1. Na mitologia grega, Cronos, o Tempo, é filho do Céu (Urano) e da Terra (Gaia), e é uma divindade que mutila o pai e devora os seus próprios filhos, no intuito de se perpetuar no governo de tudo quanto existe numa espécie de «Idade de Ouro» permanente. Cronos, o Tempo dos relógios (cronómetros), é representado como um ancião com uma foice e uma ampulheta (relógio de areia), que inexoravelmente ceifam todas as realizações humanas: é fatal o movimento da foice; inexorável o rápido deslizar da areia na ampulheta.
2. Pela mutilação do seu pai, Cronos desliga-se do passado; devorando os seus próprios filhos à nascença, Cronos fecha-se ao futuro. Sem passado nem futuro, que tempo fica? Fica o momento à deriva, um tempo esfacelado, atomizado, feito em cacos, incomunicável, órfão e castrado, vazio, que nada recebe e nada entrega. De ninguém e a ninguém. Um tempo que não é presente, porque o presente não existe solto; tem amarras para o passado e para o futuro. Tempo do momento, esboroado em múltiplos fragmentos, sempre condenados a não serem senão fragmentos, isto é, que não se podem juntar. Tempo infecundo, infrutífero, plano como uma tábua, com planitude, mas sem plenitude. Um tempo para se gastar, como qualquer outra mercadoria à venda no supermercado. Um tempo barato. Para usar e deitar fora. Um tempo sem liberdade e responsabilidade; portanto, sem história, isto é, sem interpelação nem resposta. Um tempo morto, deitado, fechado, horizontal. Como um espaço. Um tempo preenchido com pessoas, como o espaço está preenchido com objectos. Um tempo em que se deslocam pessoas, como no espaço se podem deslocar objectos. Um tempo como um espaço em que as pessoas como os objectos apenas mudam de lugar. Um tempo em que nada acontece.
3. Tal é o tempo espacializado e mecânico e metálico de Cronos. Tal é o nosso tempo, o tempo em que vamos hoje. Para subsistir, para não morrermos de tédio, somos forçados a dilatar constantemente o pedaço de tempo em que estamos. O que se consegue, aumentando a dose emocional, intensificando a experiência do momento com novas vivências e descargas afectivas e emocionais. Mas este pedaço de tempo potenciado e dilatado não é fecundo, não faz futuro, não conhece passado, não é presente, não tem plenitude. É apenas planitude, uma tábua à deriva no oceano.
4. Tudo se passa ou gasta rapidamente. É a febre do fim do milénio, ou do fim do ano, ou do fim do curso, ou uma festa de aniversário, o dia dos namorados ou da mulher ou outro escape qualquer cujo cenário rapidamente se monta e mais rapidamente ainda se desmonta. Por momentos, a adrenalina pode subir a níveis elevados. Depois, segue-se naturalmente a depressão e o cansaço, até que um novo kick emocional apareça para enganar durante mais algumas horas o tédio habitual. É o refúgio na droga, na discoteca, no álcool ou no futebol, ou a procura de êxtases religiosos rápidos e fáceis, apregoados e vendidos nos mercados das novas seitas pós-cristãs e outras.
5. Contra a doença do Tempo enlatado de Cronos, proponho o Tempo aberto de Kairós, «o tempo da oportunidade», o tempo de Deus e do Homem, o tempo do Natal e da Páscoa, o tempo da dádiva, da graça, da receptividade, da liberdade, da responsabilidade, da história. O tempo de tomar decisões que abram rumos novos na nossa vida. Um tempo com sentido. O tempo da comunicação, da interpelação e da resposta. Não um tempo plano, mas um tempo pleno, com passado, presente e futuro, em que serenamente nos inserimos, situamos e empenhamos, de pé, como pessoas livres e responsáveis, na construção de um novo amanhã. Não como objectos mais ou menos à deriva numa espécie de tempo espacializado.
6. É preciso recuperar um Tempo com passado, presente e futuro. Com tempos, modos e causas. Com receptividade, liberdade e responsabilidade. Um tempo que seja nosso, tecido com o suor do rosto, com o coração, a inteligência e as mãos.
António Couto