O DIVINO QUE SE PODE VER DO HUMANO!

 

1. Um Deus humano, muito humano, entra hoje em nossa casa, ao lermos o episódio de Marcos 6,1-6. Visto bem de perto, é um Deus também como nós. Com rosto, coração, mãos de terra e de amor. Deus humanado. Deus humanado, e, todavia, Deus, fazendo maravilhas entre nós, debruçando-se com amor infinito sobre os doentes, os pobres, os pequeninos, os marginalizados. Fazendo a nossa terra produzir novos e insuspeitados frutos. É esta a áurea que rodeia Jesus, quando agora reentra em Nazaré ouBOBHEU~1 em nossa casa.

 2. Mas nós, como eles, queremos sempre ver um Deus espectacular, que faça mirabolâncias incríveis, que nos vençam e convençam. É quase sempre esta concepção (falsa) que fazemos de Deus. Mas é verdade que, para incarnar, Deus teve necessidade de uma mãe autenticamente mãe. Não mudou a condição humana de Maria. Ela permaneceu como era, uma mulher da província, numa casa pobre, numa vida modesta. E Deus deixou estar as coisas como estavam. Não transfigurou nada daquilo em que tocava. Não modificou as leis da natureza. E Maria foi aprendendo a ver o muito de divino que se pode ver no humano: Deus no olhar de uma criança, no seu sorriso puro, num rapaz sentado à mesa ou a brincar. Aprender a escutar a voz de Deus na voz dos homens, por mais desgraçada que ela seja. Maria inaugurou a verdadeira contemplação cristã.

 3. Os seus conterrâneos têm acerca dele um conhecimento anagráfico muito superior ao do leitor. O leitor apenas sabe que Jesus provém de Nazaré, pois foi disso oportunamente informado (Marcos 1,9). Os conterrâneos de Jesus sabem muito mais. Sabem a sua profissão (carpinteiro) e conhecem a sua família (mãe, irmãos, irmãs) e a sua residência (Marcos 6,3). Mas não sabem «DE ONDE» (póthen) vem a sua competência. Os prodígios que faz e as coisas maravilhosas que diz não podem provir daquela carne humilde. A terra impede-nos de ver o céu. Razão tinham os mestres da sabedoria judaica, quando deixaram escrito, no tratado Sukkôt [= Tendas] da Mishna, que as Tendas levantadas no campo ou nos terraços das casas nunca deviam ter um tecto tão espesso, que não deixasse ver o céu! É fundamental podermos ver sempre o céu, e que o céu nos possa sempre ver a nós!

 4. Na verdade, na mentalidade antiga e na nossa mentalidade moderna envelhecida, são as raízes geográficas e familiares que determinam a identidade e a capacidade de alguém. Pois bem, é apontando as humildes e bem conhecidas raízes geográficas e familiares de Jesus, que os seus conterrâneos exclamam acerca dele: «‘DE ONDE’ (póthen) a ESTE estas coisas, e que sabedoria é esta a ESTE dada, e os prodígios que pelas mãos d’ELE vêm?» (Marcos 6,2). Como quem diz: «Não pode ser!». Em nome da terra, negamos o céu. Como se o céu fosse dedutível da terra!

 5. Mas fica lá aquele «DE ONDE» (póthen), que atravessa os Evangelhos, e que aponta sempre para Deus. Aventuremo-nos um pouco nesta travessia: Em pleno deserto, os discípulos de Jesus, cépticos, perguntam: «‘DE ONDE’ (póthen) poderá alguém saciar estas pessoas de pães num lugar deserto?» (Marcos 8,4). Mas Jesus, que bem sabe o que vai fazer (João 6,6), pergunta a Filipe, como se de um teste se tratasse: «‘ONDE’ (póthen) compraremos pão para que eles comam?» (João 6,5). A questão não é apenas sobre comprar. É sobre «ONDE comprar». Esse «ONDE» (póthen) indica a origem divina, e já tinha sido ouvido em João 1,48, quando Natanael pergunta a Jesus: «‘DE ONDE’ (póthen) me conheces?» Será também ouvido em João 2,9, em que o narrador nos informa que o chefe-de-mesa «não sabia ‘DE ONDE’ (póthen) era» a água feita vinho. Da mesma forma, Nicodemos também não sabe, acerca do Espírito, «‘DE ONDE’ (póthen) vem nem para onde vai» (João 3,8). Tal como a mulher samaritana não sabe ‘DE ONDE’ (póthen) Jesus tira a água viva (João 4,11). E as autoridade de Jerusalém confirmam que, «quando vier o Cristo, ninguém saberá ‘DE ONDE’ (póthen) Ele é» (João 7,27). E, mais à frente, em polémica com os fariseus, Jesus afirma: «Eu sei ‘DE ONDE’ (póthen) venho; vós, porém, não sabeis ‘DE ONDE’ (póthen) venho» (João 8,14). E na cena da cura do cego de nascença, os fariseus acabam por afirmar acerca de Jesus: «Esse não sabemos ‘DE ONDE’ (póthen) é» (João 9,29), ao que o cego curado responde, apontando a cegueira deles: «Isso é espantoso: vós não sabeis ‘DE ONDE’ (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!» (João 9,30). Na narrativa do IV Evangelho, tudo isto conflui para a questão posta por Pilatos: «‘DE ONDE’ (póthen) és TU?» (João 19,9). E, no Evangelho de Lucas, Isabel também exclama: «‘DE ONDE’ (póthen) a mim isto: “Que venha a mãe do meu Senhor ter comigo?”» (Lucas 1,43).

 6. Esta interrogação retórica sistematicamente repetida (DE ONDE?) deve ir abrindo os olhos do leitor. Os conterrâneos de Jesus podem não saber «DE ONDE» a ESTE estas coisas…», mas o leitor do Evangelho hoje, que é o conterrâneo e contemporâneo de Jesus hoje, tem obrigação de o saber, dadas as inúmeras indicações da Escritura e as fissuras da ramagem que cobre as nossas tendas.

 António Couto

6 Responses to O DIVINO QUE SE PODE VER DO HUMANO!

  1. E.Coelho diz:

    Eis o gigantesco passo que é preciso dar:
    – “Aprender a escutar a voz de Deus na voz dos homens, por mais desgraçada que ela seja” ou seja, ver nos outros o ROSTO de Jesus e agir em conformidade. Simplesmente porque nos é dado saber DE ONDE viemos e PARA ONDE vamos. O problema é que quase nunca nos lembramos disto. Precisaríamos de um sinal na testa (ou de uns filactérios)… para recordar constantemente. Parece ser que já não bastam as cruzes que trazemos ao peito.Temos forçosamente de as trazer no coração e na mente para evitar tantos e tantos fracassos. Como se aprende? Julgo que pela oração e pela prática, passo a passo, tal como as crianças aprendem a andar.
    Abraço e bom domingo
    Elisa

  2. Rui Pedro diz:

    Chama-me a atenção o Evangelho de Marcos: como é realista, como nos aponta o retrato de como os discípulos e a multidão se «escandalizam» de Jesus ao longo do Evangelho que é a sua Vida… Desde o medo dos discípulos na tempestade de Mc 4,35-41, os gerasenos que pedem a Jesus que se retire (Mc 5,17), as vozes que pedem ao Chefe da Sinagoga que «deixe de importunar o Mestre» (Mc 5,39)…
    E, apesar de tudo, Jesus vai continuar a «ensinar pelas aldeias» e a enviar os Doze, «dois a dois»,(Mc 6,6-7), ontem como hoje, na Galileia ou em Jerusalém (Act 1,8)…

  3. Nuno diz:

    É importante que, em vez de andarmos sempre a olhar para baixo – para a terra, para as misérias, para as riquesas,… – olhemos também para o Céu.

    Senhor, que queres que faça?

  4. José Frazão diz:

    Mais um belo e maravilhos texto de reflexão.
    Como o peixe na água, com a maior naturalidade e simplicidade – e sempre com um brilho oportuno – D. António Couto apresenta, à maneira de um mosaico, um conjunto de citações bíblicas, com as contantes: “DE ONDE”, “ONDE”, e até “PARA ONDE”, apontando para a verdade comum e unitária da trancendência do sobrenatural e divino, em toda a interrogativa humana da pessoa em crecimento e busca do divino, como sua vocação e realização.
    É maravilhoso que cada um possa assim interrogar-se e abrir-se sempre à dimensão maior da verdade, em vez de a ela se fechar, ou dela se armar em contestatário.
    Mas esta interrogação, feita por cada um, é já um movimento da graça na pessoa que assim se questiona.
    Obrigado, D. António Couto.

  5. Paula A. Fernandes diz:

    Seria bom se as nossas “tendas” fossem transparentes, permitindo-nos ver tudo quanto nos rodeia – bom/mau, alegre/triste, são/doente, abastado/pobre, trabalhador/desocupado, pequeninos desprotegidos, idosos carentes(…)- com um olhar iluminado pela luz, pura, dos olhos de JESUS.

    Essa exigência é-nos imposta pela condição de conterrâneos e contemporâneos informados, ou pelo menos com o dever de o sermos, sobre o “Onde”, “De onde” e “De onde a mim isto” que é a BOA NOVA de JESUS.

    Porém, o nosso olhar é, quase sempre, muito selectivo.
    Porque incomoda e tira o sono, preferimos não ver, não saber, não conhecer, não tocar…

    Há momentos em que conseguimos afastar essa apatia e agimos, dando frutos bons.
    Ficamos interiormente preenchidos, alegres e dizemos: “Fiz uma boa acção; meu bom Deus, não te esqueças de mim, aí no Céu.”

    Só que é difícil continuar, persistir, com facilidade entramos na rotina, ficamos novamente “cegos”!

    No entanto e a final, impõem-se-me conclusões positivas:
    – antes pouco que nada;
    – mesmo no pouco, podemos contagiar outros;
    – podemos viver animados pela esperança de que vamos olhar mais, ouvir mais, fazer mais;
    – um dia, a luz pura que é JESUS, pode alojar-se PERMANENTEMENTE E PARA SEMPRE no nosso coração e, então ACONTECE…;
    – não podemos deixar de acreditar…

    Peço a JESUS que me guie, que me faça contemplar como Maria, no Homem ver Deus,tratando-o tal-qualmente.

    E agradeço sempre muito a graça que me é dada, de tão bom viver (onde também incluo estas preciosas reflexões).

    Muito obrigada.

  6. josé oliveira diz:

    Bem haja!
    Esta nossa sociedade está cada vez mais adormecida,porque não sabe de ONDE veio,nem para ONDE vai.
    MAS na verdade quando algo menos bom acontece,todos ou quase todos olham para o CÉU, sim para o CÉU.
    Espero que quando voltarem a olhar para o CÉU seja de pescoço esticado,para ver o que ELE nos diz. Façam-no de CORAÇÃO aberto, como MARIA que nada pediu em troca apenas a GRAÇA para calcar os caminhos a ELA destinados.
    Muito obrigado.
    Até sempre.