AMAR OU NÃO AMAR, EIS A QUESTÃO

Agosto 25, 2012

 

1. Neste Domingo XXI do Tempo Comum, escutaremos a sexta e última Parte do Capítulo 6.º do Quarto Evangelho, que contempla os últimos versículos (João 6,60-69), e estende a discussão antes havida da multidão (João 6,25-40) e dos judeus (João 6,41-58) com Jesus, também aos discípulos em geral, que entram agora em cena em João 6,60, para saírem de cena para fora da acção de Jesus em João 6,66, sendo então a vez dos Doze e de Pedro entrarem em cena (João 6,67-69).

 2. Veja-se a gradação: multidão, judeus, discípulos, Doze e Pedro. Curiosamente, os discípulos, numa espécie de imbricação, retomam a atitude dos judeus, que os precederam em cena: murmuram (goggýzô) como eles contra o escândalo da incarnação e das origens divinas de Jesus (João 6,61), e classificam como duro (sklêrós), incompreensível, intragável (João 6,60), o discurso de Jesus sobre a sua carne-vida dada em alimento para a vida verdadeira.

 3. Além de «murmurar» como os judeus de Cafarnaum e do deserto (Êxodo 15,24; 16,2 e 7-8; 17,3; Números 14,2.27.29.36), muitos dos discípulos abandonam Jesus e «voltam para trás» (João 6,66), configurando-se como anti-discípulos e anti-povo de Deus, que, no deserto, pretende voltar para trás, para o Egipto (Êxodo 14,12; 16,3; 17,3; Números 14,3-4). O discípulo é aquele que vai atrás de Jesus, seguindo-o, e não o que volta para trás, abandonando-o.

 4. De notar ainda que, no caso dos discípulos, e de forma diferente da multidão e dos judeus, é Jesus que faz a pergunta e dá a resposta. Os discípulos apenas murmuram, não ouvem, não respondem e vão-se embora. No caso dos Doze, é Jesus que faz a pergunta, e é Pedro que, em nome dos Doze e em contraponto com todos os grupos anteriores, não se limita apenas a responder, mas profere uma verdadeira profissão de fé (João 6,68-69).

 5. Vendo bem, neste Capítulo 6.º que hoje atinge o seu ápice, as diversas reacções aos acontecimentos de Jesus, a que a exegese chama «crise galilaica», antecipam e lêem já as crises sucessivas na Igreja. Trata-se sempre da grande decisão de fé pró ou contra a humildade da Incarnação, da Cruz e da Eucaristia. A Palavra de Jesus que se ouve aqui e também agora será sempre como um bisturi que divide, julga e purifica.

 6. A mesma grande decisão ou incisão está patente no grande texto de Josué 24,1-18, em que «servir» é a palavra-chave, que se ouve por 14 vezes. Servir ou não servir, eis a questão. E na Carta aos Efésios 5,21-32, o «serviço» chama-se amor.

 António Couto


NASCE OUTRO EU EM QUEM ME COME

Agosto 18, 2012

1. Neste Domingo XX do Tempo Comum, temos a graça de escutar o texto que compõe a quinta secção (João 6,52-59) [ver Domingo XIX] da quinta Parte (João 6,25-59) do Capítulo 6.º do Quarto Evangelho [ver Domingo XVII]. Na verdade, o Evangelho deste Domingo começa no v. 51, que, por sinal, fechava a quarta secção (João 6,41-51) e já foi lido no Domingo XIX, e termina no v. 58. Mas no v. 51, Jesus não está a responder à «multidão», como nos faz ler a versão oficial do texto que vai ser proclamado, mas aos «judeus», que entram em cena em João 6,41. Curiosamente, a versão do Domingo XIX está correcta!

 2. Já tivemos oportunidade de referir que cada uma das secções que compõem a quinta Parte deste Capítulo 6.º do Quarto Evangelho (João 6,25-59) estão ritmadas segundo o modelo «pergunta-resposta», sendo a pergunta sempre formulada pela «multidão» ou pelos «judeus», e a resposta sempre oferecida por Jesus. A pergunta dos judeus: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu”?» (João 6,42), que abria a quarta secção (João 6,41-51), despoletou a resposta de Jesus sobre a sua verdadeira identidade: «Eu sou o pão vivo que desceu do céu (…), pão que é a minha carne, que dá a vida» (João 6,51). A pergunta que abre a quinta secção (João 6,52-59) e que sai também da boca dos judeus, e que vem na continuidade da resposta acima referida de Jesus, soa assim: «Como pode este dar-nos a sua carne (sárx) a comer?» (João 6,52).

 3. Esclarecedor é que o verbo «comer» apareça conjugado com «carne» (sárx), João 6,52.53.54.56), com «pão» (ártos) (João 6,51.58) e «comigo» (me) [«o que me come»] (João 6,57). Fica claro que «comer o pão descido do céu» é «comer a carne do Filho do Homem», e que as duas expressões são equivalentes de «comer a pessoa» de Jesus, a sua identidade, o seu modo de viver. Só assim a vida verdadeira, a vida eterna, entra em nós e transforma a nossa vida, configurando-a com a de Jesus. Uma nova possibilidade entra na história humana. Tudo o que fica para trás, resume-se assim: «No deserto, os vossos pais comeram o maná, e morreram» (João 6,49). É o tema da transparência e da mútua imanência e pertença: «Permanece em Mim e Eu nele» (João 6,56). É a melhor e mais realista tradução da nossa comunhão eucarística. Até o verbo «comer» ganha nesta secção particular sabor e realismo. De facto, habitualmente é usado o verbo esthíô. Todavia, em João 6,54.56.57.58 é usado um verbo «comer» muito mais forte, o verbo trôgô [= trincar, mastigar]. De forma significativa, este verbo só é usado nas passagens atrás assinaladas e em João 13,18, no contexto da ceia da Páscoa.

 4. A Sabedoria também edifica a sua casa, põe a mesa, e convida todas as pessoas [0 toda a humanidade] para o seu banquete. Para significar que o convite a uma nova maneira de viver é feito a todos, sem excepção, é dito que é feito dos pontos mais altos da cidade (Provérbios 9,3).

 5. E a Carta de São Paulo aos Efésios reclama também de nós uma vida nova, assente num coração inteligente que saiba destilar quotidianamente em música a Palavra de Deus e levantar a Deus permanente acção de graças. A não ser assim, teremos de nos haver com a crítica de Nietzsche, que refere: «Se a Boa Nova da vossa Bíblia estivesse também escrita no vosso rosto, não teríeis necessidade de insistir tanto para que as pessoas acreditem. As vossas obras e acções deviam tornar quase supérflua a Bíblia, porque vós mesmos seríeis Bíblia nova e Boa Nova».

 António Couto


SENHORA DA ASSUNÇÃO OU DA DORMIÇÃO

Agosto 14, 2012

1. Ainda que com títulos diferentes, mas com temas e conteúdos idênticos, as Igrejas do Oriente e do Ocidente, portanto a Igreja inteira, a Una e Santa, celebra no dia 15 de Agosto a maior e mais antiga festa da Mãe de Deus, a Virgem Santa Maria. No Oriente, é a festa da «Dormição» (koímêsis), enquanto que, no Ocidente, prevalece a tonalidade da «Assunção» (análêmpsis).

 2. O Evangelho deste grande Dia relata o belíssimo episódio da «Visitação» (Lucas 1,39-45) seguido do cântico da «Exultação» ou «Magnificat» (Lucas 1,46-56). Note-se outra vez uma pequena diferença de tonalidade: o episódio que o Ocidente conhece por «Visitação», recebe no Oriente o nome de «Saudação» (aspasmós). E o episódio que precede e motiva esta «Visitação» ou «Saudação» recebe no Ocidente o nome de «Anunciação» e no Oriente o nome de «Evangelização» (euangelismós) (Lucas 1,26-38). Verdadeiramente é a Leveza e a Alegria em trânsito, a caminho, ao ritmo do vento do Espírito, música nova, inefável e bendita. Vinda de Deus até Maria, até Isabel, até João Baptista, outra vez até Deus. Lembra uma pequena parábola rabínica que, quando David andava fugido de Saul, buscando refúgio nas montanhas (1 Samuel 22 e seguintes), um dia dependurou a sua harpa numa árvore, e adormeceu. Mas o vento, passando, fez vibrar as cordas da harpa e exalar uma suave melodia. Verdadeira música do Espírito.

 3. É igualmente sugestiva a intuição dos Mestres judaicos, registrada por Martin Buber nos seus «Contos dos Justos». Citando o Salmo 147,1, em que se lê: «É bom cantar ao nosso Deus», Buber apresenta logo a bela interpretação que Rabbí Elimelek dava deste versículo: «É bom se o homem faz cantar Deus nele». Música divina. Assim Maria correndo sobre os montes e saudando Isabel e cantando as maravilhas de Deus no Magnificat, assim Isabel bendizendo Maria e bendizendo Deus, assim João Baptista, dançando ao som dessa nova música inefável, no ventre de Isabel.

 4. Maria correndo sobre os montes: feliz evocação do mensageiro de boas notícias de Isaías 52,7: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia boas novas a Sião…»; evocação também do amado do Cântico dos Cânticos 2,8, assim cantado pela amada: «A voz do meu amado: ei-lo que vem correndo sobre os montes». Assim, com este simples acorde montanhoso, o narrador e grande retratista do terceiro Evangelho traça o perfil de Maria movida por uma grande notícia e pelo amor. A aclamação de Isabel: «Bendita tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre» = «Bendita tu e bendito Deus» lembra o duplo «Bendito» na aclamação de Judite (13,18). A locução maravilhada de Isabel: «E de onde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor» remete para o atónito dizer de David: «E de onde me é dado que venha ao meu encontro a Arca do Senhor?» (2 Samuel 6,9). E a «dança de João» reclama a dança de David na presença da Arca do Senhor (2 Samuel 6,5.14.16.21). E os «cerca de três meses» de permanência de Maria em casa de Isabel, regressando então a sua casa (Lucas 1,56), não são, como vulgarmente se pensa, para indicar que Maria está presente no nascimento de João Baptista, pois este apenas é narrado no versículo seguinte (Lucas 1,57). É, antes, outra vez o acerto com a Arca do Senhor, que permanece três meses na casa de Obed-Edom (2 Samuel 6,11). Os acordes textuais evidentes mostram Maria como a Arca da Aliança, como, de resto, é aclamada pelo Povo de Deus na sua litania de Maria.

 5. O que verdadeiramente me extasia e inebria é esta música outra, ventilando as cordas do nosso humano, e quase sempre orgulhoso, coração. Vem outra vez a propósito a velha sabedoria judaica, que nos legou esta bela pequena história: «Conta-se que, quando David terminou o Livro dos Salmos, se sentiu muito orgulhoso. Então disse para Deus: “Senhor do mundo, quem de entre todos os seres que criaste, canta melhor do que eu a tua glória?” Naquele momento, apareceu uma rã que lhe disse: “David, não te envaideças. Eu canto melhor do que tu a glória de Deus”» (Sefer ha-Haggadah, 89b).

 6. Pela Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de 1 de Novembro de 1950, o Papa Pio XII proclamava a Assunção da Virgem Maria como dogma de fé. Mas é desde os primeiros séculos do Cristianismo que o Povo de Deus proclama e vive com amor esta realidade. Quantas igrejas, paróquias e dioceses a têm como Padroeira! E, neste particular, este recanto Peninsular, terra de Santa Maria, não podia ser excepção. O Povo de Deus desde muito cedo aclamou a Assunção de Maria, Mãe de Deus e esperança da nossa frágil humanidade.

 7. Um lugar guarda esta memória em Jerusalém. É preciso descer ao vale que corre a Oriente da cidade, o famoso vale do Cédron. Deixando à direita o Getsémani com as suas oliveiras seculares e a Basílica da Agonia de Jesus, muito próximo da Gruta dos Apóstolos ou da Prisão de Jesus, chega-se a um pátio pavimentado que dá para uma monumental fachada, que é o que resta de uma grande Igreja aí construída pelos Cruzados. Por detrás dessa fachada, estende-se uma escadaria que nos leva a uma cripta situada nas entranhas do vale do Cédron. É esta cripta que guarda um túmulo do século I, que a tradição cristã identifica com o túmulo de Maria, em forma de banco escavado na rocha, e que se apresenta bastante degradado devido à tentação dos peregrinos que, ao longo dos tempos, não resistiram a levar consigo um pedacinho da rocha que esteve em contacto com o corpo da «Bendita».

 8. No dia da Solenidade da Assunção, é comovente ver aquela escadaria escura iluminada como um tapete de luz, devido às velas que os fiéis colocam em cada degrau. Conduzindo embora para um túmulo, a sensação que se cria é que aquela escadaria descendente, feita tapete de luz, abre para uma ianua coeli, «porta do céu», como também cantamos na litania de Maria.

 9. No seguimento lógico da Assunção de Maria, a Igreja celebra oito dias depois, em 22 de Agosto, a Memória da Virgem Santa Maria, Rainha, proclamação também devida a Pio XII, através da Carta Encíclica Ad Coeli Reginam, de 11 de Outubro de 1954. Mãe Elevada aos Céus, mas Mãe que vela carinhosamente pelos seus filhos. O Rei e a Rainha não são, na Bíblia, títulos de nobreza, mas traduzem a dupla função de quem deve estar particularmente próximo de Deus e particularmente próximo do povo. Para acolher de perto toda a Palavra que vem do coração de Deus, e para trazer à humanidade a prosperidade, o bem-estar e a felicidade. Tal é a função do Rei e da Rainha.

Senhora da Visitação ou da Saudação,
que corres ligeira sobre os montes,
Senhora da Assunção ou da Dormição,
Santa Maria Rainha,
vela por nós, fica à nossa beira.
É bom ter a esperança como companheira.

António Couto


O PÃO VERDADEIRO É A MINHA VIDA

Agosto 12, 2012

1 Continuamos, neste Domingo XIX do Tempo Comum, a revisitar o chão textual e a saborear o pão espiritual do grande Evangelho de João 6. Hoje temos a graça de escutar a secção de João 6,41-51. Importa, desde já, lembrar o leitor que esta secção se enquadra na quinta Parte deste grande Capítulo, que se estende pelos versículos 25-59 (ver atrás, Domingo XVII). Podemos agora mostrar, para efeitos de clareza e melhor compreensão, como se apresenta estruturada esta quinta Parte (João 6,25-59), para nos ocuparmos depois, mais de perto, do texto deste Domingo (João 6,41-51).

 2. João 6,25-59 apresenta-se ritmado pelo esquema «pergunta-resposta». As perguntas saem da boca de uma «multidão» não identificada ou dos «judeus», a que se seguem as respostas de Jesus. Seguindo este ritmo, o texto de João 6,25-59 mostra-se organizado em cinco secções: João 6,25-29 (a), João 6,30-33 (b), João 6,34-40 (c), João 6,41-51 (d) e João 6,52-59 (e).

 3. O texto que nos ocupa neste Domingo forma, portanto, a quarta secção (João 6,41-51). O leitor atento começa logo por verificar que «a multidão» (ho óchlos) não identificada que até aqui seguia Jesus (João 6,2.5.22.24) se transforma subitamente, e sem qualquer explicação, em «os judeus» (hoi ioudaîoi) (João 6,41). É visível também que, com esta súbita transformação, cresce a hostilidade e a agressividade contra Jesus, aqui traduzida pela presença do verbo «murmurar» (goggýzô), que lembra o comportamento dos Israelitas no deserto (Êxodo 15,24; 16,2 e 7; 17,3). A «murmuração» (goggysmós) é uma espécie de rebelião interior, assente na insatisfação, desconfiança, inveja, ciúme e azedume contra as pessoas e contra Deus, neste caso, contra Jesus.

 4. E qual é a razão desta «murmuração» dos judeus contra Jesus? Radica no facto de estes judeus conhecerem bem o «histórico» de Jesus, o seu pai e a sua mãe, as suas raízes humanas bem humildes, e de não poderem conciliar estes dados com a sua origem divina (João 6,42-43). Note-se também que a «murmuração» consiste em falar de alguém, não directamente, tu a tu, mas indirectamente, em 3.ª pessoa: «Não é Este Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe?» (João 6,42).

 5. Os judeus dizem conhecer o pai de Jesus. Mas Jesus responde, apelando ao fim da murmuração (João 6,43), e apontando o seu verdadeiro Pai, que os judeus não conhecem (ironia joanina): «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o trouxer» (João 6,44). Além disso, Jesus põe fim ao falar de alguém, em 3.ª pessoa, abrindo um discurso novo, directo, pessoal, tu a tu: «Vir a Mim» subverte completamente o «falar de Mim». Mas este «Vir a Mim» é obra, não dos homens, mas de Deus: «Todos serão ensinados por Deus» (cf. Is 54,13), e conclui: «Todo aquele que escutou do Pai, e aprendeu, vem a Mim» (Jo 6,45). De pai a Pai. Jesus aponta o verdadeiro Pai, o único que nos leva a Jesus, o pão vivo descido do céu, que é a sua «carne», isto é, a sua forma de viver, a sua identidade. Claramente: só identificando-nos com Jesus, aderindo à sua forma de viver, fazendo nossa a sua vida, deixamos a vida eterna entrar em nós.

 6. Como os judeus, Elias (1 Reis 19,4-8) foge de Deus e do mundo e de si mesmo. Segundo Elias, Deus não age como deveria agir, o mundo está todo pervertido: já não faz sentido viver. Porque Deus não age como ele quer, porque o mundo não é como ele quer, Elias, desanimado, busca a morte, que ele vê como a única saída para a sua vida sem sentido. Tudo somado, Elias não é mesmo melhor do que os seus pais, do tempo do Êxodo, e, tal como eles, também murmura, falando mal de Deus e do mundo (dos outros).

 7. Mas Deus, o verdadeiro Deus, vai conduzir Elias ao caminho certo. Não o deixa morrer e vai dar-lhe lições de vida verdadeira. Na linha do que bem faz hoje Paulo para nós na Carta aos Efésios (4,30-5,2): «Nada de azedumes, irritação, cólera, insultos, maledicências, maldade» (Efésios 4,31). Em vez disso, «imitadores de Deus, como filhos amados» (Efésios 5,1).

 António Couto


SENHOR, DÁ-NOS SEMPRE DO TEU PÃO

Agosto 4, 2012

 

1. Continuamos, neste Domingo XVIII do Tempo Comum, a revisitar a página Evangélica de João 6,24-35. Depois do episódio do CONDIVISÃO dos pães, Jesus afastou-se sozinho para o monte (João 6,15), e os seus discípulos entraram na Barca e atravessaram o Mar da Galileia, na direcção de Cafarnaum (João 6,16-17). Em pleno Mar, foram apanhados pelo escuro, por um vento grande e pelo medo (João 6,17-20). Na verdade, iam sós, pois Jesus ainda não tinha vindo ter com eles. Mas vem, e com ele a calma e a serenidade, e logo encontram rumo para terra (João 6,21). Definitivamente: os discípulos de Jesus não podem andar sozinhos: invade-os a noite, a tormenta, o medo.

 2. Com o afastamento de Jesus, também a multidão ficou sozinha, mas leva mais tempo até se aperceber da sua solidão e da ausência de Jesus. O escuro não os preocupa. Passam a noite a dormir descansadamente. Só no dia seguinte se apercebem da falta de Jesus, da falta que Jesus lhes faz, e vão à procura d’Ele (João 6,22-24). Encontram-no, e manifestam a confusão neles instalada, perguntando: «Rabbî, quando vieste para aqui?» (João 6,25).

 3. Sem contemplações e com palavras duríssimas, Jesus desvenda logo a sua sonolência: «Em verdade, em verdade, vos digo: “Vós procurais-me, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e enchestes a barriga como animais (chortázô)”» (João 6,26). A comparação é forte e de denso sabor profético. O verbo usado é chortázô, derivado de chórtos, que significa «erva seca», «feno», «palha». No dizer de Jesus, aquela multidão comeu como também os animais comem. E, no fim, deitam-se a dormir. Até ao dia seguinte. A comida dos animais também é dom de Deus, mas eles não se apercebem, nem agradecem. Do mesmo modo, a multidão come e dorme. Não vê «sinais». O alimento recebido não dá que pensar e que rezar. Não se apercebe que o alimento é dom de Deus, remetendo, portanto, para Deus.

 4. E tão-pouco entendem que está ali o verdadeiro pão da vida (João 6,35). Não vêem nem ouvem Jesus, e o sentido novo que traz para a vida das pessoas. Limitam-se a contar a história antiga do maná que os seus pais comeram no deserto. Como quem diz: «antigamente é que era!».

 5. E esse maná antigo era, afinal, bem pouca coisa. Mas foi «visto» como sinal da providência de Deus em pleno deserto, como ensina a lição de hoje do Livro do Êxodo 16. Trata-se do maná lecanora, que se encontra desde o Irão até ao Norte de África, portanto também no norte da Península sinaítica, que é granuloso e aquado, do tamanho da semente do coentro [= cerca de 5 mm de diâmetro], de cor branca, e tem sabor a mel (Ex 16,31). Trata-se, na verdade, da secreção produzida pelo tamarisco, chamado tamarix gallica ou tamarix-mannifera, após a picada de um insecto, o coccus manniparus, ou de dois, a trabutina-mannipara e o naiacoccus serpentinus.

 6. É bem pouca coisa. Como os cinco pães e os dois peixinhos. Mas, quando se vê como um dom de Deus, essa pouca coisa é tanto! Eis como admiravelmente o descreve o Livro da Sabedoria: «nutriste o teu povo com um alimento de anjos,/ DESTE-lhe o PÃO do CÉU,/ com mil sabores:/ manifestava a tua DOÇURA (glykýtês).// Assim os teus FILHOS QUERIDOS aprenderam, Senhor,/ que NÃO É A PRODUÇÃO DE FRUTOS que alimenta os homens,/ mas a tua palavra que a todos sustenta» (Sabedoria 16,20-21.26).

 7. Jesus é a Palavra Viva o Pão da Vida, que, no meio de nós, manifesta a Doçura ou a Glicose de Deus. É à imagem deste Jesus que devemos renovar a nossa inteligência, compreensão e sentido da vida. É d’Ele que nos devemos revestir (Efésios 4,17-24).

 8. Sim, Ele está no meio de nós, mas não é nosso. Não é um sistema de produção ou de abastecimento. Ele é o Amor, a Alegria, Ele é o Céu e o Pão descido do Céu à nossa terra, para nos fazer viver felizes e elevar à sua condição de Filho. Está no meio de nós, mas não o podemos reter ou possuir. Ensina-nos bem Abraham Joshua Heschel que um dom é como um vaso cheio de afecto, que se quebra logo que o recebedor o comece a considerar como seu. Senhor Jesus, dá-nos sempre desse pão!

 António Couto