I HAVE A DREAM (28 de Agosto de 1963)

Agosto 28, 2009

 

1. Sentado à porta de Setembro ou de um novo ano de trabalho (na verdade,188 em termos agrícolas, escolares, pastorais, políticos e outros, o ano começa em Setembro), tenho ainda nos ouvidos a música e a letra do sonho de Martin Luther King, dito em Washington há 46 anos, em 28 de Agosto de 1963, perante 250 mil pessoas, no final de uma grande marcha cívica pelos mais belos ideais do ser humano: a igualdade, a liberdade, a fraternidade. Não posso também deixar de ter diante de mim o sonho corajoso de Sérgio Vieira de Melo, que um atentado vitimou em Bagdad, em 19 de Agosto de 2003, e de tantos homens e mulheres, a maioria anónimos, que lutaram e lutam por um mundo menos violento e mais fraterno.

 2. No seu belo sonho, Martin Luther King ousava antever a América e todos os povos da terra sentados à volta da mesa comum da fraternidade. Porém, no dia 4 de Abril de 1968, uma bala atravessou Martin Luther King. Mas não atravessou o sonho, que já, entretanto, ardia em muitos corações benevolentes. O mesmo se diga de Sérgio Vieira de Melo e de todos os homens e mulheres de boa vontade.

 3. O sonho continua certamente. Mas as primeiras páginas deste século XXI, escritas em doses elevadas, letais, de ódios e vinganças, trouxeram à tona o que de pior há no ser humano, e constituem uma forte machadada no sonho da fraternidade.

 4. Temos de ser pacientes e persistentes. Um sonho assim sempre ardeu no coração humano, mas também sempre foi fustigado pelos tiranos de ontem e de hoje que, com tempestades de ódios e de armas, pretendem impor aos outros o pesadelo dos seus interesses.

 5. Nesse sentido, o livro de Daniel apresenta, no Capítulo 2, o sonho-pesadelo paradigmático do tirano Nabucodonosor, que em sonhos viu uma estátua enorme, que tinha a cabeça de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coixas de bronze, as pernas de ferro e os pés de barro. E depois de ter a visão desta estátua imponente e rica, mas pesada e imóvel como todas as estátuas, viu logo uma pedrinha que, deslocando-se da montanha e rebolando, veio embater contra os pés de barro da imponente estátua. O resultado foi que logo se pulverizaram os seus pés de barro, pulverizando-se de seguida, para espanto medonho do tirano Nabucodonosor, também o ferro, o bronze, a prata e o ouro.

 6. O tirano percebeu que era ele próprio que se estava a desmoronar. E já nem conseguia dormir durante a noite com um tal pesadelo na cabeça. O profeta confirmou que todos os ódios e prepotências se desmoronam. É só uma questão de dias. Não duram sempre os luxos e os lucros, os ódios, o poder e a ganância. Virá sempre um dia em que serão declarados inúteis os instrumentos de guerra e de poder. Como igualmente inúteis são (nós é que pensamos pouco nisso) a nossa pretensa importância, os títulos que ostentamos, o ouro e a prata que amealhamos. E, por isso, diz outra vez o profeta, «das espadas forjarão arados, e das lanças tesouras para podar» (Miqueias 4,3). E que será feito dos dólares e dos euros?

 7. Este sonho-pesadelo representa bem esta sociedade rica e pesada, luxuosa e luxuriosa, com a cabeça cheia de megalomanias de poder e de ganância, e que aperta nos seus braços prateados o mais que pode. O bronze e o ferro retratam as armaduras com que nos equipamos para as nossas pequenas-grandes guerras de todos os dias.

 8. Oh quanto vale uma cabeça cheia de bom senso, um coração de carne, um ventre de misericórdia! Não pensamos suficientemente nisso, mas chega a ser de uma comicidade extrema a seriedade com que nos agarramos às coisas deste mundo! Se, como diz o poeta, «o sonho comanda a vida», então, entre sonho e sonho, escolhe o sonho certo, meu irmão sentado à porta de Setembro!

 António Couto


O IMPÉRIO DE NARCISO OU A CENA TODA PARA MIM E EU SEMPRE EM CENA

Agosto 20, 2009

 

1. Sim, Don Juan morreu. E o nosso tempo está agora marcado pela figura muito mais preocupante de Narciso. Segundo a mitologia grega, Narciso, filho do rio Céfiso e da ninfa Liríope (lírio), era um jovem de tão extraordinária beleza, que todas as ninfas se apaixonavam por ele. Ele, porém, não atendia ao amor de nenhuma delas. Foi assim que a ninfa Eco, por não o conseguir seduzir, morreu de fome e inanição, ficando transformada numa pedra, contra a qual esbarram os sons que emitimos de que ouvimos um simples eco. Tirésias, o adivinho cego, tinha predito que Narciso viveria enquanto não visse a sua própria imagem. E foi assim que Narciso, um dia em que voltava da caça e se debruçou sobre um poço de águas límpidas para beber, ficou de tal modo apaixonado pela sua própria imagem reflectida na água, que se consumiu de amor por si próprio, acabando também ele por morrer ali de inanição, ficando transformado na flor que tem o seu nome.

 2. Mas não vamos agora entrar pelo lado meramente psicológico ou psiquiátrico de Narciso, mas pela própria cultura de Narciso que gerou esta «era do vazio» ou da «globalização», também conhecida como «civilização das redes», que é a era da internet, do telemóvel, dos hipermercados, da proliferação de rádios, televisões, reality shows, telenovelas da vida real.

 3. É assim que a internet e o telemóvel nos prendem e fazem de nós verdadeiros senhores e senhoras; é assim que, ao entrar no hipermercado, nós somos habilmente estimulados a ocupar o centro da cena: ao proporem-nos coisas demais (tanta coisa por onde escolher), colocam-nos habilmente na situação de decidir mais, de sermos mais nós, de nos darmos mais importância. É natural que nos sintamos lá bem.

 4. E por detrás da proliferação de rádios e televisões, big brothers e toda a espécie de «directos» que permanentemente reclamam a nossa opinião via SMS ou outra, está a habilidade de nos transformarem todos em actores e espectadores de nós mesmos – muitas vezes o destinador torna-se o seu principal destinatário –, e em que o que importa é o próprio acto de comunicação e não a natureza ou o conteúdo do que se comunica. Cria-se assim a «consciência telespectadora», captada por tudo e por nada, ao mesmo tempo excitada e indiferente e vazia, e habilmente estimulada a tornar-se interveniente e interactiva, emitindo opiniões que somos sempre habilmente levados a pensar que podem ser geniais, decisivas e premiadas!

 5. Na escola de hoje, a consciência do aluno é em tudo análoga à «consciência telespectadora», programada para a dispersão e não para a concentração, para o temporário e não para o voluntário. O aluno não é mais um sujeito passivo, a quem o professor (antiquado) debita os conteúdos adequados. É, antes, sujeito activo e interactivo, que deve ser habilmente estimulado (e esta é agora a tarefa do professor competente) a escrever ele mesmo o livro com os conteúdos que deve aprender. É por isso que o livro, dito verdadeiramente pós-moderno, já não tem texto nem autor. Contém apenas as notas de rodapé, e, no corpo da página, à maneira de texto, as chamadas de nota: «1, 2, 3, 4, 5…». A ideia é clara: entrámos no tempo da literatura interactiva, em que o livro não vem já escrito, mas é para escrever, reescrever, completar… pelo leitor.

 6. Nesta «era do vazio» (Gilles Lipovetsky) e do «fragmento» (Jean-François Lyotard), nesta «modernidade líquida» (Zygmunt Bauman), é o mundo do «eu» que sai vitorioso, e tudo se traduz em zelar pela própria saúde, beleza e forma física, preservar o poder económico ou a imagem dele, perder os complexos, esperar que chegue o fim-de-semana ou as férias. Eu debruçado sobre mim mesmo, fascinado pela minha imagem por mim fabricada (é o chamado «amor curvus», com que na Idade Média se designava o pecado!). Uma vaga de apatia assola as instituições, desde a família, à escola, à política, à igreja. Narciso impera seduzido pelo seu próprio ídolo. Mal nos apercebemos disto, tão ocupado anda cada um de nós consigo mesmo e a sua imagem.

 António Couto


ASSUNÇÃO DA VIRGEM SANTA MARIA

Agosto 14, 2009

 

1. Ainda que com títulos diferentes, mas com temas e conteúdos assunçãoidênticos, as Igrejas do Oriente e do Ocidente, portanto a Igreja toda, a Una e Santa, celebra no dia 15 de Agosto a maior e mais antiga festa da Mãe de Deus, a Virgem Santa Maria. No Oriente, é a festa da «Dormição» (koímêsis), enquanto que, no Ocidente, prevalece a tonalidade da «Assunção» (análêmpsis).

 2. O Evangelho deste grande Dia relata o belíssimo episódio da «Visitação» (Lucas 1,39-45) seguido do cântico da «Exultação» ou «Magnificat» (Lucas 1,46-56). Note-se outra vez uma pequena diferença de tonalidade: o episódio que o Ocidente conhece por «Visitação», recebe no Oriente o nome de «Saudação» (aspasmós). E o episódio que precede e motiva esta «Visitação» ou «Saudação» recebe no Ocidente o nome de «Anunciação» e no Oriente o nome de «Evangelização» (euangelismós) (Lucas 1,26-38). Verdadeiramente é a Leveza e a Alegria em trânsito, a caminho, ao ritmo do vento do Espírito, música nova, inefável. Vinda de Deus até Maria, até Isabel, até João Baptista, outra vez até Deus. Lembra uma pequena parábola rabínica que, quando David andava fugido de Saul, buscando refúgio nas montanhas (1 Samuel 22 e seguintes), um dia dependurou a sua harpa numa árvore, e adormeceu. Mas o vento, passando, fez as cordas da harpa exalar uma suave melodia. Verdadeira música do Espírito.

 3. É igualmente sugestiva a intuição dos Mestres judaicos, registrada por Martin Buber nos seus «Contos dos Justos». Citando o Salmo 147,1, em que se lê: «É bom cantar ao nosso Deus», Buber apresenta logo a bela interpretação que Rabbí Elimelek dava deste versículo: «É bom se o homem faz cantar Deus nele». Assim Maria correndo sobre os montes e saudando Isabel e cantando as maravilhas de Deus, assim Isabel bendizendo Maria e bendizendo Deus, assim João Baptista, dançando ao som dessa nova música inefável, no ventre de Isabel.

 4. O que verdadeiramente me extasia e inebria é esta música outra, ventilando as cordas do nosso humano, e quase sempre orgulhoso, coração. Vem outra vez a propósito a velha sabedoria judaica, que nos legou esta bela pequena história: «Conta-se que, quando David terminou o Livro dos Salmos, se sentiu muito orgulhoso. Então disse a Deus: “Senhor do mundo, quem de entre todos os seres que criaste, canta melhor do que eu a tua glória?” Naquele momento, apareceu uma rã que lhe disse: “David, não te envaideças. Eu canto melhor do que tu a glória de Deus”» (Sefer ha-Haggadah, 89b).

 5. Pela Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de 1 de Novembro de 1950, o Papa Pio XII proclamava a Assunção da Virgem Maria como dogma de fé. Mas é desde os primeiros séculos do Cristianismo que o Povo de Deus proclama e vive com amor esta realidade. Quantas igrejas, paróquias e dioceses a têm como Padroeira! E, neste particular, este recanto Peninsular, terra de Santa Maria, não podia ser excepção. O Povo de Deus desde muito cedo aclamou a Assunção de Maria, Mãe de Deus e esperança da nossa frágil humanidade.

 6. No seguimento lógico da Assunção de Maria, a Igreja celebra oito dias depois, em 22 de Agosto, a Memória da Virgem Santa Maria, Rainha. Mãe Elevada aos Céus, mas Mãe que vela carinhosamente pelos seus filhos. O Rei e a Rainha não são, na Bíblia, títulos de nobreza, mas traduzem a dupla função de quem deve estar particularmente próximo de Deus e particularmente próximo dos homens. Para acolher de perto toda a Palavra que vem do coração de Deus, e para trazer à humanidade a prosperidade, o bem-estar e a felicidade. Tal é a função do Rei e da Rainha.

 

7. Senhora da Visitação ou da Saudação,

que corres ligeira sobre os montes,

Senhora da Assunção ou da Dormição,

Santa Maria Rainha,

vela por nós, fica à nossa beira.

É bom ter a esperança como companheira.

 

 António Couto


RECEPTORES E RECITADORES

Agosto 13, 2009

 

1. Assiste-se hoje à recuperação do pré-racional (pré-temático, pré-conceptual, pré-lógico, pré-sistemático), que não quer dizer irracional nem sequer menos racional, mas uma nova e mais profunda racionalidade, anterior e fundamento de qualquer outra racionalidade, seja a teórico-sistemática, seja a científico-técnica. De facto, o século XX levou a tribunal o saber filosófico e científico que orgulhosa e ilusoriamente se dizia sem filiação, afirmando-se antes incestuosa e tautologicamente filho de si mesmo, como requer o célebre cogito ergo sum [= eu penso, logo existo] cartesiano. Não, eu não sou a origem, o senhor e o centro do mundo. Quando dou por mim a pensar, já tenho coisas atrás, já estou sempre depois do meu nascimento, já tenho um pai e uma mãe, já sou filho. E reconhecer-me filho é descobrir-me como recepção originária da vida, proveniente de um amor que me precede.

 2. Neste sentido, eu sou fundamentalmente e originariamente recepção, dom, e não acção, dono. O «novo pensamento», assim denominado pela primeira vez por Franz Rosenzweig (1925), e que junta nomes como Ebner, Buber, Guardini, Levinas e outros, opera no sujeito humano uma alteração fundamental, de modo a mostrá-lo, não já como protagonista, dono e senhor, mas como submetido, segundo o étimo originário de sujeito [de sub-jectum = posto debaixo], como «eis-me aqui» passivo e receptivo, que descobre a realidade, não já como objecto de posse para «prender» e «com-preender», mas como dom que outras mãos amorosamente estendem para si.

 3. É a maneira de dizer que, antes de eu dar por mim a pensar e a dizer, já o Outro e os outros cuidam de mim e me dizem. Sou verdadeiramente filho e sou dito. Sou afectado (de afecto, afectividade) pela alteridade. Ser eu, identificar-me, não é autoconstituir-me como fundamento único de tudo. Ser eu é fundamentalmente receber-me. Eu, não a partir de mim, mas a partir do Outro e dos outros. «Ser eu é ser afectado» (Julia Kristeva, Emmanuel Levinas), «ser pensado»: de cogito ergo sum para cogitor ergo sum (Karl Barth), «ser dito» (Romano Guardini), «ser visitado» (Adolphe Gesché), «ser encontrado» (Ferdinand Ebner), «ser dado» (Claude Bruaire), «ser amado» (Carlos Díaz). Está em cena, portanto, um «novo saber». Não o saber de quem conhece o sal só pela via racional, através da sua definição conceptual, em que o sujeito exerce em relação ao objecto-sal a sua soberania de «com-preensão», mas o saber de quem passivamente sofre a acção do sal, saboreando-o, isto é, deixando-o saber. Novo pensamento, novo saber, novo conhecimento ou reconhecimento no duplo sentido de conhecimento novo e de eu me mostrar reconhecido, isto é, agradecido face ao dom que me precede e me institui, e em virtude do qual e por causa do qual eu existo.

 4. Outra vez o confronto sadio. Nós, ocidentais e modernos, descartamos facilmente o passado (não queremos ter velharias em casa, quer se trate de pessoas quer de coisas), e gostamos de nos ver mais voltados para o futuro. E quando dizemos «futuro», é à nossa frente que o vemos. Vivemos voltados para a frente e para o futuro. Somos modernos e ocidentais. Significativa e paradoxalmente, na língua hebraica, que é a língua do povo bíblico, «futuro» diz-se ’aharît, termo que etimologicamente significa «costas» ou «o que está atrás», e «passado» diz-se qedem, que significa também o «oriente», donde nasce o sol por onde nos orientamos. Quer isto dizer que, enquanto que nós vivemos voltados para o futuro e viramos completamente as costas ao passado, o povo bíblico, de língua e mentalidade hebraicas, vive voltado para o passado que é o oriente por onde continuamente se orienta, caminhando, portanto, para o futuro, de costas. Neste sentido bíblico genuíno, o futuro não é o que está à nossa frente, mas o que está atrás de nós. Não o vemos, portanto. Temos de caminhar com todos os cuidados. E como é que se caminha para o futuro, isto é, para trás, literalmente «às arrecuas», de forma cautelosa e segura? Só guiando-nos pelo fio do passado, que devemos ter sempre na mão e que nunca podemos perder de vista!

 5. Nós desprezamos e descartamos o passado. O povo bíblico ama o passado e recita-o com amor, pois ele apresenta-se carregado de dons que outras mãos carinhosamente estendem para nós. Somos, de facto, fundamentalmente receptores e recitadores! Recompõe-te, refaz-te, pacifica-te, renova-te, isto é, recebe-te e recita-te com amor, meu irmão de Agosto. Boas férias!

 António Couto


FÉRIAS DIFERENTES: VAI PARA TI!

Agosto 2, 2009

 

1. Há uma temática que atravessa em filigrana a inteira Escritura: a temática do eleito, abençoado e portador de bênção para todos os povos, peregrino da liberdade, chamado a deixar-se transformar em «outro homem». É nesse sentido que lemos habitualmente o início do extraordinário relato de Abraão em Génesis 12:

 «12,1Disse o Senhor a Abrão: “Vai para ti (lek-leka) do teu país, da tua parentela e da casa do teu pai, para o país que eu te farei ver. 2E eu farei de ti um grande povo e te abençoarei e engrandecerei o teu nome. Sê uma bênção! 3Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem. E serão abençoadas em ti todas as famílias da terra”» (Génesis 12,1-3).

 2. Movido pela Palavra de Deus, único verdadeiro motor da sua vida, Abraão parte do seu país e da casa do seu pai. Mas não se trata de uma viagem no mapa. Não é meramente da ordem da geografia. É da ordem suprema da pessoa e da liberdade. Note-se bem que o texto não diz simplesmente: «Vai (lek) do teu país», mas «Vai para ti (lek-leka) do teu país», especialíssima locução que a gramática hebraica classifica como «dativo ético». Viagem diferente, que implica um trabalho de casa, dentro da própria casa, dentro da própria pessoa, trabalho de libertação para a liberdade, até nos fazermos verdadeiramente livres, abertos, disponíveis, acolhidos, acolhedores, abençoados, abençoadores.

 3. É ainda nesse sentido que Abraão é chamado «o hebreu» (ha-‘ibrî) (Génesis 14,13). ‘ibrî reporta-se a ‘eber, que significa «margem». Ele vem do «outra margem do Rio» (Josué 24,3). Mas reporta-se também a ‘abar, que significa «passar», «atravessar», «ir além de», «converter-se», «abrir uma passagem», «transferir», o que implica um movimento ao mesmo tempo objectivo e subjectivo, activo e passivo. Abraão é o homem que atravessa fronteiras, mas é sobretudo o homem que se atravessa a si mesmo.

 4. Partir do haver para o a-ver. Do país havido (podemos haver terra, coisas e pessoas) para o país prometido, país a-ver. Não para o nosso ver cobiçoso e invejoso, bem documentado em Génesis 3,6, naquele paratáctico e fatal: «e viu a mulher que era boa a árvore para comer, e um desejo ardente para os olhos, e era desejável a árvore para obter inteligência, e tomou do seu fruto, e comeu, e deu também ao seu marido, que estava com ela, e ele comeu», mas para o como Deus nos faz ver, documentado também em Moisés (Deuteronómio 34,1 e 4), a quem Deus faz ver a Terra Prometida, não para a possuir (haver), mas para a receber como um dom, não com olhos cobiçosos e invejosos, mas de bondade e benevolência, não com mãos que se fecham e retêm, mas com mãos que se abrem e recebem e dão. Explorando bem esta dupla simbologia das mãos, a língua hebraica tem mesmo duas palavras para dizer mão: yad = mão fechada, e kaf = mão aberta (palma da mão).

 5. Do país das «coisas-em-si» para o país das coisas através de Deus. Do país sem bênção e sem dom para o país com bênção e com dom. A diferença entre um hebreu ou um cristão e um pagão, é que o pagão [do latim pagus = estaca que fixamos na terra para demarcar o nosso terreno] usa o mundo como coisa sua, sem bênção, enquanto o hebreu e o cristão vêem o mundo não como «uma-coisa-em-si», mas «através de Deus», com bênção. Um objecto não é a sua forma, dimensão, preço, cor, força e movimento, mas um acto intencional de Deus. É sintomático que o hebraico bíblico não conheça um equivalente do nosso termo «coisa». De facto, a palavra dabar, que, no hebraico posterior veio também a significar «coisa», no hebraico bíblico aparece a significar: discurso, palavra, mensagem, relato, notícia, conselho, pedido, promessa, decisão, sentença, tema, história, dito, expressão, afazer, ocupação, accões, boas acções, acontecimentos, modo, maneira, razão, causa, mas nunca «coisa».

 6. O eleito é libertado e abençoado pela Palavra que liberta e abençoa. Livre e abençoado, pode libertar e abençoar. É ainda nesse sentido que Saul vai da casa do seu pai à procura das jumentas perdidas (1 Samuel 9,3), e acaba por ser ungido Rei (1 Samuel 10,1), sendo nessa operação transformado em «outro homem» (’îsh ’aher) (1 Samuel 10,6), com «outro coração» (leb ’aher) (1 Samuel 10,9), isto é, com outra compreensão da vida, dado que, na Bíblia, o coração é o centro da vida espiritual e racional. A viagem de Saul à procura das jumentas perdidas não é uma história inocente. O Rei é o eleito de Deus, abençoado por Deus. Compete-lhe fazer chegar ao seu povo a bênção recebida. Saul, paradigma dos Reis, porque era o primeiro, tinha, pois, uma importante viagem a fazer, na linha de Abraão. Tinha de entrar na rota de Abraão.

 7. Para bom entendedor, esta viagem ao coração, na linha do hóspede e peregrino Abraão, pervade a Bíblia inteira. Ei-la insinuada já no relato que abre o Livro do Génesis, quando o narrador anota que «o homem deixará o seu pai e a sua mãe…» (Génesis 2,24). A não ser assim, nem o texto faz sentido, pois não se vê bem como é que este primeiro homem, modelado da terra (Génesis 2,7), possa deixar o seu pai e a sua mãe!

 8. Mas ei-la também a marcar a viagem da liberdade e do amor verdadeiro da noiva do Cântico dos Cânticos. Para espanto nosso, lemos assim o dizer do noivo para a noiva: «Levanta-te, amada minha,/ formosa minha,/ vai para ti!» (Cântico dos Cânticos 2,10). Também o amor tem de andar na rota de Abraão.

 9. Vê-se bem que o cristão verdadeiro não deixa nada nem ninguém. Vê é as coisas e as pessoas com olhos diferentes, com «outro coração», com bênção, através de Deus. Libertado e abençoado, pode libertar e abençoar. Faz-nos, Senhor, viajar na nova estrada que rasgas, com a Tua Palavra, rumo ao nosso coração, rumo a Ti!

 10. «Vai para ti do teu país» implica receber-se de Deus, implica ser homem, homem livre, feliz e responsável. Já sei que é tempo de férias, e de viagens. Para dizer que se pode passar férias em Portugal, sem necessidade de viajar para o estranjeiro, anda por aí o slogan: «Vá para fora cá dentro». A minha proposta é de outra ordem, da ordem da pessoa e da liberdade: andes por onde andares, estejas onde estiveres, «vai para ti», meu irmão de Agosto!

 António Couto