1. Pelo terceiro Domingo consecutivo, a Igreja Una e Santa escuta com amor, da boca do Senhor Jesus, as belíssimas parábolas do Reino dos Céus, guardadas em Mateus 13. Neste Domingo XVII, é-nos dado, por graça, escutar nos nossos ouvidos (cf. Mateus 13,43) o final do «Discurso das Parábolas do Reino» (Mateus 13,44-52), em que nos oferecida uma nova trilogia de parábolas significativas: a parábola do tesouro escondido no campo (Mateus 13,44), a parábola da pérola (Mateus 13,45-46) e a parábola da rede (Mateus 13,47-50).
2. As duas primeiras pequeninas parábolas desta trilogia, a do tesouro escondido no campo e a da pérola preciosíssima, constituem dois fortíssimos acenos a deixar tudo por amor, para, por um amor maior, seguir Jesus, que é o Reino-de-Deus em Pessoa, a Autobasileía, no dizer certeiro e contundente de Orígenes (185-254). A tessitura da parábola do tesouro escondido no campo assenta no velho princípio de que quem adquire um bem imóvel, adquire também os bens móveis a ele ligados. É Jesus o tesouro escondido, é Ele a pérola preciosíssima. Para o seguir, é mesmo necessário deixar tudo (Lucas 14,33).
3. Toda a atenção e empenho, portanto, que o tesouro de Deus não se dá em qualquer campo. São, por isso, necessários novos mapas, novas pautas, novas coordenadas, novas estradas, para se poder procurar e saber encontrar esse tesouro escondido. É mesmo necessário submeter a nossa vida àquela intensa rajada de verbos: «Vai, vende, dá, vem e segue-me!» (Mateus 19,21).
4. A parábola da rede é a que ocupa mais espaço no texto: quatro versículos. Mais do que as duas anteriores juntas. Servindo-se agora de uma imagem tirada do mundo piscatório, Jesus diz que o Reino dos Céus é semelhante a uma rede que, lançada ao mar, apanha toda a espécie de peixes, requerendo depois que os pescadores se sentem na praia para fazer a destrinça entre os peixes bons e os que não prestam. Naturalmente, guardam os bons e deitam fora os que não prestam. A destrinça entre peixes bons e maus não se deve à qualidade ou ao tamanho. Trata-se da distinção entre o puro e o impuro, o que é considerado kasher e não-kasher. Sobre o assunto, diz o Livro do Levítico, que são puros (kasher) e se podem comer os peixes com barbatanas e escamas (Levítico 11,9), tendo de se deitar fora, como impuros (não-kasher), os peixes sem barbatanas e sem escamas (Levítico 11-10-12).
5. Este cuidado meticuloso deve-se ao facto de o Mar da Galileia ser muito abundante em peixe e reunir também uma fauna piscícola muito variada e, em alguns casos, original, salientando-se, neste particular, o chamado «peixe de S. Pedro» (chromis Simonis), que possui uma cavidade oral onde conserva os ovos, e, depois as crias, e onde, por vezes, também recolhe pequenos seixos e objetos metálicos, o que explica o episódio da moeda referido em Mateus 17,27.
6. E tal como na parábola do trigo e da cizânia (ver Domingo XVI), também aqui Jesus difere para o fim do mundo a destrinça entre maus e justos (Mateus 13,49), efetuada ainda assim, não por nós, mas pelos Anjos. Outra vez pausa e bemol na partitura!
7. Esta secção das sete parábolas acerca do Reino dos Céus, contadas por Jesus, fecha com a pergunta formulada por Jesus aos seus discípulos: «Compreendeis todas estas coisas?», a que eles respondem: «Sim!» (Mateus 13,51). Vê-se que esta pergunta e a respetiva resposta correspondem ao dito de Jesus em Marcos 4,13, no final da parábola da semente: «Não sabeis esta parábola? E como conhecereis todas as parábolas?».
8. E Jesus termina com uma espécie de oitava parábola: «Todo o escriba feito discípulo do Reino dos Céus é semelhante a um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas» (Mateus 13,52). Aí está a imensa sabedoria e alegria do discípulo que deve ser como um pai, que dispõe na sua imensa dispensa de produtos excelentes, novos, como o pão fresco, antigos, como o vinho velho. O escriba apenas transmitia as coisas antigas que vinham na torrente da tradição. Aqui está a Divina dispensa do Novo e Antigo Testamentos, Alimento de vida eterna.
9. Chegados a este ponto, já não devem restar dúvidas de que, contando estas sete parábolas do Reino dos Céus, Jesus se conta a si mesmo. É Ele a parábola que passa diante de nós, o Reino de Deus em pessoa (autobasileía) que passa diante de nós. Pequenino como a semente, escondido como o crescente, fecundo como a semente e como o crescente, cai à terra ou na farinha e morre (Paixão) para viver (Ressurreição) e dar vida (Pão), escondido como o tesouro ou a pérola, que é preciso procurar apostando tudo: a vida toda, o tempo todo, o dinheiro todo. O Reino dos Céus é também como o campo em que cresce ao mesmo tempo o bom e o mau, ou a rede que recolhe o bom e o mau.
10. Levanta-se a questão: se, com Jesus e em Jesus, é o Reino de Deus que chega até nós, então por que é que a sua mensagem não é logo recebida por todos sem discussão e com alegria? E por que é que Jesus não se impõe logo com uma autoridade que dissipe qualquer dúvida, que ponha de lado logo à partida qualquer pretensão de qualquer pretenso adversário? E por que é que Jesus não estabelece logo, a talho de foice, claras distinções? Parece tudo ambíguo, e, todavia, desenha-se aqui um rasto de claridade: ontem como hoje, na situação atual, convivem lado a lado o bom e o mau (até em cada um de nós essa convivência é verdadeira), mas esta não é a situação definitiva! Do mesmo modo que, na situação atual, o valor eminente do Reino de Deus e o empenho total que lhe é devido, fica muitas vezes escondido por outras realidades, como a família, a profissão, a posição social, a saúde, o bem-estar, os interesses, as paixões… Note-se que um tesouro escondido, por não ser imediatamente acessível, não se impõe por si, e há muitas coisas cujo brilho e luminosidade as torna imediatamente atraentes! Mas vai-se dando a entender, no chão mesmo das parábolas, que o valor último que valida todos os outros valores é o Reino de Deus e os seus segredos, que é preciso desvendar.
11. Outra sabedoria, outro saber, outro sabor. Salomão afinado, avant la lettre, pelo Evangelho. É assim que a lição do Primeiro Livro dos Reis (3,5-12) nos mostra hoje Salomão a pedir a Deus, não coisas, nem a derrota dos inimigos, mas simplesmente um coração sensível, sensato e inteligente, capaz de escutar e de se sintonizar, em alta fidelidade (hi-fi), com a beleza da Palavra de Deus, muito mais valiosa do que o ouro, como cantamos hoje com o Salmo 119, admirável composição de 1064 palavras hebraicas reunidas, repartidas, repetidas, entretecidas e entretidas à volta da Palavra de Deus que alumia a nossa vida. Blaise Pascal recitava este Salmo todos os dias.
12. Na Carta aos Romanos (8,28-30), S. Paulo conta, aos nossos olhos de crianças deslumbradas, a história verdadeira que o amor de Deus já fez acontecer na nossa vida: já fomos chamados, conhecidos, predestinados, justificados e glorificados por Deus! Por isso, damos graças a Deus!
13. Acrescento hoje, para a devida reflexão, uma edificante parábola rabínica extraída do Bereshit Rabbah (XXXIII, 1) que refere que, quando Alexandre Magno chegou ao norte de África no último quartel do séc. IV a. C., viu as populações do Reino de Qets virem oferecer-lhe os produtos da região. Alexandre, porém, disse-lhes: – «Não vim aqui para ver o que produzis, mas para ver as vossas leis». Por acaso, nessa altura, dois homens foram ter com o rei de Qets, e pediram-lhe que julgasse a sua contenda. O primeiro disse: – «Majestade, comprei um campo a este homem, e, quando o lavrei, encontrei lá um tesouro. Então insisti com ele para que ficasse com o tesouro, uma vez que eu comprei apenas o campo, e não o tesouro. Mas ele recusa-se a aceitar o tesouro». Então o segundo replicou: – «Eu temo a Deus, exatamente como tu. Porque, quando eu te vendi o campo, vendi-to com tudo aquilo que ele continha». Então o rei perguntou ao primeiro homem: – «Tu tens um filho?» – «Sim», respondeu o homem. Depois, perguntou ao segundo: – «Tu tens uma filha?» – «Sim», respondeu ele. – «Então casai os vossos filhos, e dai-lhes o tesouro como dote», sentenciou o rei.
Alexandre Magno manifestou imensa surpresa perante o sucedido. – «Por que ficaste surpreendido? Não julguei bem?», perguntou o rei de Qets. – «Com certeza», respondeu Alexandre. Insistiu o rei de Qets: – «Se isto se passasse no teu reino, qual teria sido a tua sentença?». Alexandre respondeu: – «Eu tê-los-ia matado aos dois, e ficava com o tesouro».
Então o rei de Qets perguntou a Alexandre Magno: – «Brilha o sol no teu país?». – «Sim», respondeu Alexandre. – «E cai chuva no teu país?», continuou o rei de Qets. – «Sim», retorquiu Alexandre. – «No teu país há ovelhas e bois?», continuou a perguntar o rei de Qets. – «Mas com certeza», respondeu Alexandre. Disse então o rei de Qets: – «Agora compreendo porque é que no teu país brilha o sol e cai a chuva. Não é por mérito vosso, mas dos animais, pois está escrito: «O homem e o animal tu salvas, Senhor» (Salmo 36,7).
Tudo ficará mais claro, se disser agora que Qets significa fim. O Reino de Qets é então o Reino das coisas últimas, de éschaton e de agápê, que julga e põe em crise as coisas penúltimas, aquelas que as nossas mãos agarram com tanta força! É o Reino dos Céus das Parábolas de Jesus, o Messias, que «é o único Rei que não reina desde fora».
António Couto