CAMINHO DE LUZ E DE JESUS

Fevereiro 27, 2010

 

1. Baptizado no Jordão enquanto estava em oração (nota típica de Lucas), tentado, mas Vitorioso, Jesus começou a executar o seu programa filial baptismal que tem por meta a Cruz Gloriosa (Baptismo consumado!) em que nós somos por Ele baptizados com o fogo e com o Espírito Santo (ainda o luminoso texto de Lc 12,49-50). Entre o Jordão e a Cruz Gloriosa aí está Hoje a Transfiguração, Luz incriada e inacessível (Lc 9,29; cf. S1 104,2; 1 Tm 6,16) que investe a Humanidade de Jesus, experiência momentânea da Ressurreição, mediante a qual o Pai confirma o Filho na sua missão filial baptismal, já iniciada, mas ainda não consumada. Também aqui temos a nota típica de Lucas de que Jesus subiu ao monte oara orar,  acontecendo a Transfiguração do Rosto e das vestes enquanto orava (9,28).

 2. Baptizado para a Cruz Gloriosa, Confirmado para a Cruz Gloriosa. As mesmas palavras do Pai no Baptismo e na Transfiguração / Confirmação: «o Filho Meu», «o Amado» – «o Eleito» (Lc 3,22; 9,35), agora seguidas pelo imperativo «Escutai-o!», dirigido a todos os discípulos: Jesus é também o «Profeta novo», como Moisés, prometido em Dt 18,15-18. Como dispunha a Lei antiga, que requeria duas ou três testemunhas (Dt 17,6), testemunham a cena grandiosa da Transfiguração / Confirmação três discípulos, os quais são igualmente transfigurados / confirmados, não no rosto e nas vestes, mas no coração, para a sua futura missão (após a Ressurreição com a dádiva do Espírito) de dar testemunho d’Ele.

 3. Aparecem Moisés e Elias que falam com Jesus Transfigurado / Ressuscitado. É para Ele que aponta todo o Antigo Testamento! As «Escrituras», Moisés, todos os profetas e os Salmos, falam acerca d’Ele! (Lc 24,27 e 44; Jo 5,39 e 46; Act 10,43). É o «segundo as Escrituras» que os discípulos também devem testemunhar. Só em Lucas temos o assunto falado: «falavam do Êxodo d’Ele que se consumaria em Jerusalém!» (9,31). Passagem deste mundo para o Pai, Liberdade definitiva, cumprimento do Êxodo antigo!

 4. Pedro, sempre ele, em nome dos discípulos de então e de sempre, tenta impedir Jesus de prosseguir a sua missão filial baptismal até à Cruz: «Mestre, belo é estarmos aqui e fazermos aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias» (Lc 9,33). Aqui significa deter-se no penúltimo e provisório e recusar caminhar para o último e definitivo! Lc 9,33 (e Mc 9,6) anotam correctamente que «não sabia o que dizia». Não sabia, porque ainda não tinha sido baptizado com o Espírito Santo e com o fogo; quando o for, saberá também ele, discípulo fiel, baptizado / confirmado, levar por diante a missão filial baptismal em que foi investido, e dará testemunho até ao sangue.

 5. A Ressurreição é a Transfiguração tornada permanente, eterna. Todos os baptizados / confirmados estão destinados à mesma Ressurreição / Transfiguração da Humanidade do Senhor, a divinização por graça.

 6. Em consonância com a manifestação de Luz do Evangelho da Transfiguração (Lc 9,28-36), aí está o Lume Aceso, que é Deus, a passar pelo nosso mundo (Gn 15,5-12 e 17-18). Abraão representa-nos. Tem dúvidas. Deus dissipa-lhas, comprometendo-se com ele e connosco. O ritual que sela este compromisso é antigo, mas ainda hoje se pratica entre os beduínos. Cortam-se ao meio animais puros, e põe-se uma metade diante da outra. A seguir os contraentes passam entre as carnes divididas dos animais, proferindo uma auto-maldição, do género: «Suceda-me o que sucedeu a estes animais, se eu não for fiel à palavra dada!». Note-se que, no texto de hoje, caiu sobre Abraão (e nós com ele) um sono profundo, dom de Deus (veja-se o mesmo sono no Evangelho de hoje: Lucas 9,32), e é só Deus, no fogo, que passa por entre as carnes divididas dos animais. Só Ele, portanto, se compromete. Nós, ensonados e ensonhados, somos apenas beneficiários deste compromisso de Deus de levar a nossa história em direcção a Cristo, que é a verdadeira descendência de Abraão (Gl 3,16), que Abraão vê e saúda de longe (Hb 11,13), cheio de alegria (Jo 8,56). A meta de Abraão torna-se clara e define e alumia a estrada que segue. Por isso, Abraão não se despede do passado, e faz ao futuro um aceno de esperança e de alegria. É tão simples, tão novo e tão decidido este sono / sonho dado a Abraão, a Pedro, João e Tiago! Talvez devamos mesmo seguir o conselho de Isaías, o profeta: «Olhai para Abraão, vosso Pai» (Is 51,2). E partir com ele daqui, do penúltimo e provisório, ao encontro de Cristo Transfigurado / Ressuscitado.

 7. A Carta de Paulo aos Filipenses (3,17-4,1) põe outra vez tudo às claras: ou agarrados aqui ao penúltimo e provisório, ou a caminho do último, da cidade dada por Deus aos seus filhos e filhas, vida nova e transfigurada e conformada à Humanidade glorificada de Cristo.

 8. A Quaresma é esta estrada de Luz e de Jesus.

 António Couto


VERDADE, SIMPLICIDADE, PAZ, RESPEITO E HARMONIA

Fevereiro 25, 2010

 

1. No meu diário consta esta página que hoje aqui transcrevo.  Acabo de regressar da Tailândia, onde tive o grato prazer de participar, de 24 a 29 de Janeiro (2004), nos arredores de Bangkok, em Sampram, num Congresso Internacional de Sociedades Missionárias de Vida Apostólica, de que faz parte também a Sociedade Missionária da Boa Nova. O tema do encontro era o diálogo inter-religioso.

 2. Não me vou aqui referir aos assuntos tratados na sala do Congresso. Apraz-me simplesmente registar a beleza edénica do lugar, a limpeza inexcedível e a gentileza inultrapassável dos tailandeses com quem nos relacionámos.

 3. Visitámos lugares históricos e museus. Registo aqui apenas a visita à cidade de Ayutthaya, berço do cristianismo na Tailândia, levado pelos missionários portugueses em 1511, os primeiros ocidentais a chegar à Tailândia. Há lá hoje muito poucos cristãos, mas a memória dos portugueses está lá bem assinalada. E o respeito por essa memória também.

4. Visitámos uma comunidade budista em Nakorn Pathom, onde fomos recebidos com toda a simpatia do mundo. Dos monges e das monjas que nos receberam transparecia uma imensa harmonia. A base da sua vida é a verdade mais simples, a paz mais profunda, a simplicidade mais estreme, o respeito inteiro pela vida humana e animal, o trato afável com a natureza.

 5. Os monges vivem sem nada. Sem dinheiro. Sem relógio. Sem mobília nem adornos. Apenas possuem uma tigela em que recebem o arroz que os camponeses lhes dão para comer e uns panos traçados que lhes guardam e protegem o corpo de noite e de dia. Dormem sobre a madeira lisa do chão dos seus pequenos aposentos. Tomam apenas uma refeição por dia. São contra toda a violência. Não matam nenhum animal. Nem sequer o mosquito. Não fumam. Não consomem álcool nem drogas. Vivem sem nada? Não. Porque deixam transparecer um grande desprendimento, uma imensa paz e serenidade interior, transbordante harmonia com a natureza. Cuidam do coração. Depuram-no. Retiram dele, dia após dia, todos os venenos e ervas daninhas, que tornam a nossa vida amarga e violenta. Sem o peso desse lixo, podemos pôr os pés no caminho da felicidade. É assim que vivem, e é isso que ensinam às pessoas que os procuram ou simplesmente os visitam.

6. Num mundo atravessado por ódios e guerras e toda a espécie de violência, o que vi e vivi na Tailândia, o país da orquídea real, representa um oásis de paz, de beleza e de delicadeza. Fomos lá, de diversos pontos do mundo, para estudar o diálogo inter-religioso e partilhar pontos de vista. Estudámos, partilhámos e vimos. Tudo passa por uma vigilância apertada sobre nós mesmos e por um infinito respeito pelos outros.

 7. Luta contigo, dialoga com os outros, meu irmão de Fevereiro.

 António Couto


NO DESERTO A CÉU ABERTO

Fevereiro 20, 2010

 

1. Só secundariamente a Quaresma «prepara» para a Ressur­reição. Na verdade, todos os «Tempos» e todos os Domingos do Ano Litúrgico – portanto, também a Quaresma e os seus Domingos – estão depois da Ressurreicão e por causa da Ressurreição. E é só sob a intensa luz do Senhor Ressusci­tado com o Espírito Santo (Baptismo consumado: Lc 12,49‑50) que a Igreja – e cada um de nós – pode celebrar autenti­camente a sua fé, proceder à correcta «leitura» das Escri­turas e encetar a «caminhada» quaresmal. Neste sentido, todos os baptizados são chamados a refazer com Cristo bapti­zado o seu programa baptismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Baptismo no Jordão, passando pela Trans­figuração/Confirmação no Tabor, até à Cruz e à Glória da Ressurreição (Baptismo consumado!), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as «obras» do Reino (Act 10,37-38: texto emblemático). Os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos baptizados, «pre­param‑se» intensamente para a Noite Pascal Baptismal, início e meta da vida cristã.

 2. Baptizado com o Espírito Santo, e declarado por Deus «o Filho meu», «o Amado» (Lc 3,21-22), Jesus é conduzido pelo Espírito Santo através do deserto (Lc 4,1), lugar teológico e não meramente geográfico – com muita água (Jo 3,23) cumprindo Is 35,6-7, 41,18 e 43,19-20, com árvores (canas) (Lc 7,24) e relva verde (Mc 6,39) cumprindo Is 35,1 e 7 e 41,19 –, lugar provisório e preliminar, preambular, longe do que é nosso, onde se está «a céu aberto» com Deus, onde troará a voz do seu mensageiro (Is 40,3), de João Baptista (Lc 3,2-6), do próprio Messias segundo uma tradição judaica recolhida em Mt 24,26. O deserto é o lugar onde se pode começar a ver a «obra» nova de Deus (Is 43,19). Sendo um lugar provisório, aponta para a Terra Prometida e definitiva do repouso. O deserto é lugar de passagem. Sem pontos de referência nem marcos de sinalização. Se o rumo não estiver bem definido, o viandante corre o risco de se perder no deserto da vida e de nunca chegar à Vida verdadeira.

 3. Durante quarenta dias (40 é o tempo de uma vida, a vida toda) Jesus jejuou (Lc 4,2), isto é, perscrutou a «obra» nova de Deus na história do seu povo, que o mesmo é dizer, saboreou as Escrituras, o outro alimento (Dt 8,3; Mt 4,4; cf. Jo 4,32 e 34-35: notável releitura em que aos olhos atónitos dos discípulos saltam as estações do ano!), e meditou, sempre a partir das Escrituras, na sua missão filial baptismal. E é na sua condição de baptizado, isto é, de Filho de Deus, que ele é tentado. De facto, toda a tentação – a de Cristo como a nossa – começa sempre da mesma maneira: «se és o Filho de Deus…». Atente-se em como se repete nos mesmos termos sob a Cruz (Lc 23,35-39). Portanto, sempre. Do Baptismo até à Morte, a tentação visa afastar-nos de Deus e da sua «obra», e pôr-nos ao serviço do «deus deste mundo» (2 Cor 4,4; cf. Jo 12,31). Veja-se a «oferta» central do «Tentador» no Evangelho de hoje: «todos os reinos deste mundo» em troca do afastamento de Deus (Lc 4,5-7). E a resposta decidida de Jesus, remetendo para a Escritura Santa e para Deus: «Está escrito: “Adorarás ao Senhor, teu Deus, e só a Ele prestarás culto”» (Lc 4,8).

 4. Baptizado, tentado na sua condição de Baptizado, e Vitorioso na tentação, Jesus passa de imediato à execução do seu programa filial baptismal: anunciar o Evangelho de Deus e fazer a sua «obra» (Lc 4,14s.). Como ele também nós.

 5. Extraordinária a lição do Livro do Deuteronómio: aqui estou, meu Deus, orientando a minha vida toda para Ti, oferecendo-Te os primeiros frutos desta Terra boa e bela que nos destes, depois de nos teres chamado do meio da confusão e dado a liberdade! Eu canto para Ti, meu Deus, pois é a Ti que devo a minha liberdade e a bondade e beleza da minha vida! Este belo texto é uma miniatura, um colar de pérolas do Teu amor por nós, que devemos levar sempre connosco, como se fosse uma fotografia Tua!

 6. E a lição da Carta aos Romanos: na minha vida toda, no meu coração e na minha boca escorre o sabor da Tua Palavra, doce como o puro mel dos favos!

 António Couto


A QUARESMA É UMA TERRA NOVA QUE DÁ FLOR E FRUTO

Fevereiro 17, 2010

 

1. Aproximou-se um homem habituado ao uso inveterado da verdade, o seu olhar varrendo toda a fraude das palavras. Aproximou-se firme e impoluto. Esquadrinhou as faces oxidadas da mentira. Olhou depois o chão como quem abre um sepulcro, e lentamente desenhou o puro rosto da verdade sobre a areia.

 2. «Por toda a parte procurais o reino de Deus», disse. Disse. E desdobrando largamente as mãos como quem dá à luz o coração, preparou uma mesa no deserto, acomodou a multidão à roda do silêncio, repartiu a palavra pelas mãos, rugosas e sedentas e abertas, carregadas de terra e de verdade, os olhos vergados sobre as mãos, o coração rendido à flor dos lábios.

 3. «Olhai! Um camponês pegou numa semente pequenina. Pequenina. Olhou-a em suas mãos deitada. Acariciou-a. Enterrou-a no campo mais verde, no campo mais ao sol das suas terras. Da semente nasceu uma planta. A planta cresceu. A planta deu flor. A planta cresceu, floriu, vestiu-se de festa. Em seus verdes, verdes ramos vinham abrigar-se os pássaros do céu. O nosso camponês foi de visita à sua planta. Tinha crescido. Levantou os olhos. Ficou extasiado. Era agora uma casa habitada com luzes em todas as janelas. Baixou os olhos, debruçado sobre a vida, extasiado com a vida, reconciliado com a vida. Pegou nas suas mãos de outrora, no seu coração de outrora. Era uma semente pequenina. Pequenina. Acariciou-a. Virou-a e revirou-a à outra luz do coração. Amou-a de preferência ao oiro, à luz do sol, às espigas mais loiras da seara. «É aqui que tudo principia», disse. Disse. «A primeira manhã autêntica do mundo. É como se tivesse nascido hoje».

 4. Regressou feliz a sua casa. Entrou em sua casa. Sentou-se comovido à lareira. Aproximou-se um homem habituado ao uso inveterado da verdade. Bateu à porta e disse: «Hoje quero ficar em tua casa, cear contigo a ceia da amizade! Sabes: nas minhas mãos ardentes e despidas, há um fruto de lume e de alegria que não pode esperar que nasça o dia».

 5. «O reino de Deus não está aqui ou ali», disse. Disse. «Os mais belos lugares do mundo: onde estão os mais belos lugares do mundo? Onde mora a esperança? Que língua fala a paz? Que avião tomar para a justiça? Que moeda vigora no amor? Onde estão as fronteiras da alegria? Que cores tem a bandeira da verdade?»

 6. Pegou depois numa criança, num pedaço de pão e numa taça. Levantou os olhos e as mãos onde nitidamente pulsava um coração. E ergueu um brinde ao céu. Baixou depois os olhos e as mãos, ungidos já para a dádiva suprema. E ardentemente desejou o vinho novo do reino a chegar. Requisitou, por isso, para isso, o coração, as mãos, a boca, de quantos o estavam a escutar. E antes de partir e de ficar, definitivamente Deus Connosco, abriu ainda à multidão novos caminhos, diurnos, matutinos: «Já sei que não sabeis pedir o pão; tereis de aprender com os meninos».

 7. «Traz as tuas mãos pequenas e abertas, onde caiba só o coração. Sabes? O coração é uma cidade. Ou se preferes: o coração é a última cidade. Ou ainda: no coração começa a liberdade. Ou se preferes: no coração começa a tempestade».

 8. A multidão levou as mãos à boca, ao coração. Restaram doze cestos de palavras.

 António Couto


A ÁRVORE FRUTÍFERA E A PALHA ESTÉRIL

Fevereiro 12, 2010

 

1. Conta-nos S. Lucas que Jesus foi à MONTANHA para ORAR, e passou a noite inteira em ORAÇÃO (6,12). Quando amanheceu, continua S. Lucas, Jesus chamou os discípulos e escolheu «Doze» a quem chamou Apóstolos, seguindo-se logo a lista dos seus nomes (6,13-16).

 2. Depois desceu com eles para um lugar plano – e é aqui que entra o Evangelho deste Domingo VI do Tempo Comum (Lucas 6,17.20-26) –, que não tem de ser necessariamente a planície ao nível do mar da Galileia; pode muito bem tratar-se de um planalto acessível a uma grande multidão, doentes incluídos.

 3. É significativo que o evangelista descreva esta grande multidão como POVO (laós) oriundo de toda a Judeia, Jerusalém, Tiro e Sídon (6,17), que veio para escutar Jesus e ser curado por ele (6,18). Ao contrário dos outros evangelistas que praticamente o ignoram, Lucas introduz este POVO (laós) profusamente no seu Evangelho. Este POVO (laós) tem conotação religiosa: é o Povo de Deus que o II Concílio do Vaticano consagrará. O que faz e define este POVO (laós) não é nenhum elemento étnico, nacionalista ou histórico, mas a eleição e a graça de Deus. Qualquer pessoa, de qualquer língua, nação, raça, cultura, que oiça a Palavra de Deus e lhe responda passa a fazer parte deste Povo. Neste sentido, esta multidão pode ter no seu seio elementos estrangeiros (Tiro e Sídon), mas não deixa, por isso, de ser um POVO (laós), o Povo de Deus. É igualmente significativo que todos tenham vindo ouvir Jesus! Aos olhos dos Apóstolos, que Jesus acabara de escolher, está ali o caminho da futura evangelização.

 4. Então, Jesus «ergueu os olhos» como um profeta (em Mateus «sentou-se» como um mestre), e declarou de forma directa e incisiva, em 2.ª pessoa, como fazem os profetas (Mateus usa a 3.ª pessoa, estilo sapiencial, sereno e pedagógico), bem-aventurados por Deus os POBRES, os FAMINTOS de agora, os que CHORAM agora, os REJEITADOS de agora. Lucas é mais radical e directo do que Mateus. Às quatro bem-aventuranças junta, em contraponto, quatro mal-aventuranças, declarando malditos por Deus os RICOS de agora, os FARTOS de agora, os que RIEM agora, os que RECEBEM APLAUSOS agora. As mal-aventuranças são introduzidas por um «Ai», fórmula técnica para introduzir anúncios de desgraça no discurso profético.

 5. Lucas esclarecerá mais à frente, quando for contada a história do RICO FARTO e do POBRE LÁZARO (16,19-31), que os FARTOS não são demovidos pelos profetas nem tão-pouco por um morto que ressuscite!

 6. Jeremias 17,5-8 faz boa companhia ao Evangelho de hoje. O profeta expõe em discurso profético, abrindo com a clássica fórmula do mensageiro que soa: «Assim disse o Senhor»,  um refrão de tipo sapiencial que percorre toda a Escritura de lés a lés: «MALDITO o homem que confia no homem, afastando-se do Senhor;/ BENDITO o homem que confia no Senhor, pondo nele toda a sua confiança». O primeiro assemelha-se ao tamarisco do deserto, mirrado e amargo, que mora numa terra salitrada e estéril; o segundo é como uma árvore viçosa plantada junto da água boa.

 7. A mesma temática e até as mesmas imagens vegetais enchem o Salmo Responsorial de hoje (Salmo 1): o homem que recita a instrução do Senhor dia e noite é como a ÁRVORE plantada e que dá fruto; o malvado é como a PALHA que o vento dispersa. A ÁRVORE plantada está de pé, respira o vento, como o homem, e dá fruto; a PALHA não respira o vento, mas é levada pelo vento; e não dá fruto, mas é a casca do fruto. É também fácil entender que é a mesma lição que encontramos na antítese das «bem-aventuranças / mal-aventuranças» do Evangelho de hoje.

 8. A leitura semi-contínua do Apóstolo (1 Coríntios 15,12.16-20) prossegue hoje com a temática fundamental da ressurreição, tratada de forma notável em 1 Coríntios 15, cuja primeira parte foi lida no Domingo passado. Aí, Paulo expunha o acontecimento da Ressurreição de Jesus Cristo como centro da pregação apostólica e da fé das comunidades cristãs.

 9. Hoje, Paulo começa por constatar que alguns membros da comunidade de Corinto não dão ouvidos aos conteúdos da pregação apostólica e negam simplesmente a ressurreição. E fazem-no em nome da mentalidade platónica, que considera a «carne» como elemento mau e desprezível, condenado à destruição, sendo a «alma» um elemento divino que, libertado da «carne», voltará a formar uma espécie de deus cósmico. Vê-se bem que segundo esta concepção errónea, a criação é má, ao contrário da declaração de Deus (Génesis 1). Paulo reage vigorosamente contra esta mentalidade instalada na comunidade, e prega aquilo que os Padres chamarão a «Economia da carne». «Cristo ressuscitou, primícias dos que adormeceram». Ele é, portanto, o primeiro Homem a ser ressuscitado. E se é o primeiro, então constitui certeza para os «outros» depois dele, que abre a série. Nele a morte foi vencida para todos. A esperança fundamenta-se na certeza deste Acontecimento principal da Vida do Senhor, que dá significado a todos os outros acontecimentos da sua Vida, ao inteiro AT, à Igreja e à vida dos homens.

 10. É este acontecimento fundante que a Igreja Una e Santa, Esposa do Senhor, celebra jubilosamente Domingo após Domingo. Também hoje, portanto.

 António Couto


COM JESUS NO CORAÇÃO OU O RETRATO DE SIMEÃO E ANA

Fevereiro 9, 2010

 

1. A Igreja Una e Santa celebra em 2 de Fevereiro, quarenta dias depois do Natal, a Festa da APRESENTAÇÃO do Senhor, que as Igrejas do Oriente conhecem por Festa do ENCONTRO (Hypapantê) e dos Encontros: Encontro de DEUS com o seu POVO agradecido, mas também de MARIA, de JOSÉ e de JESUS com SIMEÃO e ANA. Também connosco.

 2. Quarenta dias depois do seu nascimento, sujeito à Lei (Gálatas 4,4), JESUS, como filho varão primogénito, é APRESENTADO a Deus, a quem, sempre segundo a Lei de Deus, pertence. De facto, o Livro do Êxodo prescreve que todo o filho primogénito, macho, quer dos homens quer dos animais, é pertença de Deus (Êxodo 13,11-13), bem como os primeiros frutos dos campos (Deuteronómio 26,1-10).

 3. É assim que, para cumprir a Lei de Deus, quarenta dias depois do seu nascimento, JESUS é levado pela primeira vez ao Templo, onde, também pela primeira vez, se deixa ver como a Luz do mundo e a nossa esperança.

 4. Compõe a cena um velhinho chamado SIMEÃO, nome que significa «ESCUTADOR», que vive atentamente à escuta, e que o Evangelho apresenta como um homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel. Ora, esse velhinho que vivia à espera e à escuta, com premurosa atenção, veio ao Templo, e, ao ver aquele MENINO, pegou nele nos braços (por isso, os Padres gregos dão a SIMEÃO o título belo de Theodóchos = recebedor de Deus), e entoou o canto feliz do entardecer da sua vida, um dos mais belos cantos que a Bíblia registra: «Agora, Senhor, podes deixar o teu servo partir em paz, porque os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos, Luz que vem iluminar as nações e glória do teu povo, Israel!»

 5. E, na circunstância, também uma velhinha chegou carregada de esperança. Chamava-se ANA, que significa «GRAÇA»; é dita «Profetisa», isto é, que anda sintonizada em onda curta com a Palavra de Deus; era filha de Fanuel, que significa «Rosto de Deus»; era da tribo de Aser, que significa «Felicidade». Tanta intimidade com Deus! Também esta velhinha serena e feliz –  com 84 anos, número perfeito de números perfeitos (7 x 12) – viu aquele MENINO. E diz o Evangelho que se pôs a falar dele a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém!

 6. Esta é a Festa da Alegria e da Esperança acumulada e realizada. É a Festa da Luz. SIMEÃO e ANA viram a Luz e exultaram de Alegria. HOJE somos nós que nos chamamos SIMEÃO e ANA. Somos nós que recebemos esta Luz nos braços, e que ficamos a fazer parte da família da Felicidade e a viver pertinho de Deus, Rosto a Rosto com Deus, Escutadores atentos do bater do coração de Deus. Felizes sois vós, os pobres! (Lucas 6,20). Felizes os olhos que vêem o que vós vedes e os ouvidos que ouvem o que vós ouvis! (Lucas 10,23).

 7. Fevereiro é um mês de Alegria, de Apresentação e Encontro, de Consagração e Contemplação. Num mundo triste e cansado como o nosso, Maria, José e o Menino, Simeão e Ana são ícones de Felicidade, que nos vêm dizer que se cresce, não apenas em idade, mas em idade, sabedoria e Graça!

 António Couto


QUANDO O DEUS SANTO VEM AO NOSSO ENCONTRO

Fevereiro 5, 2010

 

1. Naquela manhã de há dois mil anos algo de extraordinário aconteceu para que alguns pescadores do lago da Galileia – o Evangelho de Lucas 5,1-11 destaca os nomes de Pedro, Tiago e João – tenham abandonado as barcas, as redes, os peixes acabados de pescar em grande quantidade, enfim, tudo, para seguir mais de perto Jesus.

 2. Pedro, sempre ele, diz-nos o porquê da revolução operada na sua vida: «Por causa da tua Palavra, Mestre, lançarei as redes». Por causa da tua Palavra. Naquela manhã, Jesus ensinava (edídasken) as multidões, sentado (kathísas) na barca de Pedro, que Jesus tinha pedido a Pedro para afastar um pouco da praia para a água. Bela forma encontrada por Jesus de obrigar Pedro a ter de escutar todo o seu ensinamento! E ensinava de forma continuada: assim o indica o imperfeito do verbo grego. Sentado: é a posição do Mestre que ensina na cátedra. É ainda sentado como Mestre na barca que Jesus ordena agora a Pedro: «Afasta (a barca) para o mar profundo, e lançai as vossas redes para a pesca!» Pedro mostrou a sua estupefacção de pescador experimentado: tinham trabalhado toda a noite e nada tinham pescado! Quanto mais agora, de dia, seria inútil fazê-lo! Lançou, porém, as redes, e pouco depois caiu de joelhos aos pés de Jesus, sempre sentado como Mestre na barca, e avançou um pedido: «Distancia-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador». Mas Jesus diz para Pedro: «Não tenhas medo! Doravante serás pescador de homens». E o narrador anota a fechar o episódio que «Tendo conduzido as barcas para terra, tendo deixado tudo, seguiram-no».

 3. Entenda-se bem que Pedro lançou as redes para a pesca, não baseado nas suas capacidades de pescador experimentado, mas por causa da Palavra de Jesus ou sobre a Palavra de Jesus. Palavra aqui diz-se rhêma, que tem o significado fortíssimo de «Palavra que acontece» ou de «Acontecimento que fala». Entenda-se também então que a nova missão de pescador de homens que Jesus lhe confia terá de ser também somente assente nesta Palavra de Jesus. A missão de Pedro e a nossa!

 4. Notem-se os sucessivos «afastamentos» que são, na verdade, «aproximações». Primeiro é Jesus que pede a Pedro que afaste a sua barca um pouco da terra, para poder, dessa cátedra improvisada, ensinar melhor as multidões. Note-se, todavia, que, com este recurso, Jesus põe Pedro bem junto dele! Quando Jesus pronuncia, pela segunda vez, o verbo afastar, fá-lo em imperativo dirigido ainda a Pedro, e é para aquela pesca milagrosa que aproximará ainda mais Pedro de Jesus! A terceira vez é a vez de Pedro. E é para fazer uma profissão de fé, reconhecendo em Jesus o Senhor, isto é, Deus. E decorre deste reconhecimento que Pedro se reconheça como pecador, que não pode estar na presença do Deus Santo. Daí, o grito: «Distancia-te de mim, Senhor… A última palavra é, como tinha de ser, de Jesus, que dá uma nova identidade a Pedro: «pescador de homens». E o episódio termina com o narrador a vincular radicalmente Pedro e os companheiros a Jesus com aquele dizer: tendo deixado tudo, seguiram-no».

 5. Entenda-se ainda bem que este seguimento de Jesus a que Pedro e nós somos convidados, não se destina a aprender uma doutrina ou uma ideia, mas a seguir de perto uma Pessoa, Jesus de Nazaré, e a sua maneira concreta de viver. É a adesão a uma Pessoa que está em causa para Pedro e para nós.

 6. De Pedro e dos seus companheiros é dito que deixaram barcas, redes, peixes, tudo, para seguirem Jesus (5,11), decisão radical que o Evangelho de Lucas continuará a salientar noutras passagens: «Se alguém quiser seguir-me, diga não a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias, e siga-me» (9,23); «Vendei tudo o que tendes e dai-o em esmola» (12,33); «Aquele de vós que não renunciar a todos os seus bens não pode ser meu discípulo» (14,33); «Vende tudo o que tens e distribui-o aos pobres» (18,21).

 7. É assim que Pedro se faz pescador de homens, lançando as redes da Palavra criadora de Deus até à sua morte, com o sangue, na cidade de Roma. Como memória eterna deste «pescador», ainda hoje, em todos os dias 28 de Junho, véspera da Solenidade de S. Pedro e S. Paulo, se coloca simbolicamente sobre a porta da Basílica de S. Pedro, em Roma, uma rede de ramos de buxo. Não uma coroa de louros, mas uma rede de louros!

 8. Em perfeita consonância com a cena do Evangelho, relatando-os o verdadeiro encontro de Pedro com o Deus Santo, o Antigo Testamento oferece-nos, neste Domingo V do Tempo Comum, o majestoso texto da vocação e missão de Isaías (6,1-8). No decurso de uma liturgia no Templo de Jerusalém, Isaías é investido como Profeta. Estamos por volta de 736 a. C., época provável da morte do rei Ozias, referida em Isaías 6,1. Perante a manifestação do Deus três vezes Santo, sentado no trono da graça que é o propiciatório da Arca da Aliança que ocupa o centro do Santo dos Santos do Templo, Isaías não tinha evasivas. Quando o Deus Santo se manifesta ao homem, provoca nele o mais intenso movimento de relação, movimento mortal, fulminante (Êxodo 33,20; Jeremias 30,21). Assim, Isaías, que tinha sido arrastado para um tão intenso movimento relacional, constata que devia estar morto, e, todavia, está vivo, vivificado! Milagre! E Isaías soube receber-se como dado, como filho da Palavra criadora de Deus e não já apenas dos seus pais ou da sua pátria, e doar-se, por sua vez, a Deus de acordo com a sua nova identidade, vocação e missão de Profeta. Como Pedro no Evangelho.

 9. A grande aclamação do «Santo, Santo, Santo» faz parte substancial e central da celebração de todas as Igrejas cristãs. Se virmos bem, também nós hoje e aqui estamos perante o «Santo, Santo, Santo». Exactamente no lugar de Isaías e de Pedro…

 10. A leitura semi-contínua do Apóstolo Paulo prossegue hoje com um texto de fundamental importância (1 Coríntios 15,1-11), um «credo» cujo conteúdo é o Evangelho (euaggélion) fielmente evangelizado (euaggelízomai) pelo Apóstolo e fielmente recebido (paralambánô) e guardado (katéchô) pela comunidade cristã de Corinto. O Apóstolo enuncia os dois grandes elos da genuina cadeia da Tradição: «Transmiti-vos (paradídômi) o que eu recebi (paralambánô)». Transmitir e receber e de novo transmitir sem interrupção. Os conteúdos da Tradição (parádosis) do Evangelho são: a) Cristo morreu pelos nossos pecados «segundo as Escrituras»; b) foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia «segundo as Escrituras»; c) o Senhor Ressuscitado fez-se ver a Cefas e aos Doze, depois a mais de quinhentos irmãos (a maioria dos quais ainda estavam vivos quando Paulo escrevia, podendo, por isso testemunhar), depois a Tiago, depois a todos os discípulos, e, por último, ao próprio Apóstolo Paulo que escreve e no qual opera a graça de Deus. Todos, o Apóstolo e os Apóstolos, anunciam (kêrýssô) este Evangelho, e todos, o Apóstolo, os Apóstolos e os fiéis, nós também, acreditámos (pisteúô) neste Evangelho e vivemos deste Evangelho, que é a nossa vida verdadeira (Gálatas 2,20; Filipenses 3,21).

 António Couto