Aquando da escolha de Matias para «a diaconia (ou serviço) do apostolado» (hê diakonía tês apostolês) abandonada por Judas (Act 1,25), Pedro pronuncia estas palavras indicativas:
«1,21É necessário (deî), pois, que, dos homens que vieram connosco (synérchomai) durante todo o tempo em que entrou e saiu à nossa frente o SENHOR JESUS, 22tendo começado desde o Baptismo de João até ao dia em que ELE foi arrebatado (anelêmphthê)[1] diante de nós, um destes se torne connosco testemunha da sua Ressurreição» (Act 1,21-22).
Nas palavras de Pedro, «o serviço do apostolado», que consiste em tornar-se testemunha da Ressurreição do SENHOR JESUS, requer, de todos aqueles que a ele se venham a dedicar, três condições fundamentais: 1) ter feito todo o caminho connosco, e sempre atrás do SENHOR JESUS; 2) atrás do SENHOR JESUS traduz a atitude do discípulo: sempre com o Mestre; nunca, porém, à frente do Mestre, mas seguindo-O sempre de perto no caminho; 3) o caminho tem um começo e um termo assinalados, sempre com referência ao Mestre: desde o Baptismo d’Ele até ao dia do Arrebatamento d’Ele diante de nós.
Fixemo-nos no termo do caminho, na Ascensão do SENHOR JESUS diante de nós. O texto, sóbrio e limpo, do Livro dos Actos, diz assim:
«1,9E estas coisas tendo dito, vendo (blépô) eles, ELE foi Elevado (epêrthê)[2], e uma nuvem O subtraiu (hypolambáno) dos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). 10E como tinham o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde ELE ia, eis (idoú)[3] dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, 11e DISSERAM: “Homens Galileus, por que estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís)[4] diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu”» (Act 1,9-11).
Impressionante condensado de OLHARES. Seis notas visuais soam no texto. Tanto VER sucede a um telegráfico aceno ao dizer: «Estas coisas tendo dito». Referia-se o narrador àquilo que o SENHOR JESUS lhes tinha dito durante uma refeição: que não se afastassem de Jerusalém, que esperassem a promessa do Pai, o Baptismo do Espírito Santo (Act 1,4-5), e assim seriam testemunhas d’Ele em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até aos confins da terra (Act 1,8). Dizer testamentário e programático numa refeição testamentária e programática[5].
Tanto VER. Da panóplia de verbos registrados (blépô, atenízô, horáô, emblépô, theáomai), os mais fortes e intensos são, com certeza, atenízô [= «olhar fixamente»][6] e emblépô [= «perscrutar», «ver dentro»]. Ambos exprimem a observação profunda e prolongada, para além das aparências: VER o invisível (cf. Hb 11,27), VER o céu, VER a glória de Deus[7]. Mas mais ainda do que o que se vê, estes verbos acentuam o modo como se vê[8].
É para aí que apontam os dois homens vestidos de branco, de rompante surgidos na cena, para entregar um importante DIZER que interpreta e orienta tanto VER. Já os tínhamos encontrado no túmulo reorientando os olhos entristecidos das mulheres: «Por que (tí) procurais entre os mortos Aquele que está Vivo? Não está aqui. Ressuscitou!» (Lc 24,5-6). Dizem agora: «Por que (tí) estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu» (Act 1,11).
Ao Arrebatamento de JESUS para o céu, os dois homens vestidos de branco agrafam a Vinda de JESUS. Importante colagem da Ascensão com a Vinda. E importante passo em frente para quem estava ali simplesmente especado. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Sim, Ver. Porque ELE Virá do mesmo modo que O Vistes IR. Importante guardar este Ver, viver este Ver, Ver com este Ver. Porque é Vendo assim que o SENHOR Virá. Vinda que não tem de ser relegada para uma Parusia distante e espectacular, mas que começa, hic et nunc, neste Olhar novo e significativo de quem Vê o SENHOR JESUS. Vinda que não é tanto um regresso, mas o desvelamento de uma presença permanente[9]. Vinda já em curso, portanto, ainda que não plenamente realizada[10].
Quando atrás Pedro elencava as condições requeridas e necessárias para alguém se poder dedicar ao «serviço do apostolado», tornando-se connosco testemunha da Ressurreição do SENHOR JESUS, víamos que era preciso ter feito connosco e atrás do Mestre o caminho que vai desde o Baptismo d’ELE até ao dia do Arrebatamento d’ELE diante de nós. Podemos ser agora mais precisos naquilo que ao termo deste caminho diz respeito. Já não se trata apenas de dar testemunho do Senhor Ressuscitado e Elevado ao céu, mas de dar testemunho do Senhor Ressuscitado e Elevado ao céu e que Vem no mistério do Olhar dos seus Apóstolos[11].
Guardemos este Olhar e prossigamos. Eis-nos no primeiro ACTO propriamente dito dos Actos dos Apóstolos depois do Pentecostes: a cura de um coxo de nascença descrita em Act 3,1-10:
«3,1Então Pedro e João subiam ao Templo para a oração da hora nona[12]. 2E um certo homem, que era coxo (chôlós) desde o ventre da sua mãe, era trazido e posto todos os dias diante da Porta do Templo, dita a Bela[13], para pedir esmola àqueles que entravam no Templo. 3Vendo (idôn) Pedro e João, que estavam a entrar no Templo, pedia esmola para receber. 4Então, fixando o olhar (atenísas) nele, Pedro, com João, disse: “Olha para nós” (blépson eis hemâs). 5Então ele observava-os (epeîchen), esperando receber deles alguma coisa. 6Disse então Pedro: “Prata e ouro não tenho, mas o que tenho, isso te dou: no nome de JESUS CRISTO, o Nazareno, [levanta-te e] caminha. 7E, tomando-o pela mão direita, levantou-o. Imediatamente se firmaram os seus pés e os calcanhares. 8Com um salto, pôs-se em pé, e caminhava, e entrou com eles no Templo caminhando e saltando e louvando a Deus. 9E todo o povo o viu (eîden) a caminhar e a louvar a Deus. 10E reconheciam que era aquele que, sentado, pedia esmola à Porta Bela do Templo, e ficaram cheios de admiração e de assombro por aquilo que lhe aconteceu» (Act 3,1-10).
Outro impressionante condensado de olhares marca este primeiro ACTO dos Actos dos Apóstolos. Soam no texto cinco notas visuais, servidas por quatro verbos: horáô, atenízô, blépô, epéchô. Atenízô desenha o Olhar de Pedro e João fixado no coxo de nascença. Blépô retrata o Ver com que o coxo é mandado olhar o Olhar dos Apóstolos.
Significativo agrafo: estes dois Olhares, com atenízô e blépô, só tinham sido usados antes, no Livro dos Actos dos Apóstolos, uma única vez, precisamente no relato da Ascensão (Act 1,9-10)[14]. De resto, blépô conhecerá apenas mais quatro menções no Livro dos Actos dos Apóstolos: duas no relato da vocação de Paulo (Act 9,8-9), a terceira no discurso de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia (Act 13,41; cit. de Hab 1,5), e a quarta e última no decurso da viagem marítima de Paulo para Roma (Act 27,12). Atenízô, por sua vez, far-se-á notar em lugares de relevo, sempre para expressar um Ver novo e significativo, um Ver sem haver: os membros do Sinédrio fixam os olhos (atenízô) em Estêvão, e vêem-no semelhante a um anjo (Act 6,15); Estêvão, por sua vez, fixa os olhos (atenízô) no céu, e vê a glória de Deus e JESUS, de pé, à direita de Deus (Act 7,55); Cornélio fixa os olhos (atenízô) no anjo do Senhor, que o interpela (Act 10,4); Pedro fixa os olhos (atenízô) na visão, vinda do céu, dos animais impuros (Act 11,6); Paulo fixa os olhos (atenízô) no mago Elimas, de Chipre, para o fulminar pela sua falsidade e malícia (Act 13,9), e o mesmo faz no Sinédrio, dando testemunho de JESUS (Act 23,1).
É este Ver JESUS, Ver sem haver, sem poder, sem ouro nem prata (Act 3,6), que se fixa sobre o coxo de nascença, mandado, por sua vez, olhar para este Olhar, Ver desta maneira. Como Abraão e Moisés, convidados a Ver para receber, e não para haver[15], a Terra Prometida: «a terra que Eu te farei Ver» (Gn 12,1), «que YHWH lhe fez Ver» (Dt 34,1), «Eu a fiz Ver aos teus olhos» (Dt 34,4). O narrador anota mais à frente que o coxo de nascença, agora curado, tinha mais de 40 anos (Act 4,22), tipologia do povo perdido no deserto antes de entrar na Terra Prometida[16]. Como o homem doente havia 38 anos, que Jesus encontra junto da piscina de Bezetha, e que será curado (Jo 5,1-9)[17].
Um Olhar cheio de JESUS faz Ver JESUS. É este o Ver dos Apóstolos. Sem poder, sem ouro nem prata. É neste novo Ver que o coxo de nascença entra. Mas ali mesmo ao lado, o povo disperdia o olhar. Fixava os olhos (atenízô) nos pretensos poderes de Pedro e João (Act 3,12), não em JESUS. Pedro corrige esses olhares, apontando JESUS como Aquele que curou o coxo de nascença (Act 3,12-16).
António Couto
[1] Aoristo passivo de analambánô.
[2] Aoristo passivo de epaírô.
[3] Imperativo aoristo médio de horáô, usado como partícula demonstrativa. E. G. JAY, New Testament Greek. An Introductory Grammar, Londres, 11.ª impressão da primeira edição (1958), 1983, p. 246.
[4] Particípio aoristo de analambánô.
[5] Ph. BOSSUYT, J. RADERMAKERS, Témoins de la Parole de la Grâce. Lecture des Actes des Apôtres. 2. Lecture continue, Bruxelas, Éditions de l’Institut d’Études Théologiques, 1995, p. 109; J. ROCHETTE, Regard et guérison, présence nouvelle du Christ à son Église dans la «diaconie de l’apostolat» (Act 1,25), in Nouvelle Revue Théologique, 125, 2003, p. 211.
[6] O verbo atenízô é de cariz muito lucano. De facto, encontra-se 14 vezes no NT, das quais 12 vezes em Lucas, 02 no Evangelho e 10 nos Actos dos Apóstolos. G. ROSSÉ, Atti degli Apostoli. Commento esegetico e teologico, Roma, Città Nuova, 1998, p. 176, nota 25.
[7] D. ELLUL, Actes 3/1-11, in Études Théologiques et Religieuses, 64, 1989, p. 97; R. STRELAN, Strange Stares: atenizeîn in Acts, in Novum Testamentum, 41, 1999, p. 235-255.
[8] J. ROCHETTE, Regard et guérison, p. 212.
[9] Ph. BOSSUYT, J. RADERMAKERS, Témoins de la Parole de la Grâce, II, p. 121.
[10] Ph. BOSSUYT, J. RADERMAKERS, Témoins de la Parole de la Grâce, II, p. 123-124.
[11] J. ROCHETTE, Regard et guérison, p. 213.
[12] 15 horas. Hora da Morte de Jesus (Lc 23,44) e do “holocausto perpétuo” (tamîd) da tarde (Ex 29,39-42), em que se faz a oração da “oferta” (minhah). Ph. BOSSUYT, J. RADERMAKERS, Témoins de la Parole de la Grâce, II, p. 163, e nota 149.
[13] Trata-se certamente da porta que dava acesso do átrio dos gentios para o átrio das mulheres, e não da chamada porta de Nicanor, que dava acesso do átrio das mulheres para o átrio de Israel. Ph. BOSSUYT, J. RADERMAKERS, Témoins de la Parole de la Grâce, II, p. 163.
[14] J. ROCHETTE, Regard et guérison, p. 215.
[15] A. WÉNIN, Abraham: élection et salut. Réflexions exégétiques et théologiques sur Genèse 12 dans son contexte narratif, in Revue théologique de Louvain, 27, 1996, p. 10-11.
[16] Ph. BOSSUYT, J. RADERMAKERS, Témoins de la Parole de la Grâce, II, p. 164.
[17] J. L. SKA, La strada e la casa. Itinerari biblici, Bolonha, Dehoniane, 2001, p. 190-191.