PARA VÓS, SENHOR, ELEVO A MINHA ALMA!

Novembro 28, 2009

 

1. «Para vós, Senhor, elevo a minha alma» (Salmo 24,1). Antífona do Cântico de Entrada que inaugura a celebração eucarística do Advento, do Ano litúrgico, do Ano inteiro. Aponta a atitude a assumir pela Assembleia fiel e orante: a oblação permanente. Para que esta atitude não fique esquecida, mas tome verdadeiramente conta de nós, as mesmas palavras são repetidas no refrão do Salmo responsorial. Extraordinário pórtico de entrada no Advento e no novo Ano litúrgico. Belíssima forma de viver, elevando para Deus a nossa vida: a oração é a nossa vida! A nossa vida em oração permanente, sacrifício de suave odor, incenso puro subindo para o nosso Deus. Sempre. O Evangelho dirá com a mesma energia e alegria: «Erguei-vos e levantai a cabeça» (Lucas 21,28). É o gesto do justo justificado por Deus (Job 22,26). Página em branco, Primeira e Última, que podemos apresentar a Deus neste início de Advento e de Ano litúrgico. É de Deus a palavra e a escrita que não passa.

 2. «Orando em todo o tempo», diz, a terminar, a lição do Evangelho deste Primeiro Domingo do Advento (Lucas 21,25-28 e 34-36). «Orar em todo o tempo» significa não se deixar enterrar na lama dos caminhos banais e fúteis deste tempo, de qualquer tempo, e que o Evangelho mostra que a busca desenfreada do sucesso e das falsas soluções da devassidão, da embriaguez e das preocupações da vida é uma teia que nos enreda e não nos deixa ver bem, belo e bom. Andamos sempre tão atarefados com inúmeros afazeres, campos, bois, negócios, casamentos, que ficamos com o «coração pesado» e insensível, incapaz de ver o Filho-do-Homem-que-vem, a qualquer hora, nos nossos irmãos mais pequeninos! Ora, o Advento é o Filho do Homem que vem, para que nós o acolhamos. Se o acolhermos, saímos fora da teia dos nossos afazeres que nos sufoca, o penúltimo, e entramos no mundo maravilhoso do Último, do Amor, da Liberdade, que rompe as nossas cadeias.

 3. O escritor argentino Jorge Luis Borges deixou-nos versos densos como estes, acentuando a importância e a intensidade de cada momento da nossa vida a não desperdiçar: «Não há um instante que não esteja carregado como uma arma»; «Em cada instante o galo pode ter cantado três vezes»; «Em cada instante a clépsidra deixa cair a última gota». E o poeta brasileiro Vinícius de Moraes escreveu assim num belíssimo poema: «A coisa mais divina/ Que há no mundo/ É viver cada segundo/ Como nunca mais». É assim, sempre vigilantes, amantes e esperantes, sempre à escuta e à espera de alguém, com Amor imenso e intenso, que rasga o próprio tempo, que devemos encher todos os nossos instantes, como se fosse a primeira vez, como se fosse a última vez. Tudo no Evangelho é decisivo: cada passo conta, cada gesto conta, cada palavra conta, cada copo de água conta!

 4. Átrio de um tempo novo, habitado, «carregado» de justiça e de bondade. Obra de Deus no nosso mundo. E só dele. Obra terna, tenra e nova, como um «rebento» de um jovem casal ou de uma planta. Sinal de Primavera no meio da invernia e da lama em que nos vamos atolando, ensonados e enlatados, sem sequer darmos por isso. É, portanto, mesmo preciso que Ele venha e que nos acorde com novos acordes musicais! E que nos dê nomes novos a nós, às nossas cidades, às nossas escolas, aos nossos hospitais, às nossas ruas! Dar nome é criar e recriar. Obra só de Deus. Que Deus faça nascer um «rebento» novo em cada um de nós e em toda a parte. Jeremias vê sempre bem, belo e bom! (Jeremias 33,14-16).

 5. Paulo passa por Tessalónica, ou pela nossa terra, e ensina-nos a levantar a nossa vida para Deus, para dele acolhermos o alento criador, e a rivalizarmos no pagamento das dívidas de amor que dia-a-dia vamos contraindo uns para com os outros. O exemplo é sempre o amor que Deus nos tem, e de que Paulo é testemunha qualificada.

 6. Vem, Senhor Jesus! Vem, vem, que Te esperamos!

 António Couto


OS NOSSOS REINOS E O REINO DE DEUS

Novembro 21, 2009

1. A «Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei» foi instituída pelo Papa Pio XI, em 11 de Dezembro de 1925, com a Carta Encíclica Quas Primas. Os tempos apresentavam-se sombrios e turvos e os céus nublados como os de hoje, e Pio XI, homem de acção, que já tinha fundado a Acção Católica em 1922, instituiu então esta Festa com o intuito de promover a militância católica e ajudar a sociedade a revestir-se dos valores cristãos. A Festa de Cristo Rei era então celebrada no último Domingo de Outubro. A reorganização da Liturgia no pós-Concílio passou esta Festa para o último Domingo do Ano Litúrgico, com o título de «Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo».

 2. «O Senhor Reina!» (Salmo 93(92),1). É assim que, no Antigo Testamento, o Deus bíblico se apresenta em acção reinando, isto é, salvando, justificando, perdoando, criando. Na verdade, Reinar é Salvar, isto é, trazer o bem-estar, a alegria e a prosperidade ao seu Povo. É esta a missão do Rei. Salvar é justificar, o que implica a extraordinária acção de transformar um pecador em justo. Justificar é, portanto, Perdoar. Neste profundo sentido, Justificar e Perdoar são acções que só Deus pode fazer, dado que, transformar um pecador em justo é igual a Criar ou Recriar. E da acção de Criar também só Deus é sujeito em toda a Escritura. Já se sabe que o Novo Testamento transforma o activo «Deus Reina» no mais abstracto «Reino de Deus».

 3. Tanta e quase indescritível riqueza a de um Deus, sentado no seu trono de Luz, mas que Vem, como um Filho do Homem, com o domínio novo, frágil e forte, do Amor: «Aquele que nos ama» (Apocalipse 1,5). Da lição do Livro de Daniel 7,13-14 e respectivo contexto, vê-se bem que todos os nossos impérios prepotentes e ferozes (Babilónia, Média, Pérsia, Grécia), por mais fortes que pareçam, caem face à doçura da Palavra do Filho do Homem, que dissolve no Amor as nossas raivas e violências, manifestações das bestas que nos habitam. O Filho do Homem vence, sem combater, este combate. É assim que caem as quatro bestas ferozes que sobem do mar (Daniel 7), símbolo da confusão e do mal, e que deixará naturalmente de existir (Apocalipse 21,1). Aí está o domínio dos animais, entenda-se, da animalidade, que é confiado ao Homem (à distância surge o Filho do Homem) logo desde o Génesis 1,26-28.

 4. O domínio do Filho do Homem que nos ama, o domínio do Amor é Primeiro e Último (Apocalipse 1,8). Entre o Primeiro e Último instala-se o penúltimo, que é o domínio velho e podre da violência das bestas ferozes que nos habitam. O Bem é de sempre e é para sempre. É Primeiro e é Último. O Bem não começou, portanto. O que começou foi o mal que se foi insinuando nas pregas do nosso coração. Mas o que começa, também acaba. Os impérios da nossa violência, malvadez e estupidez caem, imagine-se, vencidos por um Amor frágil, forte, que é desde sempre e para sempre, e que vence, sem combater, a nossa prepotência!

 5. Tem de ser sem combater. Porque, se combatesse, usaria os nossos métodos, e apenas aumentaria a nossa violência. É assim que Jesus atravessa as páginas dos Evangelhos e da nossa história, entregando-se por Amor à nossa violência, abraçando-a e, portanto, dissolvendo-a. É assim que o Amor Reina, nos Salva, Justifica, Perdoa e Recria. Os Judeus e Pilatos representam os impérios envelhecidos, podres e caducos da nossa violência, orgulho e estupidez. O Reino do Filho do Homem não pode, na verdade, ser daqui (João 18,33-37). Se fosse daqui, apenas aumentaria a espiral da violência. É de Amor novo e subversivo que se trata.

 6. Vem, Senhor Jesus! Ilumina com a tua Luz nova as trevas, as pregas e as pedras do nosso coração empedernido. Reina sobre nós, Salva-nos, Justifica-nos, Perdoa-nos, Recria-nos. Faz-nos outra vez à tua Imagem. Dissolve a besta bravia que há em nós e que, à imagem de Caim, não fala, mas trucida e come o outro. Bem visto por Judas na sua pequena Carta (apenas um Capítulo), infelizmente pouco lida e meditada: «Aqueles que seguem o caminho de Caim são como animais sem palavra» (Judas 10-11).

 António Couto


É OUTRA VEZ NOVEMBRO

Novembro 17, 2009

1. O tempo em que vamos parece o de Thomas Hobbes, quando, em 1651, deixou escrito no seu famoso Leviatã, que «tudo o que existe tem três dimensões, a saber, comprimento, largura e altura, e aquilo que não tem três dimensões não existe nem está em parte alguma». Com este procedimento, Hobbes, e alguns dos nossos contemporâneos com ele, reduzem o homem a um objecto, sem alma nem emoções, sem alegria nem tristeza, sem encanto e sem sonho, sem Deus. É um homem à medida do cadáver, e um mundo à medida do cemitério, tudo formatado e tresandando a amoníaco. É o mundo do «dois vezes dois são quatro», de que fala Dostoievski nos seus Cadernos do Subterrâneo, acrescentando logo, em jeito de confissão: «O homem sempre teve medo deste dois vezes dois são quatro, e eu também tenho».

 2. Na esteira do grande escritor russo, vale a pena mostrar aqui um extracto das recentes e densas análises de O Método, de Edgar Morin: «O dogma da simplificação que contém a morte continua a impor-se por aí como verdade científica (…), e continua a rejeitar para fora do saber aquilo que resiste ao seu controlo. E os defensores deste dogma – continua Edgar Morin – vêem-nos como miseráveis, pedintes, esgadanhando os dejectos das suas lixeiras». E acrescenta depois de forma contundente: «Num sentido, eles têm razão: nós queremos recuperar e reciclar os dejectos que a sua ciência expulsa: não apenas o incerto, o impreciso, o ambíguo, o paradoxal, a contradição, mas também o ser, a existência, o indivíduo, o sujeito. Julgam deitar fora os excrementos do saber: não sabem que atiram para o lixo o ouro do tempo».

 3. Nada de novo. Seis séculos a. C., já o filósofo grego Heraclito deixava escrito, no seu Fragmento 9, que «Os burros preferem a palha ao ouro». E já no nosso tempo, Martin Heidegger, debruçando-se, nos seus Ensaios e Conferências, sobre a referida sentença de Heraclito, pôde lê-la para nós, explicitando que este «ouro» depreciado é «o brilho não visto da claridade, e não se deixa agarrar, porque ele próprio não agarra», porque não é do domínio da posse, não obedece à regra das três dimensões.

 4. Anda hoje outra vez por aí muito badalada a cultura das três dimensões. E é nesse sentido que dos hospitais se pretende retirar os capelães, porque aos doentes, reduzidos a três dimensões, bastam os cuidados técnicos que lhes são prestados por técnicos, da mesma forma que das escolas se pretende retirar os crucifixos, porque às crianças basta o alfabeto, a tabuada e a fita métrica, e a Igreja deve ser marginalizada, silenciada e banida como verdadeira fonte de ignorância, dado que o que diz e faz está para além das três dimensões, e já se decretou que o que não tem três dimensões não existe nem está em parte alguma.

 5. Mas Novembro entra-nos outra vez em casa. E, não se sabe bem porquê, também os defensores da cartilha das três dimensões aparecem a visitar o cemitério e a depor flores nos túmulos dos seus familiares e amigos. E até, muito provavelmente, entrarão em alguma Igreja. Novembro é habitado por um silêncio gritante. Um silêncio que nunca se calou. E as flores, carregadas de sentido, mas silentes, são sempre as últimas a deixar o cemitério. Sim, porque, que se saiba, o sentido nunca fez barulho, nunca faz barulho. Um texto, por exemplo, é letra e som. Mas quando o interpretamos, não é a letra e o som que captamos, mas o sentido que habita essa letra e esse som. Afinal, por mais esforço que se faça, não é possível reduzir o homem a três dimensões. Há sempre uma flor ou uma lágrima, cujo sentido se chama amor, e que não é redutível a três dimensões.

 6. Novembro lembra-nos outra vez que passamos muito tempo e que talvez gastemos até muitas energias a deitar para o lixo o ouro do tempo! Lembra-te, meu irmão de Novembro, que és pó e amor. E o amor não volta ao pó.

 António Couto


«FIM DO MUNDO»: NÃO É DE TERROR QUE SE TRATA, MAS DE AMOR!

Novembro 14, 2009

 

1. O Livro de Daniel terá sido provavelmente escrito no Outono do ano 164 a.C., com o objectivo de encorajar os judeus piedosos a permanecerem firmes na sua fé em plena perseguição anti-judaica desencadeada três anos antes, em 167 a.C., pelo tirano Antíoco IV Epifânio, e cujos ecos se podem ver, por exemplo, no Segundo Livro dos Macabeus 6 e 7, que registra a fidelidade heróica do velho Eleazar e dos sete jovens irmãos Macabeus. Estes são, no dizer do Livro de Daniel 12,1-3, os mestres sábios (maskkilîm) e justificadores (matsddîqîm), isto é, dadores de vida: ensinam, não teorias, mas a vida verdadeira, dando a sua vida por amor: é assim que vencem os violentos, não opondo-se a eles, mas amando, isto é, dando a vida e dando vida, ensinando a viver. Estes novos sábios e justificadores são, diz o Livro de Daniel, as novas estrelas que brilham para sempre!

2. Não são, portanto, as estrelas da moda, da música, do cinema ou do futebol, estrelas cadentes, de brilho efémero e passageiro! São as novas e verdadeiras estrelas de brilho permanente, inscritas no Céu ou no Livro da Vida (ver Daniel 12,1; Salmo 139,16; Isaías 4,3; Lucas 10,20; Apocalipse 20,12). As outras pobres estrelas estão, na verdade, inscritas no chão, no pó da terra (Jeremias 17,13), e lá se perdem e disperdem. Deus sabe escrever no coração (Jeremias 17,1; 31,33), na Cruz (Gálatas 3,1), e, como já vimos, no chão, e no Livro, mas também, num gesto de particular ternura, na palma da sua mão (Isaías 49,16).

3. O cenário do Evangelho deste Domingo (Marcos 13,24-32) não é de2806116051_e6f0cee048 terror, mas de amor! Novos céus e nova terra, saídos das mãos de Deus-Pai, com o Filho-que-Vem, e que está próximo, à porta. É como o noivo do Cântico dos Cânticos 5,2, que bate à porta, descrito pela noiva que dorme, mas escuta com um coração sempre vigilante! Única atitude da Igreja Una e Santa, que Domingo após Domingo, se reúne com emoção e alegria à volta do seu Senhor-que-Vem. Tudo tão suave e tão cheio de maravilha: o nosso Deus revelando ou simplesmente com todo o carinho desvelando, isto é, retirando o véu que encobre a verdadeira realidade, perante os nossos olhos atónitos!

4. Uma parte da Igreja antiga lia este «discurso escatológico» e outros textos similares do Novo Testamento no sentido da chegada iminente do «fim do mundo» (leitura ainda hoje desgraçadamente doentia nas seitas, com ano, dia e hora marcados!). Sim, é do «fim do mundo» que se trata, mas num sentido novo e inaudito: é a Palavra de Deus que não passa, e que é Amor e é Primeira e Última, sempre nova, portanto, que vem pôr fim ao nosso velho mundo de posse e egoísmo sempre em expansão. O Último, que é o Amor, põe fim ao penúltimo, que é a nossa vã maneira de viver. Neste sentido novo, é de desejar que o nosso velho mundo entre em agonia e acabe, para que comece verdadeiramente em nós um mundo novo e belo, cuja matriz é o Amor gratuito e incondicional do nosso Deus por cada um de nós. «Senhor, vem!» (marana tha’).

António Couto


ONDE ESTÁ DEUS, ALI É O CÉU

Novembro 11, 2009

 

1. Em Junho de 2002, D. Alois Kothgasser, então Bispo de Innsbruck (no anodir_povos11 seguinte Arcebispo de Salzburgo), na Áustria, empreendeu uma iniciativa a todos os títulos original: escreveu e assinou juntamente com sete crianças (Pia, Lena, Viktoria, Barbara, Myriam, Nadine e Nina) uma interessantíssima Carta Pastoral. As crianças escolheram o tema: o «Pai Nosso». A reflexão e a redacção foi feita em conjunto. A Carta apareceu em Junho. Esgotou em pouco tempo. Foi lida nas igrejas e nas escolas. Empenhou crianças, jovens e adultos. A Carta terminava com uma parte interactiva, em que as crianças eram convidadas a contribuir com um desenho ou um trabalho manual para a realização de um grande quadro. Eram igualmente convidadas a responder a algumas perguntas sobre o «Pai Nosso». As respostas chegaram aos milhares.

2. A Carta reflecte bem a linguagem directa das crianças, mas mostra também uma notável compreensão da oração do «Pai Nosso». Abba, Ab-ba, dizia Jesus na sua língua materna, o aramaico. Papá, Pap-pa, diz a criança que há nós, em português. Termo de grande ternura e proximidade. Nosso, acentuam as crianças: quer dizer que somos todos irmãos e irmãs, fomamos todos uma grande família. E perguntam: então por que é que os adultos fazem tantas guerras? E as crianças de Innsbruck lembram aos adultos que o termo para dizer «guerra» na sua língua, Krieg, vem de kriegen, que significa «obter», «possuir». Ficamos assim todos a saber onde está a raiz das nossas guerras.

3. Ficamos também a saber com as crianças de Innsbruck que, rezando sinceramente o «Pai Nosso», vamos aprendendo e ensinando a dar pequenos passos para mudar alguma coisa.

4. Novembro faz-nos entrar pelos olhos dentro a verdade e a humildade daborboletas005 nossa humanidade: o húmus, a terra. Mas também o carinho, a familiaridade, a comunhão com os nossos familiares e amigos já falecidos. Verdadeiramente, «aqueles que passam por nós/ não vão sós,/ não nos deixam sós./ deixam um pouco de si,/ levam um pouco de nós» (Saint-Exupéry).

5. E a fé ensina-nos também, nestes dias, de mais perto e de mais fundo, que Deus nunca nos abandona, do mesmo modo que o Papá e a Mamã não abandonam os seus filhos. Novembro traz muitas lições para os nossos olhos. Para quê tantos ódios, invejas, vaidades e orgulhos? Para quê as nossas guerras e guerrinhas?

6. Onde está Deus, ali está o céu, lembram-nos as crianças de Innsbruck. Quer dizer que a nossa terra pode sempre ter um bocadinho mais de céu. Depende também de ti, meu irmão de Novembro.

António Couto


DAR A VIDA TODA TODA A VIDA

Novembro 7, 2009

 

1. Um braçado de gravetos, um copo de água, um punhado de farinha, umElias%20poco%20ol%20az%20226 tudo nada de azeite. Juntando as pontas destes fios, a viúva de Sarepta prepara-se para fazer uma última refeição de despedida da vida juntamente com o seu filho único. É nesta terra quase a terminar, onde já mal se tem pé, nesta vida quase a expirar, que surge Elias, o homem de Deus, conduzido por Deus, que atira à pobre mulher mais um fio de voz e de esperança: Deus. Não é a quantidade que conta; o que conta é a totalidade. Pelo fio de voz e de esperança de Elias, Deus não reclama alguma coisa; reclama tudo: o coração todo, a alma toda, a confiança toda, as forças todas! E nem a farinha se esgota na amassadeira, nem o fio de azeite deixa de cair da almotolia! Extraordinária lição para a pobre viúva de Sarepta (Primeiro Livro dos Reis 17,10-16) e para nós, que atravessamos a secura da paisagem desta terra de Novembro.

2. O coração todo, a alma toda, a confiança toda, as forças todas: assim se ouve ou se lê no famoso «Escuta, Israel» de Deuteronómio 6,4-5. E nesse lugar se diz também a Israel que deve formar com essas palavras um fio de luz e de sentido que deve atar ao coração, às mãos, aos pés, aos filhos (Deuteronómio 6,6-9). Este fio é fundamental para segurar as pontas dos podres, pobres fios da nossa vida.

3. Bem, neste contexto, o fio ou a linha poética e melódica do Salmo 146(145), que põe Deus tão perto de nós, a fazer justiça aos oprimidos, a dar pão aos que têm fome, a tomar a seu cuidado o órfão e a viúva, e a atirar-me todo para Deus, com aquele grito repetido: «Ó minha alma, louva o Senhor!»

4. Na verdade, «Deus habita nos louvores de Israel» (Salmo 22(21),4). Habita nos nossos louvores, na nossa dedicação e devotação total a Ele, na nossa vida posta em melodia, fio ou linha melódica que ata o nosso coração ao coração de Deus, a nossa mão à mão de Deus. Foi assim, sacerdotalmente, que Jesus Cristo se ofereceu totalmente ao Pai e a nós e por nós, deixando-nos à espera e a viver dessa espera na esperança da sua Vinda. Um fio tenso de luz e de sentido, a que se chama esperança, nos ata para sempre a esse Senhor-que-Vem. Fio ou linha musical, vital, de cada Domingo, em que cantamos: «Senhor, vem!» (marana tha’), porque sabemos que «o Senhor vem!» (maran ’atta’). O Domingo deve imprimir em nós o «tique» da esperança, deixando-nos com o pescoço esticado para Deus, situação de quem O espera e vive da sua Vinda a todo o momento. É a Lição de Hebreus 9,24-28.

5. O Evangelho de Marcos 12,38-44 põe em cena e em claro destaque umaesmola viúva pobre que dá a Deus a sua vida toda, em contraponto com os escribas e muitos outros, que fazem bom teatro religioso! Excelente inclusão literária no Evangelho de Marcos: da primeira vez que Jesus aparece a ensinar em público, neste Evangelho, o povo exclama: «Este ensina com autoridade, e não como os escribas!» (Marcos 1,22); a terminar a sua actividade pública neste Evangelho, é Jesus que mostra bem que não é como os escribas (Marcos 12,38-40). A cena central passa-se no átrio das mulheres do Templo de Jerusalém, num lugar chamado «Casa do Tesouro» (bêt ha-gazît) (Marcos 12,41-44). Muita gente deitava aí muito do que lhe sobrava, mas a viúva pobre deu «tudo quanto tinha, a sua vida toda!». Fio de sentido que liga este episódio ao que já encontrámos no Primeiro Livro dos Reis 17,10-16.

6. Dar a vida toda toda a vida ou fazer teatro religioso, eis a questão, meu irmão de Domingo.

António Couto


A (PRO)VOCAÇÃO DA SANTIDADE E DA FELICIDADE

Novembro 1, 2009

1. Deus é a Santidade. Santo, Santo, Santo. Santo, na língua hebraica, diz-se 2806116051_e6f0cee048qadôsh, cujo significado mais consistente é «separado». Separado de quê ou de quem, podemos perguntar. Da sua criação? Parece que não, pois o Deus da Bíblia olha para ela e por ela com beleza e bondade. De nós? Obviamente não, pois o Deus da Bíblia bem vê e vê bem os seus filhos queridos, ouve a nossa voz, conhece as nossas alegrias e tristezas, desce ao nosso nível e debruça-se sobre nós com carinho. «Separado» de quê ou de quem, então? «Separado» de si mesmo, eis a surpreendente identidade de Deus. «Separado» de si mesmo, isto é, não agarrado ao seu mundo divino e dourado para o defender ciosamente. Ao contrário, o nosso Deus é um Deus que sai de si por amor, para, por amor, vir ao nosso encontro. É esta realidade que se vê bem em toda a Escritura, Antigo e Novo Testamento. Paulo, na 2 Carta aos Coríntios, resume bem esta realidade ao falar de Jesus Cristo que, «sendo rico se fez pobre por causa de nós, para nos enriquecer com a sua pobreza» (8,9).

 2. Só um Deus assim pode e sabe felicitar os pobres. Com um tom carregado de felicidade, não restritivo, mas alargado a toda a humanidade, as «Felicitações» do Rei novo atingem todas as pessoas, chegando às franjas da sociedade, onde estão os pobres de verdade. No meio destas «Felicitações» – é por nove vezes que soa o termo «FELIZES –, note-se a centralidade da MISERICÓRDIA (5.ª felicitação) (5,7). Atente-se ainda na diferente formulação desta felicitação. Salta à vista que todas as outras se abrem a uma recompensa imediata ou futura. A MISERICÓRDIA, porém, roda sobre si mesma, retornando, por obra de Deus (passivo divino ou teológico) sobre os MISERICORDIOSOS. Notem-se igualmente as inclusões assentes na repetição da locução «reino dos céus» (1.ª e 8.ª) (5,3 e 10) e do termo «justiça» (4.ª e 8.ª) (5,6 e 10). Estas inclusões convidam-nos também ao reconhecimento de duas tábuas de felicitações, a primeira à volta da pobreza evangélica (5,3-6), e a segunda à volta da bondade do coração (5,7-10).

«5,1Vendo as multidões, subiu à montanha.

Tendo-se sentado, vieram ter com ele os seus discípulos.

2Abrindo então a sua boca, ensinava-os dizendo:

3FELIZES (makárioi / ’ashrê) os pobres de espírito (ptôchoì tô pneúmati),

porque deles é o reino dos céus;

4FELIZES os aflitos,

porque serão consolados;

5FELIZES os mansos,

porque herdarão a terra;

6FELIZES os que têm fome e sede de justiça,

porque serão saciados;

7FELIZES os misericordiosos (eleêmones),porque lhes será feita misericórdia (eleêthêsontai);

8FELIZES os puros de coração,

porque verão a Deus;

9FELIZES os fazedores de paz,

porque serão chamados filhos de Deus;

10FELIZES os perseguidos por causa da justiça,

porque deles é o reino dos céus.

11FELIZES sois vós, quando vos ultrajarem e perseguirem,

e, mentindo, disserem contra vós toda a espécie de mal

por causa de mim (éneken emoû)» (Mateus 5,1-11).

3. Os «pobres de espírito», aqui referidos, não são pobres de Espírito Santo nem de inteligência, mas pessoas humildes, no sentido em que uma pessoa humilde é «baixa de rûah» (shephal rûah) (Provérbios 16,19; 29,23), isto é, sem espaço físico, económico, social ou psicológico. Não precisam de se afirmar. São claramente os últimos da sociedade, mas que, na sua humildade e pobreza, desafiam a sociedade, pois os ptochoí são pobres ao lado de gente rica, acomodada, que estendem a mão para nós, apontando o dedo ao nosso egoísmo, afirmação, instalação e comodidade. Situação que, seguramente, não nos deixa de boa consciência, encarregando-se a Constituição Dogmática Lumen Gentium, n.º 9, de nos lembrar que «Apouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo». O povo de Deus, a Igreja de Deus, não são alguns tranquilamente fechados entre paredes, num círculo restrito, mas uma imensa comunhão de irmãos sem paredes nem barreiras de qualquer espécie.

4. Note-se ainda que, na mentalidade e na língua hebraica, «felizes» ouarticle01_02 «bem-aventurados» diz-se (’ashrê), termo que qualifica os pioneiros, aqueles que abrem caminhos novos e bons e de vida nova e boa para o mundo. E é verdade por paradoxal que pareça. Foram e continuam a ser os Santos e os Pobres os que verdadeiramente abrem caminhos novos neste mundo enlatado, saciado, enjoado, dormente e anestesiado em que vivemos.

5. Aos misericordiosos será feita misericórdia. Belíssimo círculo bem no centro das Bem-Aventuranças.

António Couto