COM TANTO IRMÃO À NOSSA BEIRA!

Julho 31, 2010

 

1. Diz o Tratado Pirqê ’Abôt 2,9, da Mishna judaica, que «o caminho mau de que o homem se deve afastar é pedir emprestado e não restituir», acrescentando logo que «é a mesma coisa receber emprestado de um homem ou de Deus». Comentando este dito da sabedoria judaica, afirma, de forma contundente, o grande filósofo hebreu Abraham Joshua Heschel: «Talvez esteja aqui o núcleo da miséria humana: quando nos esquecemos de que a vida é um dom e também um empréstimo».

 2. Servem estes ditos rabínicos para nos conduzir ao extraordinário DIZER e MOSTRAR de Jesus neste XVIII Domingo do Tempo Comum: «Vede bem e guardai-vos de toda a GANÂNCIA (pleonexía)». É fácil de entender o termo grego usado pelo narrador: pleonexía, que aqui traduzimos por ganância, deriva de pléon [= mais] + échô [= ter], e passa, portanto, a ideia clara de desejarmos TER MAIS poder, posse, dinheiro, sucesso, etc… Esta raiz daninha pode tomar de tal modo conta de nós que acaba por minar e envenenar todos os nossos comportamentos. S. Paulo chama, com toda a razão, a este vício «idolatria» (Colossenses 3,5). É o feitiço ou o fetiche do poder, da posse, da riqueza, do dinheiro, do sucesso, diante dos quais nos prostramos, seguranças enganadoras, falsos sucedâneos de Deus, a que o Evangelho chama MAMONA (mamônã) (Lucas 16,13; cf. Mateus 6,24). De notar que o termo grego mamônãs [= dinheiro, riqueza] deriva, através do aramaico mamôn, da raiz hebraica ’mn, que serve para dizer a fé e a confiança em Deus. É como quem diz que podemos equivocar-nos radicalmente, deixando de pôr a nossa fé e confiança no Deus vivo, para nos agarrarmos aos ídolos mortos e vazios, uma espécie de «espantalhos num campo de pepinos!» (Jeremias 10,5).

 3. E, para que tudo fique mais claro, aí vem mais uma história arrasadora de Jesus. A terra de um HOMEM RICO produziu muito. E eis o HOMEM RICO, apresentado em cena SEMPRE SÓ, a cogitar CONSIGO MESMO, e a falar apenas CONSIGO MESMO.

 4. Diz ele: deitarei abaixo os meus celeiros pequenos, construirei novas infra-estruturas, grandes celeiros, e recolherei lá todo o meu trigo e os meus bens. Depois, direi para MIM MESMO: tens muitos bens acumulados para muitos anos; descansa, come, bebe, regala-te! (Lucas 12,18-19).

 5. Falou o HOMEM RICO a sós CONSIGO MESMO. Agora é a vez de Deus, que lhe diz: «Mentecapto (áphrôn), esta noite morrerás, e as coisas que acumulaste para quem serão?» (Lucas 12,20). E o narrador conclui: «Assim acontece àquele que acumula PARA SI MESMO e não PARA DEUS» (Lucas 12,21).

 6. Não é suficiente traduzir o termo grego áphrôn por «insensato» ou «estúpido». Áphrôn resulta de phrên [= mente] a que se antepõe o a- (alfa) privativo, pelo que áphrôn indica a falta total de inteligência, um mentecapto, desmiolado, sem-mente.

 7. Olhando atentamente à nossa volta, neste mundo em crise acentuada, veremos depressa (e não é só no futebol) tantos «ricos mentecaptos», que passeiam e planeiam, falam e gastam sozinhos. Onde estão na nossa não-mente os irmãos a quem devemos fazer participar com alegria da nossa riqueza? E, em última análise, a orientação da nossa vida é PARA NÓS MESMOS ou PARA DEUS? Recebemos a vida, os outros, a riqueza como um DOM e um EMPRÉSTIMO, de que devemos responder a cada momento, ou pensamos que somos DONOS de todos e de tudo, registrando logo todos e tudo em nosso nome, nossa propriedade para nosso uso, consumo e satisfação exclusivos?

 8. Temos hoje a ácida e lúcida companhia de Qohelet, esse intrigante pregador que nos segue por toda a parte e não cessa de nos ir lembrando que tudo o que fazemos pode afinal não passar de um sopro, fumaça, um vento que passa, um ócio oco e vão, uma soneira. E logo com tanto irmão à nossa beira!

 António Couto

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REZAR É PEDIR!

Julho 24, 2010

 

1. Depois do tríptico sobre o discípulo de Jesus, que contemplámos nos últimos três Domingos (XIV, XV e XVI), em que foi proclamado, em três andamentos, o saboroso texto de Lucas 10 (o envio dos 72 discípulos; o bom samaritano; Maria sentada a escutar a Palavra de Jesus), eis-nos já perante um novo belo tríptico, agora sobre a oração cristã, que enche o Domingo XVII, e que Lucas nos oferece em 11,1-13.

 2. O primeiro quadro deste tríptico sobre a oração pode intitular-se INTIMIDADE, e tem a sua explicitação altíssima na oração do PAI NOSSO, ensinada por Jesus aos seus discípulos (Lucas 11,1-4). Jesus aparece ao fundo da cena a rezar sozinho ao Pai, totalmente voltado para o seio do Pai (João 1,18), completamente ocupado nas Realidades do Pai (Lucas 2,49), repousando toda a sua existência no Pai. Os discípulos vêem Jesus a rezar, mas não ousam interromper tão intensa corrente de confiança e de amor. Vêem apenas. O deslumbramento tolhe-lhes os movimentos e as palavras. Mas eis que Jesus termina a sua oração ao Pai. Então, ainda extasiado, um dos discípulos, em nome de todos – também em nosso nome –, atreveu-se a formular este pedido: «Senhor, ensina-nos a rezar como João Baptista ensinou a rezar os seus discípulos!»

 3. E foi então que Jesus ensinou a eles e a nós, a todos, o segredo mais profundo da sua vida e da nossa vida, a orientação da sua vida e da nossa vida: para onde, melhor, para quem devem estar sempre voltados o nosso coração, os nossos olhos, as nossas mãos, os nossos pés, a nossa vida toda.

E disse: «Quando rezardes, dizei:

 “Pai (páter),
         1. Santifica o teu Nome,
         2. Venha o teu Reino,
         3. Dá-nos o pão nosso (árton hêmôn) de cada dia,
         4. Perdoa os nossos pecados,
         5. Não nos deixes cair na tentação”».

 4. Como bem se vê, não se trata de uma lição teórica, mas da comunicação de uma experiência, de um segredo, de uma intimidade. Rezar é orientar a nossa vida toda para Deus, a quem tratamos carinhosamente por ’Abba’, nome de radical ternura, simplicidade, verdade e dependência, tal como as crianças se dirigem ao seu pai. A oração é composta no texto de Lucas por cinco pedidos (Mateus apresenta sete: Mateus 6,9-13), sendo o do meio, nos dois textos, o do «pão nosso». De acordo com a retórica bíblica, o pedido do meio é o mais importante, é o que estrutura a inteira oração, constituindo por assim dizer a clave de toda a oração e relação com Deus-Pai. E aqui é preciso descer abaixo das escadarias da importância e do orgulho e dos truques que diariamente usamos, pois é imperioso assumir a atitude evangélica das crianças: só elas sabem pedir pão com verdade e simplicidade, sem maquilhagens ou reboco de qualquer espécie!

 5. O segundo quadro deste tríptico sobre a oração trata o tema da CONSTÂNCIA, retratada imediatamente a seguir (Lucas 11,5-8), na atitude do amigo que de noite bate à porta do seu amigo, e não desiste até ser atendido. Este quadro mostra que a oração cristã não é apenas a emoção de un momento, de uns momentos, mas a respiração permanente da alma, que não se extingue sequer durante a noite.

 6. O terceiro quadro deste tríptico trata o tema da EFICÁCIA (Lucas 11,9-13): «Pedi e ser-vos-á dado, procurai e encontrareis, batei e abrir-se-vos-á». Entenda-se, todavia, que se trata de uma eficácia que não tem de responder directamente aos cânones do que esperamos obter, aos desejos que formulamos, mas sim aos planos de Deus, que devemos saber acolher com humildade e prontidão.

 7. Essencial é saber que dirigimos sempre a nossa oração ao Pai, que dá sempre o melhor aos seus filhos. E é grandemente significativo que o verbo REZAR, que aparece no tríptico três vezes (Lucas 11,1[2 x] e 2), apareça praticamente traduzido por PEDIR, que atravessa o texto por cinco vezes (Lucas 11,9.10.11.12.13), e cujo corolário é DAR, com nove menções no texto (Lucas 11,3.7.8[2 x].9.11.12.13[2 x].

 8. Feita esta explicitação vocabular, salta à vista a importância dada à oração de súplica. Todos sabemos que a oração de súplica é muitas vezes vista como uma forma secundária de oração, quase como um subproduto, quando comparada com a oração de louvor ou de acção de graças. Ora, este tríptico diz-nos que, de acordo com Jesus, REZAR é PEDIR, é mesmo só PEDIR. Aprofundando um pouco, compreendemos então que PEDIR é próprio do filho. E é como Filho que Jesus REZA, e é no lugar de filhos que Jesus nos quer colocar. Por isso também nos ensina a REZAR, dizendo: “Pai…” E também já sabemos que o Filho é aquele que recebe tudo do Pai, sendo o Pai aquele que dá tudo ao Filho.

 9. Coloquemo-nos então no nosso lugar correcto: o de filhos, que tudo recebem do Pai. E compreendamos bem que, para recebermos tudo, não podemos possuir nada! Se possuirmos alguma coisa, já não podemos receber tudo! Impõe-se que temos de ser radicalmente pobres, filhos e irmãos! Só assim podemos começar a REZAR.

 António Couto


UM TEXTO DIFÍCIL: A FIGUEIRA SÓ COM FOLHAS E SEM FRUTOS (Marcos 11,11-26)

Julho 21, 2010

 

1. Depois da chamada «secção do caminho» (Marcos 8,27-10,52), em que Jesus segue com os seus discípulos da Galileia para Jerusalém, Marcos 11 dá início à secção que narra os «últimos dias de Jesus em Jerusalém».

 2. No primeiro desses dias, são narrados dois episódios: A) a entrada messiânica de Jesus em Jerusalém (Marcos 11,1-10), rei pobre, pacífico e humilde, montado num jumento, conotado com a paz, e não em cavalos de guerra; B) e, de forma telegráfica, num único versículo, a sua entrada no Templo, para ver todas as coisas, em silêncio, e a ida, à tardinha, para Betânia (Marcos 11,11).

 3. No segundo dia, outros dois episódios são narrados: A) no caminho de regresso de Betânia para Jerusalém, Jesus procura estranhamente figos numa figueira em que só encontra folhas (de resto, informa o narrador que não era tempo de figos!), e diz uma palavra de maldição sobre a figueira (e os seus discípulos ouviram, informa o narrador) (Marcos 11,12-14); B) entrando no Templo, que tinha examinado na véspera, Jesus purifica-o de comerciantes, de banqueiros e de coisas, e ensina um culto novo sem coisas, assente na total orientação da vida para Deus por parte de todos os povos. Para o efeito, Jesus cita Isaías 56,7: «A minha casa será chamada casa de oração para todos os povos» (só Marcos cita as palavras finais: «para todos os povos»), e Jeremias 7,11: «Fizestes dela um covil de ladrões!». Diz-nos o narrador que estas palavras foram ouvidas pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, que cogitavam matá-lo, mas temiam o povo, que estava maravilhado com Jesus. À tardinha, voltou a sair da cidade (Marcos 11,15-19).

 4. O início do terceiro dia fica marcado pelas reacções às duas acções simbólicas de Jesus no dia anterior: A) passando pela manhã, os discípulos vêem que a figueira tinha secado, e fazem ver isso a Jesus, que lhes responde: «Tende fé em Deus!», requerendo deles uma relação pessoal e íntima com Deus, «vosso Pai» (Marcos 11,20-26). A expressão «fé em Deus» encontra-se só aqui em todo o Novo Testamento. B) A cena seguinte passa-se outra vez no Templo e narra a reacção dos chefes dos sacerdotes, dos escribas e dos anciãos ao gesto de purificação do culto operado por Jesus no dia anterior, querendo saber com que autoridade Jesus fez o que fez (Marcos 11,27-33). Mas este episódio já está fora do texto aqui em análise.

 5. Lições a reter: 1) os discípulos seguem o Mestre, vendo e escutando tudo; 2) aprendem a viver uma relação nova e íntima com Deus, nosso Pai, que enche a «sua casa», não com comerciantes, banqueiros, coisas e ladrões, mas com filhos e irmãos; 3) o fruto que Jesus procura e que devemos cultivar em todas as estações é a «fé em Deus»; 4) a figueira em que Jesus procura figos fora do tempo dos figos, e que só tinha folhas [2 vezes no v. 13], alerta-nos para o fruto da fé que é de todas as estações; 5) para se entender este gesto simbólico de Jesus, é importante ler com atenção Miqueias 7,1-2: «Ai de mim! Tornei-me como os que rebuscam os campos depois da ceifa e da vindima, e não encontro um cacho para comer, nem um figo temporão que tanto aprecio! Na verdade, desapareceram da terra os homens fiéis, e não há um único justo entre as pessoas!»; 6) aos olhos de Jesus, a figueira e o Templo só apresentam folhas!; 7) vendo e escutando tudo, os discípulos de Jesus devem compreender bem que todo o tempo é de fé em Deus e de frutos novos!

 António Couto


A SENHORA DONA MARTA E A DISCÍPULA MARIA

Julho 16, 2010

 

1. Imediatamente a seguir ao belo trabalho de amor do Bom Samaritano (Lucas 10,25-37), eis-nos a braços com outra cena de excepção do Evangelho de Lucas: Jesus, Marta e Maria (Lucas 10,38-42).

 2. A primeira anotação do narrador é para nos comunicar que, estando Jesus em viagem, uma mulher, de nome Marta, o recebeu em sua casa. Acrescenta logo que Marta tinha uma irmã, chamada Maria, e começa de imediato a desenhar o retrato das duas irmãs.

 3. De Maria, diz-nos que se SENTOU aos pés de Jesus e que ESCUTAVA a sua Palavra. O leitor apercebe-se de imediato que Maria assume a figura de discípula atenta, dedicada e deliciada: SENTADA perto do Mestre, ESCUTAVA… O narrador usa outras tintas para pintar o retrato de Marta. Começa por nos dizer que andava DISTRAÍDA (verbo grego perispáô) com muito trabalho. Aproximando-se, porém, disse a Jesus com um certo ar de reprovação: “Senhor, a ti não te importa que a minha irmã me deixe sozinha a trabalhar?” E, sem esperar pela resposta, como quem está cheia de razão, acrescenta logo, como quem tem autoridade para dar ordens até a Jesus: “Diz-lhe, pois, que me venha ajudar!” É aqui que intervém Jesus, com a sua Palavra serena e soberana, para lhe dizer: “Marta, Marta, andas PREOCUPADA (verbo grego merimnáô) e ÀS VOLTAS (verbo grego thorybázô) com MUITAS COISAS, quando UMA SÓ é necessária”. E conclui, para total espanto nosso e de Marta: “Maria ESCOLHEU a parte BOA (e bela), que não lhe será tirada”.

 4. Importa ver já, com clareza, que Maria não diz uma palavra em todo o episódio. Não se ouve a sua voz. Ela está tranquilamente SENTADA e totalmente concentrada na ESCUTA de outra VOZ. Maria é a mulher de UMA COISA e de UMA PESSOA. Por isso, na base da sua vida, tem de haver uma ESCOLHA. Nas páginas da Escritura Santa, é normalmente Deus o sujeito do verbo ESCOLHER. Quando também nós ousamos ESCOLHER, então já se percebe que deixamos muitos mundos para trás e que nasce em nós um mundo novo.

 5. Marta começa por receber Jesus na casa dela. É a senhora dona Marta. Olha de soslaio para a sua irmã Maria que acusa de não fazer nada, e repreende Jesus por não se importar com isso, e acaba dando ordens a Jesus, para que, por sua vez, dê ordens a Maria para a ir ajudar. É a senhora dona Marta. Manda, ou pensa que manda, em casa, na sua irmã e em Jesus! O quadro que aqui vemos desenhado por Lucas vai muito para além da nossa simplista e velha dicotomia entre vida activa e vida contemplativa. Querer entrar por aqui é mesmo ficar fora da porta!

 6. A sua vida é uma azáfama, anda às voltas, ocupada por preocupações e preconceitos, descentrada e desconcentrada. O seu fazer é tradicional e convencional. Nunca ESCOLHEU. O narrador diz-nos que anda DISTRAÍDA, e Jesus diz-lhe que anda PREOCUPADA e ÀS VOLTAS… Vocabulário importante. Um pouco adiante, Jesus adverte os seus discípulos para não se PREOCUPAREM com a vida, quanto ao que hão-de comer, nem com o corpo, quanto ao que hão-de vestir (Lucas 12,22), e acrescenta logo que isso são coisas dos pagãos! (Lucas 12,30). E põe-nos diante dos olhos este tesouro evangélico e poético: “Considerai os lírios do campo, que não fiam nem tecem!…” (Lucas 12,27).

 7. Ao contrário da senhora dona Marta, que nunca abriu mão da sua condição de dona, Maria percebeu bem que não é dona, mas simplesmente hóspede. Não da sua irmã Marta, mas de Jesus. Maria está, na verdade, hospedada em casa de Jesus. Por isso, está assim serena e tranquila. Entregou-lhe tudo: o coração, as mãos, os olhos, o cofre, a chave do cofre, a chave de casa. Marta não é apresentada como sendo má pessoa, mas não compreendeu que, quando Jesus entra em nossa casa, é dele a casa, e nós simplesmente seus hóspedes, tranquilamente sentados junto dele! Ai esta nossa entranhada tentação patronal (!), que atenta contra a declaração fundamental de Deus: «A terra é minha, e vós sois para mim estrangeiros e hóspedes» (Levítico 25,23).

 8. Dizia um velho rabino acerca de um seu colega: “anda de tal modo ocupado com as COISAS de Deus, que até se esquece de que ELE existe!” Convenhamos que se trata de um esquecimento desastroso…

 9. Veja-se bem a simplicidade, a prontidão e a candura desarmantes do velho Abraão do Antigo Testamento de hoje! (Génesis 18,1-10).

 António Couto


TANTO DOM SOB ESTE SOL (NATAN, DAVID E O POBRE)

Julho 14, 2010

 

1. Natan [= Deus deu], o profeta, vindo não se sabe de onde nem de ninguém (não são conhecidos pai ou mãe), apenas de Deus, entra no palácio do rei (2 Samuel 7), cruza porta após porta até chegar junto de David, e diz-lhe quanto Deus manda dizer: «Fui Eu que te tirei das pastagens e fiz de ti chefe do meu povo. Estive sempre contigo por onde andaste. Dar-te-ei um nome grande. Acomodarei o meu povo neste lugar bom. Farei uma Casa para ti e para a tua descendência depois de ti. Serei para eles um pai. Eles serão para mim como meus filhos. Estabelecerei o teu trono para sempre».

  2. Vê-se bem que, pela boca de Natan, Deus estende a David um tapete de luz, um fio de sentido, a perder de vista, que já sabemos que vai até Cristo.

 3. Mas há um maciço de palavras entalhadas no mais puro gume do papiro, que não podemos mesmo deixar no esquecimento. Refiro-me aos Capítulos 11 e 12 do Segundo Livro de Samuel.

 4. Eis, cena após cena, o que aí fica registrado: Passou o inverno, chegou a primavera. É o tempo da guerra e do amor. David mandou para a guerra o seu exército comandado pelo general Joab. O combate é contra os Amonitas, mais precisamente contra a sua capital Rabbah, actual Aman. Mas David, o rei, ficou em Jerusalém neste tempo da guerra e do amor. Evitou a guerra. Fica com a parte do amor. Levanta-se num belo entardecer, e vem passear para o terraço do seu palácio. É daí que avista uma bela mulher, banhando-se. E a paixão toma conta de David. Incumbe a sua guarda pessoal de recolher informações acerca dela. Dizem-lhe que se chama Betsabé, e que é casada com Urias, um dos militares que partiu para a guerra com Joab. David mandou os seus agentes buscar Betsabé. Dormiu com ela. Depois, ela voltou para casa. Mas alguns dias depois, mandou dizer a David: «Estou grávida».

 5. Sabendo isto, David mandou uma mensagem ao general Joab, para que lhe enviasse Urias. Chegado ao palácio de David, este pediu-lhe notícias de Joab, do exército e do andamento da guerra. Depois disse-lhe: «Desce à tua casa». Mas Urias não entrou em sua casa, e dormiu à porta do palácio com os outros servos do rei. Disseram a David que Urias não foi a sua casa. David mandou-o chamar e perguntou-lhe: «Não regressaste de uma viagem? Por que não foste a tua casa?» Urias respondeu: «A arca de Deus habita numa tenda, assim como Israel e Judá. Joab, meu chefe, e os seus servos dormem ao relento, e eu teria coragem de entrar na minha casa para comer e beber e dormir com a minha mulher? Pela tua vida, não farei tal coisa». David disse-lhe: «Fica aqui também hoje, e amanhã enviarte-ei». E Urias ficou em Jerusalém naquele dia. No dia seguinte, David convidou Urias para comer e beber com ele, e embriagou-o. Mas, à noite, Urias não desceu a sua casa, mas dormiu com os servos do rei.

 6. No dia seguinte, de manhã, David escreveu uma carta a Joab, e enviou-lha por Urias. Dizia nela: «Coloca Urias na frente, onde o combate for mais aceso, e não o socorras, para que seja ferido e morra». Joab, que sitiava a cidade, pôs Urias no lugar onde sabia que estavam os mais valentes guerreiros do inimigo. Os guerreiros Amonitas fizeram um ataque de surpresa, e morreram alguns militares das tropas de Joab, entre os quais, Urias.

 7. Joab mandou imediatamente informações pormenorizadas a David acerca das peripécias do combate, e ordenou ao mensageiro: «Quando tiveres contado ao rei todos os pormenores do combate, se ele ficar indignado e te perguntar: «Por que vos aproximastes da cidade para combater? Não sabíeis que iam disparar do alto da muralha? Quem matou Abimélec, filho de Jerubaal? Não foi uma mulher que lhe atirou uma pedra de moinho de cima do muro, matando-o em Tebes? (cf. Juízes 9,51-54). Porque vos aproximastes dos muros?», então dirás ao rei: «Morreu também o teu servo Urias».

 8. Partiu, pois, o mensageiro e contou a David tudo o que Joab lhe tinha mandado. Disse-lhe: «Esses homens são mais fortes do que nós. Saíram contra nós em campo aberto, mas nós perseguimo-los até às portas da cidade. Então, do alto da muralha, os arqueiros dispararam sobre os teus servos e morreram alguns, entre eles o teu servo Urias». Então o rei respondeu ao mensageiro: «Diz a Joab que não se aflija por causa deste fracasso, e que intensifique o ataque à cidade até a destruir».

 9. Ao saber da morte do seu marido, a mulher de Urias chorou-o. Terminados os dias de luto, David mandou buscá-la e acolheu-a em sua casa. Tomou-a por esposa e ela deu-lhe um filho. Mas o procedimento de David desagradou ao Senhor.

 10. O Senhor enviou então Natan ter com David. Logo que entrou no palácio, Natan disse-lhe: «Dois homens viviam na mesma cidade. Um era rico, o outro pobre. O rico tinha ovelhas e bois em grande quantidade. O pobre tinha apenas uma ovelha pequenina, que comprara. Criou-a, e ela cresceu junto dele e dos seus filhos, comia do seu pão, bebia do seu copo e dormia no seu regaço. Era para ele como uma filha. Certo dia, chegou um hóspede a casa do homem rico. Mas este não quis tocar nas suas ovelhas e nos seus bois para preparar um banquete para o seu hóspede. Antes, foi apoderar-se da ovelhinha do pobre, matou-a e preparou-a para o seu hóspede».

 11. David espumava, e indignado contra tal homem, disse a Natan: «Pelo Deus vivo! O homem que fez isso merece a morte. Pagará quatro vezes o valor da ovelha por ter feito essa maldade e não ter tido compaixão».

 12. Natan disse a David: «Esse homem és tu!». «Assim diz o Senhor: “Tomarei as tuas mulheres diante dos teus olhos e hei-de dá-las a outro, que dormirá com elas à luz do sol! Pois tu pecaste ocultamente, mas eu farei o que digo diante de todo o Israel e à luz do dia!”».

 António Couto


AMARÁS

Julho 9, 2010

 

1. «Sou a personagem mais popular do Evangelho. Vós falais muitas vezes de mim: há vinte séculos que oiço o vosso aplauso por ter puxado o freio com que parei o cavalo naquela estrada que seguia de Jerusalém para Jericó. Ofereci imagens consoladoras à vossa emotividade e ao vosso gosto inato de histórias com um final feliz: a minha figura debruçada a colocar faixas, as gotas de óleo e vinho derramadas sobre as feridas do viandante maltratado pelos ladrões e traído por aqueles dois que pouco antes me precederam naquela estrada e lhe tinham negado a sua piedade, o facto de eu ter colocado o ferido sobre a minha montada, a pousada com o hospedeiro a quem entrego dois denários para ele continuar a assistência. E vós, para me honrar, ornamentastes com estas cenas as entradas dos albergues e lugares piedosos». É assim que o escritor italiano Luigi Santucci (1918-1999) abre o seu Samaritano apocrifo, deixando transparecer alguma ironia.

 2. Concentrando agora a nossa atenção sobre a parábola do Evangelho de Lucas (10,25-37), é impressionante notar que o narrador não tenha necessitado de mais de cem palavras (incluindo artigos e partículas gramaticais) para criar um quadro inesquecível!

 3. Um HOMEM anónimo e solitário percorre os 27 km da estrada romana que, serpenteando através do Wadi el-Kelt, ligava a Cidade Santa (Jerusalém) ao belíssimo oásis de Jericó, tradicional morada de sacerdotes, superando um desnivelamento de cerca de 1100 metros. De improviso, na paisagem inóspita e desértica daquela estrada, o cenário habitual: BANDIDOS que saltam da emboscada, roubo, violência, fuga. Fica na berma da estrada um corpo ensanguentado, com a guarda de honra das rochas vermelhas dos montes circundantes, ditos em hebraico de Adummîm, tradução literal: «do sangue». Tudo envolto num gritante silêncio.

 4. Mas eis, ao longe, um SACERDOTE… Súbita desilusão. O narrador refere que o SACERDOTE bem viu o nosso homem, mas «passou pelo lado contrário» (antiparêlthen). Evitou demoras, chatices, incómodos, impureza ritual. Eis, todavia, no horizonte, outra possibilidade: um LEVITA… A mesma desilusão. Também ele «passou pelo lado contrário» (antiparêlthen).

 5. A narrativa atinge o seu auge. Eis que vem agora um SAMARITANO, lídimo representante do «estúpido povo que habita em Siquém» (Eclesiástico 50,26), mas vai fazer tudo ao contrário dos dois anteriores representantes da religiosidade fria e formal de Jerusalém. Veja-se com quanto pormenor o narrador descreve todos os seus gestos: vem até junto dele (1), viu-o (2), encheu-se de comoção (3), aproximou-se (4), enfaixou-lhe as feridas (5), derramou óleo e vinho (6), colocou-o na sua montada (7), levou-o para uma pousada (8), tomou-o ao seu cuidado (9), deu dois denários ao hospedeiro (10), e disse-lhe: «Toma tu cuidado dele» (11).

 6. Aí está a religiosidade fria e calculista e insensível, debruçada sobre si mesma, que passa ao lado da vida por e para estar atenta apenas às rubricas, por parte dos agentes do culto de Jerusalém, em claro contraponto com o amor pessoal, eivado de afecto e de gestos de carinho activo e criativo deste SAMARITANO, totalmente debruçado sobre os outros e para os outros, interessando-se até sobre o seu futuro, e provocando outros a entrar nesta dinâmica nova cheia de amor novo. Notável aquele: «Cuida tu dele!» do Samaritano implicando o hospedeiro neste trabalho do amor! E de Jesus implicando o doutor: «Vai e faz tu!»

 7. É por tudo isto que, sobre uma pedra da pretensa pousada do Bom Samaritano, na verdade um edifício do tempo dos Cruzados, mas que os peregrinos identificam com a pousada da parábola, um peregrino medieval gravou em latim estas palavras: «Ainda que sacerdotes e levitas passem ao lado da tua angústia, fica a saber que Cristo é o Bom Samaritano, que terá compaixão de ti, e, na hora da tua morte, te conduzirá à pousada eterna».

 8. «Amarás!», é quanto responde o doutor, lendo a Lei de Deus, que não está longe de ti: está na tua boca e no teu coração (Deuteronómio, 30,10-14).

 António Couto


MISSÃO OU DEMISSÃO CRISTÃ

Julho 4, 2010

 

1. Vamos ter o privilégio de poder conviver nos próximos três Domingos (XIV, XV e XVI) com o texto sublime de Lucas 10, todo ele dedicado a afinar os traços do retrato do discípulo de Jesus. Assim, vemos hoje (Domingo XIV do Tempo Comum) o ENVIO dos 72 discípulos de Jesus para um trabalho de ALEGRIA. Veremos no próximo Domingo (XV do Tempo Comum) uma figura belíssima que assume alguns traços fundamentais do discípulo de Jesus: o Bom Samaritano. E, no Domingo XVI, a fechar Lucas 10, veremos as figuras de Marta e de Maria, em que Maria, sentada como aluna atenta aos pés do Mestre, deixa ver mais alguns traços determinantes do discípulo de Jesus.

 2. Mas hoje, Domingo XIV, aí estão os 72 discípulos ENVIADOS por Jesus, portanto vinculados a Jesus. O número 72 traduz a universalidade: somos todos enviados por Jesus! Na mentalidade hebraica, eram 72 as nações que povoavam a terra. E as 70 nações que, na tábua dos povos, encontramos em Génesis 10, sobem significativamente para 72 na conhecida versão grega dos LXX!

 3. Note-se que, já antes, em Lucas 9,1-6, Jesus enviou os Doze (Apóstolos). O ENVIO dos 72 discípulos que hoje se apresenta diante de nós, em Lucas 10,1-20, é um exclusivo do Evangelho de Lucas e vinca bem a qualidade missionária deste Evangelho, que faz missionários, não apenas os Doze, mas todos os discípulos de Jesus! Sem equívocos: ser cristão ou discípulo de Jesus é ser missionário. Ser missionário não é uma segunda vocação, facultativa, uma espécie de adorno ou adereço que pode advir a alguns cristãos. Sempre sem equívocos: SER CRISTÃO É SER MISSIONÁRIO! É viver intensamente de Jesus e com Jesus, e partir para levar Jesus ao coração dos nossos irmãos. A grande Apóstola das ruas de Ivry, Madeleine Delbrêl (1904-1964), dizia as coisas assim, de maneira contundente, como evangélicas facas de dois gumes: «A missão não é facultativa. Os meios ateus [e indiferentes] em que vivemos impõem-nos uma escolha: MISSÃO OU DEMISSÃO CRISTû.

 4. O trabalho da Evangelização a que somos ENVIADOS por Jesus é um trabalho de ALEGRIA. Não de sementeira, mas de CEIFA. De acordo com o Salmo 126, a sementeira é um tempo de lágrimas, ma a CEIFA é um tempo de ALEGRIA e MÚSICA: «Vão andando e chorando, levando as sementes; ao voltar, vêm cantando, trazendo braçados de espigas» (Salmo 126,6).

 5. O ENVIADO de Jesus deve partir belo e leve, com causas, e sem coisas: «Ide! (…) Não leveis bolsa, nem alforge, nem sandálias», mas com mansidão, alegria e paz, como cordeiros. O cordeiro é um animal pacífico: não mata, mas é morto! Como Jesus, o cordeiro de Deus! Veja-se, de resto, a riqueza semântica do aramaico talya, que significa «cordeiro, servo, pão e filho»! E com carácter de urgência: «Não vos demoreis pelo caminho». O objectivo é chegar ao coração das pessoas, a quem se deve entregar a PAZ, entenda-se, a FELICIDADE.

 6. Somos informados, no final deste imenso texto, que os 72 voltaram cheios de ALEGRIA!

 7. O contraponto belíssimo vem hoje do último Capítulo de Isaías: ALEGRAI-vos com Jerusalém! Saciai-vos com o leite das suas consolações! Filhos e filhas, rosados e tranquilos, felizes, cumulados de carícias, ao colo da mãe! A PAZ e o LEITE correrão como um rio! (Isaías 66).

 8. Verificação: como este mundo anda triste e distraído, anestesiado e dormente! E como nós, discípulos de Jesus, ENVIADOS a este mundo por Jesus, temos de sentir a urgência de levar este rio de ALEGRIA aos nossos irmãos. A não esquecer: ser cristão é ser missionário! Olhando com amor para este mundo, impõe-se-nos uma escolha: MISSÃO ou DEMISSÃO Cristã!

 António Couto