1. Sentado à porta de Setembro ou de um novo ano de trabalho (na verdade, em termos agrícolas, escolares, pastorais, políticos e outros, o ano começa em Setembro), tenho ainda nos ouvidos a música e a letra do sonho de Martin Luther King, dito em Washington há 46 anos, em 28 de Agosto de 1963, perante 250 mil pessoas, no final de uma grande marcha cívica pelos mais belos ideais do ser humano: a igualdade, a liberdade, a fraternidade. Não posso também deixar de ter diante de mim o sonho corajoso de Sérgio Vieira de Melo, que um atentado vitimou em Bagdad, em 19 de Agosto de 2003, e de tantos homens e mulheres, a maioria anónimos, que lutaram e lutam por um mundo menos violento e mais fraterno.
2. No seu belo sonho, Martin Luther King ousava antever a América e todos os povos da terra sentados à volta da mesa comum da fraternidade. Porém, no dia 4 de Abril de 1968, uma bala atravessou Martin Luther King. Mas não atravessou o sonho, que já, entretanto, ardia em muitos corações benevolentes. O mesmo se diga de Sérgio Vieira de Melo e de todos os homens e mulheres de boa vontade.
3. O sonho continua certamente. Mas as primeiras páginas deste século XXI, escritas em doses elevadas, letais, de ódios e vinganças, trouxeram à tona o que de pior há no ser humano, e constituem uma forte machadada no sonho da fraternidade.
4. Temos de ser pacientes e persistentes. Um sonho assim sempre ardeu no coração humano, mas também sempre foi fustigado pelos tiranos de ontem e de hoje que, com tempestades de ódios e de armas, pretendem impor aos outros o pesadelo dos seus interesses.
5. Nesse sentido, o livro de Daniel apresenta, no Capítulo 2, o sonho-pesadelo paradigmático do tirano Nabucodonosor, que em sonhos viu uma estátua enorme, que tinha a cabeça de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coixas de bronze, as pernas de ferro e os pés de barro. E depois de ter a visão desta estátua imponente e rica, mas pesada e imóvel como todas as estátuas, viu logo uma pedrinha que, deslocando-se da montanha e rebolando, veio embater contra os pés de barro da imponente estátua. O resultado foi que logo se pulverizaram os seus pés de barro, pulverizando-se de seguida, para espanto medonho do tirano Nabucodonosor, também o ferro, o bronze, a prata e o ouro.
6. O tirano percebeu que era ele próprio que se estava a desmoronar. E já nem conseguia dormir durante a noite com um tal pesadelo na cabeça. O profeta confirmou que todos os ódios e prepotências se desmoronam. É só uma questão de dias. Não duram sempre os luxos e os lucros, os ódios, o poder e a ganância. Virá sempre um dia em que serão declarados inúteis os instrumentos de guerra e de poder. Como igualmente inúteis são (nós é que pensamos pouco nisso) a nossa pretensa importância, os títulos que ostentamos, o ouro e a prata que amealhamos. E, por isso, diz outra vez o profeta, «das espadas forjarão arados, e das lanças tesouras para podar» (Miqueias 4,3). E que será feito dos dólares e dos euros?
7. Este sonho-pesadelo representa bem esta sociedade rica e pesada, luxuosa e luxuriosa, com a cabeça cheia de megalomanias de poder e de ganância, e que aperta nos seus braços prateados o mais que pode. O bronze e o ferro retratam as armaduras com que nos equipamos para as nossas pequenas-grandes guerras de todos os dias.
8. Oh quanto vale uma cabeça cheia de bom senso, um coração de carne, um ventre de misericórdia! Não pensamos suficientemente nisso, mas chega a ser de uma comicidade extrema a seriedade com que nos agarramos às coisas deste mundo! Se, como diz o poeta, «o sonho comanda a vida», então, entre sonho e sonho, escolhe o sonho certo, meu irmão sentado à porta de Setembro!
António Couto