1. Neste Domingo XIII do Tempo Comum proclama-se (o Evangelho é sempre proclamado, e não simplesmente lido) o Evangelho de Lucas 9,51-62, página sublime e sobrecarregada de cenários sucessivos e desconcertantes, que não podem deixar sossegado e de braços cruzados nenhum dos discípulos de Jesus.
2. O primeiro é a anotação radical de que Jesus «tornou o seu rosto duro como pedra na direcção de Jerusalém» (Lucas 9,51). A expressão «tornar o rosto duro como pedra» provém do terceiro canto do Servo do Senhor (Isaías 50,7), e serve para assinalar uma atitude firme e decidida da qual não se pode voltar atrás. Ainda que, no contexto do Evangelho de Lucas, esta anotação marque a viragem geográfica de Jesus da Galileia para Jerusalém, a anotação é sobretudo de ordem teológica, salientando a total confiança de Jesus no Pai, tal como o Servo confia no seu Deus.
3. O segundo é a ilusão do poder de Tiago e João, os filhos de Zebedeu, que propõem a Jesus dizimar uma povoação samaritana só porque recusa acolher Jesus. Os dois discípulos, que ainda não entenderam o caminho manso e humilde de Jesus, como o do Servo do Senhor, são duramente repreendidos (Lucas 9,55) com o mesmo verbo com que Jesus estigmatiza os espíritos impuros (cf. Lucas 4,35).
4. O terceiro fixa a nossa atenção em alguém que se propõe seguir Jesus, com estas palavras: «Seguir-Te-ei para onde quer que vás!» (Lucas 9,57), logo seguidas da declaração de Jesus: «As raposas têm as suas tocas e as aves do céu os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça!» (Lucas 9,58). Note-se bem que o texto diz o essencial e omite o circunstancial, deixando-nos sem saber quem era o homem, o que é que o levou a propor-se seguir Jesus, de onde veio, e como terá reagido à declaração de Jesus: seguiu-o no caminho? Foi-se outra vez embora? Com este procedimento escorreito, a intenção do narrador é certamente apresentar a força do seguimento de Jesus enquanto tal, não o fazendo depender desta ou daquela circunstância. Seguir Jesus é um absoluto, sem condições, atitude posta em destaque pelo facto de Jesus não ter eira nem beira, o que torna incontornável a transparência da sua confiança no Pai. Sua e daqueles que o querem seguir.
5. O quarto é o apelo limpo, igualmente despido de acessórios, de Jesus a alguém: «Segue-me!», a que o visado responde imediatamente: «Permite-me ir primeiro sepultar o meu pai!» (Lucas 9,59). E a resposta, quase escandalosa de Jesus: «Deixa que os mortos sepultem os seus mortos. Tu vai anunciar o Reino de Deus!» (Lucas 9,60). Estas imensas palavras de Jesus ganham ainda maior acutilância se soubermos que a mentalidade e a sabedoria judaicas davam enorme importância ao dar sepultura a um familiar. Era uma acção de tal monta e de tal conta que dispensava da oração do Shema‛, da oração das dezoito bênçãos e de todos os preceitos da Lei (Mishnah Berakhot 3,1a). Mas o caminho novo de Jesus inverte o normal caminhar da experiência humana da vida para a morte. O caminho de Jesus e segundo Jesus é da morte para a vida: «nós sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos; quem não ama, permanece na morte» (1 Jo 3,14). Quem quiser seguir Jesus tem, portanto, de apostar tudo no novo sentido que Jesus imprime à existência.
6. O quinto e último é igualmente forte, igualmente desconcertante. Põe diante de nós alguém, também sem a anotação de circunstâncias, que está disposto a seguir Jesus, desde que Jesus lhe conceda apenas despedir-se dos seus familiares. Digamos que pede apenas para dar um pequeno passo atrás, e logo se voltará todo para a frente. Elias fez esta concessão a Eliseu (1 Reis 19,20), Antigo Testamento de hoje. Mas Jesus é mais do que Elias, e não faz qualquer concessão: «Aquele que deita as mãos ao arado e olha para trás não serve para o Reino de Deus!» (Lucas 9,62).
7. Já se vê que é a cena de Elias e de Eliseu, narrada em 1 Reis 19,19-21, que faz de eco ao Evangelho de hoje. Simbolicamente, Elias atira o seu manto sobre Eliseu, maneira de fazer dele seu seguidor. Eliseu andava a lavrar um grande campo, agarrado ao arado, puxado por doze juntas de bois. Sentindo o chamamento de Elias, Eliseu apenas pede o tempo necessário para ir abraçar o seu pai e a sua mãe. Elias concede. Eliseu despede-se de forma radical, sagrada e festiva. Matou uma junta de bois, e assou a sua carne com a madeira do arado. Queimando o arado, é todo um mundo que deixa para trás, sem retorno. Enceta depois um caminho novo atrás de Elias.
8. Dia de Domingo, Dia do Senhor, doação radical, total, ao Senhor. Entenda-se: é um caminho novo que se abre à nossa frente. Sem retrocessos, sem desvios, sem distracções, sem nostalgias, sem saídas de segurança!
António Couto