1. A parábola que nos é dado escutar neste Domingo XXVI do Tempo Comum, conhecida por «O rico avarento e o pobre Lázaro», narrada em Lucas 16,19-31, tem duas coisas únicas: a primeira reside no facto de ser a única parábola de Jesus em que uma personagem ostenta nome próprio, Lázaro, nome emblemático que significa «Deus ajuda»; a segunda tem a ver com o facto de que Jesus não dá qualquer explicação da parábola, nenhuma chave de interpretação nos é dada por Ele.
2. A parábola mostra em claríssimo contraponto um RICO e um POBRE, de nome LÁZARO. Do RICO é dito que se vestia luxuosamente de púrpura e linho fino, em contraponto com o POBRE LÁZARO que se apresentava coberto ou vestido de chagas. Do RICO é dito que se banqueteava sumptuosamente, em contraponto com o POBRE LÁZARO, esfomeado, que bem desejava comer os restos do meolo do pão com que o RICO limpava a gordura das suas mãos, de que resultavam pequenas bolas, que atirava depois aos cães!
3. O RICO é absolutamente insensível, apresentado em contraponto até com os próprios cães, que lambiam as chagas do POBRE LÁZARO! A questão de fundo nem está em que o RICO hostilize o POBRE. Está em nem sequer o ver!
4. Enfim, morre o POBRE LÁZARO e morre também o RICO, e o nevoeiro começa a dissipar-se. LÁZARO é acolhido no seio luminoso de Abraão. O RICO cai nos braços de um lume inextinguível que o aperta e atormenta.
5. É então que o RICO levanta os olhos, e começa a ver alguma coisa para além de si. Mas o que vê, ou quem vê, é ainda para tentar pôr ao serviço do seu «eu». É assim que vê finalmente, só agora, o pai Abraão e LÁZARO. A Abraão vê-o como pai (Lucas 16,24). Mas ao POBRE LÁZARO ainda não o consegue ver como um irmão, mas apenas como um servo que agora lhe pode ser útil. Primeiro, para refrescar a língua do RICO (Lucas 16,24). Depois, para avisar os cinco irmãos do RICO, ricos e insensíveis como ele (Lucas 16,27-28). O RICO continua afinal a pensar nos RICOS, e ainda se quer servir dos pobres…
6. A resposta de Abraão é decisiva. Há um abismo entre nós e vós. Claro que o abismo que AGORA não é possível transpor é o abismo cavado em vida pelo RICO separando-se do POBRE. É, portanto, HOJE que o RICO deve ouvir a voz do POBRE. É, portanto, HOJE que o RICO deve escutar Moisés e os Profetas.
7. A parábola é imensa. É como uma faca apontada ao coração dos RICOS de hoje, que continuarão a fazer as suas reuniões faustosas e vistosas, mas continuarão a não cumprir sequer os «Objectivos de Desenvolvimento do Milénio», estabelecidos em 2000 para erradicar doenças e reduzir para menos de metade a pobreza extrema. A pobreza afinal é dos outros, que nós não conhecemos de lado nenhum, ainda que estejam doentes e esfomeados ali à nossa porta! Pensam como o RICO da parábola.
8. Lembremo-nos que, no imaginário da Idade Média, o POBRE LÁZARO, que significa «Deus ajuda», saiu para fora da parábola e se transformou numa personagem histórica, padroeiro dos leprosos e mendigos. É assim que nascem os «Lazaretos», edifícios destinados a albergar e tratar os deserdados e doentes. E, no século XVII, S. VICENTE DE PAULO, cuja memória a Igreja celebra em 27 de Setembro, que dedicou toda a sua vida aos pobres, fundou os Padres LAZARISTAS (sempre sobre a memória do POBRE LÁZARO), para continuar essa bela missão de tratar os pobres com carinho. E, no século XIX, o beato FRÉDÉRIC OZANAM fundou as CONFERÊNCIAS VICENTINAS, que alicerçou sobre uma frase de S. VICENTE DE PAULO: «A caridade é inventiva até ao infinito».
9. Está à vista, irmãos, que o POBRE LÁZARO tem de voltar a sair da parábola para nos incomodar e nos colocar todos os dias no caminho da criatividade da Caridade!
10. E aí temos outra vez Amós (6,1-7) a bater à nossa porta, a desassossegar o nosso sossego, a desmoronar os nossos belos palácios de marfim, a surpreender-nos enfartados e bêbados, deitados por aí em qualquer divã. Aí estão também já os Assírios para pôr fim àquilo que tantas vezes julgamos seguríssimo, senão eterno. Sim, os habitantes da Samaria irão nus e descalços para o exílio na Assíria. E um dia hão-de chegar os arqueólogos, que descobrirão debaixo das ruínas os restos deste mundo podre e dissoluto.
António Couto