HOJE NA TUA CASA É PRECISO QUE EU FIQUE!

Outubro 30, 2010

 

1. É preciso vir atrás, ao Domingo XIII do Tempo Comum, que celebrámos no dia 27 de Junho, para assistirmos ao início do caminho de Jesus da Galileia para Jerusalém. Foi nesse Domingo proclamado o Evangelho de Lucas 9,51-62. Aí começava também o caminho longo e intenso da formação de Jesus aos seus discípulos de todos os tempos.

 2. Estamos agora, quatro meses depois, no Domingo XXXI do Tempo Comum, dia 31 de Outubro, e Jesus atravessa a cidade de Jericó, antes de entrar na última etapa do seu percurso, 27 km de uma longa subida que o levará a Jerusalém. Jericó é um belo e aprazível oásis que se estende por cinco quilómetros, situado a cerca de 300 metros abaixo do nível do mar. Jerusalém situa-se a cerca de 800 metros acima do nível do mar. O caminho de Jesus – e dos seus discípulos com ele – torna-se agora, portanto, uma intensa subida física e espiritual.

 3. A assinalar esta passagem de Jesus por Jericó, aí está mais um encontro decisivo, instrutivo e salvador de Jesus (Lucas 19,1-10), «que veio PROCURAR e SALVAR o que estava perdido», como Jesus diz de si mesmo no final da narrativa (Lucas 19,10). O início da narrativa apresenta-se um homem, de nome Zaqueu, que era rico e chefe de publicanos, e que PROCURAVA VER (ezêtei ideîn) QUEM É (tís estin) Jesus.

4. Cruzam-se o início e o final da narrativa, cruzando estas duas PROCURAS: Jesus PROCURA salvar o que está perdido; Zaqueu PROCURA ver quem é Jesus. Note-se bem que a narrativa não diz que Zaqueu PROCURAVA ver Jesus, o que equivaleria a ver o seu rosto, o seu aspecto, a roupa que vestia… Diz, antes, que Zaqueu PROCURAVA ver quem era Jesus. Entenda-se, portanto, que o que Zaqueu PROCURAVA ver não era o rosto, o aspecto, o exterior de Jesus, mas a sua identidade, a sua intimidade, o seu modo de ser.

5. Diz ainda o nosso belo texto que Zaqueu não conseguia ver quem era Jesus por causa da multidão, por ser de pequena estatura. Numa primeira vaga de leitura, fica-se com a impressão de que Zaqueu era um homem baixo e que, por esse motivo, atolado no meio da multidão, não conseguia realizar o seu objectivo de ver quem era Jesus. Numa segunda vaga de leitura, percebemos melhor por que razão Zaqueu não podia ver quem era Jesus por causa da multidão. É que, sendo ele chefe de publicanos, então era um traidor à sua pátria judaica, colaboracionista com os ocupantes romanos, cobrando impostos aos seus irmãos de raça e levando-os aos romanos. Traidor, colaboracionista, explorador e ladrão, Zaqueu era o odiado Zaqueu. Salta à vista que não podia estar no meio da multidão, que, se o descobrisse, o cobriria de insultos, cuspidelas, pontapés…

6. É esta a razão que o faz correr adiante (onde não estava a multidão), e subir a um sicómoro, para, daí, escondido na densa copa do sicómoro, poder ver e não ser visto, ficando, portanto, a coberto da multidão.

7. Mas também fica claro que, de dentro da copa do sicómoro, Zaqueu conseguiria certamente ver Jesus, mas não QUEM ERA Jesus. Para ver quem é Jesus, a sua identidade e intimidade, é preciso um encontro com Jesus. É aqui que entra o outro PROCURADOR, que é Jesus. Levanta os olhos, vê Zaqueu escondido na copa do sicómoro, e diz-lhe de imediato: «Zaqueu, desce depressa: HOJE na tua casa é preciso que eu fique!» (Lucas 19,5).

8. Zaqueu desceu depressa e recebeu Jesus com ALEGRIA. Zaqueu começa aqui a ver  quem é Jesus: não o insulta, não o exclui, não o empurra. Chama-o, acolhe-o, inclui-o! Em contraponto, a multidão viu e reprovou, dizendo: «Foi hospedar-se em casa de um pecador» (Lucas 19,7). Mas em casa, tu a tu, Zaqueu pode continuar a ver quem é Jesus, e vai virar do avesso a sua vida toda, DANDO, DANDO, DANDO. Aos pobres e àqueles (muitos) a quem roubou. E Jesus pode dizer com verdade: «HOJE veio a salvação a esta casa!» (Lucas 19,9).

9. Conclusão sempre nova: Zaqueu não dá aos pobres para ser salvo, mas porque foi salvo!

António Couto


DEIXA VIR O TEU CORAÇÃO À SUPERFÍCIE

Outubro 23, 2010

 

1. Domingo XXX do Tempo Comum. Aí está mais uma parábola de Jesus direitinha ao nosso orgulhoso coração (Lucas 18,9-14). Um fariseu cheio de si, afogado em si. Já a água lhe dá pelo pescoço, mas nem assim «põe o coração» na situação limite em que se encontra. Para espanto nosso, não pede auxílio, não estende a mão; antes, procede a um estranho ritual de autoincensação e debita facturas e palavras que não atravessam as nuvens. Mais parecem pedradas no charco em que alegre e orgulhosamente se afunda, agora já com a água a entrar-lhe pela boca adentro. Em breve as velas do coração ficarão encharcadas, e a embarcação afundar-se-á. À superfície, a boiar, antes de se afundarem também, um monte de facturas e de palavras inchadas. É assim que vive e reza o fariseu que há em nós.

 2. Ao fundo, sempre ao fundo, vislumbra-se um verdadeiro e assumido pecador. Coisa tão rara e, por isso, tão cara. Sim, é um traidor, um vendido, um ladrão. Mas tem ainda coração. Por isso, bate com a mão no peito, e pede a Deus a esmola do perdão. É assim que pôe a andar a sua pobre embarcação. É assim que reza o publicano que há em nós. É a verdadeira respiração ou oração do nosso coração. Parafraseando Jesus, «pela sua oração os conhecereis».

3. O precioso Livro de Ben-Sirá, que uma vez mais temos a graça de folhear, ler e escutar, mostra-nos como Deus está atento ao indigente, à viúva, ao órfão, ao deserdado, ao humilde, e diz-nos que a sua oração atravessa as nuvens (Ben-Sirá 35,15-22). Belíssima expressão que se cruza com a palavra fecunda de Deus que, como a chuva, atravessa as nuvens para baixo e para cima, enchendo de alegria a nossa terra abençoada (Isaías 55,10-11).

4. Diz ainda o sábio que a viúva, o pobre, o órfão, o humilde não dão descanso ao seu coração em oração enquanto Deus não olhar para eles com olhos de bondade. É exactamente o modo como reza o publicano: Ó Deus, olha para mim com a bondade do perdão, com aquele olhar maternal da bênção sacerdotal (Números 6,25-26).

5. E aí está hoje também o 84.º Dia Missionário Mundial. Para nos lembrarmos que somos muitos irmãos. E que este mundo poderá ser muito mais belo se todos dermos as mãos, tecendo uma grande rede de comunhão, como resposta à Mensagem do Papa Bento XVI para este Dia, que tem por título: «A construção da comunhão eclesial é a chave da missão». E para isso ser verdade, o Papa pede «uma profunda conversão pessoal, comunitária e pastoral».

6. Mãos à obra, à comunhão, à oração, ao coração. Pois é verdade que «se um rio de água abrisse a aridez desta planície,/ decerto que este mundo mudaria,/ e uma imensa hemorragia traria o teu coração à superfície».

António Couto


SER CRISTÃO IMPLICA NECESSARIAMENTE SER MISSIONÁRIO

Outubro 22, 2010

 

1. A Conferência Episcopal Portuguesa tornou pública no passado dia 17 de Junho deste ano de 2010 uma Carta Pastoral intitulada «Como Eu vos fiz, fazei vós também». Para um rosto missionário da Igreja em Portugal. A presente Carta Pastoral surge como resposta a uma proposta do Congresso Missionário Nacional, realizado nos dias 3 a 7 de Setembro de 2008, em que se solicitava à CEP uma Carta de orientação da Missão em Portugal, no sentido de avivar a vocação missionária de todos os cristãos.

 2. A Carta agora publicada, e que recolhe as melhores e mais incisivas orientações do magistério Conciliar e Papal, das Congregações Romanas, de importantes acontecimentos eclesiais (Aparecida, CAM 3 / COMLA 8), assenta em cinco traves mestras fundamentais e significativas: 1) «O primado da missão do amor»; 2) «Evangelização: o primeiro e o melhor serviço»; 3) «Todos evangelizados, todos evangelizadores»; 4) «Igrejas locais, sujeito primeiro da missão»; 5) «Fiéis leigos: contributo indispensável no coração do mundo».

3. Compulsando a documentação referida e recolhendo a sensibilidade missionária de outras Conferências Episcopais que mais se têm debruçado nos últimos anos sobre esta temática, vê-se bem que a missão ad gentes aparece cada vez mais como o horizonte permanente e o paradigma por excelência de toda a dinâmica e empenhamento pastoral. Neste sentido, é cada vez mais claro que a missão ad gentes não é tanto uma maneira de demarcar espaços a que haja que levar o primeiro anúncio do Evangelho, mas é mais o modo feliz, ousado, pobre, despojado e dedicado de o cristão sair de si mesmo por amor para, por amor, levar Cristo ao coração de cada ser humano, seja quem for, seja onde for.

4. É aqui que incide, porventura abrindo feridas na nossa compreensão empoeirada, o título desta Carta Pastoral, situando-nos no inevitável seguimento modelar de Cristo: «Como Eu vos fiz, fazei vós também» (Jo 13,15). É o como que nos desafia; não é o onde. Portanto, aqui também, e desde aqui, se pode e deve fazer como fez Cristo. A missão ad gentes não é tanto o que fazer; é o modo, o como fazer. E aí não nos resta senão ser cristãos e missionários ao jeito de Cristo: pobres e humildes, felizes e livres, sem coisas atrás, para que o anúncio do Evangelho seja mesmo «primeiro» e credível. É também aqui que se compreende que as comunidades europeias, de antiga tradição cristã, estejam a tomar consciência deste modo novo e «primeiro» de serem missionárias ad gentes. E também se compreende que tenham chegado a este caminho depois de verificarem o relativo (ou completo) insucesso da chamada «nova evangelização». Uma comunidade rica e parada, empoeirada, com estruturas ricas e pesadas, dificilmente será credível, não é mesmo credível.

5. Também é preciso tomar consciência de que é toda a Igreja que é missionária, e que, portanto, ser cristão implica necessariamente ser missionário. Que o cristão não necessita de outra vocação para ser missionário: basta a vocação que tem. Que «cristão» e «missionário» não identificam duas figuras distintas nem duas vocações distintas, mas são qualificações inseparáveis do discípulo de Jesus. Que ninguém pode pensar que se pode ser, em primeiro lugar, cristão, e depois, se se sentir chamado e se quiser, vir também a ser missionário. Para o cristão, ser missionário é a sua maneira de ser, a sua identidade, a sua graça, é uma necessidade, é de fundo e não um adereço facultativo. A sua referência permanente é Jesus Cristo, e o seu horizonte são todos os corações.

6. É claro. Já não basta converter ou reconverter estruturas. É mesmo necessário e preliminar que comecemos por nos convertermos nós ao estilo de Cristo, ao como de Cristo. Igreja de Portugal, é tempo de renascer!

António Couto


COM UM NÓ CEGO NO CORAÇÃO OU SOB O PÁLIO DE DEUS?

Outubro 15, 2010

 

1. Depois da semente pequenina, pequenina, que é a fé, e que pode virar do avesso a nossa vida, depois do samaritano leproso curado, agradecido a Jesus e salvo, eis-nos, neste Domingo XXIX do Tempo Comum, perante uma viúva desprotegida no campo social, económico e jurídico, mas persistente no seu clamor por justiça.

 2. A Bíblia insiste que ninguém deve afligir ou menosprezar uma viúva ou um órfão, pois se o fizer, e se a viúva ou o órfão gritarem a Deus, o seu grito será escutado e os seus opressores duramente castigados (Êxodo 22,21-23). Juntamente com o estrangeiro e o pobre, a viúva e o órfão fazem parte do rol das chamadas personae miserabiles, pessoas sem protecção social, económica ou jurídica, mas que, para sua defesa, podem contar sempre com a mão protectora de Deus, que sobre elas coloca o seu manto protector ou pálio.

3. A impressão da pobre viúva do Evangelho de hoje (Lucas 18,1-8) é que o seu pedido esbarra contra uma porta fechada, que tem por detrás o coração fechado com nó cego de um juiz agnóstico, portanto, sem Deus, e insensível, incapaz de se condoer com as dores seja de quem for. O retrato que dele faz o narrador mostra-nos um juiz fechado a Deus e aos homens, que ostenta um coração empedernido, e não um «coração que vê», para usar a bela expressão do Papa Bento XVI.

4. Sem nunca abrir a porta ou o coração aos apelos da viúva, o juiz de coração fechado com nó cego acaba, todavia, por ceder aos gritos persistentes da viúva, não porque o seu coração se tenha amaciado ou o nó cego desatado, mas para se ver livre do incómodo causado pelos gritos persistentes da viúva.

5. Do menor para o maior, à boa maneira rabínica. Se assim faz o juiz de coração fechado com nó cego, quanto mais e mais depressa fará Deus aos seus eleitos que a Ele gritam dia e noite?

6. Note-se que o narrador nos dá a chave logo no início, para podermos abrir a parábola e entrar na sua correcta compreensão. Na verdade, introduz-nos assim na parábola: «Disse-lhes uma parábola sobre a necessidade de REZAR sempre, sem descanso» (Lucas 18,1). E no final insiste nos eleitos que gritam a Deus dia e noite (Lucas 18,7). Rezar com persistência. Não tanto para que Deus faça agora o que lhe pedimos, mas para que a nossa fé permaneça! «Quando vier o Filho do Homem, encontrará a fé sobre a terra?» (Lucas 18,8).

7. É, de resto, sabido que o Evangelho de Lucas é também conhecido como o Evangelho da oração. Aqui deixamos, para quem o desejar e achar útil, os principais acenos. 1) Este Evangelho apresenta cenários de oração a abrir (Lucas 1,10 e 13; 2,37) e a fechar (Lucas 24,53), formando aquilo que se chama uma inclusão literária ou envelope, como que a dizer que o inteiro Evengelho está repleto de oração. 2) Este Evangelho é de longe o que apresenta mais vezes Jesus a rezar sozinho, como modelo de oração: Lucas 3,21; 5,15-16; 6,12-16; 9,18-20; 9,28-36; 10,21; 11,1; 22,31-32; 22,39-46; 23,33-34; 23,44-46). 3) É este Evangelho que nos apresenta as mais belas e inesquecíveis figuras de oração: Maria, com o magnificat (Lucas 1,46-55); Zacarias, com o benedictus (Lucas 1,68-79); Simeão, com o nunc dimittis (Lucas 2,29-32); o coro celeste, com o gloria in excelsis (Lucas 2,14). 4) É ainda este Evangelho que salienta alguns traços fundamentais da oração: a persistência, no chamado «amigo importuno» (Lucas 11,5-13) e na figura de hoje, a «viúva importuna» (Lucas 18,1-8), e a humildade, como veremos no próximo Domingo, na parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,10-14).

8. Não se pode descurar hoje a colagem ao belo modelo de oração da viúva, do texto do Êxodo 17,8-13, que nos mostra Moisés também a rezar sem descanso no cimo da colina. Salta à vista que a vitória sobre Amalec não resulta da espada de Josué, mas da oração de Moisés! É como quem diz que a oração dia e noite, sem descanso, é a chave da nossa vida em todas as suas circunstâncias.

9. É ainda de uma beleza inexcedível o alcance dos versículos 15 e 16 do mesmo Capítulo 17 do Livro do Êxodo que estamos a seguir. Yahveh-nissî, a bandeira ou o pálio de Yahveh nas minhas mãos. É outra vez o manto ou o pálio carinhoso de Deus que nos protege sempre. Usamo-lo nas procissões, mas também nas horas mais dramáticas, quando precisarmos de «cuidados paliativos»… Foi a este manto, a este «pálio», que a medicina foi buscar o «paliativo». Saiba-o ou não. Porque não o devia nunca esquecer. Com quanto carinho devemos saber envolver os sofredores, os pobres, as viúvas e os órfãos, os deserdados, e os moribundos…

António Couto


UM CORAÇÃO SAMARITANO

Outubro 8, 2010

 

1. De há muito que seguimos Jesus no seu caminho para Jerusalém. No seu caminho, que é o nosso itinerário ou currículo de formação. É por isso que devemos pôr toda a atenção em tudo o que se passa. No episódio do Evangelho proclamado no Domingo passado (XXVII do Tempo Comum), Lucas 17,5-10, fomos nós que pedimos a Jesus: «Aumenta a nossa fé!» (Lucas 17,5). E Ele foi ao campo buscar a metáfora da semente pequenina e do serviço humilde e dedicado do servo que serve em tudo e sempre o seu Senhor.

 2. No seguimento imediato, o Evangelho proclamado neste Domingo XXVIII do Tempo Comum, Lucas 17,11-19, continua a glosar a temática da fé, e põe diante de nós dez leprosos que empregam todas as suas forças para, com voz grande, se fazerem ouvir por Jesus. Hoje são eles que dirigem a Jesus o seu pedido, e fazem-no nestes termos: «Jesus, Mestre, Faz-nos Graça!» (Lucas 17,13). Aquele «Faz-nos Graça!» soa, no texto grego, eléêson hêmãs, cujo eco ainda hoje ressoa no nosso «Kýrie, eléêson» («Senhor, Faz Graça»). «Faz Graça» é um dizer muito bíblico com que nós pedimos a Deus que, como uma mãe cheia de ternura, nos embale nos seus braços e olhe para nós com o seu olhar carregado de bondade maternal.

3. Note-se que os leprosos, devido à sua doença contagiosa, eram excluídos da sociedade, literalmente excomungados, e obrigados a andar longe dos povoados, não se podendo aproximar de ninguém. E, à vista de alguém, deviam gritar: «Impuro, impuro!», para que as pessoas se desviassem deles (Levítico 13,45-46).

4. Jesus escuta o seu pedido, e manda que se vão apresentar aos sacerdotes, para que estes, dentro das suas competências (Levítico 13,2-3), os pudessem declarar curados da lepra. Eles partem, sinal da plena confiança que depositam em Jesus, pois, quando se pôem a caminho, ainda continuam possuídos pela lepra. Na verdade, é depois de partirem, enquanto caminham, que se sentem curados! (Lucas 17,14).

5. O centro do episódio começa agora. Os holofotes do narrador põem em grande destaque um dos dez leprosos que, sentindo-se curado, interrompeu a sua viagem e voltou para trás, louvando a Deus com voz grande, e veio agradecer a Jesus, prostrando-se aos seus pés! O narrador informa-nos que era um samaritano (Lucas 17,15-16), portanto herético, estrangeiro, da região «daquele estúpido povo que habita em Siquém» (Ben-Sirá 50,26).

6. Jesus louva a fé deste excluído, e deixa entender que a fé não consiste simplesmente em cumprir ordens, mas também em proclamar a boa nova da salvação, em reconhecer a graça recebida diante daquele que a concedeu, com uma voz tão grande como o grito com que antes se lha pediu. Esta voz nova de louvor e de alegria precede mesmo o cumprimento dos ritos de purificação, precede qualquer rito, interrompe qualquer viagem, passa à frente de qualquer negócio. É já a segunda vez que Lucas nos mostra um samaritano a interromper a sua viagem. A primeira vez é quando um samaritano se debruça por amor sobre um homem meio morto (cf. Lucas 10,33-34). O viajante mesmo é Jesus. O seu discípulo, atento e sensível, segue o Mestre, e, ao seguir o Mestre, corta estradas velhas, abre estradas novas! Parte sempre de Jesus, chega sempre a Jesus.

7. Dá-nos, Senhor, um coração samaritano.

António Couto


METÁFORAS NO CAMPO E NA CIDADE

Outubro 1, 2010

 

1. Falo do umbral do outono, de uma praça carregada de metáforas. Moro aqui debaixo deste céu. Claro que durmo ao relento. Sou pobre e puro. Pedinte apenas à porta do espírito. Como os plátanos no púlpito das praças, abrigo os pássaros. Atiram-me pedras os meninos. O meu lugar é aqui, de bruços nas palavras, pedra a pedra construindo o pátio do poema.

 2. Oiço bater à porta. Serás tu ainda? Que fruto trazes nas tuas mãos despidas? Um balde? O mar? O mar num balde? As rochas a estalar? O lume a arder em febre? Uma estrela cadente envolta em neblina?

 3. Trazes a história de uma semente pequenina, microscópica. Dizes, para espanto meu, que, lançada à terra, dela nascerá uma árvore grande, em cujos ramos vêm abrigar-se os pássaros do céu, fazendo dela uma lareira carregada de alegria. E dizes, outra vez para espanto meu, que a FÉ tem o tamanho e o virtuosismo dessa semente pequenina, que semeada no meu coração e no coração do mundo pode desenraizar o que nos parece seguro, sólido, assegurado, fazer ruir os nossos cálculos  mais estudados, fazer florir o alcatrão das nossas estradas, fazer sorrir a nossa história desgraçada, arrancar embondeiros, plantar no mar aquilo que parece só poder viver na terra.

 4. Acrescentas logo, sempre para espanto meu, que uma vida de serviço e da máxima simplicidade é a melhor. E que é também a melhor pregação. Servir por amor. Sem tempo nem contrato. Sem cláusulas. Doação total. Dar a vida como tu, Senhor e Servo.

 5. Para me dizeres tanto, foste buscar metáforas ao campo: a semente, as árvores e o servo (Lucas 17,5-10).  E do campo, levas-me a visitar o jardim de Habacuc. Poucos saberão, mas Habacuc é o nome de uma planta de jardim. Está de passagem. De manhã viceja, à tarde seca. É preciso ir depressa. Até porque Habacuc ainda tem de ir à cidade e escrever num grande painel publicitário que «o não-recto perecerá, mas o justo viverá pela FÉ» (2,4).

 6. A FÉ é a tal sementinha que pode virar do avesso a nossa vida, a nossa casa, a nossa rua, a nossa cidade, a nossa história.

 7. Corre e demora-te a ver esse painel, metáfora erguida na cidade, e aprende a FÉ, isto é, a FIDELIDADE. S. Paulo demorou-se longamente a contemplar esse painel, de tal maneira que gravou os seus dizeres na alma e em Romanos 1,17 e Gálatas 3,11.

 António Couto