DIA DA FRATERNIDADE

Dezembro 31, 2013

 

1. A Igreja Una e Santa celebra neste Dia de «Ano Bom», como é usual chamar-se o Primeiro Dia do Ano Civil, a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a que anda associada, desde 1968, a celebração do Dia Mundial da Paz. Neste dia primeiro de janeiro de 2014, é já o 47.º Dia Mundal da Paz que se celebra, mas coninuamos a ver tanta guerra à nossa volta. O Papa Francisco encheu de FRATERNIDADE a sua Mensagem para este 47.º Dia Mundial da Paz, deixando claro que sem a FRATERNIDADE, a Paz fica sem fundamento e sem caminho. O que é que faz então com que a FRATERNIDADE seja tão importante, de tal modo que, com ela, possa haver um mundo feliz e harmonioso, e, sem ela, um mundo conflituoso, desumano e violento?

 2. É que a FRATERNIDADE começa por nos deixar a todos com as mãos vazias e abertas, estendidas na direcção da fonte do amor que é Deus Pai. Sim, somos irmãos, porque somos filhos de Deus. O lugar que, de forma mais imediata, nos mostra a FRATERNIDADE, é a família. Mas toda a gente sabe que, numa família, os filhos são diferentes, por vezes de forma bem acentuada, desde logo na ordem do nascimento, mas também da saúde, da inteligência, do temperamento, do sucesso. O segredo é que, não obstante as suas acentuadas diferenças, há um ponto em que são todos iguais. São, na verdade, iguais, não em função do que são ou do que têm ou do que fazem, mas em função daquilo que lhes é dado e feito. Em função do amor que os precede, o amor dos seus pais. É esse amor primeiro que os torna livres e iguais, logo irmãos.

 3. Mas este âmbito restrito da família humana serve apenas como imagem da família maior e mais perfeita dos filhos de Deus. De facto, por vezes, há, nas nossas famílias muitas limitações e perturbações de toda a ordem, onde o amor chega a ser terrivelmente ameaçado. A questão tem de ser posta: de quem são os filhos gerados num casal que se ama ou fruto de atropelos e violações? Dir-me-eis: este filho é nosso, fomos nós que o geramos, fui eu que o dei à luz, está aqui o registo de nascimento. E eu pergunto ainda: sim, mas porquê esse, e não outro? É aqui, amigos, que entra o para além da química e da biologia. É aqui, amigos, que entramos no limiar do mistério, na beleza incandescente do santuário, onde o fogo arde por dentro e não por fora. É aqui que caímos nos braços da ternura de um amor novo, patente no colo maternal de Deus, que nenhuma pesquisa biológica ou química explicará jamais. Todo o nascimento traz consigo um imenso mistério. Sim, porquê este filho, e não outro? Porquê este, com esta maneira de ser, este boletim de saúde, este grau de inteligência, esta sensibilidade que lhe é própria? Sim, outra vez, porquê este filho, e não outro, com outra maneira de ser, outro boletim de saúde, outro grau de inteligência, outras aptidões? Fica patente e latente que, para nascer um bebé, não basta gerá-lo e dá-lo à luz. Quando nasce um filho, é também Deus que bate à nossa porta, é também Deus que entra em nossa casa. Ele é a fonte inesgotável do amor verdadeiro e o garante da nossa comum fraternidade. «Deus é Amor» (1 João 4,8.16), «o Amor vem de Deus» (1 João 4,7), «quem ama nasceu de Deus» (1 João 4,7). Portanto, o Amor não é meu nem é teu. Também não é nosso. De forma inequívoca: não é o casal que faz o Amor; é o Amor que faz o casal. Não é um casal que faz os filhos; é o Amor que os faz. Atravessa-nos um calafrio quando nos apercebemos que a humanidade transmite, de idade em idade, de pais para filhos, algo de eterno. Amor eterno, tão terrivelmente ameaçado de idade em idade! O Amor não se conquista nem se compra: «Quisesse alguém dar tudo quanto tem para comprar o amor, seria tratado com desdém» (Cântico dos Cânticos 8,7). O Amor é dado e com gratidão recebido. O título de «Irmão» também não se compra ou conquista ou luta por ele. «Irmão» nasce-se. «Irmão» recebe-se, merece-se, reconhece-se com gratidão.

 4. É esse amor eterno, primeiro e verdadeiro, que nos faz nascer como irmãos. A FRATERNIDADE é então o lugar em que cada um vale, não por aquilo que é, nem por aquilo que tem ou por aquilo que faz, mas por aquilo que lhe é feito, antes e independentemente daquilo que deseja, pensa, projecta e realiza, e em que o seu ser é ser numa relação de amor incondicionada, que não é posta por ele, mas em que ele é posto. Passemos então da nossa família para a família de Deus, de quem todos somos filhos e a quem tratamos por «Pai Nosso». À mesa da Eucaristia, que é a mesa que Deus, Nosso Pai, põe para nós, aprendemos que a nossa consciência não é a auto-consciência daquilo que fazemos, mas a hétero-consciência daquilo que nos é feito e que nós somos sempre chamados a reconhecer com gratidão.

 5. Assente que seja este fundamento e aberto este caminho, mudam, claro que mudam, os diferentes cenários em que assenta a nossa existência, que é o que nós fazemos, semeamos e cultivamos: ódios, invejas, mentiras, guerras, violência, cada um pensando em si e no seu pequeno mundo, quer numa lógica individual quer colectiva, nacional ou internacional. Só a fraternidade, que assenta numa lógica completamente diferente, não daquilo que eu faço, mas daquilo que me é feito, pode minar e subverter este muro de desumanidade espesso como o gesso.

 6. Verdadeiramente, o serviço da Paz deve envolver-nos a todos e reclamar de todos, todos os dias, as nossas melhores energias. O serviço da Paz é um apelo permanente à nossa sabedoria, responsabilidade e pedagogia. O respeito e o amor mútuos cultivam-se, aprendem-se, praticam-se e ensinam-se. Têm de estar bem acesos no nosso humano coração. O que fazemos aos nossos irmãos e dos nossos irmãos, que atenções nos merecem, como olhamos para eles e por eles? Quando deixamos prosperar fundamentalismos, totalitarismos e nacionalismos, fica ameaçada a vida humana, a família, a educação, a liberdade religiosa. Vale a pena lembrar, para que a nossa consciência permaneça sempre lúcida e sensível, que as nossas famílias continuam a ser minadas pelo vento do egoísmo, que há crianças e velhinhos abandonados e «descartados», jovens sem horizontes, tanta gente sem pão, tantos irmãos nossos maltratados, perseguidos e assassinados. Em boa verdade, à luz do paradigma de Caim e Abel, posto logo a abrir a Escritura, todo o homicídio é um fratricídio. Humanidade, o que fizeste de ti mesma?

 7. A Paz permanece, portanto, para nós um desafio imenso e intenso, dado que os índices de ódio, de intolerância, de corrupção, de desrespeito e de ganância são cada vez mais elevados motivando uma exploração desenfreada e irresponsável da bondade e da beleza do nosso planeta, decorrendo daí um aumento preocupante dos pobres e deslocados da terra e uma degradação cada vez mais acentuada do ambiente desta casa comum da humanidade. No meio desta lixeira que vamos produzindo, também é notório que cresce cada vez mais uma sociedade indiferente, insensível, demente, dormente e anestesiada, sem amor nem dor nem alegria, simplesmente adormecida no divã dos seus egoísmos, ideologias e comodismos!

 8. Muita gente tem falado e vai continuar a falar dos pobres e da crise económica e do cada vez maior buraco de ozono, com muitos números e números muito altos, muito saber e elevada competência técnico-científica. Mas nós, que vivemos do Evangelho, estamos avisados para não ficarmos preocupados quando ouvirmos falar destas coisas e quando virmos estas coisas acontecer (Lucas 21,5-28). E também sabemos que a única crise verdadeira e boa, verdadeira porque boa, acontece quando o Evangelho embate na nossa vida, e a põe em crise, fazendo cair os nossos mais estudados e requintados sonhos, projectos e planos (Isaías 8,9-10), e fazendo nascer caminhos novos e germinar mundos insuspeitados, que Isaías descreve e desenha com rios e flores a despontar no deserto.

 9. É assim que, no Evangelho deste Dia (Lucas 2,16-21), e contra toda a estudada lógica e frios calculismos humanos, é aos pastores, que são pobres, desprezados e marginalizados pelos olhares ditos civilizados, que se abre o céu e ouvem um recital de música divina, e é a eles ainda que chega a Grande Notícia e correm ao encontro do Pobre e falam do que ouviram e deixam as pessoas maravilhadas! E de Maria, a Senhora deste Dia, é dito que «conservava todas estas Palavras que acontecem e não esquecem, compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,19). E é dito ainda, num pleonasmo único na Escritura Santa, que Maria «concebeu no ventre» (Lucas 2,21). Redundância. Música divina. O ventre de Maria em sintonia com o «ventre de misericórdia do nosso Deus» (Lucas 1,78), causa da Luz que nas alturas se levanta e visita toda a gente, causa do Rebento que na nossa terra germina, que a nossa terra aquece e alumia, Jesus, filho de Deus e de Maria, a quem neste oitavo Dia é posto o Nome (Lucas 2,21).

 10. De Deus vem sempre um mundo novo. Maravilhoso. Tão novo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).

 11. Olhada por Deus com singular olhar de Graça foi Maria – também pobre, também Feliz, Bem-aventurada –, Santa Maria, Mãe de Deus, que hoje celebramos em uníssono na Igreja inteira. Para ela elevamos hoje os nossos olhos de filhos enlevados.

 12. Mãe de Deus, Senhora da Alegria, Mãe igual ao Dia, Maria. A primeira página do ano é toda tua, Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora de Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de Janeiro, do Dia primeiro e do Ano inteiro.

 13. Abençoa, Mãe, os nossos dias breves. Ensina-nos a vivê-los todos como tu viveste os teus, sempre sob o olhar de Deus, sempre a olhar por Deus. É verdade. A grande verdade da tua vida, o teu segredo de ouro. Tu soubeste sempre que Deus velava por ti, enchendo-te de graça. Mas tu soubeste sempre olhar por Deus, porque tu soubeste que Deus também é pequenino. Acariciada por Deus, viveste acariciando Deus. Por isso, todas as gerações te proclamam «Bem-aventurada»! Por isso, nós te proclamamos «Bem-aventurada»!

 14. Senhora e Mãe de Janeiro, do Dia Primeiro e do Ano inteiro. Acaricia-nos. Senta-nos em casa ao redor do amor, do coração. Somos tão modernos e tão cheios de coisas estes teus filhos de hoje! Tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade! Temos tudo. Mas falta-nos, se calhar, o essencial: a tua simplicidade e alegria. Faz-nos sentir, Mãe, o calor da tua mão no nosso rosto frio, insensível, enrugado, e faz-nos correr, com alegria, ao encontro dos pobres e necessitados.

 15. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos nós e para todos os irmãos que Deus nos deu! Amen!

António Couto

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FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA

Dezembro 28, 2013

 

1. Atravessamos ainda a Solenidade do Natal do Senhor, dado que esta Solenidade se prolonga durante oito dias (Oitava) até à Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, que se celebra no primeiro Dia de Janeiro.

 2. O Natal do Senhor põe diante do nosso olhar contemplativo uma Família humilde e bela, Jesus, Maria e José, mas traz também consigo uma forte sensibilidade Familiar, tornando-se o tempo forte da reunião festiva das nossas Famílias. Estes dois acertos são importantes para se compreender a razão pela qual, no Domingo dentro da Oitava do Natal, a Igreja celebre a Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José.

 3. Os textos da Liturgia são outra vez preciosos. O Evangelho põe no nosso coração o último episódio do Evangelho da Infância de S. Lucas, conhecido por «Encontro de Jesus no Templo» (2,41-52). Na verdade, o texto refere, logo a abrir, que «os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém pela Festa da Páscoa», certamente envoltos na intensa alegria com que os judeus piedosos acorriam ao Templo do Senhor nas três Festas de Peregrinação – Páscoa, Semanas e Tendas –, cantando: «Que alegria quando me disseram: vamos para a Casa do Senhor!» (Salmo 122(121),1). Eram oito dias de alegria filial e fraternal, uma vez que, na Casa do Senhor, todos eram filhos e irmãos.

 4. Mas este belíssimo episódio guarda ainda mais alguns sabores requintados. Primeira nota: diz-nos o texto que, nessa Páscoa, Jesus já tinha completado doze anos, que o mesmo é dizer que tinha passado da infância à idade adulta, e que, portanto, sobre ele incumbia agora também o dever de subir três vezes por ano a Jerusalém e de responder pessoalmente, sem a mediação dos pais, pelo cumprimento dos mandamentos de Deus, como ainda hoje se verifica na cerimónia pública chamada bar mitswah [= «filho do mandamento»], que os rapazes judeus piedosos realizam aos 12 anos.

 5. Segunda nota: no regresso a Nazaré, após um dia de viagem, Maria e José aperceberam-se de que Jesus «não fazia caminho com eles», e ficaram preocupados e foram procurá-lo. Sinal importante para as restantes páginas do Evangelho e para nós: quando nos apercebermos de que Jesus não está a fazer caminho connosco, devemos ficar preocupados e ir à procura dele. Por outras palavras: não podemos perder Jesus. Podemos perder coisas e tralhas que atrapalham e sobrecarregam. Mas Jesus é a nossa vida (se o perdemos, perdemo-nos), e é Ele que todos nos pedem: «Nós queremos ver Jesus!» (João 12,21).

 6. Terceira nota: não o encontram onde e como seria de esperar, entre os parentes e conhecidos. Quarta nota: Jesus é encontrado três dias depois no Templo (Casa de Deus), num claríssimo aceno à Ressurreição (três dias) e ao verdadeiro parentesco e identidade de Jesus (Casa de Deus). Quinta nota: está sentado na cátedra (kathezómenos) no meio dos mestres. Então ele é o Mestre, e o seu lugar é sempre no meio de nós.

 7. Sexta nota: a resposta serena de Jesus à sua mãe preocupada: «Olha que o teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura», diz Maria (Lucas 2,48). «Não sabíeis que é para mim necessário (dei) estar nas coisas (en toîs) do meu Pai?», responde Jesus (Lucas 2,49). Mas era óbvio que, depois da cerimónia do bar mitswah, competia a Jesus responder pessoalmente a Deus. Note-se ainda o confronto do «teu pai», de Maria, com o «meu Pai», de Jesus. E note-se também que Jesus não se ocupa simplesmente das coisas do Pai, mas está nas coisas do Pai. Expressão fortíssima, de intimidade, que implica a própria vida, e não um mero passatempo ou um negócio qualquer de coisas exteriores.

 8. Sétima nota: embora não compreendendo, Maria guardava todas estas palavras e acontecimentos, compondo-os (symbállousa) no seu coração. Expressão belíssima que mostra bem a altura do crente verdadeiro, que não tem de compreender tudo já, mas guarda e vai compondo palavras e acontecimentos divinos numa bela melodia.

 9. Dentro da temática da Família, o Antigo Testamento traz-nos hoje um extracto sapiencial retirado do Livro de Ben-Sirá (ou Eclesiástico) 3,2-6.12-14, e que nos convida ao amor dedicado aos nossos pais sempre, para que o Senhor ponha sobre nós o seu olhar de bondade.

 10. O Salmo 128(127) é a música suave, de teor didático-sapiencial, que canta uma família feliz e nos mostra a fonte dessa felicidade: a bênção paternal do Senhor. «Felizes os que esperam no Senhor,/ e seguem os seus caminhos» é a bela litania em que o refrão nos faz entrar.

 11. Finalmente, o Apóstolo Paulo, na Carta aos Colossenses 3,12-21, exorta esposos, pais e filhos ao amor mútuo, mostrando ainda de que sentimentos nos devemos vestir por dentro e de que música devemos encher o nosso coração. Salta à vista que a bondade, a humildade, a mansidão, a longanimidade, o amor, o perdão são vestidos importantes para a festa, mas não se compram nem vendem por aí em nenhum pronto-a-vestir. Nesta época de bastante consumismo, convém que nunca nos esqueçamos de Deus, pois é Ele, e só Ele, que veste carinhosamente o coração dos seus filhos.

António Couto


NATAL DO SENHOR

Dezembro 24, 2013

 

1. «Exultemos de alegria no Senhor, porque nasceu na terra o nosso Salvador», é a Antífona do Cântico de Entrada da Missa da Meia-Noite, que dá o devido tom de exultação a esta Solenidade, magnífico pórtico para este intenso feixe de Luz, Mistério de Jesus, fazendo logo ver o Natal à Luz da Páscoa, «a Páscoa do Natal», assim o diz significativamente a liturgia oriental. A Antífona da Missa da Aurora prossegue a mesma sintonia, conjugando Isaías 9,1 e Lucas 2,11, e soa assim: «Hoje sobre nós resplandece uma Luz: nasceu o Senhor». A Antífona da Missa do Dia continua a indicar o «para nós» deste Filho e do seu Mistério, trazendo ao de cima outra vez a pauta de Isaías: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado» (Isaías 9,6).

 2. A linha dos Evangelhos deste Dia é de excepcional riqueza, e desenvolve-se em três movimentos: o acontecimento, o anúncio e o acolhimento. Começa com Lucas 2,1-14 (Meia-Noite), e continua com Lucas 2,15-20 (Aurora), que nos trazem o quadro histórico-geográfico do nascimento de Jesus (Lucas 2,1-7), o seu anúncio (Lucas 2,8-14) e acolhimento (Lucas 2,15-29). O nascimento de Jesus, na sua nudez, aparece narrado três vezes, nos três movimentos do texto (Lucas 2,7.12.16). Ele é claramente o centro. Aparece logo situado no decurso do recenseamento do mundo romano ordenado por César Augusto, sendo Quirino prefeito romano da Síria (Lucas 2,1-2). O reinado de Augusto estende-se por muitos anos (27 a.C.-14 d.C.), mas Pôncio Sulpício Quirino foi prefeito da Síria apenas no ano 6 d.C., sendo então que liquida os bens de Arquelau, filho de Herodes o Grande, e anexa definitivamente a Judeia ao Império Romano. O leitor menos prevenido dirá logo que há aqui uma imprecisão histórica. Acrescento então que este recenseamento foi iniciado em 7-6 a.C. por Sêncio Saturnino, prefeito da Síria durante os anos 9-6 a.C. É sabido, de resto, que a era cristã actualmente em vigor foi fixada no século VI pelo monge xiita, de origem egípcia, Dionísio o Pequeno, com um pequeno erro de cálculo que resultou no atraso de 6 ou 7 anos em relação ao nascimento de Jesus. Portanto, Jesus terá nascido 6 ou 7 anos antes do início da era cristã fixada pelo monge Dionísio. E aí está então tudo em dia: Jesus nasce quando Sêncio Saturnino dá início ao recenseamento. Dirá outra vez o leitor incauto: se assim foi, por que é que Lucas fala de Quirino, e não de Saturnino? Se repararmos bem, Lucas faz exactamente como nós fazemos hoje. Nas placas que colocamos nos edifícios públicos que inauguramos, constam os nomes das autoridades que os terminam e inauguram, e não daqueles que os iniciam. O mesmo se diga da promulgação de leis e tratados.

 3. É ainda no quadro deste recenseamento que José, acompanhado por Maria, sua esposa, sobe a Belém para se recensear. O texto explica bem que esta deslocação se fica a dever ao facto de José ser da descendência de David (Lucas 2,3-4). Alguém poderá perguntar: então por que foi José viver para Nazaré, se ele era natural de Belém, a uns 150 km de distância? Provavelmente dentro do programa político-religioso de rejudaização da Galileia, iniciado por Alexandre Janeu (103-76 a.C.), em que colonos judeus eram incentivados a repovoar e rejudaizar a Galileia.

 4. O próximo passo refere que não havia lugar para eles (José e Maria) na sala (Lucas 2,7). Note-se que o texto refere, de forma clara, sala, grego katályma, e não hospedaria, como se lê em muitas e preconceituosas traduções. Na verdade, Lucas sabe bem dizer hospedaria, como faz na passagem do bom samaritano (Lucas 10,34), em que usa o termo grego pandocheîon. Katályma não significa hospedaria. Significa sala. Pode ser a sala do andar superior (Lucas 22,11), mas é, neste caso, a sala de hóspedes que a arqueologia pôs a descoberto no rés-do-chão de muitas das casas da Palestina do tempo de Jesus. Esta sala apresenta forma quadrada ou rectangular, com um banco rochoso ao longo das paredes, destinado ao descanso das pessoas. Uma única porta de entrada dava acesso à sala a pessoas e animais. Ao fundo da sala localizava-se outra porta, que dava para um estábulo, para onde as pessoas conduziam naturalmente os animais. É neste estábulo anexo à sala de hóspedes que vai nascer Jesus, e é também aqui que se compreende perfeitamente a presença da manjedoura (Lucas 2,7 e 12).

 5. Vem depois a cena maravilhosa da manifestação desta Notícia aos pastores dos campos de Belém. Os pastores são os últimos da sociedade, e não entram nas contas de ninguém, tal como o pequeno pastor de Belém, David, não entra nas contas já encerradas de seu pai (1 Samuel 16,10-11), mas entra nas de Deus (1 Samuel 16,11-12). Assim é também aos pastores de Belém que o mensageiro celeste anuncia a Alegria do nascimento de um Salvador para todo o povo, Hoje nascido em Belém (Lucas 2,8-11).

 6. E, deste acontecimento, o mensageiro celeste dá um sinal (sêmeîon) aos pastores e a nós: «encontrareis um recém-nascido envolto em faixas e deposto numa manjedoura» (Lucas 2,12). E, depois daquele celestial e humano Gloria in excelsis Deo e Paz na terra aos homens que Ele ama (Lucas 2,14), aí vão eles, os pastores, aqueles com quem ninguém conta e que não entram em nenhuma lista, aí vão eles apressadamente (Lucas 2,16), como Maria (Lucas 1,39), verificar (ideîn) os acontecimentos a eles dados a conhecer por Deus (Lucas 2,15), e que, como verdadeiros anunciadores, não podem calar, e devem dar também a conhecer a todos (Lucas 2,17). Note-se esta Paz diferente, que não é obra das armas, como no mundo romano, nem de acordos entre as partes, como no judaísmo palestinense, mas dom de Deus!

 7. Cena sublime e suprema ironia. Os senhores do mundo (César Augusto e Quirino) são mencionados, mas saem logo de cena, para dar lugar aos pastores, que assumem o papel de verdadeiros protagonistas. Os senhores do mundo ocupam um único versículo cada um (Lucas 2,1 e 2). Os pastores enchem treze versículos (Lucas 2,8-20). Também lá estão Maria, José e o Menino, mas não dizem uma única palavra. A palavra é toda dos Anjos e dos pastores. Mas Maria é estupendamente retratada a «guardar todas aquelas palavras, compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,19).

 8. Note-se ainda o sinal dado aos pastores e a nós, leitores: um recém-nascido envolto em faixas, deposto numa manjedoura. É preciso também ver já aqui a Luz da Páscoa, com o corpo de Jesus a ser envolto num lençol e deposto num sepulcro (Lucas 23,53). Mas também a sala (katályma) onde não havia lugar para eles (Lucas 2,7) reclama já a sala para comer a Páscoa (Lucas 22,11). O Evangelho do Dia (João 1,1-18) deixa-nos de joelhos em contemplação: «E o Verbo se fez carne e pôs a sua tenda entre nós, e nós contemplámos (theáomai) a sua glória» (João 1,14). Mas também: «Veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (João 1,11).

 9. Os passos dos peregrinos e os nossos convergem Hoje para a Basílica da Natividade em Belém. Não obstante os múltiplos trabalhos de reconstrução e conservação ao longo dos séculos, a Basílica que hoje se depara ao peregrino é, nas suas linhas gerais, obra do imperador Justiniano, edificada entre 531 e 565, e é mesmo o único templo, provindo de Justiniano, que resta na Palestina. Escapou mesmo à razia dos Persas de Cosroé, em 614, contra os templos cristãos, devido ao facto de os frescos que adornam a Basílica conterem representações dos Magos, o que muito terá sensibilizado os Persas. Esta não é, porém, a Basílica primitiva. Os trabalhos arqueológicos efectuados pelo P. Bagatti em 1949-1950 mostraram, por debaixo do pavimento da actual Basílica, os traços arquitectónicos de outra grandiosa Basílica, levantada entre 326 e 333, por Santa Helena, mãe do imperador Constantino. Esta primitiva Basílica foi assolada por diversos incêndios e depois grandemente devastada pela revolta dos Samaritanos de Nablus em 529 contra o governo bizantino. Foi sobre as ruínas desta Basílica Constantiniana que o imperador Justiniano fez construir, com traços arquitectónicos diferentes, a Basílica actual.

 10. Mas a Basílica Constantiniana também não representa o estádio primitivo do culto cristão em Belém. Este encontra-se certamente na cripta da Basílica actual, guardado num espaço rectangular de 12,30 metros de comprimento por 3,50 metros de largura, para onde convergem os passos dos peregrinos. Este espaço corresponde ao estábulo anexo à já mencionada sala de hóspedes. Aí se encontra o Altar da Natividade, debaixo do qual se pode ver uma estrela de prata com a inscrição: Hic de Virgine Mariae Jesus Christus natus est [= «Aqui da Virgem Maria nasceu Jesus Cristo»]. A Basílica da Natividade guarda na sua cripta o mistério do nascimento de Jesus, da pobreza, da humildade, do amor, da paz. Daquele e daquilo que não tem lugar na sala do nosso bem-estar, poder, ódio, ostentação, tirania. Na tua casa e na tua sala há lugar para quem e para quê, meu irmão deste Dia de Natal?

António Couto


ANUNCIAÇÃO DO ANJO A JOSÉ

Dezembro 21, 2013

 

1. Sempre me encantou esta humaníssima e sensibilíssima figura de José, que o Evangelho de Mateus qualifica como «justo» (Mateus, 1,19), pondo-o em linha com Jesus, que a mulher de Pilatos chama «justo» (Mateus 27,19). O termo «justiça» enche este Evangelho, fazendo-se nele ouvir por sete vezes (3,15; 5,6.10.20; 6,1.33; 21,32), e traduz o plano divino de salvação e a adequação da nossa vontade a esse plano. Neste Evangelho, os discípulos nunca são declarados «justos», mas são chamados à «justiça», a andar no «caminho da justiça», auto-destituindo-se, pondo de lado os seus projectos, e sabendo sempre dizer SIM a Deus.

 2. Aí está, então, diante de nós o sensibilíssimo «justo» José sintonizado em alta fidelidade, em Hi-Fi, com Deus. É assim que, em bicos de pés, no limiar do silêncio, passa discretamente da cena «pública» para o «segredo» (Mateus 1,19). Fantástico. Até Deus entende e respeita este silêncio, este «segredo» de José, e é de mansinho, em um sonho (Mateus 1,20), que põe José a par dos seus planos que passam pela maternidade divina de Maria e pela missão esponsal e paternal de José. É o que podemos chamar, neste Evangelho de Mateus 1,18-24, de «Anunciação do Anjo a José».

 3. Este homem manso, sossegado e silencioso (quando surge em cena, somando todos os textos em que aparece, não se lhe ouve uma única palavra!) lembra o outro José, o homem dos sonhos (Génesis 37,19), que surge no Livro do Génesis, e que com sonhos e serena sabedoria se ocupa (Génesis 37; 40; 41). Também este José sabe ler a sua história em dois teclados, distinguindo bem as coisas humanas das divinas (ou entrançando bem as coisas humanas e as divinas?!). Veja-se a forma sublime como se apresenta, desvendando-se, aos seus irmãos mais do que atónitos: «Eu sou José, vosso irmão, que vós vendestes para o Egipto. Mas agora não vos entristeçais nem vos aflijais por me terdes vendido para cá, porque foi para salvar as vossas vidas que Deus me enviou adiante de vós. Deus enviou-me adiante de vós para assegurar a permanência da vossa raça na terra e salvar as vossas vidas para uma grande libertação. Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, mas Deus» (Génesis 45,4-8). Leitura sublime.

 4. A missão paternal de José fica clara no facto de ser José a dar o nome ao filho que vai nascer de Maria. O nome do menino será Jesus, que surge logo explicado «porque salvará o seu povo dos seus pecados» (Mateus 1,21). E aqui se começa a abrir uma grande avenida que atravessa o inteiro Evangelho de Mateus: a avenida do PERDÃO. Esta nota soa vezes sem fim, como obra bela de Deus que nós, seus filhos, devemos imitar, perdoando também. São tantas as vezes que seria fastidioso citá-las todas aqui. Deixo só a pérola do dito de Jesus sobre o cálice: «Isto é o meu sangue da aliança, pelos muitos derramado, para perdão dos pecados» (26,28). O inciso «para perdão dos pecados» é um exclusivo de Mateus!

 5. E é assim, descendo ao nosso nível e assumindo ou abraçando tudo o que é nosso, sem deixar nada nem ninguém esquecido ou de lado, que Jesus é «Deus connosco» (Mateus 1,23), e «connosco fica todos os dias até ao fim do mundo» (Mateus 28,20). Princípio e fim do Evangelho de Mateus. Inclusão literária.

 6. Já se ouve a música de Isaías 7,10-14; 8,10. O cenário é a guerra siro-efraimita, que são dois exércitos, da Síria e de Israel, que põem cerco a Jerusalém, capital do Reino de Judá, no ano 734 a. C., com o intuito de depor Acaz, rei de Judá. Já se vê um Isaías firme e confiante, que, enviado por Deus (Isaías 7,3), atravessa sem medo o cenário da guerra siro-efraimita, para levar ao amedrontado e trémulo rei Acaz (Isaías 7,2), que se encontra junto da nascente de Gihôn, a inspecionar as águas, uma palavra de conforto e de esperança. Para significar melhor tudo isto, Isaías leva o seu filho, que ostenta um nome de esperança She’ar yashûb [= «um “resto” voltará»], pela mão (Isaías 7,3). Um pai, que ousa atravessar um cenário de guerra levando um filho pela mão, é, na verdade, testemunha de outra segurança! A mensagem que Isaías comunica a Acaz consta de quatro pontos: a) tem calma; b) não tenhas medo; c) segura-te em Deus; d) pede um sinal (Isaías 7,11). Já se sabe que o descrente Acaz não pedirá o sinal, diz ele, para não tentar a Deus (Isaías 7,12), isto é, hipocritamente alega uma razão aparentemente religiosa como paravento para esconder a sua incredulidade. Ora, pedir um «sinal», nestas circunstâncias, era sinal de fé e de humildade que reconhece a sua pobreza, como se depreende do comportamento de Abraão (Génesis 15,8), de Gedeão (Juízes 6,36-40) e de Ezequias (2 Reis 20,8-11). Marcada pela incredulidade era antes a recusa de pedir esse «sinal», como sucede com Acaz, que julga Deus incapaz de se interessar pelos nossos problemas.

 7. Pouco importa. Eis que Deus dá, de igual maneira, o seu sinal: «A jovem» (‘almah TM; parthénos LXX) concebeu e dará à luz um filho a quem porá o nome de ‘immanû ’el [= «Connosco Deus»]» (Isaías 7,14). A jovem, aqui mencionada, é, em primeira leitura, certamente Abia, filha de Zacarias, esposa de Acaz, mãe de Ezequias (2 Crónicas 29,1). O filho, cujo nascimento é anunciado é certamente, em primeira leitura, Ezequias, filho de Acaz e de Abia, que ainda não tinha dado a Acaz um herdeiro. O nascimento de Ezequias parece ter ocorrido em 733, depois da guerra siro-efraimita. Todavia, como ele não é nomeado, a promessa não se esgota na pessoa de Ezequias. Abre-se ao herdeiro dinástico de qualquer tempo, portador das promessas de Deus para o seu povo. Este «filho» fica assim no campo dos «sinais», de resto como Isaías e os seus filhos (Isaías 8,18), e Mateus procede de forma correta ao ver a promessa realizar-se em Jesus (Mateus 1,18-25). Em primeira leitura, o «sinal» dado a Acaz é que a dinastia davídica, que corria perigo em 734, se salvará. Virá mesmo um tempo de prosperidade e de paz que marcará a infância daquele menino, que se alimentará de leite coalhado e mel (Isaías 7,15), alimentos que simbolizam abundância porque são dom de Deus (Deuteronómio 6,3; 11,9; 32,13-14; Êxodo 3,8 e 17).

 8. Por outro lado, antes que o menino atinja a idade da razão, portanto, dentro em breve, os reinos de Israel e da Síria, agora agressores, serão reduzidos a escombros (Isaías 7,16; cf. 8,3-4). O que acontece, de facto, sendo a Síria anexada pela Assíria ainda em 734, o mesmo acontecendo a grande parte do território de Israel, em 733. A paz e a felicidade dos dias de David e Salomão, ou mesmo do tempo dos Juízes, serão recordadas e vividas em Judá. É o que pretende dizer o oráculo: «O Senhor fará vir sobre ti […] dias tais como não existiram desde o dia em que Efraim se separou de Judá» (Isaías 7,17), ou seja, desde 926, data da morte de Salomão e da separação do Reino de Israel (Norte) da Corte de Jerusalém.

 9. Logo a seguir, Isaías introduz um oráculo de desgraça sobre Judá: as águas impetuosas da Assíria virão sobre Judá e submergi-lo-ão (Isaías 8,6-8). Mas é neste novo contexto que o profeta deixa sair, por duas vezes, o desabafo: «‘immanû ’el»! (8,8 e 10). Acostagem extraordinária da salvação à desgraça! Com este suspiro, num novo contexto, a profecia do Emanuel tornou-se tradição já para o próprio Isaías. Esta tradição tem a sua história. Já não temos apenas um sentido histórico único e determinado, mas começa a história da tradição do oráculo do Emanuel que, passando por Is 9,5 e 11,1-9, chegará ao Novo Testamento (Mateus 1,23). Deus connosco sempre. Mas Mateus faz uma alteração teológica fundamental. Isaías dizia: «E ela (a jovem mãe) chamará o nome dele Emanuel». Mateus altera o sujeito e o verbo e escreve assim: «E eles chamarão o nome dele Emanuel». Com esta mudança de sujeito e verbo do singular para o plural, Mateus faz de Jesus, não apenas o sinal de salvação dado a um povo, mas sinal de salvação para todos os povos! E a dádiva do nome por todos, implica-nos a todos com este Emanuel.

 10. Temos hoje a graça de receber o início da Carta de S. Paulo aos Romanos (1,1-7), em que podemos identificar a apresentação ou titulatio [«Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado apóstolo, separado para o Evangelho de Deus»] (v.1), seguida de um longo parêntesis cristológico (vv. 2-6), o endereço ou adscriptio [«a todos os que estão em Roma, amados de Deus, aos chamados santos»] (v. 7a), e a saudação ou salutatio [«Graça a vós e Paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo»] (v. 7b). Notemos que a locução «Graça e Paz» abre todas as Cartas de S. Paulo, e «A Graça» está em todas as saudações finais, fechando todas as Cartas. Mas é ainda grandemente sintomático que, depois deste início, a Carta aos Romanos prossiga assim: «Primeiro, dou Graças ao meu Deus, por intermédio de Jesus Cristo, por todos vós…» (Romanos 1,8). Aqui está o mesmo olhar de bondade e de beleza, ícone de Paulo em oração sem fim. Na verdade, depois daquele «primeiro», ficamos à espera de encontrar um «segundo» ou um «depois», que, todavia, nunca mais aparecerá. A Graça e a Acção da Graça estão antes de tudo e preenchem tudo. Nesse sentido, é bom e justo que tomemos consciência de que não é mais suficiente um cristianismo convencional, marcado pela acção social. É hoje igualmente insuficiente a espiritualidade da militância, que persegue a causa nobre de uma Igreja viva e participada e da construção de um mundo melhor. Um serviço pastoral que se reduza a «coisas que fazer» está gasto. Passou o tempo dos cristãos meramente «praticantes». Hoje são necessários cristãos enamorados, à maneira de Paulo.

 11. Vem, Senhor Jesus. Só um amor como o teu transformará este mundo e salvará o nosso engessado coração! O «justo» José pode ensinar-nos como te ensinou a andar, menino, a dar os primeiros passos, e também como tu, menino, lhe ensinaste a ele a andar no «caminho da justiça».

 António Couto


SONHA TAMBÉM

Dezembro 17, 2013
Há dois mil anos Deus sonhouAdvent Wreath
E foi
Natal em Belém.
Sonha também.
Se o jumento corou
E o boi se ajoelhou,
Não deixes tu de orar também.

1. A notícia ecoou nos campos de Belém. Com o celeste recital que ali se deu, o céu ficou ao léu, a terra emudeceu de espanto, e os pastores dançaram tanto, tanto, que até os mansos animais entraram nesse canto.

 2. Isaías 1,3 antecipou a cena, e gravou com o fulgor da sua pena o manso boi e o pacífico jumento comendo as flores de açucena da vara de José sentado ao lume, e bafejando depois suavemente o Menino de perfume. Enquanto os meigos animais vão comer à mão do dono, o meu povo, diz Deus, não me conhece, e perde-se nos buracos de ozono.

 3. Nos campos lavrados passeiam cotovias, ondulam os trigais, e vê-se Rute a respigar o trigo ao lado dos pardais. Que estação é esta que reúne as estações e os anais? Abre-se ali num instante um caminho novo. Vê-se que passam Maria e José e o Menino, que salta logo do colo e suja as mãos na terra, tira da sacola estrelas todas de oiro, e semeia-as na terra com carinho.

 4. Anda à sua volta um bando de boieiras, leves e ledas companheiras, correndo no mesmo chão de oiro semeado. E nós continuamos a passar ali ao lado daquela sementeira toda de oiro, que o Menino pobre acaricia, e logo se transforma em trigo loiro. Mas ninguém para, ninguém acredita que o Menino pode ser dono de um tal tesoiro.

 5. Vem, Menino! E quando vieres para a tua doirada sementeira que logo cresce e se faz messe (João 4,35), quando assobiares às boieiras, chama também por mim, diz bem alto o meu nome, vamos os dois para o campo e para a eira, e enche-me de fome de um amor como o teu, pequenino e enorme.

 6. Meu irmão de Dezembro, levanta-te, olha em redor e vê que já nasceu o dia, e há de andar por aí uma roda de alegria. Se não souberes a letra, a música ou a dança, não te admires, porque tudo é novo. Olha com mais atenção. Se mesmo assim ainda nada vires, então olha com os olhos fechados, olha apenas com o coração, que há de bater à tua porta uma criança. Deixa-a entrar. Faz-lhe uma carícia. É ela que traz a música e a letra da canção. Ela é a Notícia.

Desejo a todos os meus irmãos, sacerdotes, diáconos, consagrados/as e fiéis leigos, doentes, idosos, jovens e crianças da nossa Diocese de Lamego e da inteira Igreja de Cristo, um Santo Natal com Jesus e um Novo Ano cheio das Suas maravilhas. Ele estará sempre connosco nos caminhos da missão e da Alegria do Evangelho.

Vem, Senhor Jesus. Bate à nossa porta.

 + António, vosso bispo e irmão


OS POBRES SÃO EVANGELIZADOS

Dezembro 14, 2013

 

1. «Tendo João ouvido na prisão as obras de Cristo, enviou os seus discípulos, e disse-lhe: “És TU Aquele-que-vem, ou esperamos outro?” E respondendo, Jesus disse-lhes: “INDO (poreuthéntes), ANUNCIAI (apaggélô) a João o que ouvis e vedes: os cegos vêem e os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem e os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados”» (Mateus 11,2-5).

 2. João Baptista não tem dúvidas de que Jesus é o Cristo, o Messias esperado. Se não tem dúvidas, então por que pergunta? Pergunta ou manda perguntar para dar a Jesus a oportunidade de se autoapresentar. É que João Baptista é o velho: «Todos os profetas e a Lei profetizaram até João» (Mateus 11,13). E Lucas acrescenta: «Daí para a frente é evangelizar o Reino de Deus» (Lucas 16,16). João Baptista chegou ao limiar do Novo Testamento, e indicou em Jesus o Messias. Indica-o, mas não o sabe dizer, como o velho não sabe dizer o novo. O novo é Jesus, o Cristo. E porque não o sabe dizer, pede a Jesus que seja ele a dizer-se. A pergunta de João é um sinal de sabedoria.

 3. E a resposta de Jesus, acima transcrita, é clara, mas mais performativa que informativa. De acordo com este belo e transformante dizer de Jesus, é o caudal da evangelização que chega até João. Que o mesmo é dizer: João é evangelizado! Ele é o primeiro «pobre», perseguido pelos poderosos, e, por esse motivo, metido na prisão de Maqueronte. João denunciou abertamente os erros de Herodes Antipas, e este meteu-o na prisão. João não era um «cão mudo» (Isaías 56,10), embriagado à beira da estrada. No escuro das paredes da prisão de Maqueronte, João recebe a «boa notícia» que abre os seus olhos. Permanecendo embora no escuro cárcere, João Baptista recebe a vista de Jesus através da boa notícia que os seus discípulos lhe transmitem: ele é o primeiro «cego» que recebe a vista, o primeiro «pobre» que é evangelizado!

 4. Em contraponto com o Messias anunciado por João Baptista, que vem para julgar já e em força em Jerusalém, empunhando o machado (ver Mateus 3,10) e a pá de joeirar (Mateus 3,12), Jesus instala-se na Galileia, como Luz das Nações (Mateus 4,12-16, cumprindo Isaías 8,23-9,1). É lá que recebe os discípulos de João e de lá os envia de volta para João, como testemunhas de um mundo novo, frágil e feliz, inclusivo e não exclusivo (veja-se a predilecção de Jesus pelos pobres, doentes e pagãos), que está a nascer, e em que Jesus se diz a si mesmo recorrendo a Isaías 29,18-19; 35,5-6 e 61,1.

 5. «Orvalho de luz» (Isaías 26,19) ou de lume, palha incendiada, vida nova a rebentar dos quatro cantos do nosso mundo inerte, em que os vivos quase já não chegam para sepultar os mortos (Sabedoria 18,12). Luzes e vozes de alegria que abrem olhos engessados, rompem ouvidos rombos, entupidos por mato e por silvas, levantam paralíticos que saltam como filhotes de gazela (Isaías 35,6), desatam línguas de mudos e nós cegos que asfixiam corações! Tantos caminhos que se abrem para os deserdados que não têm caminhos, nem luz, nem uma mão ou voz amiga, nem música de dança para ouvir. Mais do que caminhos, são passadeiras floridas, jardins e avenidas (Sabedoria 19,3), tanto sonho, tanta água, tanta luz a irromper pelo deserto, oh Isaías 35,1-6!

 6. A avenida florida é no deserto, engenharia divina, que transporta os seus filhos queridos da escuridão da Babilónia para a luz em flor de Jerusalém. «Ele mesmo, Deus, andará por essa estrada» (Isaías 35,8), esse caminho, essa avenida. Estrada santa, passadeira de luz e de sentido, engenharia divina!

 7. Arrisca um passo nessa estrada divina, nessa estrada de luz e de graça, meu irmão do Advento. Encontrarás com certeza alguém que te levará até Belém. É importante que essa estrada de Amor, Perdão, Bondade, Justiça e Paz chegue à tua porta, à tua casa, ao teu coração. Do coração de Deus ao teu coração. Do teu coração ao coração do teu irmão.

 8. Com paciência, persistência, humildade e amor. Sê como o camponês, que acaricia a semente, lavra a terra, visita o campo para ver crescer devarinho a plantação. Vela também sobre o teu coração, para que não se torne duro e pesado. Vigia com amor, como quem está sempre à espera de alguém que ama, à espera do Senhor que vem. E pode vir na pessoa de um irmão. Não digais mal uns dos outros. Grande lição de Tiago 5,7-10.

 9. Vê-se bem que o melhor e mais belo que anda por aí não é obra nossa. É engenharia de Deus a inundar de Luz este Domingo da Alegria! A nós compete-nos deixar entrar em nós esta torrente de Evangelho, e começar então a ver, sentir e dizer bem, belo e bom. Ajustar a nossa esquadria por essa engenharia.

António Couto


S. JOÃO DA CRUZ

Dezembro 14, 2013

 

«Quando Tu me olhavas,
A sua graça em mim os Teus olhos imprimiam:
Por isso me amavas,
E nisso mereciam
Os meus olhos adorar o que em Ti viam».

(Canciones entre el alma y el esposo, estrofe 25)

S. João da Cruz (1542-1591)


SANTA LUZIA

Dezembro 13, 2013

 

Hoje é Dia de Santa Luzia, Virgem e Mártir. Ainda muito jovem, com pouco mais de vinte anos, deu a sua vida por Cristo nos primeiros anos do século IV, durante a perseguição de Diocleciano.

 Diz-nos o Evangelho de São João que, após a crucifixão de Jesus, quatro soldados dividiram entre si as coisas de Jesus. Mas não dividiram a túnica, porque era tecida de Alto-a-baixo como um todo (19,23-24).

 Quem costura assim senão as mãos de Deus, aquelas mãos que com terra e saliva fazem lodo, que cura a nossa vista e o nosso corpo todo (João 9,6), as mesmas mãos que, com ternura, no cenário da criação, do pó da terra modelaram o nosso humano coração! (Génesis 2,7)

 São João diz-nos ainda que, depois dos quatro soldados, vieram quatro mulheres que se abraçaram à Cruz de Jesus (19,25). Das mulheres diz-nos quem são: A sua Mãe,/ a irmã de sua mãe,/ Maria de Cléofas/ e Maria Madalena.

 Os quatro soldados preferem as coisas de Jesus. As quatro mulheres preferem ficar com Jesus, abraçadas a Jesus.

 Juntemos hoje uma quinta mulher, a Senhora deste dia 13 de dezembro: Santa Luzia.

Santa Luzia, Virgem e Mártir, Padroeira dos olhos e da visão do coração, roga por nós ao Senhor da Luz e da Alegria!

António Couto


O MENINO MANSO E ESTE MUNDO ARMADO

Dezembro 8, 2013

 

1. O texto do Evangelho deste Domingo II do Advento (Mateus 3,1-12) apresenta algumas notas salientes: 1) É notória a sintonia de João com Jesus, dado que ambos abrem o seu ministério, dizendo as mesmas palavras: «Convertei-vos, porque se fez próximo o Reino dos Céus» (Mateus 3,2; cf. Mateus 4,17); 2) ambos colocam o seu ministério com referência a Isaías (Mateus 3,3; cf. Isaías 40,3; 4,14-15; 8,23-9,1); 3) ambos abrem no deserto a sua missão, evocando o Êxodo do Egipto, o novo Êxodo da Babilónia (Ezequiel 20,33-38) e o Êxodo do noivado de Deus com Israel (Oseias 2,16-23), mas também a febre messiânica que situava no deserto o princípio da renovação escatológica; 4) a indumentária de João Baptista (Mateus 3,4) evoca a de Elias (2 Reis 1,8), com o qual é, de resto, identificado por Jesus (Mateus 11,14; 17,12-13).

 2. Se é evocada a continuidade dos ministérios de João e de Jesus, não deixa também de ser bem acentuado o confronto entre os dois: 1) vê-se bem que João Baptista anuncia um Messias juiz, que traz na mão o machado e a pá de joeirar (3,10-12), enquanto que Jesus assumirá a figura de Servo do Senhor manso e humilde (12,17-21); 2) o apelo à conversão que João faz não é dirigido aos pagãos, mas aos israelitas piedosos (3,7-10): portanto, face ao Messias juiz que vem aí, também os justos se devem converter; não é a raça de Abraão que conta, mas a fé; 3) a conversão manifesta-se em fazer fruto, uma ideia recorrente em Mateus (cf. 7,16-20; 12,33; 13,8; 21,41 e 43; 25,40 e 45…); 4) a conversão, aqui expressa pelo verbo metanoéô, não deve ser vista apenas pelo seu significado etimológico: mudar de mentalidade; seria uma maneira de ver muito intimista, mostraria o homem debruçado sobre si mesmo, sobre os seus pecados; ora, a raiz hebraica shûb, sobretudo depois de Jeremias (Isaías 31,6; 45,22; 55,7; Jeremias 3,7.10.14.22; 4,1; 8,5; 18,11; 24,7; 25,5; 26,3; 35,15; 36,7; 44,5; Lamentações 3,40; Ezequiel 13,22; 14,6; 18,23 e 30; 33,9 e 11; Oseias 11,5; 12,6; 14,1-2; Joel 2,12-13; Zacarias 1,3-4; Malaquias 3,7), não implica o dobrar-se do homem sobre si mesmo, mas o orientar-se para ALGUÉM, para Deus, com quem o ser humano cortou relações, distanciando-se e quebrando a aliança. Esta ideia de conversão como caminho de regresso a Deus estava muito disseminada no judaísmo primitivo, mas era desconhecida na religião grega; 5) à vista de Jesus que vem no meio da multidão, como verdadeiro Servo do Senhor (3,13-14), que assume as faltas da multidão, João fica confuso; na verdade, esperava um Juiz, e não um Servo solidário com o povo no pecado (por isso, vem, no meio do povo, a este baptismo de penitência); 6) além disso, e contra todas as expectativas de João, Jesus não vem para baptizar, mas para ser baptizado (3,11.13-14); 7) o diálogo travado entre João Baptista e Jesus (3,14-15) é exclusivo de Mateus (nenhum outro Evangelho o descreve).

 3. Faz-se notório o sonho de um Deus que desce ao nosso meio, não para nos condenar ou derrubar, mas para se tornar solidário connosco.

 4. Isaías 11,1-10, que serve hoje de ressonância ao Evangelho, mostra muito mais o tom manso e suave do Servo do Senhor que Jesus incarna do que o martelo do Juiz que João Baptista prenuncia. Isaías abre diante de nós um mundo novo, tenro e terno, que, visto desde este nosso mundo escuro e tantas vezes desumano, soa a sonho. Ei-lo desenhado nestes versos imensos: «Então o lobo habitará com o cordeiro,/ o leopardo deitar-se-á com o cabrito,/ o bezerro e o leãozinho andarão juntos,/ e um menino pequeno os conduzirá.// A vaca e o urso pastarão juntos,/ juntas se deitarão as suas crias,/ o leão comerá feno com o boi,/ e a criança de peito brincará com a víbora» (Isaías 11,6-8).

 5. Avista-se daqui o Menino de Belém. Uma paz a perder de vista, sem princípio e sem fim. Um mundo novo governado por um menino pequeno. Vê-se bem que não se parece nada com o nosso, cheio de raivas e de ódios, invejas, mentiras, manhas, astúcias, violências e guerras. Nenhum menino poderia governar um mundo assim.

 6. Contra este mundo empedernido e embrutecido embate a ternura do Menino de Belém. Entenda-se bem: não é o menino que está errado; somos nós que estamos completamente errados. É por isso que somos convidados à conversão.

 7. O mundo novo e saboroso que emerge dos textos de hoje é também sublinhado por S. Paulo nas exortações que nos dirige na Carta endereçada aos Romanos 15,4-9. Como seria belo um mundo pautado por uma verdadeira fraternidade em que todos vivêssemos sob o impulso e o alento carinhoso e criador de Deus. Na verdade, todos respiramos o mesmo alento, que o texto grego diz com o belo termo composto homothymadón (Romanos 15,6), que junta homós [= mesma] e thymós [= alma], sendo que thymós deriva de thýô [= soprar]. E que mundo maravilhoso surgiria, rompendo a crosta do egoísmo e da dureza de coração, se «nos acolhêssemos uns aos outros, como Cristo nos acolheu a nós» (Romanos 15,7). Aí está então a comunidade humana irmanada e reunida, porque todos recebemos de Deus o mesmo alento, o mesmo sopro criador (Génesis 2,7), e com uma só boca (en henì stómati) e a uma só voz cantamos os louvores do nosso Deus (Romanos 15,6). Esta linguagem e esta harmonia enchem por inteiro a comunidade primitiva (Actos 1,14; 2,46; 5,12).

António Couto


ALEGRA-TE, MARIA!

Dezembro 7, 2013

 

1. «Fazendo memória da Toda Santa, imaculada, sobrebendita, gloriosa Senhora nossa, Mãe de Deus e Sempre Virgem Maria, juntamente com todos os Santos, consagramo-nos nós e toda a nossa vida a Cristo Deus». Assim se conclui, no rito bizantino, a oração que abre a celebração deste Dia, à qual a assembleia responde: «a Ti, Senhor!». É o «fiat», o «faça-se» dito por Maria (Lucas 1,38), a Serva do Senhor, a ecoar também no nosso coração e a brotar dos nossos lábios. É o eco daquele «faça-se» de Deus na primeira página da Escritura Santa a ecoar no coração de Maria e no nosso também. É aquele «Sim» imenso que atravessa as primeiras 452 palavras da Escritura Santa (Génesis 1,1-2,4a), onde não se lê um único «Não». «Tudo, na verdade, foi feito pelo Verbo» (João 1,3), «n’Ele foram criadas todas as coisas» (Colossenses 1,16), e o Verbo incarnado, Jesus Cristo, no dizer do Apóstolo, «foi sempre Sim, e nunca não» (2 Coríntios 1,19). Aí está a filigrana que faz vibrar a melodia e mostra a verdadeira harmonia da Escritura. Imensa sintonia a ecoar hoje em tantos corações! As partituras desta música divina vêm hoje de Lucas 1,26-38, Génesis 3,9-15.20, Romanos 15,4-9 e do Salmo 98(97).

 2. É bom sabermos e sentirmos que as Igrejas do Oriente e do Ocidente, embora divididas entre si, nos dias 8 e 9 de Dezembro (8 no Ocidente e 9 no Oriente), nove meses antes da Festa da sua Natividade (8 de Setembro), juntam as suas vozes em maravilhosa harmonia para celebrar a Mãe de Deus no singular privilégio da Conceição Imaculada da sua humanidade.

 3. Bem sabemos, além disso, que os Coptos dedicam a Maria o inteiro mês de Kiahq, que coincide mais ou menos com o nosso mês de Dezembro, e os Caldeus, os Antioquenos e os Maronitas celebram, também nesta altura do ano, e durante pelo menos quatro Domingos, o tempo do chamado Sûbbarâ ou «Anunciação», Vinda de Deus ao nosso mundo, notícia após notícia, para abrir as nossas trincheiras e fazer nascer em nós um mundo novo, um cântico novo.

 4. «Onde estás?», pergunta o Deus-Que-Vem por amor ao encontro da sua criatura dilecta (Génesis 3,9). «Tive medo e escondi-me», respondemos nós, amedrontados (Génesis 3,10). A narrativa exemplar de Génesis 3, que hoje lemos, desvenda todas as nossas inúteis estratégias de defesa, e faz-nos ver como nós nos escondemos de nós mesmos e de Deus, e como alijamos facilmente as nossas culpas sobre os outros. Correcto, limpo, terapêutico, salvador, era assumirmos e confessarmos humildemente as nossas culpas. Mas não. Fugimos, escondemo-nos de nós, e respondemos: «Foi a mulher», «foi aquele», «foi aquela», e, em última análise, «foste Tu, foste Tu, Deus» (Génesis 3,12), porque foste Tu que me deste a maravilha de um irmão, de uma irmã, e foi esse irmão dado por Ti, essa irmã dada por Ti, que me deu a comer aquele fruto, fruto de um furto! És Tu, portanto, e em última análise, o culpado. Aí estamos nós a fugir de nós mesmos, e a acusar os outros! E se não assumimos as nossas culpas, como podemos corrigir os nossos erros, e como podemos chegar a descobrir a realidade humana e divina do perdão? Sim, porque quando nos escondemos de Deus, estamos também a esconder Deus e os seus dons, a Alegria, o Amor, o Perdão.

 5. É usual dizer-se que esta conhecida página do Livro do Génesis narra a entrada do mal no coração do homem e no mundo. Mas do que se trata mesmo é da importância da relação do homem com Deus, e diz-nos que o mal entra no mundo quando o homem quebra esta relação e se desliga de Deus. Por isso também, daí para a frente, a Escritura Santa ocupa-se em mostrar que a resposta a dar ao mal não é apenas o bem, mas o santo. Entenda-se: não o homem fechado sobre si, autossuficiente e autorreferencial, mas completamente aberto e voltado para Deus, de quem por amor tudo recebe e se recebe. E completamente voltado para os outros, a quem tudo entrega por amor. Como Maria, a figura deste luminoso Dia.

 6. Em perfeita sintonia, aí está o Apóstolo a dizer o fundamental: «que Deus nos escolheu para sermos santos» (Efésios 1,4) e para nos dar, através de Jesus Cristo, a nossa verdadeira identidade, a filiação divina (hyiothesía) (Efésios 1,5). Entrando assim, por graça, na casa de Deus (Efésios 4,19), andaremos sempre na sua presença. Ele é o Deus Santo que nos santifica. Escutemos também a melodia admirável em que o Apóstolo nos faz entrar na Carta aos Romanos 15,4-9. Como seria belo um mundo pautado por uma verdadeira fraternidade em que todos vivêssemos sob o impulso e o alento carinhoso e criador de Deus. Na verdade, todos respiramos o mesmo alento, que o texto grego diz com o belo termo composto homothymadón (Romanos 15,6), que junta homós [= mesma] e thymós [= alma], sendo que thymós deriva de thýô [= soprar]. E que mundo maravilhoso surgiria, rompendo a crosta do egoísmo e da dureza de coração, se «nos acolhêssemos uns aos outros, como Cristo nos acolheu a nós» (Romanos 15,7). Aí está então a comunidade humana irmanada e reunida, porque todos recebemos de Deus o mesmo alento, o mesmo sopro criador (Génesis 2,7), e com uma só boca (en henì stómati) e a uma só voz cantamos os louvores do nosso Deus (Romanos 15,6), autor de tantas maravilhas (Êxodo 15,11)! Esta linguagem e esta harmonia enchem por inteiro a comunidade primitiva (Actos 1,14; 2,46; 5,12).

 7. O ícone desta santidade, neste mundo, é Maria, no grande texto da Anunciação (Lucas 1,26-38). Vale a pena contemplá-la demoradamente, como fazem as Igrejas do Oriente e do Ocidente. Ao contrário de nós, Maria, visitada por Deus, não foge, não se esconde de si mesma, não se esconde de Deus, não esconde Deus na sua vida. Tinha consagrado a Deus toda a sua vida, a sua virgindade. Não sendo usual no mundo judaico do seu tempo, esta maneira de viver está, porém, solidamente documentada por parte de homens e mulheres. Ao contrário do homem do Génesis e desta sociedade em que vivemos, Maria não se esconde de Deus nem esconde Deus. Expõe-se, na sua verdade e simplicidade, ao imenso clarão de Deus. É assim que se expõe a Deus e que expõe Deus, recebendo e aceitando com amor intenso a sua nova Vocação que lhe vem de Deus. Maria vai ser a Mãe, não de um filho, mas do Filho há muito ansiado, esperado e anunciado nas páginas da Escritura Santa Antiga. É o Filho de Deus, totalmente consubstancial a Deus, e é o Filho de Maria, totalmente consubstancial à sua Mãe. Santa Maria, Mãe de Deus.

 8. Por isso, «Alegra-te, Maria» [= «Chaîre Maria»; «Ave Maria»], «não tenhas medo», «o Senhor está contigo» (Lucas 1, 28 e 30). Alguns anos mais tarde, as mulheres que vão ao túmulo de Jesus ouvirão também a mesma música divina: «Alegrai-vos», «não tenhais medo» (Mateus 28,5 e 9). E nós, Assembleia Santa que hoje se reúne para celebrar os mistérios do seu Senhor e também de Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, estamos também permanentemente a ouvir esta divina melodia. Portanto, irmãos amados em Cristo, Alegrai-vos, não tenhais medo, o Senhor está no meio de nós!

 9. «Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua Palavra» (Lucas 1,38). Deus chama, mas não impõe. A Maria, e a cada um de nós. Podemos sempre aceitar Deus ou esconder-nos de Deus. Deixar Deus entrar, ou fechar-lhe a porta. Maria aceitou, e, por isso, todas as gerações a proclamarão Bem-aventurada (Lucas 1,48). É o que estamos hoje e aqui a fazer: Feliz és tu, Maria, pioneira de um mundo novo, porque acreditaste em tudo quanto te foi dito da parte do Senhor (Lucas 1,45)! Feliz também aquele que ouve a Palavra de Deus e a põe em prática (Lucas 11,28)!

 10. Memorial desta beleza incandescente é a Basílica da Anunciação, em Nazaré. Esta grandiosa Basílica, em três planos, foi inaugurada em 25 de Março de 1969, e foi visitada, ainda as obras estavam em curso, em 1964, pelo Papa Paulo VI. Escavações feitas antes desta grandiosa construção puseram a descoberto, e podem ver-se ainda hoje, os majestosos pilares de uma Catedral levantada em 1099, pelo príncipe cruzado Tancredo, bem como o pavimento em mosaico de uma igreja bizantina, que pode ser datada do ano 450. Mas, descendo mais fundo, até às entranhas da actual Basílica, acede-se à Gruta da Anunciação, sob cujo altar se lê a inscrição Verbum caro hic factum est [«Aqui o Verbo se fez carne»], e a outros lugares de culto antigos, talvez já do século II. Numa grafite antiga foi encontrada a gravação XE MAPIA, abreviação de Chaîre Maria, a primeira Ave-Maria da história.

 11. A uns 200 metros para nordeste encontra-se a Igreja da Nutrição, que guarda a memória de S. José e dos «irmãos de Jesus» do ramo de José, muito zelosos dos seus direitos, tradição bem conhecida na Igreja primitiva, a partir do século II, e fechados aos gentio-cristãos pelo dogma da habdalah [= separação]. Nesse sentido, é sabido que em 570 impediram o Anónimo de Piacenza de visitar a «casa de José», e, em 614, alistaram-se com os Persas de Cosroé, vindo ao de cima o seu zelo destruidor de igrejas «cristãs». Com a vitória de Heráclio, estes judeo-cristãos nazarenos levaram consigo as suas tradições sobre Nazaré e S. José, e ter-se-ão refugiado junto dos coptos egípcios. Logo a seguir, em 670, Arculfo já pôde visitar e descrever a casa de S. José em Nazaré. A descrição de Arculfo vê-se confirmada mais tarde, nas escavações do P. Viaud e de Fr. Benedetto Vlaminck, nos anos de 1890 e 1909-1910, e, mais tarde ainda, em 1970, pelo P. Bagatti.

 12. Foi o Concílio de Basileia (1439) que sugeriu a definição do dogma da Imaculada Conceição, proclamado depois por Pio IX em 08 de Dezembro de 1854, através da bula Ineffabilis Deus. Note-se que o termo «concepção», na linguagem bíblica, indica a totalidade da existência. O velho orante do Salmo 71, olhando retrospectivamente para a sua vida de fidelidade e de amor, exclama extasiado: «Sobre ti me apoiei desde o ventre, desde as entranhas de minha mãe» (Salmo 71,6). Assim também, a existência de Maria está, desde o seu início, sob a protecção de Deus, marcada com o selo de Deus, não estando nunca sob o selo do pecado original, que mostra a existência humana marcada por um projecto alternativo ao de Deus, em que cada existência humana, eu, o meu pai, os filhos que aparecerão sobre a face da terra, queremos ser por nossas próprias forças «como deus, conhecedores do bem e mal» (Génesis 3,5).

 13. Esta celebração da Mãe de Deus e nossa Mãe e Padroeira Principal de Portugal é um desafio imenso para o homem «em fuga» deste tempo, que se esconde de si mesmo, que continua a esconder-se de Deus, e que pretende esconder Deus, retirando-o da via pública e da vida pública. Atravessamos verdadeiramente a «noite do mundo» (Weltnacht), diz Martin Heidegger, onde «Cada um está sozinho no coração da terra/ atravessado por um raio de sol:/ e é logo noite», como bem escreve o escritor italiano Salvatore Quasimodo. Homem deste tempo às escuras, engessado, triste, exilado, escondido, anestesiado, volta para a Luz, reentra em tua casa, no teu coração despedaçado. Há-de seguramente por lá haver ainda, caída no fundo da alma, uma lágrima dorida e uma mão de Mãe à tua espera!

António Couto


REZAR EM TEMPO DE ADVENTO

Dezembro 6, 2013

 

Como é fácil, Senhor Jesus,
Daqui, de ao pé da tua Cruz,
Avistar a paisagem do Advento,
Compreender-lhe a mensagem,
Respirar-lhe o alento.
 
Daqui, de ao pé da tua Cruz de Luz,
Sem dúvida o lugar mais alto do mundo,
Mais alto e mais profundo,
Vê-se bem, com toda a claridade,
Que a lonjura do Advento não é horizontal.
Eleva-se em altura.
Como a tua túnica tecida de Alto-a-baixo,
Vertical,
E sem costura.
 
Tu vens do Alto, Senhor.
Tu vens de Deus.
Tu és Deus.
Tu és o Justo
Que chove das alturas
Sobre a nossa humanidade sedenta e às escuras.
 
Vem, Senhor Jesus,
Alumia e rega a nossa terra dura,
Acaricia o nosso humilde chão
E modela com as tuas mãos de amor
Em cada um de nós
Um novo coração
Capaz de ver.
Capaz de Te ver
Nascer
Em cada irmão.
 
António Couto

S. FRANCISCO XAVIER

Dezembro 3, 2013

1. S. Francisco Xavier, proclamado Padroeiro Universal das Missões (Pio X) e apontado como «Apóstolo mundial dos tempos modernos» (João Paulo II), de quem celebrámos ainda não há muito os quinhentos anos do seu nascimento (07.04.1506 – 07.04.2006), postou-se, na esteira de Paulo, no humilde e fiel seguimento de Cristo, vivendo de Cristo (Fl 1,21), impelido pelo AMOR de Cristo (2 Cor 5,14) e pelo Sim de Cristo – que «não foi Sim e não, mas unicamente Sim» (2 Cor 1,19) –, testemunha da Alegria nova de Cristo (Lc 10,21; 1 Pe 1,8) e cooperador dessa Alegria (2 Cor 1,24). Viveu apenas 46 anos sobre esta terra (07.04.1506 – 03.12.1552). 46 anos plenos de Cristo, de Amor e de Alegria.

 2. Partiu de Lisboa em 07 de Abril de 1541, dia em que completava 35 anos, para uma viagem de 20.000 km, rumo a Goa, onde desembarcou mais de um ano depois, em 06 de Maio de 1542, após paragem de quase meio ano (Setembro de 1541 até Fevereiro de 1542) na Ilha de Moçambique para o restabelecimento dos doentes, enquanto se esperava por ventos favoráveis à navegação. Desde essa data até à sua morte, ocorrida na Ilha de Sanchoão, às portas da China, na madrugada do dia 03 de Dezembro de 1552, vão 10 anos e quase 07 meses de uma desmedida dedicação aos outros, sobretudo aos pobres e doentes, testemunhando com a sua vida humilde e dedicada a Bondade, a Paz e a Alegria do Evangelho.

 3. O Cristo «de la Sonrisa», que muitas vezes contemplou Xavier e que muitas vezes Xavier contemplou, gravou-se no coração e nos lábios de Xavier, tomou conta dele, conformou-se nele, transvazou dele. São, na verdade, muitas as testemunhas que descrevem Xavier «com a boca sempre cheia de riso e da graça de Deus» (Monumenta Xaveriana, tomo 2, Madrid, 1912, p. 291 e 306), luminosa cumplicidade entre Xavier e aquele Cristo «de la Sonrisa».

  CristoDeLaSonrisa

«El Cristo de la Sonrisa», Castillo de Javier-Navarra

O Cristo que contemplou Xavier e que Xavier contemplou

4. É também de salientar a sua ilimitada Confiança em Deus, como transparece de uma sua carta, datada de 05 de Novembro de 1549, escrita de Kagoshima, no Japão, e dirigida aos seus companheiros de Goa:

 «Sei de uma pessoa a quem Deus concedeu muitas graças, que se ocupava muitas vezes, tanto nos perigos como fora deles, em pôr toda a sua Esperança e Confiança n’Ele, e o proveito que daí lhe adveio levaria muito tempo a descrever».

 Aquele «Sei de uma pessoa» lembra Paulo (2 Cor 12,2). Pôr toda a sua confiança em Deus é firmar-se em Deus, viver de Deus e desde Deus. A tanto nos desafia também a nós, hoje, este missionário intenso e dedicado. E aquele Sorriso nos lábios do Crucificado e de Xavier é outro impressionante desafio para nós. Sem esta cumplicidade com Cristo, sem esta Confiança e Alegria, que Evangelho podemos nós viver e testemunhar?

 5. Obrigado, amigo Francisco. Celebrarei gozosamente a tua Festa, a que me associo com particular alegria desde 03 de Dezembro de 1980.

 António Couto