1. A Igreja Una e Santa celebra neste Dia de «Ano Bom», como é usual chamar-se o Primeiro Dia do Ano Civil, a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a que anda associada, desde 1968, a celebração do Dia Mundial da Paz. Neste dia primeiro de janeiro de 2014, é já o 47.º Dia Mundal da Paz que se celebra, mas coninuamos a ver tanta guerra à nossa volta. O Papa Francisco encheu de FRATERNIDADE a sua Mensagem para este 47.º Dia Mundial da Paz, deixando claro que sem a FRATERNIDADE, a Paz fica sem fundamento e sem caminho. O que é que faz então com que a FRATERNIDADE seja tão importante, de tal modo que, com ela, possa haver um mundo feliz e harmonioso, e, sem ela, um mundo conflituoso, desumano e violento?
2. É que a FRATERNIDADE começa por nos deixar a todos com as mãos vazias e abertas, estendidas na direcção da fonte do amor que é Deus Pai. Sim, somos irmãos, porque somos filhos de Deus. O lugar que, de forma mais imediata, nos mostra a FRATERNIDADE, é a família. Mas toda a gente sabe que, numa família, os filhos são diferentes, por vezes de forma bem acentuada, desde logo na ordem do nascimento, mas também da saúde, da inteligência, do temperamento, do sucesso. O segredo é que, não obstante as suas acentuadas diferenças, há um ponto em que são todos iguais. São, na verdade, iguais, não em função do que são ou do que têm ou do que fazem, mas em função daquilo que lhes é dado e feito. Em função do amor que os precede, o amor dos seus pais. É esse amor primeiro que os torna livres e iguais, logo irmãos.
3. Mas este âmbito restrito da família humana serve apenas como imagem da família maior e mais perfeita dos filhos de Deus. De facto, por vezes, há, nas nossas famílias muitas limitações e perturbações de toda a ordem, onde o amor chega a ser terrivelmente ameaçado. A questão tem de ser posta: de quem são os filhos gerados num casal que se ama ou fruto de atropelos e violações? Dir-me-eis: este filho é nosso, fomos nós que o geramos, fui eu que o dei à luz, está aqui o registo de nascimento. E eu pergunto ainda: sim, mas porquê esse, e não outro? É aqui, amigos, que entra o para além da química e da biologia. É aqui, amigos, que entramos no limiar do mistério, na beleza incandescente do santuário, onde o fogo arde por dentro e não por fora. É aqui que caímos nos braços da ternura de um amor novo, patente no colo maternal de Deus, que nenhuma pesquisa biológica ou química explicará jamais. Todo o nascimento traz consigo um imenso mistério. Sim, porquê este filho, e não outro? Porquê este, com esta maneira de ser, este boletim de saúde, este grau de inteligência, esta sensibilidade que lhe é própria? Sim, outra vez, porquê este filho, e não outro, com outra maneira de ser, outro boletim de saúde, outro grau de inteligência, outras aptidões? Fica patente e latente que, para nascer um bebé, não basta gerá-lo e dá-lo à luz. Quando nasce um filho, é também Deus que bate à nossa porta, é também Deus que entra em nossa casa. Ele é a fonte inesgotável do amor verdadeiro e o garante da nossa comum fraternidade. «Deus é Amor» (1 João 4,8.16), «o Amor vem de Deus» (1 João 4,7), «quem ama nasceu de Deus» (1 João 4,7). Portanto, o Amor não é meu nem é teu. Também não é nosso. De forma inequívoca: não é o casal que faz o Amor; é o Amor que faz o casal. Não é um casal que faz os filhos; é o Amor que os faz. Atravessa-nos um calafrio quando nos apercebemos que a humanidade transmite, de idade em idade, de pais para filhos, algo de eterno. Amor eterno, tão terrivelmente ameaçado de idade em idade! O Amor não se conquista nem se compra: «Quisesse alguém dar tudo quanto tem para comprar o amor, seria tratado com desdém» (Cântico dos Cânticos 8,7). O Amor é dado e com gratidão recebido. O título de «Irmão» também não se compra ou conquista ou luta por ele. «Irmão» nasce-se. «Irmão» recebe-se, merece-se, reconhece-se com gratidão.
4. É esse amor eterno, primeiro e verdadeiro, que nos faz nascer como irmãos. A FRATERNIDADE é então o lugar em que cada um vale, não por aquilo que é, nem por aquilo que tem ou por aquilo que faz, mas por aquilo que lhe é feito, antes e independentemente daquilo que deseja, pensa, projecta e realiza, e em que o seu ser é ser numa relação de amor incondicionada, que não é posta por ele, mas em que ele é posto. Passemos então da nossa família para a família de Deus, de quem todos somos filhos e a quem tratamos por «Pai Nosso». À mesa da Eucaristia, que é a mesa que Deus, Nosso Pai, põe para nós, aprendemos que a nossa consciência não é a auto-consciência daquilo que fazemos, mas a hétero-consciência daquilo que nos é feito e que nós somos sempre chamados a reconhecer com gratidão.
5. Assente que seja este fundamento e aberto este caminho, mudam, claro que mudam, os diferentes cenários em que assenta a nossa existência, que é o que nós fazemos, semeamos e cultivamos: ódios, invejas, mentiras, guerras, violência, cada um pensando em si e no seu pequeno mundo, quer numa lógica individual quer colectiva, nacional ou internacional. Só a fraternidade, que assenta numa lógica completamente diferente, não daquilo que eu faço, mas daquilo que me é feito, pode minar e subverter este muro de desumanidade espesso como o gesso.
6. Verdadeiramente, o serviço da Paz deve envolver-nos a todos e reclamar de todos, todos os dias, as nossas melhores energias. O serviço da Paz é um apelo permanente à nossa sabedoria, responsabilidade e pedagogia. O respeito e o amor mútuos cultivam-se, aprendem-se, praticam-se e ensinam-se. Têm de estar bem acesos no nosso humano coração. O que fazemos aos nossos irmãos e dos nossos irmãos, que atenções nos merecem, como olhamos para eles e por eles? Quando deixamos prosperar fundamentalismos, totalitarismos e nacionalismos, fica ameaçada a vida humana, a família, a educação, a liberdade religiosa. Vale a pena lembrar, para que a nossa consciência permaneça sempre lúcida e sensível, que as nossas famílias continuam a ser minadas pelo vento do egoísmo, que há crianças e velhinhos abandonados e «descartados», jovens sem horizontes, tanta gente sem pão, tantos irmãos nossos maltratados, perseguidos e assassinados. Em boa verdade, à luz do paradigma de Caim e Abel, posto logo a abrir a Escritura, todo o homicídio é um fratricídio. Humanidade, o que fizeste de ti mesma?
7. A Paz permanece, portanto, para nós um desafio imenso e intenso, dado que os índices de ódio, de intolerância, de corrupção, de desrespeito e de ganância são cada vez mais elevados motivando uma exploração desenfreada e irresponsável da bondade e da beleza do nosso planeta, decorrendo daí um aumento preocupante dos pobres e deslocados da terra e uma degradação cada vez mais acentuada do ambiente desta casa comum da humanidade. No meio desta lixeira que vamos produzindo, também é notório que cresce cada vez mais uma sociedade indiferente, insensível, demente, dormente e anestesiada, sem amor nem dor nem alegria, simplesmente adormecida no divã dos seus egoísmos, ideologias e comodismos!
8. Muita gente tem falado e vai continuar a falar dos pobres e da crise económica e do cada vez maior buraco de ozono, com muitos números e números muito altos, muito saber e elevada competência técnico-científica. Mas nós, que vivemos do Evangelho, estamos avisados para não ficarmos preocupados quando ouvirmos falar destas coisas e quando virmos estas coisas acontecer (Lucas 21,5-28). E também sabemos que a única crise verdadeira e boa, verdadeira porque boa, acontece quando o Evangelho embate na nossa vida, e a põe em crise, fazendo cair os nossos mais estudados e requintados sonhos, projectos e planos (Isaías 8,9-10), e fazendo nascer caminhos novos e germinar mundos insuspeitados, que Isaías descreve e desenha com rios e flores a despontar no deserto.
9. É assim que, no Evangelho deste Dia (Lucas 2,16-21), e contra toda a estudada lógica e frios calculismos humanos, é aos pastores, que são pobres, desprezados e marginalizados pelos olhares ditos civilizados, que se abre o céu e ouvem um recital de música divina, e é a eles ainda que chega a Grande Notícia e correm ao encontro do Pobre e falam do que ouviram e deixam as pessoas maravilhadas! E de Maria, a Senhora deste Dia, é dito que «conservava todas estas Palavras que acontecem e não esquecem, compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,19). E é dito ainda, num pleonasmo único na Escritura Santa, que Maria «concebeu no ventre» (Lucas 2,21). Redundância. Música divina. O ventre de Maria em sintonia com o «ventre de misericórdia do nosso Deus» (Lucas 1,78), causa da Luz que nas alturas se levanta e visita toda a gente, causa do Rebento que na nossa terra germina, que a nossa terra aquece e alumia, Jesus, filho de Deus e de Maria, a quem neste oitavo Dia é posto o Nome (Lucas 2,21).
10. De Deus vem sempre um mundo novo. Maravilhoso. Tão novo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).
11. Olhada por Deus com singular olhar de Graça foi Maria – também pobre, também Feliz, Bem-aventurada –, Santa Maria, Mãe de Deus, que hoje celebramos em uníssono na Igreja inteira. Para ela elevamos hoje os nossos olhos de filhos enlevados.
12. Mãe de Deus, Senhora da Alegria, Mãe igual ao Dia, Maria. A primeira página do ano é toda tua, Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora de Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de Janeiro, do Dia primeiro e do Ano inteiro.
13. Abençoa, Mãe, os nossos dias breves. Ensina-nos a vivê-los todos como tu viveste os teus, sempre sob o olhar de Deus, sempre a olhar por Deus. É verdade. A grande verdade da tua vida, o teu segredo de ouro. Tu soubeste sempre que Deus velava por ti, enchendo-te de graça. Mas tu soubeste sempre olhar por Deus, porque tu soubeste que Deus também é pequenino. Acariciada por Deus, viveste acariciando Deus. Por isso, todas as gerações te proclamam «Bem-aventurada»! Por isso, nós te proclamamos «Bem-aventurada»!
14. Senhora e Mãe de Janeiro, do Dia Primeiro e do Ano inteiro. Acaricia-nos. Senta-nos em casa ao redor do amor, do coração. Somos tão modernos e tão cheios de coisas estes teus filhos de hoje! Tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade! Temos tudo. Mas falta-nos, se calhar, o essencial: a tua simplicidade e alegria. Faz-nos sentir, Mãe, o calor da tua mão no nosso rosto frio, insensível, enrugado, e faz-nos correr, com alegria, ao encontro dos pobres e necessitados.
15. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos nós e para todos os irmãos que Deus nos deu! Amen!
António Couto