternal: evangelização personalizada e a tempo inteiro

Quem, como Paulo, foi encontrado por Cristo e vive de Cristo a tempo inteiro, tem também de dar testemunho de Cristo a tempo inteiro, com CORAÇÃO MATERNO e PATERNO, gerando filhos[1], dando-os à luz na dor, acalentando-os, exortando-os e consolando-os um a um, portanto, com tempo e total dedicação e persistência e paciência, e o zelo com que um pai guarda com dedicada atenção a filha para o casamento[2], ou chora a separação dos seus filhos, como ele próprio testemunha, escrevendo às comunidades cristãs por ele fundadas[3]:

 

 

«4,14Não querendo envergonhar-vos (entrépôn: part. pres. de entrépô) escrevo estas coisas, mas como meus filhos amados (tékna mou agapêtá) admoestando (nouthetôn: part. pres. de vouthetéô). 15Ainda que tivésseis tido dez mil pedagogos (paidagôgoús) em Cristo, não tendes muitos pais (patéras), pois em Cristo Jesus, por meio do Evangelho, eu vos GEREI (egénnêsa: aor. de gennáô)» (1 Cor 4,14-15).

 

«10Rogo-te pelo meu filho (perì toû emoû téknou), Onésimo, que GEREI (egénnêsa: aor. de gennáô) na prisão» (Flm 10).

 

«4,19Meus filhos (tékna mou), que DOU À LUZ SOFRENDO (ôdínô), até que (méchris hoû) seja formado (morphôthê: conj. aor. pass. de morphóô) Cristo em vós» (Gl 4,19).

 

«11,2Sou, na verdade, zeloso por vós, com o zelo de Deus, pois dei-vos em casamento (hermosámên: aor. médio de harmózô) a um único esposo, como virgem pura (parthénon hagnên), para vos apresentar (parastêsai: inf. aor. de parístêmi) a Cristo (tô Christô)» (2 Cor 11,2).

 

«2,17Nós, porém, irmãos, desfilhados (aporphanisthéntes: aor. pass. de aporphanízô) de vós por um momento, da vista, que não do coração, mais do que nunca estamos ansiosos e com muito desejo de ver o vosso rosto» (1 Ts 2,17).

 

A linguagem é vivíssima, e traduz o amor dilecto e sem restrições deste Pai pelos seus filhos amados. Mas deixa entrever também a relação de filial e terna dependência destes filhos para com o Pai.

De notar a força da locução «em Cristo (Jesus)», usada em sobreposição (1 Cor 4,15), e que será estudada adiante (ponto 9.).

De registrar também o vivo contraste, recurso habitual em Paulo, entre o não querer deixar vermelhos de vergonha (entrépô) os coríntios com as suas advertências fortes (leia-se 1 Cor 4,8-13), mas admoestar (nouthetéô [= noûs títhêmi = «pôr na mente» ou «pôr a mente»; reclama o muito semítico «pôr o coração» (sîm leb)]) os seus filhos amados com carinho (1 Cor 4,14)[4].

Também fica projectado na tela, com toda a luz e com toda a força, que gerar os filhos e dá-los à luz não são actos, mas atitudes a prosseguir até à (méchris hoû) configuração ou conformação com Cristo (Gl 4,19)[5]. Esta é, de resto, a atitude da esperança patente na celebraçção da Ceia do Senhor: «Anunciais a morte do Senhor até que (áchris hoû) Ele venha» (1 Cor 11,26).

Em 1 Ts 2,17, Paulo alude à sua saída forçada de Tessalónica, sentindo-se como que «desfilhado», para aludir à dor que sente um pai quando perde os seus filhos. A cultura grega, como a nossa, dá relevo aos filhos que perdem os pais, e as respectivas línguas designam essas crianças com o termo «órfãos». Há também os pais que perdem os filhos, mas a nossa cultura não lhes dá tanto relevo, e a nossa língua não tem um termo adequado para traduzir essa dor. A cultura hebraica sempre valorizou esta dor desses pais, e tem um termo para a dizer: shekôl, shikulîm[6]. Na verdade, é com shekôl que a língua hebraica traduz o grego aporphanisthéntes de 1 Ts 2,17, que só encontramos aqui em toda a Escritura[7]. Leia o resto deste artigo »


PAULO, MODELO DE EVANGELIZADOR (7)

Janeiro 29, 2009

7. A identidade de apóstolo e de servo

«Paûlos é o único nome que o Apóstolo usa para si mesmo nas suas Cartas autênticas ou que é usado em referência a ele nas Deuteropaulinas e nas Pastorais»[1]. É Lucas que, no Livro dos Actos dos Apóstolos, fala de outro nome, Saulo, na forma grecizada de Saûlos (Act 7,58; 8,1.3; 9,1.8.11.22.24; 11,25.30; 12,25; 13,1.2.7.9), ou na forma semítica transliterada de Saul [Sha’ûl] (Act 9,4 e 17; 22,7 e 13; 26,14). E não é sem alguma estranheza que, depois de ter usado sempre Saulo e Saul, e nunca Paulo, vemos o autor dos Actos a escrever assim em Act 13,9: «Saulo, dito também Paulo» (Saûlos dé, ho kaì Paûlos), passando a usar, a partir daqui, habitualmente Paulo[2].

Dizer «Paulo» é dizer «o Apóstolo Paulo»[3]. De facto, «Apóstolo» (apóstolos) é o título que Paulo adscreve mais vezes ao seu nome Paulo (Paûlos), na apresentação (titulatio) das suas Cartas: Rm 1,1; 1 Cor 1,1; 2 Cor 1,1; Gl 1,1; Ef 1,1; Cl 1,1; 1 Tm 1,1; 2 Tm 1,1; Tt 1,1[4]. Só não segue este procedimento nas Cartas aos Filipenses, 1 e 2 Tessalonicenses e Filémon[5]. É quanto se pode ver a seguir detalhadamente, com o nome e os títulos em destaque:

 

«1,1PAULO, SERVO de Cristo Jesus (doûlos Christoû Iêsoû), chamado APÓSTOLO, separado (aphôrisménos: part. perf. pass. de aphorízô) para o Evangelho de Deus» (Rm 1,1).

«1,1PAULO, chamado APÓSTOLO de Cristo Jesus (apóstolos Christoû Iêsoû), por vontade de Deus…» (1 Cor 1,1).

«1,1PAULO, APÓSTOLO de Cristo Jesus (apóstolos Christoû Iêsoû), por vontade de Deus…» (2 Cor 1,1).

«1,1PAULO, APÓSTOLO, não por parte dos homens nem por intermédio de um homem, mas por Jesus Cristo (dià Iêsoû Christoû) e Deus Pai, que o ressuscitou dos mortos» (Gl 1,1).

«1,1PAULO, APÓSTOLO de Jesus Cristo (apóstolos Iêsoû Christoû), pela vontade de Deus…)» (Ef 1,1).

«1,1PAULO e Timóteo, SERVOS de Cristo Jesus (doûloi Christôu Iêsoû)…» (Fl 1,1).

«1,1PAULO, APÓSTOLO de Cristo Jesus (apóstolos Christoû Iêsoû), por vontade de Deus…» (Cl 1,1).

«1,1PAULO e Silvano e Timóteo…» (1 Ts 1,1).

«1,1PAULO e Silvano e Timóteo…» (2 Ts 1,1).

«1,1PAULO, APÓSTOLO de Cristo Jesus (apóstolos Christoû Iêsoû)…» (1 Tm 1,1).

«1,1PAULO, APÓSTOLO de Cristo Jesus (apóstolos Christoû Iêsoû)…» (2 Tm 1,1).

«1,1PAULO, SERVO de Deus, APÓSTOLO de Jesus Cristo (apóstolos Iêsoû Christoû)…» (Tt 1,1).

«1PAULO, PRISIONEIRO de Cristo Jesus (désmios Christoû Iêsoû)…» (Flm 1).

 

Salta à vista a frequência da locução «Apóstolo de Cristo Jesus» (1 Cor,1,1; 2 Cor 1,1; Cl 1,1; 1 Tm 1,1; 2 Tm 1,1), por duas vezes alterada para «Apóstolo de Jesus Cristo» (Ef 1,1; Tt 1,1).  «Servo de Cristo Jesus» também se ouve por duas vezes (Rm 1,1; Fl 1,1). Uma vez ressoa «Prisioneiro de Cristo Jesus» (Flm 1). Vê-se bem que estas locuções configuram genitivos subjectivos (o apóstolo é enviado por Cristo) e/ou genitivos de posse (o apóstolo pertence a Cristo), acentuando bem a profunda ligação que une Paulo a Cristo[6]. A locução «Apóstolo por Jesus Cristo» (apóstolos dià Iêsoû Christoû) (Gl 1,1) constitui também um genitivo subjectivo[7].

Pressente-se também que é muito querido a Paulo o título de «apóstolo das nações» (ethnôn apóstolos) (Rm 11,13; cf. Gl 1,16; 2,2.8-9)[8], vendo nas «nações» os «não-judeus»[9], ainda que a sua «preocupação quotidiana» (epístasis kath’êméran) seja «o cuidado (hê mérimna) de todas as Igrejas (pasôn tôn ekklêsiôn)» (2 Cor 11,28)[10]. Leia o resto deste artigo »


PAULO, MODELO DE EVANGELIZADOR (6)

Janeiro 27, 2009

6. A força nova de uma testemunha

No seu discurso aos Membros do Consilium de Laicis, proferido em 02 de Outubro de 1974[1], Paulo VI fez uma importante afirmação, que depois retomou na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (08 de Dezembro de 1975), n.º 41:

  

«O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas».

 

Paulo entra bem nesta catalogação do mestre que é testemunha. Ele sabe bem que foi chamado desde o ventre materno (Gl 1,15; cf. Is 49,1; Jr 1,5). Que foi agarrado por Jesus Cristo (Fl 3,12). Que foi amado por Jesus Cristo (Gl 2,20). Que o amor de Cristo tomou conta dele (hê agápê toû Christoû synéchei hêmâs) (2 Cor 5,14), programando-o[2]. Que, para ele, viver é Cristo (Fl 1,21), pois é Cristo que vive nele (Gl 2,20), e fala nele (2 Cor 13,3)[3].

É por isso que Paulo estava tomado (syneícheto: imperf. passivo de synéchô) pela Palavra o tempo todo, dando testemunho aos judeus de que Jesus era o Cristo (Act 18,5). Tomava conta da Palavra, que tomou conta dele.

A abrir o Capítulo nono da Primeira Carta aos Coríntios, Paulo apresenta as suas credenciais apostólicas, servindo-se de uma série de perguntas retóricas que reclamam outras tantas respostas afirmativas enfáticas[4]:

  

«9,1Não sou livre? Não sou apóstolo? Não VI (heôraka) Jesus, o Senhor nosso?» (1 Cor 9,1).

 

Este VER, no tempo perfeito grego, indica que Paulo não se refere apenas a uma experiência do passado, que não afecta o presente, mas a uma experiência cujo efeito continua no presente[5]. Empregando este tempo gramatical, Paulo afirma que viu e que continua a ver Jesus, apresentando-se, portanto, como uma testemunha credível e convincente. O tempo perfeito é o tempo da testemunha. Só alguém com a vida cheia de Jesus pode dar testemunho de Jesus. Leia o resto deste artigo »


PAULO, MODELO DE EVANGELIZADOR (5)

Janeiro 26, 2009

5. A palavra da Cruz

Pela sua importância, vale a pena transcrever este imenso texto do princípio da Primeira Carta aos Coríntios:

 

«1,10Exorto-vos, irmãos, pelo nome do Senhor Nosso, Jesus Cristo, para que a mesma coisa digais todos, e não haja entre vós divisões (schísmata); ao contrário, sede remendadores (katêrtisménoi: part. perf. pass. de katartízô) (cf. Mc 1,19; Mt 4,21 = remendar as redes) no mesmo pensamento e no mesmo parecer. 11Foi-me, na verdade, feito saber a respeito de vós, meus irmãos, pelos de Cloé, que há rixas (érides) entre vós. 12Digo isto, porque cada um de vós diz: “Eu sou de Paulo, eu de Apolo, eu de Cefas, eu de Cristo”.

13Está dividido em partes (meméristai: perf. pass. de merízô) Cristo? Não foi Paulo que foi crucificado (estaurôthê: aor. pass. de stauróô) por vós (hypèr hymôn), pois não? Também não fostes baptizados no nome de Paulo, pois não? 14Dou graças a Deus por não ter baptizado nenhum de vós, a não ser Crispo e Gaio, 15para que ninguém diga que, no meu nome, fostes baptizados. 16É verdade que também baptizei a casa de Estéfanas; de resto, não sei se alguém mais baptizei.

 

17Na verdade, Cristo não me enviou (apésteilen: aor. de apostéllô) a baptizar (baptízein), MAS A EVANGELIZAR (allà euaggelízesthai), não com a sabedoria da palavra (ouk en sophía lógou), para que não seja esvaziada (kenôthê: aor. pass. de kenóô) a Cruz de Cristo (ho stauròs toû Christoû).

 

18Na verdade, a palavra, a da Cruz (ho lógos ho toû stauroû) loucura (môría) para os que se perdem (apóllyménois) é, mas, para os que se salvam (sôzoménois), para nós, poder de Deus é. 19Está escrito (gégraptai), na verdade: “Destruirei a sabedoria dos sábios,/ e a inteligência dos inteligentes anularei. 20Onde está o sábio? Onde está o escriba?” Onde está o argumentador (syzêtêtês) deste tempo? Não tornou louca (emôrasen: aor. de môraínô) Deus a sabedoria do mundo? 21Visto que o mundo, por meio da sabedoria, não conheceu Deus na sabedoria de Deus, aprouve (eudókêsen) a Deus, por meio da loucura do anúncio (dià tês môrías toû kêrýgmatos), salvar os que acreditam (toùs pisteúontas). 22Os judeus pedem sinais (sêmeîa), e os gregos procuram a sabedoria (sophía); 23nós, porém, anunciamos (kêrýssomen) Cristo crucificado (Christòn estaurôménon: part. perf. pass. de stauróô), escândalo para os judeus, loucura (môría) para os gentios. 24Mas, para aqueles que são chamados (toîs klêtoîs), quer judeus quer gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus. 25Na verdade, a loucura de Deus (tò môròn toû theoû) é mais sábia do que os homens, e a fraqueza (asthenés) de Deus é mais forte do que os homens» (1 Cor 1,10-25).

 

Pela configuração que demos ao texto, deixámos em posição central o v. 17, que vários autores consideram a chave de compreensão de 1 Cor 1-4, e mesmo da inteira Primeira Carta aos Coríntios[1]. Na verdade, em 1 Cor 1,17, está bem formulada a tese de Paulo: foi enviado (apóstolo) por Cristo a Evangelizar, não como um saltimbanco da linguagem[2], com eloquência e autosuficiência quanto baste, mas com a palavra frágil e escandalosa da Cruz.

A anteceder o v. 17, fala-se de divisões que há que remendar, diferentes grupos de pertença identificados pelos seus patronos, cinco menções do verbo «baptizar». Imediatamente a seguir ao v. 17, fala-se de «a palavra da Cruz» (ho lógos ho toû stauroû) – fórmula condensada e original, só aqui em todo o NT[3] –, da loucura (môría, môrós, môraínô)[4] do poder de Deus que destrói a sabedoria do mundo, do anúncio de Cristo crucificado para sempre: tal é o significado do perfeito passivo estauroménon[5].

Dupla loucura é que a Cruz seja ad unius o objecto e o método do anúncio. A Cruz é o sinal de que Deus nos ama radicalmente debruçando-se por amor sobre nós, e que se recusa a impor o amor[6]. O crucificado (estauroménon) mostra que a dádiva da vida é total e permanente. Cúmulo da loucura: da palavra da Cruz faz parte o anúncio de que Cristo Ressuscitado é aquele crucificado[7]. Veja-se a esta luz a força da expressão «Senhor (é) Jesus» (Kýrios ’Iêsoûs; aramaico: Mareh Iêshou‘) (Rm 10,9; 1 Cor 12,3) ou «Senhor (é) Jesus Cristo» (Kýrios ’Iêsoûs Christós) (Fl 2,11), e compreenda-se bem a diferença em relação à expressão secundária «Jesus (é) Senhor». A primeira formulação, que mantém a ordem correcta das palavras, provém da linguagem da confissão de fé (homología), como quem responde à pergunta: «Quem é Senhor?», «Quem reconheces tu como Senhor?»[8].

E este anúncio, além de reclamar a nossa radical identificação com Cristo que dá a sua vida por nós, convida-nos ainda a subir ao púlpito para proclamar o Evangelho de Cristo, alto e bom som[9]. Anunciar a morte de Jesus não tem qualquer sentido fúnebre, não é anunciar o sofrimento dorido ou a coragem do herói, tão-pouco a resignação ou, no pólo oposto, qualquer aspecto belicoso – do tipo in hoc signo vinces, de constantiniana memória, transposto depois para o estandarte dos cruzados[10], ou qualquer outra manifestação de heroicidade a favor de alguém e contra alguém, como vemos nos modernos kamikaze –, mas sim a soberana novidade da dádiva da vida por amor a todos sem excepção.

Aquele «não me enviou a baptizar, mas a evangelizar» poderia levar-nos a supor a existência de uma ruptura entre entre o ministério sacramental e o ministério do anúncio. Seria um erro supor que Paulo estabelecesse um contraste entre os dois ministérios. Na verdade, tanto o Baptismo como a Ceia do Senhor proclamam o Evangelho da morte e da ressurreição de Cristo (Rm 6,3-11; 1 Cor 11,24-27)[11]. É possível, porém, ver uma certa diferença nas Cartas de Paulo entre a Ceia do Senhor, cuja prática é feita remontar directamente à tradição de Jesus, e o Baptismo, cuja prática não aparece directamente na linha da tradição de Jesus, ao contrário do que sucede, por exemplo, em Mt 28,19. Ecos desta divergência podem ver-se ainda em 1 Cor 1,13-17, em que aparece uma concepção do Baptismo que cria uma particular ligação de pertença do baptizado em relação a quem o baptiza. Charles Perrot refere mesmo que este aspecto é um dos traços característicos dos movimentos baptistas[12]. Leia o resto deste artigo »


PAULO, MODELO DE EVANGELIZADOR (4)

Janeiro 25, 2009

4. Movido pela esperança

Tensão nova. Paulo diz aos cristãos de Éfeso que, antes de terem sido encontrados por Cristo, viviam «sem esperança e sem Deus no mundo (elpída mê échontes kaì átheoi en tô kósmô)» (Ef 2,12). Este marcador Paulino atravessa a Carta Encíclica Spe salvi, de Bento XVI, de 30 de Novembro de 2007[1]. Vejam-se os números 2, 3, 23, 27 e 44. Sem Deus no mundo, habitação desabitada, não há esperança. Pode haver apenas pequenas deduções, como quem deduz o céu da terra ou o Último do penúltimo.

No mundo grego, esperança é elpís, e tem o significado de «previsão», «lícita expectativa», sempre assente nos nossos calculismos e exercícios racionais, pequenas deduções[2]. Ao contrário, a esperança bíblica e cristã, de que fala Paulo (e Bento XVI), é sem medida, tem a ver com o nunca antes visto, aponta para além das leis da natureza, está em luta aberta contra as evidências. Trata-se de «esperar contra a esperança» (par’ elpída ep’ elpídi = contra a esperança na esperança) (Rm 4,18)[3]. É assim que Paulo define a atitude de Abraão. No mundo hebraico, esperança é tiqwah[4], e deriva de qaw, que pode significar «fio», «fita métrica», «cordel para medir». Percebe-se que tem a ver com o «fio» que se estica para medir, até chegar à medida ainda sem medida e sem solução à vista – «esperança vista não é esperança» (Rm 8,24) –, mas que tem solução recebida de Deus. É como o «fio», a «corda», o «arame» estendido entre a dor e a consolação esperada, entre a humanidade e Deus, fio tenso, não abaulado – veja-se Jb 7,6 («Os meus dias correm mais depressa do que a lançadeira,/ e consomem-se sem esperança») e Rm 4,20 («Ele [Abraão] não ficou abaulado na incredulidade / desconfiança (apistía»)) –, e seguro entre duas mãos, a de Deus (sobretudo) e a nossa. Única maneira de se poder atravessar, com segurança e confiança, o vau da morte.

Paulo transfere esta imagem do «fio» ou da «corda» para o mundo e para o homem, e coloca-os nesta tensão esperante, através do recurso ao termo apokaradokía, que ele usa em Rm 8,19 e Fl 1,20, como podemos ver:

 

«8,18Penso, de facto, que os sofrimentos do tempo presente não têm medida de comparação com a glória que está para ser revelada (apokalyphthênai) em nós. 19Com efeito, O ROSTO TENSO (apo-kara-dokía) da criação (tês ktíseos) que a revelação (apokálypsis) dos filhos de Deus ESPERA em tensão RECEBER (apekdéchetai: apò + ek + déchomai)» (Rm 8,18-19).

«1,18(…)Cristo é Evangelizado, e nisto me alegro. Mas também me alegrarei, 19pois sei, de facto, que isto resultará para a salvação, por meio das vossas orações e o socorro do Espírito de Jesus Cristo, 20conforme o ROSTO TENSO (apo-kara-dokía) e a ESPERANÇA (elpís) de que não serei confundido» (Fl 1,18-20).

 

O termo apokaradokía, de apò + kara + dokéô [= fora de + cara (rosto) + esperar/olhar atentamente], que só Paulo usa no NT nas duas passagens referidas, e que é desconhecido no grego antes do Cristianismo, traduz a atitude de quem alonga o pescoço o mais que pode para tentar ver o que ainda não se vê[5]. Fica aqui bem retratada a atitude assumida por Paulo depois de ter sido AGARRADO por Jesus Cristo: «para as coisas à frente me atirando» (Fl 3,13). Leia o resto deste artigo »


PAULO, MODELO DE EVANGELIZADOR (3)

Janeiro 24, 2009

3. Três textos aurorais

A aurora é a metáfora de uma luz nova, que vem de fora, e que se contrapõe à metáfora da luz que em nós mora, a luz da nossa pequena razão. A iniciativa gratuita de Deus precede sempre a nossa pesquisa, o nosso pequeno esforço, meditação, exercícios espirituais, longas orações, jejuns[1]. Vejamos os três lugares clássicos em que Paulo diz, em jeito autobiográfico, esta imensa novidade:

 

 

«15,3Transmiti-vos (parédoka: aor. de paradídômi), na verdade, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi (parélabon: aor de paralambánô): que Cristo morreu (apéthanen: aor2 de apothnêskô) pelos nossos pecados segundo as Escrituras, 4e que foi sepultado (etáphê: aor2 pass. de thápô) e que foi ressuscitado (egêgertai: pf. pass. de egeírô)[2] ao terceiro dia segundo as Escrituras, 5e que SE FEZ VER (ôphthê: aor. pass. de horáô) a Cefas (Kêphã), e depois aos Doze. […] 8Em último lugar, FEZ-SE VER (ôphthê) também a mim (emoí), 9(…)o mais pequeno dos apóstolos (ho eláchistos tôn apostólôn) (…); 10é pela graça de Deus (cháriti dè theoû) que sou o que sou (eimi hó eimi), e a sua graça em mim não ficou vazia (kenê)» (1 Cor 15,3-5.8-10).

 

«1,11Dou-vos a conhecer (gnôrízô), irmãos, o EVANGELHO evangelizado por mim (tò euaggélion tò euaggelisthèn hyp’ emoû), que não é segundo o homem (ouk éstin katà ánthrôpon), 12nem, na verdade, eu o recebi de homem (oudè gàr egô parà anthrôpou parélabon autó), nem fui ensinado (oúte edidáchthên: aor. pass. de didáskô), mas por REVELAÇÃO de JESUS CRISTO (allà di’ apokalýpseôs Iêsoû Christoû). […] 15Quando, pois, aprouve (eudókêsen) a Deus – aquele que me separou (aphorísas) desde o ventre de minha mãe, e me chamou (kaléô) por meio da sua graça –, 16REVELAR (apokalýpsai) o seu Filho em mim, a fim de o evangelizar (hína euaggelízomai autón)» (Gl 1,11-12.15-16).

 

«3,12Não que eu já a tenha recebido (élabon: aor2 de lambánô) ou já tenha chegado à perfeição (teteleíômai: perf. pass. de teleióô), mas persigo/corro (diôkô) para a agarrar (katalábô), pois também FUI AGARRADO (katelêmphthên: aor. pass. de katalambánô) por Jesus Cristo. 13Irmãos, eu mesmo não penso tê-la agarrado (kateilêphénai: inf. perf. katalambánô), mas UMA COISA (hèn dé): as coisas atrás (tà ôpísô) esquecendo (epilanthanómenos: part. pres. médio de epilanthánomai), para as coisas à frente (toîs émprosthen) me atirando (epekteinómenos: part. pres. médio de epekteínomai), 14para a META (skopós) persigo/corro (diôkô) para o PRÉMIO (brabeîon) da chamada celeste de Deus (tês ánô klêseôs toû theoû) em Cristo Jesus (en Christô Iêsoû)» (Fl 3,12-14).

 

É grandemente significativo que, para falar deste começo novo, imprevisível e não programável – que não é «segundo o homem» nem o «recebeu de homem» nem «foi ensinado» (Gl 1,11 e 12) –, Paulo recorra a dois verbos de REVELAÇÃO (ôphthê, aor. pass. de horáô, e apokalýptô) e a um de LUTA (katelêmphthên, aor. pass. de katalambánô).

A locução ôphthê Kêphã [= «Fez-se ver a Cefas»] (1 Cor 15,5) ou ôphthê emoí [= «fez-se ver a mim»] (1 Cor 15,8) merece a nossa atenção. Kêphã [= «a Cefas»] ou emoí [= «a mim»] configura umdativo dito «do beneficiário» usado com o passivo ôphthê, com significado intransitivo. Esta construção do verbo «ver» (ôphthê) sublinha a iniciativa gratuita e soberana de Deus, que deve traduzir-se por «fez-se ver a», e não por «foi visto por»[3], salvaguardando a iniciativa absoluta de Deus.

A locução apokálypsis Iêsoû Christoû [= «revelação de Jesus Cristo»] (Gl 1,12), sendo «de Jesus Cristo» um genitivo subjectivo que acentua que é de Jesus Cristo a acção de revelação[4], subtrai o Evangelho evangelizado por Paulo do âmbito da acção didáctica, da instrução, da aprendizagem e transmissão humana, mas também do âmbito da autodidáctica – Paulo não aprendeu por si mesmo –, para o âmbito novo da «teodidáctica» ou da intervenção divina. Paulo apresenta-se aqui como um «teodidacta» (theodídaktos) (cf. 1 Ts 4,9)[5], sendo o Evangelho que vive e anuncia obra de Deus nele gravada por amor[6]. O Evangelho (tò euaggélion) é um termo tipicamente Paulino, pertencendo a Paulo 60 das 76 menções que ocorrem no NT[7].

Ensinado por Deus (theodídaktos), recebedor de Deus (theodóchos), imitador (mimêtês) de Deus (1 Cor 11,1; cf. 4,16; Ef 5,1; 1 Ts 1,6; 2 Ts 3,7): ser na terra um «mimo» (mîmos) de Deus, fazer como Deus faz, fazer descer o céu à terra[8]. Leia o resto deste artigo »


PAULO, MODELO DE EVANGELIZADOR (2)

Janeiro 24, 2009

2. Uma luz que vem de fora

Encontram-se no Livro dos Actos dos Apóstolos três descrições da reviravolta (evitemos o termo «conversão») operada na vida de Paulo: Act 9,1-19 (em terceira pessoa), Act 22,1-21 e 26,2-23 (em forma autobiográfica). A descrição mencionada em Act 26,2-23 constitui o último discurso que Paulo faz em sua defesa, em Cesareia Marítima, diante do rei Agripa, e é a mais rica em acenos autobiográficos. Deixando de lado aspectos inverosímeis como, por exemplo, a perseguição em cidades estrangeiras (26,11-12; cf. 9,2; 22,5) movida a partir de Jerusalém[1], retenhamos apenas aquela luz nova, vinda de fora, em pleno meio-dia, que atinge e envolve Paulo de forma decisiva (Act 9,3; 22,6; 26,13):

 

 

«9,3Enquanto caminhando, aconteceu, quando se aproximava de Damasco, subitamente, relampejou à minha volta (periêstrapsen: aor. de periastráptô) uma luz (phôs), vinda do céu» (Act 9,3).

 

«22,6Aconteceu que, enquanto caminhava, e ao aproximar-me de Damasco, pelo meio-dia, subitamente, do céu relampejou (periastrápsai: inf. aor. de periastráptô) uma luz (phôs) à minha volta» (Act 22,6).

 

«26,13Ao meio-dia, no caminho, vi, ó rei, vindo do céu, com mais brilho do que o sol, uma luz (phôs) a refulgir à minha volta (perilámpsan) e dos que iam comigo» (Act 26,13).

 

Luz nova, porque vinda de fora, do céu, de Deus, arrasta consigo uma nova criação, um novo nascimento: no «dia Um» da criação, «Deus viu que a luz era boa» (Gn 1,3-4), e foi nesta bondade que tudo foi criado; quando Isaías põe em cena o menino-messias (Is 9,1-6), «uma luz refulge (phôs lámpsei LXX)» (Is 9,1); quando Jesus nasce em Belém, «a glória do Senhor refulgiu à volta (periélampsen) deles [pastores]» (Lc 2,9)[2].

Lida por Paulo, esta luz nova – nova criação e novo nascimento (2 Cor 4,6 é o eco de Gn 1,3-4, modificado pela expressão phôs lámpsei [= «uma luz refulge»] de Is 9,1)[3] – recria-o e recria-nos, desde o coração, com um novo conhecimento e um novo nascimento (2 Cor 4,6)[4]:

 

 

«4,6Porquanto, Deus, aquele que disse: “Das trevas a luz refulgirá (phôs lámpsei)”, é aquele que refulgiu (élampsen) nos nossos corações para a iluminação (pròs phôtismón) que é o conhecimento da glória de Deus (tês gnôseôs tês dóxês toû theoû)[5] no rosto de [Jesus] Cristo (en prosôpô Christoû)» (2 Cor 4,6).

 

Novo conhecimento de Deus, que se declina na passiva: conhecer Deus é ser conhecido primeiro por Deus[6]. O conhecimento na passiva precede o nosso conhecimento activo, que pressupõe aquele[7].

Ver, a propósito deste novo conhecimento que se declina na passiva, o texto de Gl 4,9, em que Paulo faz uma afirmação na activa, para logo a corrigir, completar e reformular pela passiva:

 

 

«4,8Outrora, porém, não conhecendo (ouk eidótes: part. perf. de oîda) Deus, servistes a deuses que, na sua verdadeira natureza (phýsei), não o são. 9Agora, porém, tendo conhecido (gnóntes: part. aor2 de ginôskô) Deus, ou melhor (mâllon dè), tendo sido conhecidos (gnôsthéntes: part. aor2 pass. de ginôskô) por Deus (hypò theoû)» (Gl 4,9).

 

O uso repetido, mas corrigido (da activa para a passiva), do aoristo do verbo conhecer marca a ruptura com o longo estado anterior de desconhecimento de Deus, expresso com o perfeito – «não conhecendo (ouk eidótes: part. perf. de oîda) Deus» (Gl 4,8) –, e sublinha o início de uma nova relação estabelecida por uma livre e gratuita iniciativa de Deus, antigamente com Israel, agora com os Gálatas[8]. Leia o resto deste artigo »


PAULO, MODELO DE EVANGELIZADOR (1)

Janeiro 23, 2009

Começamos aqui a apresentar um texto longo sobre «PAULO, MODELO DE EVANGELIZADOR». Por ser longo, será apresentado em treze posts, diariamente, numerados de 1 a 13, pois estão em continuidade. O que se segue é o primeiro.

1. Um Paulo nascido do sangue, do zelo e do esforço meticuloso

As páginas autobiográficas que se seguem mostram-nos um Paulo orgulhoso da sua raça, das suas raízes culturais e religiosas, que recorda e ostenta com vivo entusiasmo e emoção, ao mesmo tempo que nos deixam ver o entranhado empenho com que se devotou a elas a tempo inteiro e de corpo inteiro, defendendo ciosa, enérgica e, por vezes, violentamente o seu tesouro judaico – assiste-se a uma «progressão de privilégio» do plano da raça e do sangue para o plano religioso e teológico[1] – de tudo aquilo que lhe parecia hostil, nomeadamente a jovem Igreja de Cristo[2]:

 

 

«11,22São hebreus? Também eu. São israelitas? Também eu. São descendentes de Abraão? Também eu» (2 Cor 11,22).

 

«11,1Eu também sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim» (Rm 11,1).

 

«3,5Circuncidado ao oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu, filho de hebreus, quanto à lei fariseu, 6quanto ao zelo, perseguidor (diôkôn) da Igreja, quanto à justiça que há na Lei, irrepreensível» (Fl 3,5-6).

 

«1,13Ouvistes certamente da minha conduta de outrora no judaísmo, de como com excesso (kath’ hyperbolên) perseguia (edíôkon: imperf. de diôkô) a Igreja de Deus e a devastava (epórthoun: imperf. de porthéô), 14e progredia (proékopton: imperf. de prokóptô) no judaísmo mais do que muitos da minha idade e da minha raça, sendo muito mais zeloso das tradições dos meus pais» (Gl 1,13-14).

 

De notar ainda, neste último texto, os três imperfeitos de duração seguidos, que marcam bem a sua acção constante[3]. Por estes breves acenos autobiográficos, podemos entrever um retrato de Paulo, sem meias tintas – «Ninguém pode servir a dois senhores» (Mt 6,24) vale para o homem oriental; nós, ocidentais, arranjamos sempre maneira de o conseguir fazer! –, organizado, determinado e apaixonado, de acordo com a descrição precisa de Amédée Brunot, que refere que Paulo se apresenta como «homem de razão como o grego, homem de acção como o romano, homem de paixão como o oriental»[4].

(continua no póximo post)

 

António Couto


[1] M. J. HARRIS, The Second Epistle to the Corinthians. A Commentary on the Greek Text, Grand Rapids – Milton Keynes, Eerdmans – Paternoster, 2005, p. 794-796.

[2] Ver também C. M. MARTINI, Il Vangelo di Paolo, Milão, Àncora, 2007, p. 12-15; J. GNILKA, Pablo de Tarso. Apóstol y testigo, Barcelona, Herder, 1998, p. 25.

[3] S. LÉGASSE, L’Épître de Paul aux Galates, Paris, Cerf, 2000, p. 87, nota 4.

[4] A. BRUNOT, Le génie littéraire de Saint Paul, Paris, Cerf, 1955, p. 227.


PAULO DE CRISTO

Janeiro 20, 2009

 

Era uma vez uma estrada, uma carreira, um curso, um percurso,

que só havia uma maneira de fazer: a correr.

Está-se mesmo a ver

só se iria inscrever

quem não gostasse mesmo nada de perder.

 

Corria então nessa estrada

um famoso corredor,

a transbordar de zelo e de ardor,

indómito lutador.

Já se sabia,

saía

sempre vencedor.

 

Até que um dia

à hora do meio-dia,

do sol a pique e de Deus na via,

um novo corredor vindo de fora,

não se sabe de onde,

agarrava

e ultrapassava

nessa estrada

o corredor.

 

A estrada era para os lados de Damasco,

Paulo o corredor,

Jesus o novo vencedor.

 

Começa aqui outra história

de outro amor

com Paulo a correr

por dentro e por fora

até morrer.

 

Fora de si,

dentro de si,

movimento transitivo

no mapa, nos mares, nas estradas, nas cidades,

movimento intransitivo,

ao jeito de Abraão,

rasgando avenidas no próprio coração.

 

Mas não quis mais correr sozinho.

Para mim correr é Cristo,

dizia,

e corria agarrado à sua mão.

Uma mão na mão de Cristo,

a outra apertando a de um irmão e outro irmão e outro irmão,

uma verdadeira multidão

em comunhão.

 

É verdade,

quando Jesus irrompe na vida de alguém,

interrompe a normalidade de um percurso,

e rompe essa vida em duas partes desiguais:

uma que fica para trás,

outra que se abre agora à nossa frente,

recta como uma seta directa a uma meta,

a um alvo, um objectivo intenso e claro,

tão intenso e claro que na vida de cada um

só pode haver um!

 

 

António Couto


A GRAÇA COMO A BÍBLIA A DIZ

Janeiro 16, 2009

 

A GRAÇA temmary_holding_baby_jesus_md_wht

tempo e jeito

maternal

 

Descobre sempre

alguém

para embalar

 

A GRAÇA só sabe

dizer SIM

 

A GRAÇA é Deus

a olhar por MIM

 

Sou eu também

A olhar por ti

Assim.

 

 

António Couto


UMA NOVA HUMANIDADE PARA O SÉCULO XXI

Janeiro 14, 2009

 

1. Nós, que acabámos de transpor o umbral do século XXI, carregamos na memória um grande saco de contradições: por um lado, os fantásticos progressos do século XIX, em todos os âmbitos da vida, da locomotiva ao avião, do telégrafo ao telefone, da física clássica à teoria da relatividade…; por outro lado, as indescritíveis catástrofes do século XX, com lugar marcado em Verdun e Estalinegrado, Auschwitz e Gulag, Hiroshima e Chernobyl… E ficamos com a sensação de que a «razão instrumental», guiada por interesses perversos e ilimitados de poder, prevaleceu amplamente sobre a «razão como sabedoria», a sabedoria do amor, ao serviço de todos os homens.

 

2. Pelos cálculos de Hegel, o mundo moderno terá nascido em 1492 com a descoberta da América e de outros continentes pela Europa, que passou assim da periferia para o centro do mundo. Antes dessa data, os poderes da Europa eram insignificantes, quando comparados com os impérios Otomano, Mongol ou Chinês. Mas a América não foi apenas descoberta ou conhecida, mas sobretudo tomada pela força e «formatada» segundo a vontade dos conquistadores. Pouco depois, no século que medeia entre a morte de Copérnico (1543) e o nascimento de Newton (1643), tem lugar outra conquista significativa: a conquista da natureza pelo poder científico-técnico. Estas duas conquistas constituem as duas pedras-base da «nova ordem mundial», que ainda hoje perdura, não obstante o centro ter passado entretanto da Europa para os EUA, como significativamente documentam as notas de um dólar, em que se pode ver escrito em latim: novus ordo seclorum.

 

3. É um pouco como o sonho megalómano de Nabucodonosor, apresentado no Capítulo 2 do Livro de Daniel: uma enorme estátua, com a cabeça de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coxas de bronze, as pernas de ferro, os pés de barro. Mas uma pedrinha desce da montanha e vem embater contra os pés de barro da estátua. Resulta do embate que os pés de barro ficam pulverizados, mas igualmente se pulverizam as pernas de ferro, as coxas e o ventre de bronze, os braços e o peito de prata, a cabeça de ouro! Era assim o mundo de Nabucodonosor, imperador da Babilónia, e parece ser assim também a nossa sociedade pesada, rica, poderosa, técnica e metálica, mas com um grande défice de humanidade.

 

4. O certo é que a ambição de poder e riqueza e a pesada indústria dos países ricos continua a explorar brutalmente os pobres da terra e a massacrar a natureza, que se vinga no clima. No dealbar do século XXI, é bom pensar que uma simples pedrinha pode desfazer a pesada máquina das nossas inúteis megalomanias, e que mais vale ter uma cabeça cheia de bom senso do que de ouro, um coração de carne em vez de prata, um ventre de misericórdia em vez de bronze.

 

5. A crise económico-financeira em que estamos atolados é a crise da «razão instrumental», a crise de um mundo que transformou tudo em coisas com três dimensões, e em que também as pessoas não passam de coisas ou de meios que podem ser usadas a nosso bel prazer ou poder, para depois deitarmos fora. É o fim de um mundo, que Edmund Pellegrino traduz muito bem com a expressão: «excesso de meios, míngua de fins». É absolutamente escandaloso que um cão do primeiro mundo tenha à sua disposição dezassete vezes mais bens do que uma criança do terceiro mundo!

 

6. Desde 1979 que as pesquisas efectuadas no domínio da recente e pluridisciplinar psiconeuroimunologia nos vêm surpreendendo com dados fantásticos. O Congresso Internacional «The early human life», realizado em Roma, de 6 a 8 de Setembro de 2000, divulgou novas e sensacionais descobertas que confirmam as pesquisas efectuadas nos anos anteriores, e que bem podem servir de paradigma para a nova humanidade que entra no século XXI. Salvatore Mancuso e Mariella Zezza acabam de publicar (Dezembro de 2008), na Poletto Editore, de Milão, «La prima casa», um belíssimo livro que fala do maravilhoso intercâmbio entre bebé e mãe no ventre materno. Já sabíamos que uma criança herda cinquenta por cento do património genético da sua mãe, como já sabíamos também que o feto está continuamente em contacto com o mundo exterior através do organismo materno. A surpresa que tem vindo a revelar o Prof. Salvatore Mancuso, Director do Instituto de ginecologia e obstetrícia da Universidade Católica do Sagrado Coração, de Roma, mostra que também a mãe sofre, por influência do filho, modificações a longo prazo, que ultrapassam em muito o período da gestação. Diz o Prof. Mancuso que, «desde as primeiríssimas fases da subdivisão celular, partem do embrião mensagens dirigidas à mãe, informações que servem para fazer adaptar o organismo da mãe à presença do novo ser vivo. Depois da implantação do embrião, o diálogo torna-se mais intenso por via sanguínea e celular. Agora temos as provas – refere o Prof. Mancuso – de que as células estaminais do filho passam para a mãe em grande quantidade, implantam-se sobretudo nos órgãos linfáticos e na medula óssea, de que nunca mais se separam, e de que nascem linfócitos durante o resto da vida da mãe. Esta ponte é mesmo incrementada na hora do parto ou do aborto. Mesmo à distância de trinta anos do parto, a mãe continua a levar dentro de si alguma coisa do filho, e, através do filho, também do marido, dado que o filho transporta também cinquenta por cento de património genético do pai. (…) Pode agora dizer-se que, de certa maneira, a gravidez não dura apenas as quarenta semanas usuais, mas dura por toda a vida».

 

7. A passagem das células do feto para a mãe inicia-se muito cedo, já a partir do quinto dia da concepção, tornando-se mais evidente a partir da quarta semana. Mas também do organismo materno são enviadas células ao filho, e também no filho estas células maternas persistem na idade adulta. Oh singular entrelaçamento, maravilhosa simbiose entre mãe, pai e filho, oh singular maravilha da família!

 

8. Para reavivar esta maravilha, realiza-se agora, de 14 a 18 de Janeiro de 2009, na cidade do México, o Encontro Mundial das Famílias.

 

9. Tempo de rezar com o Salmista: «4Ainda a Palavra me não chegou à língua,/ e já, Senhor, a conheceis perfeitamente./ 5Por todos os lados me envolveis,/ e sobre mim pondes a vossa mão./ 6Prodigiosa ciência que não posso compreender,/ tão sublime que a não posso alcançar.// 13Vós formastes as entranhas do meu corpo,/ e me criastes no seio da minha mãe./ 14Eu vos dou graças por me haverdes feito tão maravilhosamente:/ admiráveis são as vossas obras!» (Sl 139,4-6.13-14).

 

António Couto


UNS E OS OUTROS

Janeiro 4, 2009

1. Já lá vão uns anos. Recordo-me bem. Eu morava então em El-Qubèibeh, o Emaús de Lucas 24, uma aldeiazinha completamente palestiniana, a uns 12 km para ocidente de Jerusalém. Contava-se já quase um ano de Intifada [= sublevação, levantamento popular], a célebre guerra das pedras, iniciada em 9 de Dezembro de 1987, com que os jovens palestinianos afrontavam e enfrentavam os bem armados soldados de Israel.

 

2. Todos os dias me deslocava de manhã para Jerusalém, para efeitos de estudos no Studium Biblicum Franciscanum. À noite fazia o trajecto inverso. Viajava nos transportes palestinianos, os únicos que faziam aquele trajecto com segurança. Nenhum veículo de matrícula hebraica, carro particular ou transporte colectivo, se aventurava sequer por aquelas estradas poeirentas. Sabia que poderia ser naturalmente apedrejado. O transporte fazia-se em pequenos, velhos e sujos autocarros ou pequenas carrinhas adaptadas, com bancos de madeira corridos, os chamados sherut. Como eu viajava diariamente naqueles velhos e apinhados transportes só frequentados por palestinianos, bem depressa eles se aperceberam de que eu era estrangeiro. O motorista já sorria para mim quando me via entrar, e até se esforçava por falar inglês. Os passageiros, que me olhavam com muito espanto, também faziam tudo o que podiam para que eu viajasse o mais confortável possível. Com o tempo, sobretudo os mais jovens, enchiam-me de perguntas: por que é que eu morava numa aldeia palestiniana? O que é que ia fazer todos os dias para Jerusalém? Se estudava com os hebreus? O que é que estudava? Qual era a minha religião? Ia-lhes respondendo como podia e sabia. Ficaram a saber que eu era padre católico, que não era judeu e que os admirava. Eles eram todos muçulmanos, mas lá me iam dizendo que tinham alguns amigos católicos. Ouvi-os falar com grande amor de Jerusalém, que eles chamam Al-Quds [= A Santa]. Pela minha parte, compreendi rapidamente que eles sentiam muito orgulho por ter um estrangeiro a morar no meio deles e a viajar nos transportes deles.

 

3. Com o tempo, fiz alguns amigos palestinianos. Fiz com eles grandes e arriscadas viagens por zonas que nenhum estrangeiro visita há muitos anos. Só se faziam em certos dias, com informações telefónicas quase permanentes, e outros truques estratégicos.

 

4. Mas fiz também grandes amigos hebreus, que me contavam a história e as histórias de outra maneira. Já estava habituado a passar por entre rapazes e raparigas de camisola verde e arma aperrada. Andavam sempre com a metralhadora, mesmo quando apanhavam o autocarro ou pediam boleia à beira da estrada. Às vezes viajava pelas estradas bem asfaltadas de Israel, em belos autocarros. Também me interessava, e muito, o mundo hebreu. Fiquei a saber que muitos daqueles jovens o que queriam mesmo era a paz, para poderem viver como gente normal. De facto, Israel não era uma sociedade civil; era um exército sempre armado, sempre em estado de alerta. Também me passavam informações por onde poderia andar, por onde não era conveniente. Estas informações acerca dos locais por onde se podia andar ou não, mudavam todos os dias. Transporto ainda muitas confidências, que guardo para mim.

 

5. Hoje, vejo as imagens, leio os jornais e fico triste. Sei que os ânimos estão outra vez inflamados entre dois grandes povos, que muito admiro, e que contam histórias diferentes. Ambos sonham com a paz e sabem o que é a amizade. Mas zangavam-se muito quando eu, distraído, entre uns e os outros, trocava salam por shalôm ou shalôm por salam. Salam é a saudação palestiniana (e árabe em geral). Shalôm é a saudação hebraica.

 

6. Sinceramente, em nada me fascinam as viagens pré-fabricadas a Israel. Os turistas vêem, nessas viagens, uma montagem preparada para turista ver. Mais ou menos de plástico. Fascinante mesmo é conhecer o mundo verdadeiro de israelitas e palestinianos, uns e os outros, em carne e osso e sonho. Um dia hei-de voltar para vos rever, amigos. No fundo do vosso odiozinho, eu sei que há seres humanos que anseiam pela paz, e que rezam, uns e os outros, pela paz de Jerusalém. Eu vi.

 

7. Entretanto, sofro convosco e rezo por vós, meus irmãos. Lembro-me de um poema que encontrei aí, em El-Qubèibeh, e que lembrava o encontro dos dois de Emaús com Jesus, narrado em Lucas 24. Andava escrito em várias línguas, e passa agora a conhecer também o português. Diz assim: «Todos os dias/ Te encontramos/ no caminho./ Mas muitos reconhecer-Te-ão/ apenas/ quando/ repartires connosco/ o Teu pão./ Quem sabe?/ Talvez/ no último entardecer».

 

António Couto


DIA DE «ANO BOM»: ANO DE PAZ

Janeiro 1, 2009

1. A Igreja Una e Santa celebra neste Dia de «Ano Bom», como é usual chamar-se o Primeiro Dia do Ano Civil, a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a que anda associada, desde 1968, a celebração do Dia Mundial da Paz, este Ano subordinada ao tema «Combater a Pobreza, construir a Paz». Na sua Mensagem para este 42.º Dia Mundial da Paz, o Papa Bento XVI põe diante dos nossos olhos as inúmeras situações de pobreza que atravessam o nosso tempo, e reclama, entre outros contributos, a Mensagem de João Paulo II para o Dia Mundial da Paz de 1993, então significativamente intitulada «Se procuras a Paz, vai ao encontro dos Pobres».

 

2. Desafio imenso e intenso, dado que os pobres são cada vez mais, mas nunca estão a mais! Todos têm nome e rosto, são pessoas para amar, não casos para discutir, analisar, somar, esconder ou marginalizar. São pessoas para amar. E, nesta nossa sociedade tantas vezes indiferente, insensível e anestesiada, sem amor nem dor nem alegria, cada pobre é como um despertador a impedir que seja tão fácil adormecermos no divã dos nossos egoísmos e comodismos!

 

3. Muita gente tem falado e vai continuar a falar dos pobres e da crise, com muitos números e números muito altos, muito saber e elevada competência técnico-científica. Mas nós, que vivemos do Evangelho, estamos avisados para não ficarmos preocupados quando ouvirmos falar destas coisas e quando virmos estas coisas acontecer (Lc 21,5-28). E também sabemos que a única crise verdadeira acontece quando o Evangelho embate na nossa vida, e a põe em crise, fazendo cair os nossos mais estudados e requintados sonhos, projectos e planos (Is 8,9-10), e fazendo nascer caminhos novos e germinar mundos insuspeitados.

 

4. É assim que, no Evangelho de hoje (Lc 2,16-21) – e contra toda a estudada lógica e frios calculismos humanos –, aos pastores, que são pobres, desprezados, e marginalizados pelos olhares ditos civilizados, se abre o céu e ouvem um recital de música divina e é a eles que chega a Grande Notícia e correm ao encontro do Pobre e falam do que ouviram e deixam as pessoas maravilhadas! Igual plenitude, que rompe a nossa habitual planura ou “planitude”, se sentiu no estranho nome de João dado ao filho de Isabel e de Zacarias quando ninguém na família tinha esse nome (Lc 1,59-63), se sentirá na estupenda oração de Simeão (Lc 2,29-33), nos dizeres cheios de sabedoria de Jesus no meio dos doutores (Lc 2,46-49).

 

5. De Deus vem sempre um mundo novo. Maravilhoso. Tão novo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Nm 6,24-26).

 

6. Olhada por Deus com singular olhar de Graça foi Maria – também pobre, também Feliz, Bem-aventurada –, Santa Maria, Mãe de Deus, que hoje celebramos em uníssono com a Igreja inteira. Para ela elevemos os olhos de filhos enlevados.

 

7. Mãe de Deus, Senhora da Alegria, Mãe igual ao Dia, Maria. A primeira página do ano é toda tua, Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora de Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de Janeiro, do Dia primeiro e do Ano inteiro.

 

8. Abençoa, Mãe, os nossos dias breves. Ensina-nos a vivê-los todos como tu viveste os teus, sempre sob o olhar de Deus, sempre a olhar por Deus. É verdade. A grande verdade da tua vida, o teu segredo de ouro. Tu soubeste sempre que Deus velava por ti, enchendo-te de graça. Mas tu soubeste sempre olhar por Deus, porque tu soubeste que Deus também é pequenino. Acariciada por Deus, viveste acariciando Deus. Por isso, todas as gerações te proclamam «Bem-aventurada»! Por isso, nós te proclamamos «Bem-aventurada»!

 

9. Senhora e Mãe de Janeiro, do Dia Primeiro e do Ano inteiro. Acaricia-nos. Senta-nos em casa ao redor do amor, do coração. Somos tão modernos e tão cheios de coisas estes teus filhos de hoje! Tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade! Temos tudo. Mas falta-nos, se calhar, o essencial: a tua simplicidade e alegria. Faz-nos sentir, Mãe, o calor da tua mão no nosso rosto frio, insensível, enrugado, e faz-nos correr, com alegria, ao encontro dos pobres e necessitados.

 

10. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos os irmãos que Deus nos deu! Ámen!

 

António Couto