1. Diz o Tratado Pirqê ’Abôt 2,9, da Mishna judaica, que «o caminho mau de que o homem se deve afastar é pedir emprestado e não restituir», acrescentando logo que «é a mesma coisa receber emprestado de um homem ou de Deus». Comentando este dito da sabedoria judaica, afirma, de forma contundente, o grande filósofo hebreu Abraham Joshua Heschel: «Talvez esteja aqui o núcleo da miséria humana: quando nos esquecemos de que a vida é um dom e também um empréstimo».
2. Servem estes ditos rabínicos para nos conduzir ao extraordinário DIZER e MOSTRAR de Jesus neste XVIII Domingo do Tempo Comum: «Vede bem e guardai-vos de toda a GANÂNCIA (pleonexía)». É fácil de entender o termo grego usado pelo narrador: pleonexía, que aqui traduzimos por ganância, deriva de pléon [= mais] + échô [= ter], e passa, portanto, a ideia clara de desejarmos TER MAIS poder, posse, dinheiro, sucesso, etc… Esta raiz daninha pode tomar de tal modo conta de nós que acaba por minar e envenenar todos os nossos comportamentos. S. Paulo chama, com toda a razão, a este vício «idolatria» (Colossenses 3,5). É o feitiço ou o fetiche do poder, da posse, da riqueza, do dinheiro, do sucesso, diante dos quais nos prostramos, seguranças enganadoras, falsos sucedâneos de Deus, a que o Evangelho chama MAMONA (mamônã) (Lucas 16,13; cf. Mateus 6,24). De notar que o termo grego mamônãs [= dinheiro, riqueza] deriva, através do aramaico mamôn, da raiz hebraica ’mn, que serve para dizer a fé e a confiança em Deus. É como quem diz que podemos equivocar-nos radicalmente, deixando de pôr a nossa fé e confiança no Deus vivo, para nos agarrarmos aos ídolos mortos e vazios, uma espécie de «espantalhos num campo de pepinos!» (Jeremias 10,5).
3. E, para que tudo fique mais claro, aí vem mais uma história arrasadora de Jesus. A terra de um HOMEM RICO produziu muito. E eis o HOMEM RICO, apresentado em cena SEMPRE SÓ, a cogitar CONSIGO MESMO, e a falar apenas CONSIGO MESMO.
4. Diz ele: deitarei abaixo os meus celeiros pequenos, construirei novas infra-estruturas, grandes celeiros, e recolherei lá todo o meu trigo e os meus bens. Depois, direi para MIM MESMO: tens muitos bens acumulados para muitos anos; descansa, come, bebe, regala-te! (Lucas 12,18-19).
5. Falou o HOMEM RICO a sós CONSIGO MESMO. Agora é a vez de Deus, que lhe diz: «Mentecapto (áphrôn), esta noite morrerás, e as coisas que acumulaste para quem serão?» (Lucas 12,20). E o narrador conclui: «Assim acontece àquele que acumula PARA SI MESMO e não PARA DEUS» (Lucas 12,21).
6. Não é suficiente traduzir o termo grego áphrôn por «insensato» ou «estúpido». Áphrôn resulta de phrên [= mente] a que se antepõe o a- (alfa) privativo, pelo que áphrôn indica a falta total de inteligência, um mentecapto, desmiolado, sem-mente.
7. Olhando atentamente à nossa volta, neste mundo em crise acentuada, veremos depressa (e não é só no futebol) tantos «ricos mentecaptos», que passeiam e planeiam, falam e gastam sozinhos. Onde estão na nossa não-mente os irmãos a quem devemos fazer participar com alegria da nossa riqueza? E, em última análise, a orientação da nossa vida é PARA NÓS MESMOS ou PARA DEUS? Recebemos a vida, os outros, a riqueza como um DOM e um EMPRÉSTIMO, de que devemos responder a cada momento, ou pensamos que somos DONOS de todos e de tudo, registrando logo todos e tudo em nosso nome, nossa propriedade para nosso uso, consumo e satisfação exclusivos?
8. Temos hoje a ácida e lúcida companhia de Qohelet, esse intrigante pregador que nos segue por toda a parte e não cessa de nos ir lembrando que tudo o que fazemos pode afinal não passar de um sopro, fumaça, um vento que passa, um ócio oco e vão, uma soneira. E logo com tanto irmão à nossa beira!
António Couto