MAIO E AMOR DE MÃE

Abril 30, 2009

 

1. No dizer do n.º 6 da Constituição Dogmática A Revelação Divina, do Concílio Vaticano II, a Revelação de Deus ao homem não consiste, da parte de Deus, numa coisa que ele entrega, num ditado que dita, numa lição que dá; nem, da parte do homem, numa coisa que recebe, num ditado que escreve, numa lição que aprende. Muito mais do que isso, a Revelação é Deus que a si mesmo se entrega ao homem em dádiva total.

 

2. Nesse sentido, e segundo a mesma Constituição Dogmática, n.º 5, a resposta correcta por parte do homem a esta entrega pessoal de Deus, não pode consistir, antes de mais, em aprender o que quer que seja, mas em acolher este Deus que a ele se entrega, e em entregar-se, por sua vez, livremente a Deus. E esta atitude de entrega pessoal, total, psicobiológica, do homem a Deus, que já antes se tinha entregado ao homem, chama-se .

 

3. Fé ou fidelidade diz-se em hebraico emunah. Emunah deriva do verbo aman, cujo significado primeiro é «segurar», «firmar», mas também significa «fiar-se», «confiar», «ser fiel». É, de resto, fácil entender que a confiança ou a fidelidade entre amigos, namorados ou esposos, e de nós mesmos uns com os outros, gera segurança e firmeza, enquanto que a desconfiança gera insegurança. Andamos mais seguros quando confiamos uns nos outros. Quando desconfiamos, instala-se a insegurança.

 

4. Indo um pouco mais fundo, podemos ainda verificar que o verbo aman pode assentar numa etimologia tipicamente maternal: pode derivar de omen, que significa mãe ou ama, e de amûn, que significa bebé. É sabido que o bebé se agarra [= segura-se] com todas as suas forças à sua mãe, sendo o colo da mãe o lugar mais seguro do mundo para o bebé. E o mesmo se passa do lado da mãe, que por nada deste mundo abandona o seu bebé.

 

5. Significativamente foi a esta relação pessoal fortíssima entre a mãe e o bebé, traduzida em confiança e segurança e felicidade, que a Bíblia foi buscar o termo para dizer fé. Isto é, a relação feliz, segura e de radical confiança que nós vemos existir entre a mãe e o seu bebé é, para a Bíblia, a melhor analogia para traduzir a relação, igualmente feliz, segura e de pessoalíssima confiança que deve existir entre nós e Deus. Esta relação seguríssima chama-se fé.

 

6. Eis um belíssimo solilóquio em que Deus se expressa com traços maternos e paternos, mais maternos que paternos: «Fui eu que ensinei a andar Efraim,/ que os ergui nos meus braços,/ mas não conheceram que era eu que cuidava deles!/ Com vínculos humanos eu os atraía./ Com laços de amor,/ eu era para eles como os que erguem uma criancinha de peito contra a sua face,/ e me debruçava sobre ela para a alimentar» (Oseias 11,3-4).

 

7. Até Deus se revê no amor de mãe. Maio pode ser mais belo, se os nossos gestos forem um pouco mais maternos.

 

António Couto


A METÁFORA DA TARTARUGA

Abril 26, 2009

 

A tartaruga acaba de deixar o seu esconderijo para um passeio nocturno. O sapo vê-a sair de casa àquela hora, e adverte-a: «A esta hora não é muito aconselhável sair, tartaruga». Mas a tartaruga continua, e, arriscando um passo mais longo, vê-se virada de patas para o ar, sobre a sua própria couraça. O sapo exclama: «Eu bem te avisei, tartaruga; é uma imprudência sair a esta hora; morrerás aí!» «Bem sei», respondeu a tartaruga com um olhar entre a malícia e a delícia; «Bem sei, mas é a primeira vez que estou a ver o céu estrelado!»

 

António Couto


A RESPOSTA ESTÁ NAS TUAS MÃOS E NO TEU CORAÇÃO!

Abril 25, 2009

 

1. Ontem uma criança morreu em Auschwitz. Ontem uma criança morreu em Gaza ou em Timor. Um judeu não é pior do que um alemão, nem um alemão melhor do que um judeu. Um timorense não é pior do que um indonésio, nem um indonésio melhor do que um timorense. Nem tu nem eu somos melhores ou piores do que eles. Simplesmente, meu irmão de Abril, guarda na memória – e não esqueças nunca mais – que ontem uma criança morreu em Auschwitz, que ontem uma criança morreu em Gaza ou em Timor.

 

2. A cultura ocidental é conceptual e lógica, expressa-se em conceitos, e, como bem viu Hegel, o conceito ocupa-se apenas do geral, e não do concreto e temporal. O concreto e temporal são apanágio de uma cultura dita anamnética ou da memória, que é preciso urgentemente cultivar. A consciência conceptual sabe que existe a fome, como existe o sofrimento e a morte em geral. Mas nada se preocupa com isso. Existem, sempre existiram e existirão. São o preço da história. A consciência anamnética vê e preocupa-se com aquele homem concreto que tem fome agora, que sofre agora e que está a morrer agora em Auschwitz, na faixa de Gaza, nas montanhas de Timor, ou à tua porta; que tem os olhos cravados em ti e as mão estendidas para ti. Não, Auschwitz, Gaza e Timor não foram meros deslizes da consciência ocidental, mas suas consequências lógicas.

 

3. Uma cultura da memória registra, emociona-se e é interpelada por cada grito concreto que se ouve, por cada lágrima concreta que se chora, por cada mão estendida que procura a nossa mão. Numa cultura da memória, os gritos das vítimas continuam presentes e interpelantes, enquanto que, numa cultura conceptual, as vítimas são apenas o preço da história.

 

4. Elie Wiesel, judeu, sobrevivente de Auschwitz, prémio Nobel da Paz em 1986, autor de inúmeros escritos, tem lutado toda a sua vida por gravar em cada consciência esta cultura da memória, sempre atenta ao concreto e temporal. E gosta de provocar os seus leitores e ouvintes com uma velha história da literatura talmúdica, que passo a transcrever.

 

5. «Um rei ouviu dizer que no seu reino vivia um sábio que falava todas as línguas do mundo. Sabia escutar e compreender o chilrear dos pássaros. Sabia interpretar o aspecto das nuvens. Sabia ler o pensamento das outras pessoas. O rei deu ordens para que o trouxessem ao seu palácio. O sábio chegou.

 

6. Disse então o rei: «É verdade que sabes todas as línguas?» «Sim, majestade», respondeu o sábio. «É verdade que sabes escutar e compreender o chilrear dos pássaros?», perguntou o rei. «Sim, majestade», respondeu o sábio. O rei prosseguiu: «É verdade que sabes interpretar o aspecto das nuvens?» «Sim, majestade», voltou a responder o sábio. O rei perguntou ainda: «É verdade que sabes ler o pensamento das outras pessoas?» «Sim, majestade», respondeu novamente o sábio. Disse então o rei: «Nas minhas mãos, atrás das costas, tenho um pássaro. Diz-me: está vivo ou morto?» O sábio sentiu medo, pois deu-se conta de que, fosse qual fosse a resposta que desse, o rei podia sempre matar o pássaro. Olhou para o rei, e permaneceu em silêncio um bom bocado. Por fim, respondeu: «A resposta está nas tuas mãos!»

 

7. Face às encruzilhadas que atravessamos, deixa que te diga também a ti, meu irmão de Abril: «A resposta está nas tuas mãos e no teu coração!» E nunca esqueças, meu irmão de Abril, que ontem uma criança morreu em Auschwitz, que ontem uma criança morreu em Gaza ou em Timor, ou aí mesmo à tua porta.

 

António Couto


OLHA COM OS OLHOS FECHADOS!

Abril 21, 2009

 

1. Toda a palavra,/ o dizer inteiro,/ é som e ritmo./ Como o coração,/ a respiração,/ a pulsação,/ a lalação,/ a aleitação./ Vida recebida,/ amada,/ mimada,/ acariciada./ Nunca enlatada./ Eu penso, logo existo,/ é o moderno disparate de Descartes,/ que pensava que se punha no ser pelo seu pensamento./ Notoriamente Descartes esqueceu a sua mãe./ Dono de si,/ senhor de si,/ é o homem deste tempo enlatado,/ habitado pelo ritmo metálico da marcha militar,/ fúnebre,/ fatal,/ mortal,/ com morte, mas sem nascimento,/ sem coração,/ sem embalação,/ sem lalação.

 

2. Como escreveste isto?[1],/ perguntam os senhores,/ os donos,/ de ontem e de hoje./ Eu?,/ com tinta[2],/ responde o servo,/ e só o servo sabe dizer tanto./ A palavra não é minha,/ vem de fora./ Palavra criadora,/ não faz vibrar o ar,/ o mar,/ não lhe captamos o som,/ só lhe captamos o sentido.

 

3. Som que nunca se ouviu,/ silêncio que nunca se calou./ As palavras que alinhamos,/ que embalamos,/ que aleitamos,/ uma a uma,/ cada uma depois de outra, antes de outra,/ ocupam o seu lugar, pequeno e frágil,/ certificado de que não mancharam as mãos com a totalidade./ Mas são sentinelas do sentido,/ coração,/ respiração,/ pulsação,/ pontes para outras fontes,/ que não as do consumo ou do fumo…

 

4. Com tinta,/ diz o servo./ Aí está a página,/ o vinco na página,/ a pulsação,/ a lalação,/ de mão para mão,/ de coração a coração.

 

António Couto


[1] Evocação de Jeremias 36,17. A pergunta é feita a Baruc, servo de Jeremias, pelos senhores da corte de Jerusalém.

[2] Evocação de Jeremias 36,18. Resposta de Baruc à pergunta dos senhores.


DAQUI, DESTA PLANURA: LEITURA DO TEMPO EM QUE VAMOS

Abril 15, 2009

1. A Sabedoria do Amor e do Sentido

A teologia é Sabedoria. Sabedoria do Amor, e não amor da sabedoria. A teologia é a Sabedoria de um Amor «crucificado», e só faz boa teologia «aquele que sabe que Outro morreu por ele», para usar a expressão forte do filósofo e teólogo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1865), e fazer memória dos mais firmes fundamentos paulinos de um amor condescendente e oblativo que nos preside e nos precede: «o Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim» (Gl 2,20); «o Senhor Nosso Jesus Cristo, que morreu por nós» (1 Ts 5,9-10). Assim, porque transporta consigo esta intensa e dorida história de Amor, o teólogo fala calando e cala falando, rezando, amando, escutando, sempre em bicos de pés, no limiar do silêncio, sempre à escuta da Palavra criadora de Deus, som que nunca se ouviu, silêncio que nunca se calou (Paul Beauchamp). Premurosa teia de sentido por debaixo da rumorosa espuma das palavras. O Verbo de Deus não anda na crista da onda de sons e de sílabas, sintaxe e fonética. O Verbo de Deus não faz vibrar o ar. É sem som e sem sombra. Não sendo nem a letra nem o som, Ele é o sentido dessa letra e desse som (Paul Beauchamp). E, de modo diferente da letra e do som, o sentido, que se recebe depois de um longo, lento e paciente trabalho de interpretação, ou de rajada, como uma iluminação, o sentido – dizia – não faz barulho. O sentido nunca fez barulho, nunca faz barulho. É um rumo, um rastro, um rosto, um «e-vento», plenitude a incidir na planitude inabitada e inóspita da tábua rasa da mesa do escritório ou do conclave ou do deserto: «Por mais planos que façais,/ eles serão frustrados» (Is 8,10);/ «Eis que vou fazer um coisa nova;/ ela já desponta:/ não vos apercebeis?/ Abrirei um caminho no deserto,/ e rios em lugares ermos» (Is 43,19). Deserto era o caminho entre Jerusalém e Gaza, por onde descia o etíope ilustre (Act 8,26), lendo Isaías, e em quem já despontava uma coisa nova: «Entendes o que Lês?», pergunta-lhe Filipe (Act 8,30). Pergunta-lhe e explica-lhe, e nasce o sentido e a água (Act 8,36-37).

 

2. A metáfora da Luz ou a modernidade

A metáfora da Luz – iluminismo – enche a modernidade. A luz da modernidade é a razão que quer iluminar todas as coisas, querendo assim compreender, com o que há de «prender» no compreender (Emmanuel Levinas), toda a realidade. Esta luz da razão produz identificação (redução do outro à esfera do «eu») e emancipação. Diz Karl Marx, em A Questão Judaica: «A emancipação é a recondução do mundo e de todas as coisas ao homem, para fazer do homem, não mais o objecto, mas o sujeito da sua própria história, do seu próprio destino». É assim que o homem se faz senhor, e não pastor (o pastor é frágil) (Martin Heidegger), e, como senhor, pode dizer: «Eu, eu, e mais ninguém» (Sf 2,15), ou «Eu, eu, e fora de mim não há ninguém» (Is 47,7 e 9), ou ainda «Eu fiz-me a mim mesmo» (Ez 29,3), e também «Sou rico, enriqueci, e não preciso de nada» (Ap 3,17), e mais recentemente «Eu penso, logo existo» («Cogito, ergo sum») (Descartes). Como se vê, este homem que se arvora em senhor absoluto, liquida ao mesmo tempo a ideia de criação (Deus) e a ideia de geração (mãe), pondo Deus de lado e esquecendo a sua mãe, e pensando que se põe sozinho no ser pelo seu próprio pensamento, mais ou menos homossexual (Adriana Cavarero). Este triunfo da identidade sobre a alteridade, com o normal corolário da desmedida «identificação», redução de tudo ao «eu» e ao «mesmo», produz a solidão, que sou «eu» sozinho no meio de objectos, depois de reduzir também os outros a objectos (Gn 2,18) (Abraham Joshua Heschel), e faz aparecer, pela primeira vez na história da humanidade, o ateísmo, e torna-se fonte de totalitarismos e violências inauditas. É o tempo da razão forte, do discurso lógico e ideológico, do logocentrismo, do sermão inflamado, do compêndio único. Em A Gaia Ciência, aforismo 125, Nietzsche descreve plasticamente esta realidade, quando faz sair, para a praça da cidade, em plena luz do dia, um homem louco, que leva na mão uma lanterna acesa, enquanto grita pela cidade: «Deus morreu; nós matámo-lo!» Foi assim que nos tornámos os senhores do mundo. Mas começa, entretanto, a cair a noite e a fazer frio. Não é o assassinato de Deus que apoquenta Nietzsche. Apoquenta-o a orfandade em que, com esse acto desmedido e de tresloucada audácia, caiu a humanidade. A frouxa luz da lanterna que exibe e com que em plena luz do dia pretende iluminar o mundo representa ironicamente a luz da razão, da nossa pequena razão, que quer sempre dominar o mundo, retê-lo na sua mão fechada.

 

3. A metáfora da Noite ou a pós-modernidade

A metáfora da Noite traduz a pós-modernidade, tempo em que a razão forte da modernidade se descobre como razão frágil e fragmentada, incerta e inquieta, ao sabor do slogan rápido e afectado. A democracia cede terreno à mediocracia. O sucesso não tem a ver com a razão e o discurso bem elaborado, mas com o dizer mais afectado, mais alto e mais rápido. A noite é um tempo de naufrágio. Partindo de uma cena do De Rerum Natura, de Lucrécio, escritor latino do século I a. C., que narra os sentimentos de dor e de angústia, mas ao mesmo tempo de tranquilizante conforto, de um observador que, na praia, com os pés em terra firme, assiste a um navio que se afunda, lá longe, no mar, o filósofo alemão Hans Blumenberg (1920-1996) define a modernidade como «naufrágio com espectador». Neste sentido, o homem moderno ainda pensava que tinha um pedaço de terra firme debaixo dos pés: a sua razão. Ao contrário, o homem pós-moderno perdeu já esse naco de terra e de razão e está dentro do navio que se afunda, sendo ao mesmo tempo náufrago e espectador. A única coisa que lhe resta é tentar construir, com os restos do navio desconstruído, um jangada que lhe permita sobreviver por algum tempo. A pós-modernidade, como a noite, é um tempo sem horizontes, em que cada um se fecha na concha da sua própria solidão, no seu pequeno grupo de amigos, no seu mundo fechado, à volta de umas quantas latas de cerveja, de pequenos rituais herméticos e esotéricos e correspondente vocabulário, à mistura com uns kicks emocionais, para logo resvalar outra vez cada um para o seu naco insensato de solidão, escuridão e indiferença. A questão já nem sequer é a falta de sentido. A questão é a ausência de perguntas pelo sentido. Estamos na «noite do mundo» (Weltnacht), diz Martin Heidegger, no tempo do exílio. E diz uma velha história rabínica que «os jovens perguntaram ao velho rabino quando começou o exílio de Israel. Ao que o arguto rabino respondeu que o exílio de Israel começou no dia em que Israel deixou de sofrer pelo facto de estar no exílio». Compreenda-se, portanto, que o exílio verdadeiro não consiste simplesmente em estar longe de casa ou da pátria, mas sobretudo em tornar-se indiferente e insensível, sem causas, sem sonhos e sem esperas. Os límpidos versos do poeta espanhol Antonio Machado dizem a mesma coisa de outra maneira: «En el corazón tenía/ la espina de una pasión;/ logré arrancármela un dia:/ ya no siento el corazón». A noite da pós-modernidade deixa-nos na indiferença e na insensibilidade, sem amor nem dor nem alegria, sem grandes sonhos, sem grandes causas, sem perguntas e sem esperas, perdidos no meio de fragmentos, agarrados ao nosso bocado de tempo, sem passado nem futuro, nem presente, bocado de tempo atomizado, a que se chama momento, tábua solta e à deriva, sem salvação, momento que há prolongar o mais possível e fruir enquanto é tempo (Gianni Vattimo), de acordo com o horaciano carpe diem, documentado também na Sb 2,6-9, em Is 22,13 e em 1 Cor 15,32.

 

4. A metáfora da Aurora ou a Luz que vem de fora

Depois da luz e da noite, já se vislumbra no horizonte a metáfora da Aurora, luz que vem de fora. O canto de um galo rasga a noite, e Pedro sai para fora. E chora (Mt 26,74-75). O mais querigmático dos animais anuncia a Pedro que está a nascer o dia. O dia mesmo. O dia sem noite e sem série (Zc 14,7; Ap 21,23). É o que assinala o galo presente nos sarcófagos dos primeiros cristãos, donde passa para os campanários das Igrejas. O galo não se rege pelas horas do relógio, nem o seu canto pelas notas musicais. São partituras de sentido que trauteia, música nova, que vem de fora, e não entra pelo ouvido. Rombo na totalidade. Evento-Advento (Ereignis). O tudo, pelo simples facto de ser tudo, tem necessariamente de ser limitado, limitado com limite, mas sem limiar, porque o tudo, se é tudo, como é que pode ter ainda janelas para outra coisa?! A aurora é luz que vem de fora, rebenta o limite com a graça de um novo limiar. Claro convite a trans-gredir, de trans-gredior, dar um passo para além de. Transformar o limite num novo limiar. Evento-Advento para um novo Êxodo. A nova ordem é sair para fora de si, pois é de fora de ti que vem o sentido da vida. O rosto do Outro, incontrolável e inviolável, é a ordem nova e o sentido até agora insuspeitado (Emmanuel Levinas). Deus deixa-se encontrar por aqueles que não o procuram,/ manifesta-se àqueles que não se dirigem a Ele (Is 65,1; cf. Rm 10,20). Deus vem, portanto. Evento-Advento, Êxodo, escuta, encontro, espanto. «De outro modo que ser» (Autrement qu’être), formula Emmanuel Levinas. Cogitor, ergo sum: com um simples r, Karl Barth subverte Descartes. Amor, ergo sum. «Sou pensado, logo existo». «Sou amado, logo existo». Eu não sou incestuosa e tautologicamente filho de mim mesmo, como sugeria o cogito cartesiano. Um Amor me precede. Outras mãos me acolhem. Outras mãos se estendem para mim. Sair de mim. Do meu mundo, dos meus projectos, dos meus domínios e afazeres, do meu «eu» patronal, do meu esforço para permanecer no ser, o espinoziano conatus essendi. «Sair (yasa’) é o verbo emblemático do êxodo. Exprime uma saída sem retorno, que reclama a saída do bebé do ventre materno» (Ubaldo Terrinoni). Saída para uma radical confiança no outro que me precede e me acolhe. «A primeira experiência da pessoa é a experiência da 2.ª pessoa: o tu, e, portanto, o nós, vem antes do eu» (Emmanuel Mounier). Pensar depois do Evento-Advento e do Êxodo significa, na verdade, «ser pensado», «ser amado», «ser dito».

 

5. Um percurso paradigmático

Recordamos aqui o caso sério de Martin Heidegger (1889-1976). Começou como estudante de teologia. A teologia é, no seu dizer, a disciplina da escuta humilde do silêncio de Deus. Decorridos dois anos, passou-se para a filosofia, que é a disciplina da interrogação radical («Por que há o ser e não o nada?»), da compreensão e do domínio da realidade. Fruto desta sua postura é o «Ser e o Tempo» (Sein und Zeit), obra aparecida em 1926, que tem a sua tradução prática na sua adesão, em 1933, ao nacional-socialismo, como ideologia de domínio da realidade pela violência. O mundo esperou pela segunda Parte desta Obra, que nunca chegou a aparecer. Na verdade, Heidegger, reconhecendo a tragédia do projecto nacional-socialista, que quanto mais tentava subjugar o mundo, mais este lhe escorregava das mãos, reconheceu também o fracasso da sua filosofia, ao verificar que, se era possível dizer o ser das coisas (Dasein), já não era possível dizer o Ser (Sein) que está por detrás das coisas, pois não é possível dizer o Ser com as palavras da nossa linguagem, sempre demasiado frágeis e pequenas, capazes de dizer o fragmento, mas incapazes de dizer o abismo que sustenta e em que navega o fragmento. Por outras palavras: como dizer o «de outro modo que ser» (Autrement qu’être) com a linguagem do ser? Surge então, nos anos 1936-1938, em que escreve Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) [Contributos para a Filosofia (do Evento)] – obra publicada postumamente, em 1989 –, a chamada «reviravolta» (Kehre) heideggeriana, em que Heidegger se apercebe que pensar não consiste no orgulhoso exercício de interrogar, compreender e dominar o ser, mas na atitude humilde de escutar o Ser – passagem da interrogação para a escuta –, sendo que «escutar é deixar-se dizer», e falar não é dominar, mas simplesmente re-dizer o Dizer que escutámos. Imensa mudança de perspectiva e atitude. Da luz da nossa pequena razão, que em nós mora, que tudo pretende dominar para aprisionar, à luz da aurora, que vem de fora, para nos libertar.

 

6. «Na tua luz veremos a luz»

É o dizer luminoso do Sl 36,10. E Paulo pode ser o ícone do homem novo nascido dessa torrente de luz que nos cega e nos acende os olhos (Act 9,1-18; 22,6-16; 26,12-23). Um vasto mar de amor me precede, me envolve, me revolve e me devolve a mim. Eu dado a mim, pedra-base do pensamento do filósofo francês Claude Bruaire (1937-1986). O homem bíblico tem de viver de mãos abertas (kaph). Só assim se recebe das mãos de Deus para ele estendidas (Is 65,2), das palmas das mãos de Deus em que está carinhosamente tatuado (Is 49,16). É de mãos abertas que Deus governa o mundo (Ecli 18,3). O Talmud, que é a sabedoria hebraica condensada em cinco milhões de palavras, refere exemplarmente que o punho cerrado representa a sabedoria do imbecil, que pensa que detém o mundo nas malhas da sua rede. E refere depois que, quando a mão inicia o movimento de se abrir, é como as pétalas de uma flor que se abre à vida. E acrescenta: é assim que floresce a inteligência. E, quando a mão se abre completamente, é a mão do sábio, que não retém nada, mas conhece o valor do encontro e do dom. E, cruzando agora as duas mãos abertas, ficamos com a imagem do «pássaro, livre, que voa». Processo inverso ao da filosofia, desde Zenão a Platão, Descartes, Fichte e Nietzsche, que apresentam o conhecimento como a captura ou compreensão que o sujeito faz do objecto. A verdade (a-lêtheia) é assim o desvelamento ou desocultação, violação ou violentação a que o sujeito submete o objecto, para dele se apoderar, representando-o e reproduzindo-o na mente, «adequação entre a coisa e a mente» (adequatio rei et intellectus), como referem Aristóteles e Tomás de Aquino. O último Heidegger, a que já aludimos, considera que esta concepção de verdade é a matriz da violência do Ocidente, e diz as coisas de outra maneira: não é o sujeito que captura e desoculta o objecto, mas é o objecto que sai do seu esconderijo e se oferece ao homem como dom, como evento (Ereignis). Por isso, a função do sujeito já não é capturar e dominar com o que há de «prender» no compreender, mas acolher com espanto, alegria e reconhecimento. A Bíblia e a teologia estão claramente do lado do último Heidegger. Mas vão muito mais longe, trans-gredindo-o, pois não se trata de objectos que se entregam ao homem, mas de um Tu, o Tu de Deus, que, por amor, vem até ao homem e a ele se entrega por amor, debruçando-se sobre ele e abaixando-se até ao ponto de lhe lavar os pés e a alma (Von Balthasar), de cuidar dele, de o alimentar, de lhe afagar o rosto, de o ensinar a andar: «Fui Eu que ensinei a andar Efraim,/ que os ergui nos meus braços,/ mas não conheceram que era Eu que cuidava deles!/ Com vínculos humanos Eu os atraía./ Com laços de amor,/ Eu era para eles como os que erguem uma criancinha de peito contra a sua face,/ e me debruçava sobre ela para a alimentar» (Os 11,3-4). Aí está a verdade (’emet) como confiança (’emunah), derivados de ’aman, que significa segurar, firmar, fiar-se. É o mundo da mãe (’omen) e do bebé (’amûn), da confiança radical, da aleitação, da embalação, da lalação, da palavra antes das palavras, como cantavam há séculos os hasidîm na Europa Central: «Vá eu para onde for, Tu;/ Onde eu parar, Tu:/ somente Tu,/ ainda Tu,/ sempre Tu./ Céu, Tu;/ terra, Tu./ Para onde eu me voltar,/ para onde olhar,/ Tu, Tu, Tu».

 

7. A metáfora da tartaruga ou a transgressão

A tartaruga acaba de deixar o seu esconderijo para um passeio nocturno. O sapo vê-a sair de casa àquela hora, e adverte-a: «A esta hora não é muito aconselhável sair, tartaruga». Mas a tartaruga continua, e, arriscando um passo mais longo, vê-se virada de patas para o ar, sobre a sua própria couraça. O sapo exclama: «Eu bem te avisei, tartaruga; é uma imprudência sair a esta hora; morrerás aí!» «Bem sei», respondeu a tartaruga com um olhar entre a malícia e a delícia; «Bem sei, mas é a primeira vez que estou a ver o céu estrelado!» A tartaruga ensina que não nos podemos contentar em viver mais ou menos tranquilamente com a cabeça enterrada na areia do céu ou da terra. Deduzir o céu da terra, ou o Último do penúltimo, é apenas areia. Areia é trocar o Último pelo penúltimo. O penúltimo é o mundo dos meios sem fins, «excesso de meios, míngua de fins», como bem refere o médico e filósofo da medicina Edmund Pellegrino, o mundo da «razão instrumental», locução cunhada pelo filósofo e sociólogo Max Horkheimer (1895-1973), para mostrar o que acontece quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer e saber é dominar e controlar tudo e todos, tornando-se a ciência um instrumento de domínio, poder e exploração. É o mundo das pessoas como objectos, que se movem no tempo como os objectos se movem no espaço. Um passo em frente. É imperioso e urgente pensar. Trans-gredir. «Pensar é trans-gredir» (Denken heisst überschreiten), palavras gravadas na pedra tumular de Ernst Bloch (1885-1977). Sair de casa como a tartaruga, extasiar-se e desviar-se do caminho como Moisés (Ex 3,3-4). É o céu que vem interromper curso e percurso. O Último interrompe o penúltimo, mundo desencantado (Max Weber), outra vez visitado, amado, encantado. Pensar é trans-gredir, pensar é ser pensado, amado. A luta e o amor. «Tu és bela, minha amada,/ terrível como um exército em ordem de batalha» (Ct 6,4). Para além dos meios. Amor sem luta é posse de um objecto. O amor verdadeiro é agónico. Não é por acaso que agápê (amor) e agôn (luta) têm a mesma etimologia. Paradoxo do amor: o amor faz-te feliz, matando-te! Quanto mais amas, lutas, e te matas a amar, mais te encontras: «Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; ao contrário, quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á» (Lc 9,24). Aí está o verdadeiro ícone do amor, Cristo, que não se salvou a si mesmo para me salvar a mim, morrendo por amor de mim, trans-gredindo assim a morte. Ícone do amor. Ícone também da trans-gressão, do advento e do êxodo: sai de Deus, sai de si, sai para Deus.

 

8. A partir da esperança

Paulo diz aos cristãos de Éfeso que, antes de terem sido encontrados por Cristo, viviam «sem esperança e sem Deus no mundo (elpída mê échontes kaì átheoi en tô kósmô)» (Ef 2,12). Este marcador Paulino atravessa a Encíclica Spe salvi, de Bento XVI, de 30 de Novembro de 2007. Vejam-se os números 2, 3, 23, 27 e 44. Sem Deus no mundo, habitação desabitada, não há esperança. Pode haver apenas pequenas deduções, como quem deduz o céu da terra ou o Último do penúltimo. No mundo grego, esperança é elpís, e tem o significado de «previsão», «lícita expectativa», sempre assente nos nossos calculismos e exercícios racionais, pequenas deduções. Ao contrário, a esperança bíblica e cristã, de que fala Paulo (e Bento XVI), é sem medida, tem a ver com o nunca antes visto, aponta para além das leis da natureza, está em luta aberta contra as evidências. Trata-se de «esperar contra a esperança» (par’ elpída ep’ elpídi = contra a esperança na esperança) (Rm 4,18). É assim que Paulo define a atitude de Abraão. No mundo hebraico, esperança é tiqwah, e deriva de qaw, que pode significar «fio», «fita métrica», «cordel para medir». Percebe-se que tem a ver com o «fio» que se estica para medir, até chegar à medida ainda sem medida e sem solução à vista – «esperança vista não é esperança» (Rm 8,24) –, mas que tem solução recebida de Deus. É como o «fio», a «corda», o «arame» estendido entre a dor e a consolação esperada, entre a humanidade e Deus, fio tenso, não abaulado – veja-se Jb 7,6 («Os meus dias correm mais depressa do que a lançadeira,/ e consomem-se sem esperança») e Rm 4,20 («Não ficou abaulado na incredulidade / desconfiança (apistía)») –, e seguro entre duas mãos, a de Deus e a nossa. Única maneira de se poder atravessar, com segurança e confiança, o vau da vida e da morte. Paulo transfere esta imagem do «fio» ou da «corda» para o mundo e para o homem, e coloca-os nesta tensão esperante, através do recurso ao nome apokaradokía (Rm 8,19; Fl 1,20), de apó + kára + dokéô [= fora de + cara (rosto) + esperar/olhar atentamente] que só ele usa no NT, e que é desconhecido no grego antes do Cristianismo. Apokaradokía traduz a atitude de quem se coloca em bicos de pés, alongando o pescoço o mais que pode com ânsia extrema e intensa para tentar ver o que ainda não se vê – assim se apanha o tique da esperança –, atitude muito próxima da traduzida por apekdéchomai (Rm 8,25), de apó-ek-déchomai [= fora de + desde + receber], que implica uma forte conotação de recepção, tensão para receber a salvação de Deus, tensão para o dom, pois um dom, não o podemos produzir com as nossas mãos; só o podemos receber de outras mãos. A esperança bíblica e cristã consiste na dupla atitude amante de estarmos sempre à espera de alguém, e de sabermos bem que Alguém espera por nós.

 

9. A casa e o hábito

Habitação habitada, êthos e éthos. É Deus que constrói a casa, a habitação (êthos) (Sl 127,1); é dele que recebemos o hábito, a ética (éthos), o mandamento que interrompe e põe em crise a nossa espontânea luta para permanecer no ser, abrindo-nos a porta da liberdade. A belíssima temática da habitação e do vestido atravessa, de lés a lés, a inteira Escritura: o coração da Tôrah ou Pentateuco ocupa-se de um Deus que quer vir habitar no meio de nós, na Tenda do Encontro, donde decorre toda a teologia do Santuário, até Cristo, que «estabeleceu a sua tenda no meio de nós» (Jo 1,14); é desde o Génesis que está presente o vestido de misericórdia (Gn 3,21), assomando depois o vestido de festa e de salvação (Is 61,3 e 10), passando pelo paulino revestimento de Cristo (Rm 13,14; Gl 3,27; Cl 3,12-17), até ao vestido definitivo da esposa (Ap 21). Sem Deus no mundo, habitação desabitada, não há esperança nem ética. Neste mundo em que impera o «eu», o outro, seja com letra pequena ou maiúscula, está quase sempre a mais, e não lhe é permitido ocupar senão três posições: uma coisa a possuir ou a deitar fora, um meio a utilizar para eu atingir os meus fins ou um rival a eliminar. É aqui que podemos ainda compreender os idosos que atiramos lá para longe como coisas já sem nenhum valor; as crianças que não queremos que nasçam, porque são um empecilho ao nosso conforto e bem-estar, alguém que vem desarranjar o nosso mundo, tempo, horários, e até os nossos móveis e imóveis; os empregados que pomos na rua porque já não são suficientemente rentáveis: não são mais meio para os nossos fins; enfim os países ou as pessoas a quem fazemos guerra, porque estorvam a nossa vontade de poder, a nossa ambição e expansão ilimitadas. O que se diz dos outros, pode dizer-se de Deus, que podemos também ser tentados a utilizar em nosso proveito, a pôr de lado ou a eliminar. E assim ficamos sós, completamente sós, senhores absolutos da planura (Gn 11,2), que nada sabemos construir em altura. Veja-se a família, a política, a escola, o tribunal, o hospital, a igreja. Tudo tão plano e chato,/ com casas, mas sem casa,/ com mesas, mas sem mesa,/ com fardas, mas sem vestido,/ sem hábito,/ nu por dentro. Pautas enlatadas, marchas militares ou fúnebres. Só o Rosto ou o mandamento verdadeiro, vindo de fora e acolhido à porta com amor, surpresa e maravilha, dom, evento, advento, pode romper e fecundar este areal espesso como o gesso. Falo do alento de Deus, beijo de Deus, no pó que somos (Gn 2,7). Só ele pode transformar estátuas em filhos e irmãos.

 

António Couto


SENHOR DA MINHA VIDA

Abril 11, 2009

 

Tu, Senhor, Tu falas

E um caminho novo se abre a nossos pés,

Uma luz nova em nossos olhos arde,

Átrio de luminosidade,animated_fire

Pão

De trigo e de liberdade,

Claridade que se ateia ao coração.

 

Lume novo, lareira acesa na cidade,   

És Tu, Senhor, o clarão da tarde,

A notícia, a carícia, a ressurreição.

 

Passa outra vez, Senhor, dá-nos a mão,

Levanta-nos,

Não nos deixes ociosos nas praças,

Sentados à beira dos caminhos,

Sonolentos,

Desavindos,

A remendar bolsas ou redes.

 

Sacia-nos.

Envia-nos, Senhor,

E partiremos

O pão,

O perdão,

Até que em cada um de nós nasça um irmão.

 

António Couto


É A ESTA ESTUPEFACÇÃO QUE SE CHAMA EVANGELHO OU BOA NOVA

Abril 10, 2009

 

1. «Do SENHOR veio isto:/ isto é MARAVILHOSO (niphla’t / thaumastê) aos nossos olhos! ESTE-O-DIA que fez o SENHOR:/ exultemos e alegremo-nos nele!» (Salmo 118,23-24).

 

2. Não é um dia cíclico, um dia entre outros dias, o dia que o salmista aclama! Os dias, de resto, fê-los todos o SENHOR (Génesis 1,1-2,3). Trata-se aqui de um DIA novo, e sem série (cf. Eclesiástico 33,7-9). É o profético «DIA do SENHOR», aqui totalmente cheio da acção benfazeja do SENHOR!

 

3. Os Evangelhos documentam esta alegria grande e nova e esta ESTUPEFACÇÃO MARAVILHOSA a abrir o nascimento de JESUS e o DIA novo da sua Ressurreição. Alegria grande (chará megálê) evangelizada (euaggelízomai) aos pastores, mas que é para todo o povo (Lucas 2,10). De facto, todos quantos escutaram os pastores ficaram MARAVILHADOS (thaumázô) (Lucas 2,18). Em estado de MARAVILHA (thaumázôn: particípio presente) ficou Pedro quando leu os sinais do túmulo aberto (Lucas 24,12), e depois os Onze e os outros com eles, movidos pela alegria (chará) e pela MARAVILHA (thaumázontes: particípio presente) (Lucas 24,41), um versículo sobrecarregado com as notas da alegria incontida e da esfuziante MARAVILHA.

 

4. Só assim, em estado de MARAVILHA permanente, Maria Madalena pode ir anunciar: «VI (heôraka) o SENHOR!» (João 20,18), e os Dez podem dizer a Tomé, chamado o Gémeo, talvez nosso: «VIMOS (heôrákamen) o SENHOR!» (João 20,25). Os dois verbos «ver» estão no tempo perfeito, pelo que, de facto, significam: «VI e continuo a VER», «VIMOS e continuamos a VER». Um VER perfeito.

 

5. Lendo muito bem o mistério de Cristo, o Papa João Paulo II, no início do seu Pontificado, deixou escrito, com palavras luminosas, na Encíclica Redemptor Hominis, n.º 10, de 04 de Março de 1979, que o homem deve «apropriar-se e assimilar toda a realidade da Encarnação e da Redenção para se encontrar si mesmo», e ficar assim «MARAVILHADO face a si mesmo», «ESTUPEFACTO perante o seu valor e dignidade». E acrescenta ainda que é «a esta ESTUPEFACÇÃO que se chama Evangelho ou Boa Nova».

 

6. Os missionários cultivam a alegria, o espanto e a MARAVILHA, e compete-lhes colocar este mundo em estado de MARAVILHA, ou não fôssemos nós também testemunhas destas coisas (cf. Lucas 24,48; Actos dos Apóstolos 2,32). E, portanto, somos nós, somos nós, Senhor, a prova de que Tu ressuscitaste!

 

7. Uma Páscoa cheia de CRISTO RESSUSCITADO, MARAVILHA do SENHOR aos nossos olhos, meu irmão da Páscoa.

 

António Couto


VOTOS DE PÁSCOA FELIZ DO PROFETA ELIAS

Abril 4, 2009

1. Lê-se num antigo conto judaico que vivia numa aldeia uma família pobre: pai, mãe e uma filha pequena. O dinheiro não abundava, mas nunca ninguém os ouviu lamentar-se.

 

2. Aproximava-se entretanto a Páscoa, e a família não tinha meios para comprar as roupas novas requeridas para a festa. Na véspera da festa, a filha disse para o pai: «A Páscoa está a chegar; por que é que ainda não comprámos as roupas novas?» Retendo as lágrimas, o pai respondeu: «Não te preocupes, minha filha; o profeta Elias enviar-nos-á as roupas novas; não precisamos de as comprar». Mas a pequena, não totalmente satisfeita com a candura da promessa, adiantou: «Papá, e se eu escrevesse ao profeta Elias para lhe dizer aquilo de que precisamos?» O pai sorriu e disse: «Escreve, filha».

 

3. A menina pegou num lápis e numa folha de papel e escreveu: «Elias, para a Páscoa, manda-nos, por favor, um casaco para o papá, uma saia para a mamã, e uns sapatos brancos para mim». Estava para ir meter a carta no correio, quando parou e perguntou: «Papá, de que me vale pôr a carta no correio, se não sei o endereço do profeta Elias?» Respondeu o pai: «Atira-a pela janela, porque o profeta Elias irá recolhê-la onde ela cair».

 

4. A menina fez como o pai lhe tinha dito. E cheia de uma fé simples e ingénua, ficou à espera de ver realizado o seu pedido.

 

5. Passava naquela altura debaixo da janela um homem rico que, ao ver cair ao chão aquela folha de papel, a apanhou e viu o que nela estava escrito. E disse de si para consigo: «Esta noite é festa e não posso desiludir esta pobre família e, sobretudo, a fé da menina». Pôs então numa linda caixa as roupas pedidas na carta, e deixou a caixa junto da porta daquela casa, com um cartão que dizia: «Votos de Páscoa Feliz do profeta Elias».

 

6. É desarmante a inocência da menina desta história! No meio da pobreza e das lágrimas a custo retidas dos seus pais, ela acredita na alegria, e acaba por conseguir vestir de festa aquela casa. Na tradição bíblica e judaica, Elias é o precursor do Messias. Por isso, em cada festa da Páscoa, que os judeus celebram em família pela noite dentro, a porta da casa fica aberta para que Elias possa entrar; na mesa da Ceia há sempre um lugar a mais, destinado a Elias; nesse lugar, é colocado o respectivo talher e uma taça já cheia de vinho, à espera de Elias.

 

7. O Livro do Apocalipse (21,4), no seguimento de Isaías 25,8, põe Deus a «enxugar cada lágrima dos nossos olhos». A expressão é ousada, pois não fala de olhos sem lágrimas, mas de olhos cujas lágrimas são enxugadas. Atente-se na diferença: os nossos olhos podem manter-se enxutos por cínica indiferença perante o sofrimento dos outros, ou por um esforço estóico para suportar o nosso próprio sofrimento, ou porque já não há mais lágrimas para chorar. Mas uma lágrima enxugada é diferente de olhos enxutos. As lágrimas representam a nossa história de sofrimento. Dizer que as lágrimas são enxugadas significa dizer que no nosso tempo entra um tempo novo, o futuro-presente de Deus, onde o sofrimento será apagado pelas mãos carinhosas de Deus.

 

8. Viver a Páscoa, que é o tempo em que vamos, não significa indiferença ou estoicismo, mas, antes, enxugar carinhosamente as lágrimas que correm pelo rosto dos nossos irmãos. O tempo em que vamos é (pode ser) uma viagem para a alegria. E cada um de nós pode ser o precursor desse tempo novo. «Votos de Páscoa Feliz do profeta Elias».

 

António Couto


AS «PASSAGENS» DA PÁSCOA

Abril 1, 2009

 

1. As mais antigas raízes da festa da Páscoa [= «passagem»] remontam certamente aos antigos pastores semi-nómadas do Próximo Oriente Antigo, que se deslocavam, com os seus rebanhos, ao longo de uma estreita faixa de terra, situada entre as terras cultivadas e o deserto. Não entravam nas terras cultivadas: se o fizessem iriam arranjar problemas com as populações sedentárias; não entravam no deserto: se o fizessem, o gado miúdo sucumbiria rapidamente.

 

2. A festa da Páscoa teria a ver inicialmente com os ritos apotropaicos [de apo-trépô = afastar de, conjurar] levados a cabo por estes pastores semi-nómadas, ritos que seriam em tudo análogos aos sacrifícios realizados entre os beduínos árabes pré-islâmicos, no decurso da primeira noite de lua-cheia (antigo shabbat ou sábado) da Primavera [= primeiro Verão], mês de Radjab ou de Abib ou de Nisân, antes da transumância estival, e que se destinavam a afastar as doenças dos rebanhos, sobretudo as que podiam afectar as crias jovens, particularmente nesta época de transumância, e, portanto, de «passagem».

 

3. Tratava-se de uma festa nocturna, realizada à luz da lua. É a lua, de resto, que comanda o suceder dos dias no Próximo Oriente, onde o dia começa, não com o nascer do sol, mas com o nascer da lua. A escolha para uma noite de festa recai, portanto, naturalmente na noite de lua-cheia, por causa do luar. De resto, o intenso calor no limiar do deserto não permitia que tais ritos festivos se realizassem durante o dia. Nessa época de «passagem» para a Primavera e para novas pastagens, era costume imolar um animal do rebanho, provavelmente um cabrito desleitado, de um ano de idade, «filho de um ano». Só mais tarde se fala em imolar um cordeiro. Nos sacrifícios da Primavera dos árabes antigos, o cabrito é referido mais vezes do que o cordeiro. É também o cabrito desleitado, «filho de um ano», que é mencionado no texto ritual antigo do Livro do Êxodo 34,26. A carne do animal imolado era comida juntamente om o bolo folhado de pão não-levedado, próprio dos pastores semi-nómadas, que o assavam sobre as pedras escaldadas pelo sol, condimentando-o com ervas do deserto. O pão ázimo cozido no forno e comido com ervas amargas tiradas da horta representa a fase sedentária, e, portanto, posterior, dos ázimos.

 

4. A antiga descrição da Páscoa no Egipto, referida em Êxodo 12,21-23, recolhe as antigas tradições atrás referidas acerca dos sacrifícios apotropaicos dos pastores semi-nómadas efectuados na primeira noite de lua-cheia da Primavera para afastar os golpes do «exterminador» (Êxodo 12,23), e sedentariza-as. Fala-se, portanto, de casas (Êxodo 12,22.23), e não de tendas. E localiza-as no Egipto. Continua a privilegiar a noite e a lua-cheia, como vinha da antiga tradição semi-nómada. Situa, por isso, a festa da Páscoa na noite do décimo quinto dia (Êxodo 12,6-8) do mês de Abib ou de Nisân, primeiro mês do ano (Êxodo 12,2), que começava com a Primavera. Mas aqui já não se trata de transumância com a «passagem» do gado para novas pastagens, nem tão-pouco da «passagem» para o tempo primaveril, mas da «passagem» do povo de Israel da escravidão para a liberdade.

 

5. A Páscoa de Cristo retoma tudo o que vem de trás: o cordeiro, o pão ázimo, as ervas amargas, o carácter nocturno (patente ainda hoje na Ceia Pascal hebraica e na Vigília Pascal cristã), a lua-cheia (a Páscoa é uma festa móvel, porque acompanha, ano após ano, a primeira lua-cheia da Primavera). Mantém-se também o sentido de «passagem», ainda que cada vez mais alargado e aprofundado: passagem tranquila para novas pastagens, passagem para um tempo novo, passagem da escravidão para a liberdade, passagem da morte para a vida verdadeira, que é o verdadeiro sentido da Páscoa de Cristo, que se apresenta a si mesmo como o passageiro deste mundo para o Pai (João 13,1). «Passa bem», meu irmão da Páscoa.

 

António Couto