Pela sua importância, vale a pena transcrever este imenso texto do princípio da Primeira Carta aos Coríntios:
«1,10Exorto-vos, irmãos, pelo nome do Senhor Nosso, Jesus Cristo, para que a mesma coisa digais todos, e não haja entre vós divisões (schísmata); ao contrário, sede remendadores (katêrtisménoi: part. perf. pass. de katartízô) (cf. Mc 1,19; Mt 4,21 = remendar as redes) no mesmo pensamento e no mesmo parecer. 11Foi-me, na verdade, feito saber a respeito de vós, meus irmãos, pelos de Cloé, que há rixas (érides) entre vós. 12Digo isto, porque cada um de vós diz: “Eu sou de Paulo, eu de Apolo, eu de Cefas, eu de Cristo”.
13Está dividido em partes (meméristai: perf. pass. de merízô) Cristo? Não foi Paulo que foi crucificado (estaurôthê: aor. pass. de stauróô) por vós (hypèr hymôn), pois não? Também não fostes baptizados no nome de Paulo, pois não? 14Dou graças a Deus por não ter baptizado nenhum de vós, a não ser Crispo e Gaio, 15para que ninguém diga que, no meu nome, fostes baptizados. 16É verdade que também baptizei a casa de Estéfanas; de resto, não sei se alguém mais baptizei.
17Na verdade, Cristo não me enviou (apésteilen: aor. de apostéllô) a baptizar (baptízein), MAS A EVANGELIZAR (allà euaggelízesthai), não com a sabedoria da palavra (ouk en sophía lógou), para que não seja esvaziada (kenôthê: aor. pass. de kenóô) a Cruz de Cristo (ho stauròs toû Christoû).
18Na verdade, a palavra, a da Cruz (ho lógos ho toû stauroû) loucura (môría) para os que se perdem (apóllyménois) é, mas, para os que se salvam (sôzoménois), para nós, poder de Deus é. 19Está escrito (gégraptai), na verdade: “Destruirei a sabedoria dos sábios,/ e a inteligência dos inteligentes anularei. 20Onde está o sábio? Onde está o escriba?” Onde está o argumentador (syzêtêtês) deste tempo? Não tornou louca (emôrasen: aor. de môraínô) Deus a sabedoria do mundo? 21Visto que o mundo, por meio da sabedoria, não conheceu Deus na sabedoria de Deus, aprouve (eudókêsen) a Deus, por meio da loucura do anúncio (dià tês môrías toû kêrýgmatos), salvar os que acreditam (toùs pisteúontas). 22Os judeus pedem sinais (sêmeîa), e os gregos procuram a sabedoria (sophía); 23nós, porém, anunciamos (kêrýssomen) Cristo crucificado (Christòn estaurôménon: part. perf. pass. de stauróô), escândalo para os judeus, loucura (môría) para os gentios. 24Mas, para aqueles que são chamados (toîs klêtoîs), quer judeus quer gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus. 25Na verdade, a loucura de Deus (tò môròn toû theoû) é mais sábia do que os homens, e a fraqueza (asthenés) de Deus é mais forte do que os homens» (1 Cor 1,10-25).
Pela configuração que demos ao texto, deixámos em posição central o v. 17, que vários autores consideram a chave de compreensão de 1 Cor 1-4, e mesmo da inteira Primeira Carta aos Coríntios. Na verdade, em 1 Cor 1,17, está bem formulada a tese de Paulo: foi enviado (apóstolo) por Cristo a Evangelizar, não como um saltimbanco da linguagem, com eloquência e autosuficiência quanto baste, mas com a palavra frágil e escandalosa da Cruz.
A anteceder o v. 17, fala-se de divisões que há que remendar, diferentes grupos de pertença identificados pelos seus patronos, cinco menções do verbo «baptizar». Imediatamente a seguir ao v. 17, fala-se de «a palavra da Cruz» (ho lógos ho toû stauroû) – fórmula condensada e original, só aqui em todo o NT –, da loucura (môría, môrós, môraínô) do poder de Deus que destrói a sabedoria do mundo, do anúncio de Cristo crucificado para sempre: tal é o significado do perfeito passivo estauroménon.
Dupla loucura é que a Cruz seja ad unius o objecto e o método do anúncio. A Cruz é o sinal de que Deus nos ama radicalmente debruçando-se por amor sobre nós, e que se recusa a impor o amor. O crucificado (estauroménon) mostra que a dádiva da vida é total e permanente. Cúmulo da loucura: da palavra da Cruz faz parte o anúncio de que Cristo Ressuscitado é aquele crucificado. Veja-se a esta luz a força da expressão «Senhor (é) Jesus» (Kýrios ’Iêsoûs; aramaico: Mareh Iêshou‘) (Rm 10,9; 1 Cor 12,3) ou «Senhor (é) Jesus Cristo» (Kýrios ’Iêsoûs Christós) (Fl 2,11), e compreenda-se bem a diferença em relação à expressão secundária «Jesus (é) Senhor». A primeira formulação, que mantém a ordem correcta das palavras, provém da linguagem da confissão de fé (homología), como quem responde à pergunta: «Quem é Senhor?», «Quem reconheces tu como Senhor?».
E este anúncio, além de reclamar a nossa radical identificação com Cristo que dá a sua vida por nós, convida-nos ainda a subir ao púlpito para proclamar o Evangelho de Cristo, alto e bom som. Anunciar a morte de Jesus não tem qualquer sentido fúnebre, não é anunciar o sofrimento dorido ou a coragem do herói, tão-pouco a resignação ou, no pólo oposto, qualquer aspecto belicoso – do tipo in hoc signo vinces, de constantiniana memória, transposto depois para o estandarte dos cruzados, ou qualquer outra manifestação de heroicidade a favor de alguém e contra alguém, como vemos nos modernos kamikaze –, mas sim a soberana novidade da dádiva da vida por amor a todos sem excepção.
Aquele «não me enviou a baptizar, mas a evangelizar» poderia levar-nos a supor a existência de uma ruptura entre entre o ministério sacramental e o ministério do anúncio. Seria um erro supor que Paulo estabelecesse um contraste entre os dois ministérios. Na verdade, tanto o Baptismo como a Ceia do Senhor proclamam o Evangelho da morte e da ressurreição de Cristo (Rm 6,3-11; 1 Cor 11,24-27). É possível, porém, ver uma certa diferença nas Cartas de Paulo entre a Ceia do Senhor, cuja prática é feita remontar directamente à tradição de Jesus, e o Baptismo, cuja prática não aparece directamente na linha da tradição de Jesus, ao contrário do que sucede, por exemplo, em Mt 28,19. Ecos desta divergência podem ver-se ainda em 1 Cor 1,13-17, em que aparece uma concepção do Baptismo que cria uma particular ligação de pertença do baptizado em relação a quem o baptiza. Charles Perrot refere mesmo que este aspecto é um dos traços característicos dos movimentos baptistas. Leia o resto deste artigo »