TANTOS SINAIS!

Março 30, 2013

Este é o Dia que o Senhor fez! Aleluia!

1. «Esta é a Obra do Senhor!», assim gritava com «voz forte» (grito de Vitória e de Revelação) Jesus na Cruz, deci­frando a Cruz, recitando o Salmo 22 todo (entenda‑se a meto­nímia de Mateus 27,46 e Marcos 15,34, citando apenas o início). Par­ticularmente ao longo da Semana Santa, dita «Grande» ou «dos Mistérios» pela Igreja do Oriente, Deus expôs (proétheto) diante dos nossos olhos atónitos – e logo a partir do Domingo de Ramos – o Rei Vitorioso no seu Trono de Graça e de Glória, que é a Cruz (veja‑se aqui demoradamente Romanos 3,24‑25), tomando posse da sua Igreja‑Esposa para o efeito redimida na «água e no sangue» (João 19,34; Efésios 5,25‑27), isto é, no Espírito Santo, conforme ensina Jesus com «voz forte» (!) no grande texto de João 7,37-39. Para aqui apontava também a «caminhada» quaresmal, a qual – vê‑se agora claramente – só daqui podia afinal ter partido. É este «o Mistério Grande» (Efésios 5,32) que nos foi dado a conhecer por Deus (Romanos 16,25‑26; 1 Coríntios 2,7‑10; Efésios 3,3‑11; Colossenses 1,26‑27). E só Deus pode dar tanto a conhecer (veja‑se agora o texto espantoso de Efésios 3,14‑21). É quanto Deus operou na Cruz! Por isso, exultamos e nos alegramos (com a Chará, a alegria grande da Páscoa), pois «este é o Dia que o Senhor fez» (Salmo 118,24) e em que o Senhor nos fez! É o «Primeiro Dia» (Mateus 28,1; Marcos 16,2 e 9; Lucas 24,1; João 20,1 e 19; Actos 20,7; 1 Coríntios 16,2), e tal permanecerá para sempre (!), o «Dia do Senhor, o Dia Grande» (Actos 2,20; Apocalipse 1,10), o Domingo, todos os Domingos, o Ano Litúrgico todo, o Ano da Graça do Senhor, em que a Igreja‑Esposa, redi­mida, santificada, bela (apresentada no Apocalipse com voz forte), celebra jubilosamente o seu Senhor, à volta do al­tar, do ambão, do baptistério: tudo «sinais» do túmulo aberto do Senhor Ressuscitado, donde emerge continuamente a mensagem da Ressurreição. Aleluia!

 2. O Domingo de Páscoa na Ressurreição do Senhor oferece-nos o grande texto de João 20,1-10, com a descoberta do túmulo aberto, mas não vazio! Túmulo aberto: a pedra muito grande (Marcos 16,4) do poder da morte tinha sido retirada, e o Anjo do Senhor sentou-se sobre ela (Mateus 28,2), impressionante imagem de soberania e vitória! Mas não vazio: está, na verdade, cheio de sinais, que é preciso ler com atenção: um jovem sentado à direita com uma túnica branca (Marcos 16,4), dois homens com vestes fulgurantes (Lucas 24,4), as faixas de linho no chão e o sudário enrolado noutro lugar (João 20,6-7). É importante ler os sinais e ouvir as mensagens! Se o túmulo estivesse vazio, como vulgarmente e inadvertidamente dizemos, estávamos perante uma ausência cega e muda. Na verdade, os sinais e as mensagens mostram uma presença nova que somos convidados a descobrir.

 3. O texto imenso de João 20,1-10 coloca-nos ainda diante dos olhos o início de diferentes percursos por parte de diferentes figuras face aos sinais encontrados ou ainda não, lidos ou ainda não:

 4. A Madalena vai de manhã cedo, ainda escuro, ao túmulo, e vê, com um olhar normal (verbo grego blépô) que até causa aflição a pedra retirada (êrménos) para sempre e por Deus (João 20,1), tal é o significado imposto por êrménos, particípio perfeito passivo de aírô. De facto, até dói e aflige que se veja o inefável como quem vê uma coisa qualquer, cegos como estamos tantas vezes pelos nossos preconceitos! Esta pedra para sempre retirada por Deus reclama e estabelece contraponto com a pedra por algum tempo retirada (aoristo de aírô) pelos homens do túmulo de Lázaro (João 11,39 e 41). Cega pelos seus preconceitos, a Madalena falha a visão do inefável, e corre logo, equivocada, a levar uma falsa notícia: «Retiraram (aoristo de aírô) o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram» (João 20,2). Mas o leitor atento e competente do IV Evangelho não estranha esta cegueira da Madalena. É que o narrador informa-nos que ela anda ainda no escuro (João 20,1), e, no IV Evangelho, quem anda na noite e no escuro, anda perdido na incompreensão e na cegueira, e nada entende ou dá bom resultado. A oposição luz – trevas atravessa de lés a lés o inteiro texto do IV Evangelho. A Luz verdadeira que vem a este mundo para iluminar todos os homens é Jesus (João 1,9). Sem esta Luz que é Jesus, andamos às escuras, na noite, na cegueira, na dor, no fracasso, na incompreensão. É assim, narrativamente – e, portanto, exemplarmente, para nós, leitores –, que somos levados a constatar como Nicodemos, que anda de noite (João 3,2) e nada entende, como os discípulos, que nada pescam de noite (João 21,3) e no meio do escuro andam perdidos (João 6,17-18), como o homem da noite na noite perdido, que é Judas (João 13,30; 18,3), enfim, como Pedro, perdido na noite e no meio dos guardas (João 18,17-18).

 5. A notícia levada pela Madalena põe em movimento Simão Pedro e o «discípulo amado». Anote‑se a progressão e repare-se atentamente nos verbos utilizados: 1) Maria Madale­na vai ao túmulo, e vê (blépô) a pedra (da morte) retirada. 2) O outro discípulo, «o discípulo amado», corria juntamente com Pedro, mas chegou primeiro (!), inclina-se e vê (blépô) as faixas de linho no chão. 3) Pedro, que corria juntamente com «o discípulo amado», mas SEGUINDO-O e chegando depois… Na verdade, ainda em João 18,15, os dois SEGUIAM Jesus, que é a correcta postura do discípulo. Pedro, porém, não SEGUIU Jesus até ao fim: ficou ali estacionado no pátio do Sumo Sacerdote! Mais do que isso e pior do que isso, em vez de estar com Jesus, Pedro ficou com os guardas, a aquecer-se com os guardas! (João 18,18). Pedro, portanto, não fez o curso ou o percurso de discípulo de Jesus até ao fim! Deixou por fazer umas quantas unidades curriculares. É por isso que agora tem de SEGUIR alguém que tenha SEGUIDO Jesus até ao fim. É por isso, e só por isso – nada tem a ver com idades (Pedro mais idoso, o «discípulo amado» mais jovem!) – que Pedro tem agora de SEGUIR o «discípulo amado», chegando naturalmente ao túmulo atrás dele. Note-se ainda que, não obstante um ir à frente e o outro atrás, correm os dois juntos. É aquilo que ainda hoje vemos na catequese e na mistagogia cristãs: corremos sempre juntos, mas alguém vai à frente, para ensinar o caminho aos outros! Belíssima comunhão em corrida!

 6. Pedro, que corria juntamente com o «discípulo amado», mas SEGUINDO-O, entra no túmulo que o «discípulo amado» cuidadosamente sinaliza e lhe aponta (ele é o grande sinalizador de Jesus: veja-se João 13,24 e 21,7), e vê (theôréô: um ver que dá que pensar e que abre para a fé: cf. João 2,23; 4,19; 6,2.19.40.62) as faixas de linho no chão e o sudário que cobrira o Rosto de Jesus, à parte, dobrado cuidadosamente, como «sinal» do Corpo ausente do Ressuscitado! Conclusão: o corpo de Jesus não foi roubado, como supôs a Madalena equivocada! Os ladrões não costumam deixar a casa roubada tão em ordem! Por isso, Pedro vê com o olhar de quem fica a pensar no que se terá passado… Talvez seja coisa de Deus… Com a indica­ção preciosa de que o véu foi cuidadosamente retirado do seu Rosto, a Revelação convida agora a contemplar o Rosto divino no Rosto humano do Ressuscitado: vendo‑o a Ele, vê‑se o Pai (cf. João 14,9).

 7. «O discípulo amado» entrou e viu (ideîn, de ideia e identidade) e acreditou (v. 8). É o olhar de quem vê o inefável, verdadeiro clímax do relato: anote‑se a passagem do verbo ver do presente para o aoristo, e de fora para dentro: «o discípulo amado» viu na história a identidade dos «sinais»: toda a Economia divina realizada! O relato evangélico é sóbrio, mas rico e denso. Fiel a esta intensa sobriedade, a arte cristã nunca se atreveu a representar a ressurreição antes dos séculos X-XI. É tal o fulgor da Luz deste mistério, que ficará sempre no domínio do inefável, que simultaneamente ilumina e esconde.

8. Os primeiros cristãos rapidamente fizeram do Santo Sepulcro o seu primeiro e mais venerado lugar de culto, que o Imperador Adriano (117-135) soterrou e paganizou, estabelecendo ali cultos pagãos (no lugar da Ressurreição, colocou a estátua de Júpiter, e, no Calvário, pôs uma estátua de Vénus em mármore), com o intuito de desviar deles os cristãos. O mesmo fez em todos os lugares santos da Palestina. Todavia, Em 326, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, que aí terá descoberto a Cruz do Senhor, mandou demolir as construções pagãs, e vieram à luz outra vez os primitivos e venerados lugares cristãos, que foram então englobados num magnífico edifício Constantiniano, consagrado no dia 13 de Setembro do ano 335, e que era formado pela Anástasis, grandioso mausoléu que guardava no centro o Santo Sepulcro, o Triplo Pórtico, que abrigava o rochedo do Gólgota, e o Martyrium, que guardava o lugar da crucifixão e morte do Senhor. No dia imediatamente a seguir à dedicação da Basílica, 14 de Setembro desse ano 335, teve lugar e origem a veneração da Cruz de Cristo, hoje, Festa da Exaltação da Santa Cruz. Esta comemoração ganhou novo relevo quando, em 630, o imperador Eráclio derrotou os Persas, e as relíquias da Cruz foram trazidas processionalmente para Jerusalém. Esta bela Basílica Constantiniana foi danificada por diversas invasões e ocupações. A actual Basílica do Santo Sepulcro, que os ortodoxos e os árabes chamam Anástasis e Qiyama, termos que em grego e árabe significam «Ressurreição», é fruto de cinquenta anos de trabalho dos Cruzados (1099-1149). Aqui estão guardadas as mais fundas raízes da nossa vida cristã, hoje quase uma espécie de «condomínio» de três Igrejas cristãs, infelizmente separadas entre si: a igreja greco-ortodoxa, a romano-católica e a armena. Aqui se sente ao vivo a mesma e comum fé pascal, mas também o drama da separação.

 9. Na Leitura que hoje escutamos do Livro dos Actos dos Apóstolos (10,34-43), os Apóstolos dão testemunho do que viram. Foi‑lhes dado ver exactamente para dar teste­munho. Viram e testemunham o Baptismo de Jesus, a execução da sua missão filial baptismal, a sua Morte na Cruz, a sua Ressurrei­ção Gloriosa, a sua Vinda Gloriosa. Mas os Apóstolos insistem que também os Profetas [= Antigo Testamento] dão testemunho d’Ele Ressuscitado, no qual se cumpre para nós a «remissão dos pecados», o Jubileu divino do Espírito Santo (v. 43). A base profética é imponente: Jeremias 31,34; Isaías 33,24; 53,5‑6; 61,1; Ezequiel 34,16; Daniel 9,24. Ver depois João 20,19‑23. «As Escrituras» (então o Antigo Testamento) apontam para o Ressuscitado! O Ressuscitado remete para «as Escrituras». Cumplicidade entre o Ressuscitado e «as Escrituras». Na verdade, o Ressuscitado cumpre e enche as «Escrituras». Não está depois delas ou no fim delas. Está no meio delas, fá-las transbordar, transborda delas.

 10. O Capítulo III da Carta aos Colossenses (3,1-4) trata a «vida nova» em Cristo, que é vida baptismal, operada pelo Espírito Santo que faz morrer e renascer na Fonte da Graça. Por isso, adverte solenemente Paulo: «procurai as coi­sas do alto» (v. 1), «pensai as coisas do alto» (v. 2), exorta­ção que ecoa ainda no Diálogo que antecede o Prefácio: «Corações ao alto!», a que respondemos com a alegria e a sabedoria do Espírito: «O nosso coração está em Deus!», enquanto ecoa ainda em cada coração habitado pelo Espírito o «Glória a Deus nas alturas!».

Páscoa é Páscoa. Simplesmente.
Sem I.V.A. nem adjectivo pascal.
 
Páscoa é lua cheia, inconsútil, inteira,
sementeira de luz na nossa eira.
 
Deixa-a viver, crescer, iluminar.
Afaga-lhe a voz e o olhar.
 
Não lhe metas pás, não lhe deites cal.
Não lhe faças mal.
Não são notas enlatadas, brasas apagadas.
É música nova, lume vivo e integral.
 
Não é paragem, mas passagem,
aragem a ferver e a gravar em ponto Cruz
a mensagem que arde no coração dos dois de Emaús.
A Páscoa é Jesus.

António Couto

Advertisement

CELEBRAÇÃO DA PAIXÃO DO SENHOR

Março 29, 2013
Quando nós olhamos para a Cruz,/
Quando a Cruz olha para nós
 
1. A Igreja Una e Santa, no coração Ungida e no corpo Abraçada pelo Amor de Deus, religiosamente escuta e carinhosamente recita nesta Sexta-Feira Santa a Paixão do seu Senhor. Que o mesmo é dizer que religiosamente abraça e carinhosamente beija a Cruz do seu Senhor.

 2. O coração deste Dia é, na verdade, caríssimos irmãos, a Cruz do Senhor e o Senhor da Cruz. Adoramos o Senhor da Cruz e nele fixamos o nosso olhar atónito e enternecido. Bem sabemos, na verdade, que é «nas suas chagas que está a cura para nós», de acordo com o fundo dizer registado no chamado quarto canto do Servo do Senhor, de Isaías 53,5, e na Primeira Carta de S. Pedro 2,24. Mas não é o Servo do Senhor, de Isaías, que o diz, nem é o Servo Jesus que o diz. A profecia atingiu o seu cume. O profeta já não profetiza, mas é por nós profetizado. Na verdade, olhando atentamente e ternamente aquele corpo chagado, somos nós que reconhecemos e dizemos que «naquelas chagas está a cura para nós». Sim, naquelas chagas, caríssimos irmãos, fica bem visível aos nossos olhos, aos olhos do nosso «coração que vê», o nosso ódio, a nossa raiva, a nossa malvadez, a nossa violência. Sim, meus caríssimos irmãos, este é o diagnóstico, que ao olhar, com amor, o Senhor da Cruz, serenamente fazemos de nós mesmos. Sim, meus caríssimos irmãos, aquelas chagas abertas revelam as doenças de que padecemos: ódios, invejas, ciúmes, ambições, malvadez, violência. Mas aquelas chagas abertas revelam-nos ainda o remédio que pode curar as nossas doenças acabadas de diagnosticar. É o amor maior e excessivo, subversivo, desfeito em perdão, com que aquele coração aberto e chagado e aqueles braços abertos e chagados, nos envolvem e nos absolvem, absorvendo e dissolvendo, inutilizando o nosso pecado. Por isso, caríssimos irmãos, escreve bem fundo S. Lucas quando filma toda a multidão a passar diante do Senhor da Cruz, batendo no peito, isto é, reconhecendo a sua doença, o seu pecado (Lucas 23,48).

 3. Coloco, irmãos, diante de vós, mas peço que graveis no vosso coração, o extraordinário resumo que um dia um velhinho simples e iluminado pelo Espírito fez da Palavra da Cruz: «Senhor Padre, disse o velhinho, hoje aprendi duas coisas! Sabe, no Domingo de Páscoa, a Cruz vai a minha casa, no compasso; e acrescentou com os olhos a brilhar: então, quando eu olhar para a Cruz, vou ver lá os meus pecados; e quando a Cruz olhar para mim, vou ver lá o abraço carinhoso de Deus, que me ama e perdoa os meus pecados!».

 4. O compasso da Páscoa não é aquele instrumento escolar, que serve para traçar circunferências. Não é tão-pouco o compasso musical, o ritmo que se imprime à música. É a «comparticipação nos sofrimentos de Cristo», o cum passo Christo, sofrer com, sofrer com Cristo, «para ver se alcanço a ressurreição de entre os mortos», como diz S. Paulo na Carta aos Filipenses (3,10-11). E o abraço carinhoso de Deus, de que fala o velhinho, é o palio, o pallium latino, que nos protege sempre. Usamo-lo nas procissões, mas também nas horas mais dramáticas, quando precisamos de «cuidados paliativos»… Foi a este «pálio», a este manto, a este abraço carinhoso, a este humano e divino agasalho, que a medicina foi buscar o «paliativo». Saiba-o ou não. Porque não o devia nunca esquecer. Com quanto carinho devemos saber envolver os sofredores, os pobres, as viúvas e os órfãos, os deserdados, os perseguidos e os moribundos…

 5. Adorar a Cruz do Senhor, o Senhor da Cruz, é o afazer mais belo e intenso deste Dia de Sexta-Feira Santa. Assim têm feito os cristãos desde o princípio. Mas a paganização romana dos lugares santos, nos séculos II e III, afastou os cristãos da Cruz do Senhor. É, portanto, preciso lembrar aquele dia 13 de Setembro do longínquo ano 326, em que Santa Helena encontrou a Cruz do Senhor, procedendo de imediato à construção da Basílica da Anástasis, que foi dedicada no dia 13 de Setembro do ano 335, sendo a Cruz do Senhor nela exposta à adoração dos fiéis no dia seguinte, 14 de Setembro de 335. A peregrina Egéria, da Galiza, que em finais do século IV, visitou demoradamente os Lugares Santos, diz-nos que a Cruz do Senhor era então exposta à adoração dos fiéis duas vezes no ano: em 14 de Setembro [hoje Dia da Exaltação da Santa Cruz] e em Sexta-Feira Santa. Egéria descreve assim a adoração de Sexta-Feira Santa: «desde as oito horas da manhã até ao meio-dia, todos passavam, um por um: inclinam-se, tocam a Cruz com a fronte, e depois com os olhos a Cruz e a inscrição, a seguir beijam a Cruz e saem, sem que ninguém toque com a mão na Cruz» (Itinerarium, 36,5; 37,3).

 6. Irmãos caríssimos, bem sabemos as perseguições e os sofrimentos por que passam hoje os cristãos, nossos irmãos, da Terra Santa e das Igrejas do Médio Oriente. Mas bem sabemos também do seu testemunho heróico. Verdadeiramente, eles abraçam com amor a Cruz do Senhor, e o Senhor da Cruz abraça-os a eles com amor. É lá que passa o verdadeiro Compasso. Sofrer com Cristo, para com Ele chegar à glória da Ressurreição.

 7. A Igreja Una e Santa, espalhada pelo mundo inteiro, portanto também a Igreja da nossa Diocese de Lamego, é em cada Sexta-Feira Santa convidada a ajudar esses nossos irmãos perseguidos e a contribuir para a manutenção dos Lugares Santos da Terra Santa, berço da nossa fé. Enquanto adoramos a Cruz do Senhor, deixemos a nossa oferta aos pés da Cruz, sinal da nossa caridade e do nosso amor pelos Lugares Santos.

 Que o Senhor da Cruz faça resplandecer sobre nós o seu olhar bondoso e maternal. Amen.

 António Couto


EXALANDO O PERFUME DE CRISTO, SEM NUNCA PERDER O “CHEIRO DAS OVELHAS”

Março 28, 2013
Exalando o bom perfume de Cristo (2 Coríntios 2,14-15),
sem nunca perder o «cheiro das ovelhas» (Papa Francisco)

1. «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me UNGIU,/ a EVANGELIZAR os pobres me ENVIOU,/ a ANUNCIAR aos prisioneiros a libertação e aos cegos a vista,/ […] a ANUNCIAR o ano da graça do Senhor» (Lucas 4,18-19; cf. Isaías 61,1-2). Esta é a lição Hoje duas vezes ouvida, primeiro em Isaías, depois no Evangelho de S. Lucas. Em Isaías, o profeta diz esta lição de esperança aos pobres regressados do Exílio da Babilónia a uma Jerusalém arruinada. No Evangelho de S. Lucas, Jesus assume sobre si esta missão de esperança. Levantou-se, recebeu o rolo, encontrou a passagem de Isaías, leu, entregou o rolo, sentou-se. Diz-nos o narrador que estavam fixos nele os olhos de todos (Lucas 4,20). E Jesus fez então a mais breve homilia conhecida: «HOJE foi cumprida esta Escritura nos vossos ouvidos» (Lucas 4,21).

 2. Comenta assim o nosso Papa Francisco: «Jesus “pesca” na Escritura como na vida. Assim como encontra a passagem certa na Escritura, também na vida quotidiana o seu olhar encontra sempre o necessitado, os seus ouvidos ouvem a voz de quem chama por ele, o seu zelo apostólico vai até ao ponto de sentir, com a orla do seu manto, as dores do povo a quem foi enviado (Mateus 9,20-22; Marcos 5,25-34; Lucas 8,43-48). Este fervor missionário de Jesus serve-nos sempre de consolo e impulso para o nosso trabalho pastoral». E continua o Papa Francisco: «Ano após ano, os que fomos UNGIDOS, SELADOS e ENVIADOS, voltamos a esta cena para renovar esta UNÇÃO que nos leva a tomar consciência das fragilidades das pessoas, nos impele a sair de nós mesmos, e nos envia a todas as periferias existenciais para sarar, libertar, perdoar e anunciar a Boa Nova».

 3. Continuo a seguir de perto palavras do Papa Francisco: A nossa identidade sacerdotal assenta na UNÇÃO (chrísma) recebida de Deus e no SELO (sphragís) com que fomos marcados por Deus, em consonância com a palavra de S. Paulo: «Foi Deus que nos UNGIU, e que também nos marcou com o seu SELO» (2 Coríntios 1,21-22). Esta nossa identidade sacerdotal, por Deus UNGIDA e SELADA, não é negociável. Mas tão-pouco é para conservar enlatada ou enterrada ou simplesmente poupada, ao abrigo de qualquer risco, como fez no Evangelho o homem do talento dado por Deus (Mateus 25,18.24-27). Exactamente o contrário: a Igreja vela pela integridade do Dom, para o poder dar e comunicar inteiro a todas as pessoas de geração em geração. A nossa identidade sacerdotal não somos nós centrados em nós e voltados para nós; é, antes, uma identidade de amor que nos empurra para fora de nós, para a periferia, identidade UNGIDA, à maneira de Cristo, o Ungido, identidade ENVIADA, identidade em MISSÃO.

 4. O SELO é a assinatura de Deus, posta nas obras do Filho (João 6,27), e também no nosso coração sacerdotal e nas nossas mãos sacerdotais que acariciam e abençoam em seu Nome. O certificado de garantia do nosso coração sacerdotal que tudo deve pensar, e das nossas mãos sacerdotais que tudo devem fazer, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, são os corações UNGIDOS e SELADOS dos filhos e irmãos que Deus nos confiou, e a quem fomos enviados em missão para os UNGIR e marcar com o SELO de Deus. Diz bem São Paulo aos Coríntios: «Vós sois o SELO do meu apostolado no Senhor» (1 Coríntios 9,2).

 5. UNGIDOS para EVANGELIZAR. Neste sentido, o Papa Paulo VI traçou bem e fundo o perfil Evangelizador da Igreja: «EVANGELIZAR é a graça e a vocação própria da Igreja, a sua identidade mais profunda. A Igreja existe para EVANGELIZAR» (Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, n.º 14). EVANGELIZAR supõe zelo apostólico, lembra-nos o Papa Francisco, numa bela e intensa exortação proferida, sem papel, numa das Congregações Gerais havidas entre os Cardeais no pré-Conclave. No final da sessão, o Cardeal Jaime Ortega, Arcebispo de Havana, perguntou ao então Cardeal Bergoglio se tinha a sua intervenção escrita, ao que ele respondeu que não. Todavia, durante a noite, pôs numa folha aquilo de que se lembrava, e, na manhã seguinte, entregou-a com toda a gentileza ao Cardeal Jaime Ortega. Perguntou-lhe este se a podia divulgar, ao que o Cardeal Bergoglio respondeu que sim. Voltou a perguntar-lhe já depois da sua eleição como Papa, e ele voltou a responder afirmativamente. Grande parte do que agora direi é tirado dessa forte mensagem que anda à volta da Evangelização. O manuscrito foi publicado ontem, dia 27, no Avvenire.

 6. Evangelizar supõe, na Igreja, a ousadia de esta sair de si mesma. A Igreja é chamada a sair de si mesma em direcção às periferias, não apenas geográficas, mas também existenciais: as do mistério do pecado, da dor, da injustiça, da ignorância e desafeição religiosa, do pensamento, de toda a espécie de miséria. Quando a Igreja não sai de si mesma para evangelizar, dobra-se sobre si mesma, e adoece à maneira da mulher curvada do Evangelho (Lucas 13,10-17). Os males que, com o andar do tempo, afectam as instituições religiosas têm a sua raiz no centrar-se sobre si mesmas, uma espécie de narcisismo teológico e vital. O Livro do Apocalipse põe Jesus a dizer assim: «Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e me abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo» (Apocalipse 3,20). É claro que Jesus bate à porta do lado de fora para entrar. Sou, todavia, levado a pensar nas vezes em que Jesus bate do lado de dentro, para que o deixemos sair. O que acontece é que, quando a Igreja tem em si mesma a sua referência, quer ter Jesus dentro de si, e não o deixa sair.

 7. Quando a Igreja se vê a si mesma como auto-referência, pensa, sem sequer disso se aperceber, que tem luz própria. Deixa de ser o mysterium lunae, e dá lugar a esse mal tão grave que é a mundanidade espiritual, que é, como refere Henri de Lubac na Méditation sur l’Église (p. 327), o pior mal que pode sobrevir à Igreja. Chama-se a isso viver para «receber glória uns dos outros» (João 5,44). Simplificando, podemos ver duas imagens de Igreja: a Igreja evangelizadora, que sai de si, que é a Igreja da Dei Verbum, que ouve religiosamente e proclama confiadamente a Palavra de Deus (DV, n.º 1), e a Igreja mundana, que vive em si, de si e para si. Estas anotações devem dar luz às possíveis mudanças e reformas a levar por diante para a salvação das almas.

 8. Pensando no próximo Papa, tem de ser um homem que, a partir da contemplação de Jesus Cristo e da adoração a Jesus Cristo, ajude a Igreja a sair de si mesma para as periferias existenciais, que ajude a Igreja a ser a mãe fecunda que vive «a doce e reconfortante alegria de Evangelizar» (Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, n.º 80).

 9. Caríssimos sacerdotes, caríssimos fiéis leigos, todos UNGIDOS no coração e ENVIADOS para EVANGELIZAR, não esqueçamos a nossa identidade discipular e missionária. O óleo do Crisma que vamos consagrar, e os óleos dos enfermos e dos catecúmenos que vamos benzer, constituem, no meio de nós, um autêntico manancial ou programa de vida. Igual ao de Jesus Cristo. E Jesus Cristo, «Aquele que nos ama», conforme o belo dizer do Apocalipse (1,5), bate Hoje insistentemente à nossa porta. Não tanto para entrar, mas para sair. Vamos com Ele, como Ele. Há tantos irmãos à espera d’Ele… e à nossa espera!

 Que o Senhor, nosso Bom e Belo Pastor, UNJA a nossa cabeça e nos guie sempre para boas e belas pastagens.

 António Couto


INTIMIDADE E TRAIÇÃO!

Março 23, 2013

 

1. Baptizado com o Espírito Santo no Jordão, confirmado com o Espírito Santo no Tabor, Jesus realizou a sua missão filial baptismal anunciando o Evangelho do Reino de Deus e fazendo as suas «obras». A sua «viagem» chega agora ao fim, na Judeia, em Jerusalém, onde o seu Baptismo deve (plano divino) ser consumado (ainda Lc 12,49-50) na sua Morte Gloriosa: única Fonte do Espírito Santo para nós (sempre Act 2,32-33; Jo 19,30 e 34; 7,38-39). A missão filial baptismal do Filho de Deus finalmente consumada! É que fomos, de facto, baptizados na sua Morte (Rm 6,3-4), e, com Ele, fomos «com-sepultados», «com-ressuscitadoss», «com-vivificados» e «com-sentados» na Glória! (Ef 2,5-6; Cl 2,12-13: tudo verbos cunhados por Paulo e postos em aoristo (passado) histórico!). Formamos, por isso, «a Igreja que Ele amou» (Ef 2,25). A este amor de Cristo pela Igreja chama Paulo «o mistério grande» (Ef 5,32). Nós, a Igreja do amor de Cristo, somos, portanto, a Esposa bela, a nova Jerusalém (Ap 19,7-9; 21,2 e 9-10) que, juntamente com o Espírito, diz ao Senhor Jesus: Vem! (Ap 22,17).

 2. É esta Igreja bela, porque incondicionalmente amada, que acolhe hoje, Domingo de Ramos na Paixão do Senhor, com o coração em festa, o seu Senhor (Lucas 19,28-40), gritando jubilosamente: «Bendito o que vem em nome do senhor!».

 3. Acolhe-o jubilosamente, para depois discipularmente o seguir nos seus passos decisivos, de que aqui salientamos apenas alguns momentos. A partir do cenário apresentado no ponto 5., todos os dados são exclusivos de Lucas.

 4. O cenário da Ceia Primeira (não última!) mostra, caso único, Jesus na intimidade da mesa com os seus discípulos (Lucas 22,14-38). E é neste cenário de intimidade que o texto nos faz ver melhor as nossas traições: o anúncio da traição de Judas (Lucas 22,21-23, da tripla negação de Pedro (Lucas 22,31-34), a discussão sobre qual de nós é o maior (Lc 22,24-27).

 5. O cenário do Monte das Oliveiras (Lucas 22,39-46) abre e fecha com o importante dizer de Jesus que devemos conservar no coração: «ORAI para que não entreis na tentação» (Lucas 22,39 e 46). No meio do cenário, entre estas duas importantes advertências de Jesus, o texto diz que Jesus ORAVA de joelhos (Lucas 22,41) e que depois ORAVA com mais insistência ainda (Lucas 22,44). Em contraponto, os discípulos dormiam! (Lucas 22,45).

 6. O cenário seguinte mostra-nos a Prisão e o Processo de Jesus (Lucas 22,47-23,25), em que apenas salientamos dois momentos: Judas, que entrega Jesus com um beijo (Lucas 22,47), ouvindo de Jesus estas palavras que ainda hoje ecoam nos nossos ouvidos: «Judas, com um beijo entregas o Filho do Homem?» (Lucas 22,48). É outra vez a traição na intimidade! O segundo momento  é aquele olhar fixo de Jesus em Pedro, que o faz sair dali para chorar amargamente (Lucas 22,60-62).

 7. O caminho do Calvário é o cenário que aparece de seguida (Lucas 23,26-32). Vale a pena destacar dois momentos: o primeiro é para Simão de Cirene, que carrega a cruz «atrás de» Jesus (Lucas 23,26): com a sua cruz, «atrás de» Jesus, é a atitude do discípulo! (ver Lucas 9,23). O segundo é para as mulheres que choram. Merecem que Jesus olhe para elas e fale para elas: «Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai por vós e pelos vossos filhos!» (Lucas 23,27-28).

 8. Segue-se o cenário da Cruz (Lucas 23,33-49). Três notas: primeira: Lucas coloca ao lado de Jesus dois malfeitores. Mas um deles (o chamado «bom ladrão»: só em Lucas!) reconhece o seu erro, e olha para Jesus implorando graça: «Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu REINO» (Lucas 23,42). Jesus responde assim: «Hoje estarás COMIGO no Paraíso» (Lucas 23,43). Evoca, em contraluz, o COMIGO de Jesus com os seus discípulos, e o REINO para eles preparado! (Lucas 22,28-29). Segunda: a oração do Salmo 31,6, posta na boca de Jesus como sua última palavra, oração exclusiva deste Evangelho: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lucas 23,46). Confiança radical sempre. Terceira: a importante anotação de que os seus amigos e as mulheres que o SEGUIAM desde a Galileia o acompanhavam à distância, VENDO BEM todas estas coisas (Lucas 23,49). Atitude discipular. Como Maria, que conservava e compunha todos aqueles factos no seu coração (Lucas 2,19 e 51). Mas também o povo estava lá olhando a Cruz (Lucas 23,35) e meditando os acontecimentos da Cruz e batendo no peito (Lucas 23,48).

 9. O cenário do sepultamento de Jesus (Lucas 23,50-56). Salta à vista que Jesus é depositado num sepulcro novo, onde ainda ninguém tinha sido sepultado (Lucas 23,53). Mostra-se assim que Jesus é o Rei Messiânico esperado: o Rei é o primeiro em tudo. E continua na primeira linha o OLHAR ATENTO das mulheres (Lucas 23,55) e os perfumes que preparam (Lucas 23,56)  e que abrem já para a página nova da Ressurreição. Primeiro em tudo! Primogénito de muitos irmãos! (Romanos 8,29).

António Couto


DEUS NÃO TEM PLANOS, TEM SURPRESAS!

Março 16, 2013

 

1. A «caminhada« quaresmal aproxima-se da sua meta e do seu verdadeiro ponto de partida: a Cruz Gloriosa onde resplandece para sempre o Rosto do imenso, indizível, surpreendente amor de Deus. Nesta altura do percurso (supõe-se que encetámos uma subida espiritual: entenda-se no Espírito Santo e com o Espírito Santo), baptizados e catecúmenos devem estar já a ser Iluminados por essa luz, a ponto de se desfazerem das «obras das trevas» e de abraçarem as «obras da Luz», como verdadeiros discípulos que seguem o Mestre até ao fim, que é também o princípio, a Fonte da Vida verdadeira donde jorra o Espírito Santo (sempre Actos 2,32-33; João 19,30 e 34; 7,37-39). Os catecúmenos têm neste Domingo V da Quaresma os seus terceiros «escrutínios»: última «chamada» para a Liberdade antes da Noite Pascal Baptismal.

 2. Deus não tem planos, tem surpresas. É, portanto, sempre desmedido e surpreendente quanto vem de Deus. Brota do excesso de Deus, que supera em muito as nossas necessidades e capacidades. Aí está, neste Domingo V da Quaresma, a imensa lição do Evangelho de João 8,1-11. Esta passagem parece uma incrustação no IV Evangelho, pois interrompe o discurso de Jesus durante a Festa das Tendas (7,1-8,59), não aparece nos manuscritos mais antigos e nos códices antigos mais importantes dos Evangelhos, nem nos Padres gregos. Omitem-na nos seus comentários Orígenes, João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia, Cirilo de Alexandria, Teófilo, Tertuliano, Cipriano, Hilário e Taciano. Os Padres latinos Ambrósio, Agostinho e Jerónimo conhecem-na noutro lugar. Alguns manuscritos situam esta perícope no Evangelho de João depois de 7,36, outros depois de 7,44, outros depois de 7,52, ou mesmo no final, depois de 21,25. Outros ainda introduzem-na no Evangelho de Lucas (depois de 21,38). Por outro lado, a perícope não tem o estilo joanino. Está, de facto, mais perto do estilo lucano.

 3. Fixemos a nossa atenção no movimento do texto. Jesus SENTA-SE como MESTRE, para ensinar, e SENTADO como MESTRE permanece na cena até ao fim. Apenas se inclina para o chão, e de novo se endireita, nunca deixando, porém, a posição de SENTADO. Portanto, permanecendo SENTADO, está sempre na cátedra a ensinar. Nele tudo é lição. São lição os seus gestos; são lição as suas palavras.

 4. Entram na cena os «impecáveis» do costume: os escribas e os fariseus. Desta vez não vêm sós. Trazem uma mulher apanhada em flagrante adultério. Eles conhecem a Lei de Moisés, que citam a propósito, para dizer que tais mulheres devem ser apedrejadas. Mas, roídos de malícia, querem saber o que, sobre este assunto preciso, tem a dizer o MESTRE Jesus. Só isto: permanecendo SENTADO como MESTRE, inclinou-se, e, COM O DEDO, escrevia no chão.

 5. Os escribas e fariseus tinham compreendido mal a Lei, citando só metade, pois a Lei diz que, em caso de adultério, morrerão os dois: o homem e a mulher (Levítico 20,10; Deuteronómio 22,22). Tão-pouco estavam a compreender a resposta do MESTRE Jesus ao parecer jurídico que lhe tinham pedido. E era clara a lição: na verdade, há apenas outra circunstância na Escritura Santa em que alguém escreve COMO O DEDO: as tábuas de pedra escritas pelo DEDO DE DEUS no Sinai (Êxodo 31,18; Deuteronómio 9,10). Claramente: o MESTRE que escrevia COM O DEDO era Deus! Conhecia a Lei, mas conhecia também os Profetas, pois ao ESCREVER NO CHÃO, está a ler Jeremias que diz que «os que se afastam de YHWH serão escritos no chão» (17,13). Jesus conhecia a Lei e os Profetas, isto é, a inteira Escritura Santa, e conhecia também os homens por dentro (João 2,24-25). Permanecendo SENTADO, endireitou-se e disse-lhes: «Aquele que estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra!». Inclinou-se novamente e continuava a escrever. Saíram todos, a começar pelos mais velhos, diz-nos o narrador, recorrendo com certeza outra vez a Jeremias 17,13, que diz ainda que «os que abandonam YHWH serão cobertos de vergonha». É esta vergonha que faz com que todos se vão embora, um após outro, a começar pelos mais velhos, os primeiros a sentir o peso da vergonha. Ontem como hoje: os mais novos chegam lá sempre depois.

 6. Ao comentar este episódio, Santo Agostinho diz luminosamente que só ficaram dois em cena: a miserável e a misericórdia! Os escribas e fariseus prenderam e acusaram a mulher, mas foram eles que se sentiram acusados, desvendados, lidos, descobertos no esconderijo do seu próprio pecado! Nem sequer viram a mulher como uma pessoa: nunca falam com ela ou para ela; falam simplesmente dela, como se de um objecto se tratasse. É o MESTRE Jesus o primeiro na cena que fala para a mulher, e não a prende, mas liberta-a, colocando-a no caminho novo da liberdade: «Vai e não tornes a pecar», diz-lhe Jesus.

Aproximou-se um homem habituado
ao uso inveterado do silêncio
o seu olhar varrendo toda a fraude
das palavras
Aproximou-se firme e impoluto
Esquadrinhou as faces oxidadas
da mentira
Olhou depois o chão como quem abre
um sepulcro
e lentamente desenhou
o puro rosto da verdade
sobre a areia

 7. O anónimo profeta do exílio, o chamado «Segundo Isaías» (Isaías 40-55), põe hoje Deus a interpelar-nos assim directamente, como Jesus no Evangelho: «Eis que vou fazer uma coisa nova! Ela já desponta: não a compreendeis?» (Isaías 43,19). A nós compete entender a obra sempre nova e surpreendente de Deus, que ultrapassa sempre a medida do nosso coração e da nossa capacidade de compreensão! Pode o deserto florir, encher-se de água, e pode o mar encher-se de caminhos. Pode sempre a semente germinar antes do tempo, e a espiga amadurar antes do campo!

 8. Paulo pode bem ser hoje o modelo a seguir (Filipenses 3,8-14): esquecendo o que fica para trás, atira-se todo para a frente, para Cristo.

 Quando Jesus irrompe na vida de alguém,
interrompe a normalidade de um percurso,
e rompe essa vida em duas partes desiguais:
uma que fica para trás,
outra que se abre agora à nossa frente,
recta como uma seta directa a uma meta,
a um alvo, um objectivo intenso e claro,
tão intenso e claro que na vida de cada um
só pode haver um!

António Couto


QUANDO O DEUS DA MISERICÓRDIA SAI AO NOSSO ENCONTRO

Março 9, 2013

 

1. Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que dá a Vida verdadeira, baptizados e catecúmenos continuam a sua «caminhada» quaresmal: MEMÓRIA do baptismo [= execução do programa filial baptismal] para os baptizados, PREPARAÇÃO para o baptismo por parte dos catecúmenos (Sacrosanctum Concilium, 109), que têm neste Domingo IV da Quaresma os seus segundos «escrutínios»: segunda «chamada» para a Liberdade.

 2. O Evangelho deste Domingo IV da Quaresma (Lucas 15,1-32) é uma janela sublime e sempre aberta com vista directa para o coração de Deus, exposto, narrado, contado por Jesus. Mas antes de Jesus começar a contar Deus, o narrador prepara cuidadosamente o cenário, dizendo-nos que os PUBLICANOS e PECADORES se aproximavam de Jesus para o escutar, em claro contraponto com os ESCRIBAS e FARISEUS que estavam lá, não para o escutar, mas para criticar o facto de Jesus acolher os pecadores e comer com eles. Eles achavam que os pecadores eram merecedores de castigo severo e não de misericórdia, pois eram amplamente devedores a Deus, e não credores como os fariseus pensavam que eram. São visíveis, portanto, dois modos de ver, dois critérios: 1) o comportamento novo, misericordioso, inclusivo, por parte de Jesus, que acolhe e abraça os pecadores, até então marginalizados e hostilizados; 2) o comportamento impiedoso, rigorista e exclusivista para com os pecadores por parte da velha tradição religiosa dos escribas e fariseus.

 3. A estes últimos conta Jesus uma parábola, «ESTA PARÁBOLA» (taúten parabolên) (15,3), no singular. Sim, o texto diz expressamente «ESTA PARÁBOLA», o que quer dizer que tudo o que Jesus vai contar até ao final do Capítulo é uma só parábola, e não três, como vulgarmente se pensa, titula e diz. Sendo a parábola contada para os ESCRIBAS e FARISEUS, então é desse lado do auditório que nós, leitores ou ouvintes, nos devemos colocar. Se nos colocarmos, como é usual e a nossa simpatia reclama, do lado dos PECADORES, da OVELHA perdida e encontrada, da DRACMA perdida e encontrada, do FILHO perdido e encontrado, a parábola passa-nos ao lado.

 4. O primeiro quadro mostra-nos a OVELHA PERDIDA lá longe e por amor PROCURADA e ENCONTRADA, e que dá azo à ALEGRIA condividida com os amigos e vizinhos. E Jesus conclui que é assim no céu sempre que um PECADOR se converte. Ao fundo da cena estão noventa e nove JUSTOS que não precisam de conversão. Era o que pensavam os escribas e fariseus, e nós tantas vezes também!

 5. O segundo quadro mostra-nos a DRACMA PERDIDA em casa, num chão de terra e de basalto negro, e cuidadosamente PROCURADA e ENCONTRADA, com a luz para iluminar o escuro e a vassoura para fazer tilintar a moeda no chão de basalto, e que também dá azo à ALEGRIA condividida com as amigas e vizinhas. E também aqui Jesus conclui que é assim no céu sempre que um PECADOR se converte. Neste segundo quadro não se faz menção dos noventa e nove JUSTOS ao fundo da cena, que não precisam de conversão. Ora bem, quando na Bíblia dois retratos parecem iguais, a chave de compreensão está naquilo que neles é diferente. São, portanto, os noventa e nove JUSTOS, que também somos nós, que estamos em causa!

 6. O terceiro quadro, que é o que vai ser exposto neste Domingo, mostra-nos um PAI maravilhoso com dois filhos que parecem diferentes. Ora bem, quando na Bíblia dois retratos parecem diferentes, a chave de compreensão reside naquilo em que são iguais.

 7. Vejamos então: o filho mais novo faz ao seu PAI um estranho pedido: pede a parte da herança que lhe toca. Note-se bem que se trata de um pedido fatal. O PAI dá três coisas: o pão todos os dias, uma roupa nova pelas festas, mas há uma coisa que só dá uma vez na vida, e em circunstâncias fatais, de morte próxima: a herança! Ao pedir a herança, este filho como que mata o PAI e morre como filho! Em boa verdade, ele não quer mais ter PAI e não quer mais ser filho. Por isso, junta tudo, parte para longe e gasta tudo. Desce abaixo de porco, pois nem o que os porcos comem lhe é permitido comer. Decide então voltar para casa, e prepara um discurso com três pontos: 1) PAI, pequei contra o céu e contra ti; 2) não sou digno de ser chamado teu filho; 3) trata-me como um dos teus assalariados. Vê-se bem que não quer voltar mais a ser filho. Também não quer mais ter PAI. Quer ser um assalariado. Quer ter um patrão.

 8. Voltou. O PAI viu-o ao longe, as suas entranhas moveram-se de compaixão, correu ao encontro do filho, abraçou-o e beijou-o. É outra vez a surpresa a encher a cena. Quando nós regressamos a casa, entenda-se, a Deus, nunca encontramos um PAI distraído ou ausente, que mudou de residência, ou que responde de forma brusca e fria. Note-se bem que a iniciativa surpreendente é do PAI. O filho começa a debitar o discurso preparado em três pontos. Diz o primeiro. Diz o segundo. Não diz o terceiro, que era outra vez fatal, não porque o não quisesse dizer, mas porque o PAI o interrompe, dizendo para os criados: Depressa! Trazei o «primeiro vestido» e vesti-lho! Entenda-se que o «primeiro vestido» é o vestido de antes, isto é, o de filho! Sim, é este PAI surpreendente que transforma em filho este candidato a assalariado! Manda matar o vitelo gordo e prepara-se para fazer em casa um FESTA de arromba, com direito a banquete e orquestra! Note-se que, tal como Jesus, este PAI, que é Deus, acaba de acolher e abraçar um PECADOR e prepara-se para COMER com ele. Há ALEGRIA no céu.

 9. O filho mais velho estava no campo. Era, portanto, um dia de semana, de trabalho. Este PAI não escolhe fins-de-semana para fazer FESTA! E FESTA excessiva. Mandou matar o vitelo gordo! Trouxe uma orquestra musical para animar a FESTA! O filho mais velho, ao aproximar-se de casa, ouviu música e danças. Esta «música» diz-se em grego symphônía. Ora, symphônía é uma orquestra!

 10. Como tinha saído ao encontro do filho mais novo, o PAI sai agora também ao encontro do filho mais velho, para o instar a entrar para a FESTA, tal como o pastor que encontra a ovelha perdida e a mulher que encontra a dracma perdida convidaram os amigos e os vizinhos para a ALEGRIA. Mas este filho mais velho acusa o PAI de acolher um pecador e de se preparar para comer com ele. Exactamente o que faziam os ESCRIBAS e FARISEUS, que criticavam Jesus por acolher os pecadores e comer com eles. Este filho mostra-se, portanto, um puro FARISEU, que sempre cumpriu as ordens do PAI (patrão), achando-se credor e não devedor face ao seu PAI, face a Deus!

 11. Quando duas figuras parecem diferentes, é naquilo em que se assemelham que reside a chave de compreensão. O que assemelha estes dois filhos é que ambos se sentem assalariados (e não filhos) e ambos olham para o PAI como para um patrão. É também interessante notar que os dois filhos deste quadro falam ao PAI, ao seu PAI comum, como fazem os cristãos. Como fazemos nós. Mas em nenhum momento da história se falam um ao outro. Será que também neste ponto se parecem connosco? Sim, às vezes, nós também só sabemos falar por trás, entre raivas acumuladas e insultos.

 12. Todavia, o filho mais novo deixou-se mover pela compaixão do PAI. Estava MORTO como filho e VOLTOU a VIVER, estava PERDIDO lá longe e FOI ENCONTRADO! Tal como a ovelha PERDIDA e ENCONTRADA lá longe! Mas atenção que a dracma estava PERDIDA em casa! Sim, tanto nos podemos perder lá longe, no deserto, como nos podemos perder em casa! Podemos, na verdade, andar perdidos em casa, numa casa fria, sem Pai e sem irmãos, sem mesa, sem lareira, sem alegria!

 13. Afinal «ESTA PARÁBOLA» em três quadros foi contada por Jesus aos ESCRIBAS e FARISEUS, ao FILHO MAIS VELHO, a NÓS. Mas ficamos sem saber, no final, se o FILHO MAIS VELHO entrou ou não entrou em casa, para a FESTA. O narrador não o diz, porque essa decisão de entrar ou não, somos NÓS que a temos de tomar. Afinal foi para NÓS, TU e EU, colocados, na estratégia narrativa, do lado dos ESCRIBAS e FARISEUS e do FILHO MAIS VELHO (única posição correcta para sermos interpelados pela parábola), que Jesus contou a parábola. Então, a decisão é nossa, é minha e tua: entramos ou recusamos entrar na CASA do PAI, na misericórdia, na festa, na dança e na alegria?

António Couto


DEUS RESPONDE SEMPRE, NÃO ALGUMA COISA, MAS ALGUÉM!

Março 2, 2013

 

1. No programa de «preparação» para a Noite Pascal Baptismal, início e meta da vida cristã, o Domingo III da Quaresma está marcado pelos primeiros «escrutínios» para os catecúmenos: primeira «chamada» para a Liberdade.

 2. No Evangelho deste Domingo III da Quaresma (Lucas 13,1-9), Jesus atira tudo contra o nosso coração empedernido: atira a crónica e a parábola. Tudo serve para gravar em nós a conversão. A crónica refere a brutalidade de Pilatos que massacrou um grupo de Galileus e a queda da torre de Siloé que matou 18 pessoas. Pois bem, Jesus não se insurge contra o poder romano nem invoca o fatalismo, mas também não desperta sentimentalismos fáceis e de ocasião, nem tão-pouco se refugia em esquemas feitos: pecaram e por isso foram castigados. Jesus não fica a olhar para trás, não é reactivo, mas proactivo. Vira a inteira crónica para nós e diz que, face à precariedade da vida, só nos resta converter-nos! Lição oportuna para nós, que perdemos ainda muito tempo a comentar as notícias, sempre trágicas, dos jornais. De forma diferente, da crónica Jesus retira sabiamente a conversão, grande tema quaresmal, que nos acompanha desde Quarta-Feira de Cinzas.

 3. Depois pega na parábola da figueira, talvez com muitas folhas, mas sem figos. E põe em cena aquele belo acerto de contas entre o dono do pomar (o Pai) e o cultivador (Jesus, o Filho). Os «três anos» apontam para o ministério de Jesus. Aqueles «três anos» de cuidados parece que não foram suficientes para levar aquela figueira, que somos nós, a dar frutos. É-nos dado «ainda mais um ano» de graça para frutificar. Não, não é a paciência de Deus que a parábola acentua, mas a urgência da nossa conversão. A parábola constitui, portanto, um fortíssimo apelo à conversão.

 4. Extraordinária a história de Moisés (Êxodo 3,1-8 e 13-15). Moisés é pastor e tem um caminho a seguir: o caminho das suas ovelhas. Mas vê uma Visão grande e nova: uma sarça que arde, mas não se consome. E diz o texto, na versão original, que, para ver melhor, Moisés se «desviou do caminho» para ver melhor aquela visão grande. O caminho de Moisés era o caminho das ovelhas que pastoreava. Ao sair, Moisés age como uma criança curiosa e deslumbrada! Mas as crianças são louvadas no Evangelho, e todos somos advertidos que, se não nos tornarmos como as crianças, não entraremos no Reino de Deus (Marcos 10,14-15). E Deus, que habitava naquela «chama que chama», contou-se a Moisés: 1) Eu BEM VI o sofrimento do meu povo; 2) e OUVI os seus clamores; 3) CONHEÇO a situação; 4) DESCI a fim de o libertar e conduzir para a terra da liberdade. Está aqui, nestes quatro VERBOS, a história de Deus, a santidade de Deus, que SAI DE SI para vir ao nosso encontro. Note-se bem que contando-se nestes verbos, Deus se afasta dos ídolos, que a Escritura Santa diz que não vêem, nem ouvem… E um pouco depois, ao dizer o seu NOME, Deus diz-se outra vez, não com um nome estático, mas com um verbo na forma activa: «Eu Sou». Outra vez diferente dos ídolos inúteis, vazios e inactivos.

 5. É importante não deixarmos para trás, no esquecimento, um versículo que a lição de hoje de Êxodo 3 omitiu: o versículo 10. Aí, Deus diz a Moisés: «E agora VAI; Eu te envio ao Faraó, e FAZ SAIR do Egipto o meu povo, os filhos de Israel». Ficamos então a saber que Deus, que está bem atento a todos as situações difíceis dos seus filhos, nunca responde alguma coisa… Deus nunca responde alguma coisa. Deus responde sempre ALGUÉM! Aqui, nesta situação de opressão do seu povo no Egipto, a resposta de Deus é Moisés. E hoje, quem é hoje a resposta de Deus para as situações difíceis do mundo hoje? Sem equívocos: a resposta de Deus hoje somos nós!

 6. A reflexão que Paulo nos oferece neste Domingo III da Quaresma (1 Coríntios 10,1-6.10-12) é exemplar e encaixa perfeitamente com o Evangelho. No deserto, o Povo conduzido por Deus e por Moisés foi rodeado de tantas provas de carinho e da presença amorosa de Deus. Todavia, pecaram, entorpeceram os corações, puseram em causa a presença de Deus… Conclusão: caíram mortos no deserto! E Paulo escreve, por duas vezes neste texto, para nossa advertência: «Estas coisas aconteceram para nos servir de exemplo» (1 Coríntios 10,6 e 11), acrescentando logo: «E foram escritas para nossa instrução». (1 Coríntios 10,11).

António Couto