VAI PARA TRÁS DE MIM!

Agosto 29, 2020

1. O Evangelho deste Domingo XXII do Tempo Comum (Mateus 16,21-27) forma uma unidade de alto-a-baixo com o Evangelho do Domingo passado (XXI), em que escutámos a passagem imediatamente anterior (Mateus 16,13-20), que terminava com Jesus a ordenar aos seus discípulos que não dissessem a ninguém que Ele era o Cristo (Mateus 16,20). No Domingo passado não o podíamos saber. Mas hoje, que ficamos a ter acesso ao texto inteiro, já não precisamos de ficar parados no meio da ponte ou em Cesareia de Filipe, sem nunca chegarmos a Jerusalém. Na verdade, depois de ter dado aos seus discípulos aquela ordem taxativa de não dizerem a ninguém que Ele era o Cristo (Mateus 16,20), Jesus abre uma página nova logo no versículo seguinte, falando pela primeira vez, de forma explícita, da sua Paixão e Ressurreição: «começou a mostrar aos seus discípulos que é necessário (deî) – este deî implica necessidade divina ou teológica – que Ele vá para Jerusalém, sofra muito da parte dos anciãos e dos sumo-sacerdotes e dos escribas, seja morto, e ressuscite ao terceiro dia» (Mateus 16,21).

2. Ouvindo estes dizeres incríveis de Jesus, Pedro tomou-o consigo à parte e começou a recriminá-lo, dizendo: «Isso não te há de acontecer» (Mateus 16,22). Aí está como Pedro não viu as palavras que disse: «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!» (Mateus 16,16), como vindas do Pai, por graça, mas como sua produção própria, dentro da sua cultura e religiosidade, colhidas na torrente da tradição religiosa judaica. Para Pedro, tudo normal. Mas atenção que, o que aconteceu com Pedro, acontece connosco muitas vezes, tantas são as ocasiões em que não chegamos a compreender que anda por ali a graça de Deus.

3. E é aqui que Jesus diz a Pedro estas palavras duríssimas e corretivas: «Vai para trás de mim (hýpage opísô mou), satanás! Pedra de tropeço (skándalon) és para mim, porque não pensas as coisas de Deus, mas as coisas dos homens» (Mateus 16,23). Note-se que «atrás de mim» é o lugar do discípulo, exatamente o lugar que Pedro deve ocupar e para o qual foi chamado. «Vinde atrás de mim» (deûte opísô mou), são estas as palavras que Jesus dirige a Pedro e a André, aquando do seu chamamento (Mateus 4,19). Portanto, Pedro deve seguir atentamente atrás de Jesus, e não postar-se à sua frente para lhe barrar o caminho, e tentar que Jesus siga as ideias que Pedro colheu acerca do Cristo na torrente da tradição cultural e religiosa judaica. O apelativo de «satanás» tem aqui o vulgar significado hebraico de «separador» e «adversário». Em nome dos nossos princípios cómodos adquiridos, ignoramos ou não queremos saber da graça de Deus que agora nos indica outros caminhos. E o texto prossegue no mesmo tom determinado, com Jesus a dizer aos seus discípulos que, para o seguirem, é preciso dizer não a si mesmos (aparnéomai), e carregar a cruz todos os dias, perder a vida para a ganhar. Dizer não a si mesmos e seguir Jesus (Mateus 16,24) implica pôr em Jesus a sua confiança, e não nos bens, que nos gritam todos os dias: «confia em nós!» (apólogo judaico de 1700). «Perder a vida por causa de mim» (Mateus 16,25), diz Jesus. Entenda-se: perder a vida desta maneira é perder-se nos caminhos de Jesus, «imitando-o verdadeiramente, e não segui-lo só com os pés», para o dizer com as palavras de Erasmo de Roterdão (1469-1536).

4. Por aqui se vê por que razão Jesus ordenou aos seus discípulos que não dissessem a ninguém que Ele era o Cristo. Pedro tinha dito: «Tu és o Cristo!». Mas, como acabámos de ver, fosse qual fosse a ideia que Pedro tivesse de «Cristo», nela não cabia ainda o sofrimento, a rejeição, a morte, a ressurreição, e muito menos a adesão pessoal de Pedro a este «Cristo», a um «Cristo» assim (Mateus 16,21-22). O que Pedro sabia era o que vinha na torrente do judaísmo desde há muito tempo: que o Cristo vinha para triunfar, para ter sucesso, para estabelecer um mundo de excelência para os judeus, libertando-os dos seus adversários. Viria, enfim, pôr fim a todas as necessidades, discórdias e disputas, à guerra, à doença e à velhice, a tudo aquilo que perturba e diminui os níveis da nossa vida. Ele viria trazer a plenitude da vida. É por isto que Pedro e aqueles discípulos seguem Jesus, e não porque andem à procura de novas ideias religiosas, ou queiram aprender alguma oração nova. Portanto, se os discípulos de Jesus fossem dizer que Ele era o Cristo, era isto que iam dizer, e era isto que a sua audiência judaica ia perceber. Gerar-se-ia uma onda de entusiasmo popular, que soaria a falso, como quando nós falamos de messianismo.

5. O que é que nós dizemos quando dizemos Cristo? E a nossa maneira de viver é verdadeiramente a de quem segue Cristo? Não o Cristo da tradição e do sucesso, mas o Cristo de Deus?

6. O caminho de Jesus é paradoxal e provocatório. Assim o considerou Pedro, mal ouviu a versão nova de Jesus acerca do seu messianismo. Demorou tempo, equivocou-se várias vezes, ficou parado no caminho, aqueceu-se a outro lume, mas quando foi atingido em cheio pela graça, seguiu Jesus apaixonadamente até ao sangue, não apenas com os pés, portanto. É neste caminho ardente que se pode inserir mais uma passagem das chamadas «confissões» de Jeremias, hoje Jeremias 20,7-9. Olhando para o rastro da sua vida, Jeremias confessa que foi irresistivelmente seduzido pelo seu Deus, para logo o acusar, no limite da blasfémia, de velhacaria e engano, pois o abandonou à sua sorte, colocando-lhe na boca palavras violentas e deixando-o à mercê dos seus opressores, que zombam dele e o torturam sem descanso. Neste contexto, Jeremias confessa-se desanimado e tentado a abandonar a sua missão de profeta. Mas a Palavra de Deus volta a assaltá-lo como um fogo, uma lava ardente de que não se pode fugir, pois arde dentro de nós (Jeremias 20,9).

7. As «confissões» de Jeremias encontram-se em Jeremias 11,18-12,6; 15,10-21; 17,12-18; 18,18-23; 20,7-18, e são uma espécie de diário interior, autobiográfico, em que o profeta de Anatôt, uma aldeiazinha situada a meia-dúzia de km a nordeste de Jerusalém, grita a Deus as dores e os amores da sua vida. Jeremias atravessou o período mais dramático da história do seu país, vendo primeiro, em 609, morrer tragicamente o justo rei Josias e subir ao trono o tirano rei Joaquim (609-597), assiste às duas entradas do babilónio Nabucodonosor em Jerusalém, em 597 e 587, sendo a segunda para arrasar Jerusalém e o Templo, deportar o rei Sedecias e pôr fim à nação de Judá.

8. Não coisas exteriores a nós, mas nós mesmos em oferta a Deus, eis o culto lógico (latreía logikê), isto é, racional, integral, pessoal, que Paulo nos exorta a prestar a Deus, conforme a lição de hoje (Romanos 12,1-2), um texto curto, mas imenso. Claro, tudo sempre envolvido na graça preveniente, concomitante e consequente que nos vem de Deus e nos enche de bondade e de beleza, e que faz da nossa vida sacrifício agradável a Deus.

9. De toda esta intensidade faz eco o Salmo 63, conhecido como «o canto do amor místico», em que o orante descreve a sua sede psicobiológica de Deus. Sem Deus, estiola e morre. Santa Teresa de Ávila, de quem, em 2015, celebrámos o V Centenário do seu nascimento, descreveu assim esta sede, no seu Caminho de perfeição: «A sede exprime o desejo de uma coisa, mas um desejo de tal modo intenso, que morremos se não o saciarmos».

António Couto


DIZER JESUS

Agosto 22, 2020

1. Cesareia de Filipe, atual Banyas, na tetrarquia de Filipe, um dos filhos de Herodes o Grande, é o lugar certo para se pôr a questão da identidade de JESUS, que atravessa o Evangelho (Mateus 16,13-20) deste Domingo XXI do Tempo Comum. Cesareia de Filipe, onde se encontra uma das nascentes do rio Jordão, respirava o paganismo do deus Pã e também o culto do Imperador. Ali construiu Herodes um templo dedicado ao Imperador César Augusto, e o tetrarca Filipe, filho de Herodes, deu à cidade, antes conhecida por Pânias, em honra do deus Pã, o nome de Cesareia, também em honra de César Augusto. Dela resta hoje a gruta do deus Pã, lugar que os peregrinos da Terra Santa costumam visitar.

2. É aí, em Cesareia de Filipe, cidade marcada pelo paganismo e pelo culto do Imperador, que Jesus põe a questão da sua identidade. Soberanamente Jesus pergunta: «Quem dizem as pessoas que é o Filho do Homem?» (Mateus 16,13). Dizem-lhe que o povo pensa que Jesus é um profeta. Um entre muitos: antes dele apareceram muitos; depois dele, outros poderão aparecer. De qualquer modo, dá-se a entender que o povo não vê em Jesus uma pessoa singular e única. Ouvida esta resposta, Jesus avança, logo de seguida, de forma direta e enfática, com uma nova pergunta: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» (Mateus 16,15). A esta nova pergunta, posta por Jesus aos seus discípulos que de há muito o seguiam, Simão Pedro foi rápido a responder: «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!» (Mateus 16,16). Jesus declara «Feliz» (makários) Simão, filho de Jonas, não por achar que ele reunia competência humana para expressar aquele dizer, mas por saber que o tinha recebido do Pai (Mateus 16,17). Chamado por Jesus (Mateus 4,18-19). Predestinado pelo Pai (Romanos 8,29-30).

3. De forma diferente do povo, Simão Pedro atinge a singularidade de Jesus. Enquanto Cristo ou Messias, Jesus não é um entre muitos. É único, primeiro e último, definitivo, enviado por Deus para dar à humanidade a plenitude da vida. Sim, enquanto Filho do Deus vivo, Jesus está com o Pai numa relação singular de conhecimento, igualdade, vida. Tal como o Pai, o Filho é a vida em si mesmo. É sobre este dizer de Simão Pedro e sobre o Simão Pedro deste dizer, dizer, não seu, mas recebido do Pai, que Jesus declara que construirá a sua Igreja (Mateus 16,18). Note-se a assonância «Pétros» – «pétra». Mas note-se também que quem constrói a Igreja é Jesus, e não Pedro, e a Igreja a construir também é de Jesus, e não de Pedro: «sobre esta pedra (pétra) construirei a minha Igreja», diz Jesus. Em todo o Novo Testamento, só Jesus e Pedro recebem o apelativo de «pedra». «Rocha», «rochedo», «pedra firme» diz-se, em hebraico, tsûr ou sela‘, terminologia usada no Antigo Testamento por 33 vezes para dizer Deus e a solidez do seu amor fiel. Veja-se, por exemplo, na boca e no coração do Salmista: «O Senhor é a minha Rocha (sela‘) e a minha fortaleza (…), nele me abrigo, meu Rochedo (tsûr), meu escudo e meu baluarte, minha torre forte e meu refúgio» (Salmo 18,3).

4. Mas a forma originária para designar a rocha é keph, aramaico kêpha’, que mostra a rocha, não tanto na sua solidez, mas a rocha escavada, oca, espécie de gruta que serve de lugar de refúgio e acolhimento, onde os pássaros fazem os seus ninhos, os animais guardam as suas crias e os homens se refugiam em caso de guerra: não é sólido, mas dá solidez e proteção a uma vida nova. Este segundo veio de termos, que traduzem a ideia de guardar, proteger, abraçar, envolver, alarga-se num vasto campo onomatopaico: kaph, palma da mão; keph, rochedo esburacado (grutas); kêpha’ (aramaico), rochedo esburacado; kêphãs (grego), rochedo esburacado e acolhedor, nome dado por Jesus a Pedro em João 1,42, única vez nos Evangelhos, mas várias vezes em Paulo (1 Coríntios 1,12; 3,22; 9,5; 15,5; Gálatas 1,18; 2,9.11.14); kipah, folha de palmeira, que serve para proteger do sol, e cobertura que os judeus ortodoxos usam na cabeça para indicar a proteção de Deus; kaphar, cobrir, perdoar; kaporet, cobertura, perdão. Sendo de teor onomatopaico, este som existe na composição de vocábulos em todas as línguas. Esta terminologia abre para um Simão Pedro novo, casa aberta e acolhedora, atento, próximo, cuidadoso e carinhoso, frágil, com a missão pastoral de alimentar e cuidar de todos os filhos de Deus. Mas, entenda-se sempre bem, a casa é Deus, e são de Deus os filhos que nela são gerados, acolhidos e alimentados.

5. Note-se bem a precisão da pergunta de Jesus. De facto, Jesus não pede aos seus discípulos que se pronunciem ou deem a sua opinião acerca do Sermão da Montanha ou sobre outro assunto qualquer, por importante que possa ser ou parecer. A pergunta de Jesus é acerca de Si mesmo, da sua própria identidade, e do grau de implicação dos discípulos com Ele. Daí que Jesus pergunte sobre o dizer. Pedro diz. Não se trata de pensar ou opinar. Trata-se de dizer. Quem diz, compromete-se. Por isso, face ao dizer de Pedro, Jesus declara de seguida: «Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus» (Mateus 16,19). As chaves representam um saber e um poder. Falamos de chaves de uma casa, de uma cidade, de um tesouro, da leitura de um texto. Quem as possui, possui um poder em sede administrativa, jurídica, científica, interpretativa. É assim que o texto de Isaías 22,19-23 fala hoje do «rito das chaves» e do poder retirado a Shebna e conferido a Eliaqîm.

6. As chaves do Reino dos Céus são as chaves do amor e do perdão, traves mestras de uma comunidade unida e confiante, com os pés na terra e o olhar fixo em Deus. Diz, na verdade, a Constituição Dogmática Lumen Gentium: «Aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo» (n.º 9).

7. É importante, porque esclarecedora e mobilizadora, esta nota do Concílio Vaticano II. De facto, Pedro é a Pedra e tem as Chaves do Reino dos Céus, e é-lhe ainda dada a autoridade de ligar-desligar, isto é, de perdoar: «Tudo o que ligares (dêsês: conj. aor. de déô) sobre a terra, ficará para sempre ligado (dedeménon: part. perf. pass. de déô) nos Céus, e tudo o que desligares (lýsês: conj. aor. de lýô) sobre a terra, ficará para sempre desligado (lelyménon: part. perf. pass. de lýô) nos Céus» (Mateus 16,19). Todavia, esta autoridade de ligar-desligar, isto é, de perdoar, é também confiada à inteira comunidade, exatamente nos mesmos termos em que é confiada a Pedro: «Em verdade vos digo: tudo o que ligardes (dêsête: conj. aor. de déô) sobre a terra, ficará para sempre ligado (dedeména: part. perf. pass. de déô) no céu, e tudo o que desligardes (lýsête: conj. aor. de lýô) na terra, ficará para sempre desligado (lelyména: part. perf. pass. de lýô) no céu» (Mateus 18,18). A inteira comunidade assente na Pedra, que é Pedro, com Pedro, como Pedro, não alijando responsabilidades, mas operante na prática quotidiana do Perdão!

8. O texto do Evangelho de hoje termina registando a ordem taxativa de Jesus aos seus discípulos para não dizerem a ninguém que Ele é o Cristo (Mateus 16,20). O texto inteiro deste Evangelho (Mateus 16,13-20) é, então, percorrido por um dizer, e fecha com um não-dizer. Trata-se de um dizer novo, não meramente convencional ou tradicional. Não basta dizer um conjunto de palavras que vêm na torrente da tradição, que se recolhem, e se voltam a dizer. É assim que Pedro respondeu bem [«Tu és o Cristo»], e é louvado por isso. Não obstante, Jesus não quer que os discípulos passem esse dizer a ninguém (Mateus 16,20). Por que será?

9. Para sabermos a razão, temos de esperar pelo próximo Domingo (XXII), pois é aí que escutaremos Mateus 16,21-28, o seguimento imediato do texto deste Domingo XXI (Mateus 16,13-20). Na verdade, o texto integral de Mateus 16,13-28, dividido por estes dois Domingos, forma uma unidade incindível.

10. Entretanto, que o nosso coração esteja cheio do amor primeiro de Deus, e que o louvor que lhe é devido encha os dias da nossa vida. É a bela oração de Paulo na Carta aos Romanos 11,33-36.

11. À bela oração de Paulo junta-se hoje a voz do orante do Salmo 138 com a sua bela Ação de Graças, que é «o canto do chamamento universal», como o define S.to Atanásio (séc. IV). O orante, voltado para o Templo (v. 2), como era usual fazer-se no judaísmo tardio (o islamismo fá-lo-á mais tarde em relação a Meca), sente e sabe que a sua oração não esbarra contra um céu cerrado, surdo e mudo, mas é registada e repercute-se no coração de Deus, que em caso algum abandona a obra das suas mãos (v. 8). Grande Ação de Graças deste orante (v. 1) e dos reis de toda a terra (v. 4). Nossa também.

António Couto


MULHER DA GRANDE FÉ!

Agosto 15, 2020

1. O Evangelho deste Domingo XX do Tempo Comum serve-nos uma página absolutamente desarmante, retirada de Mateus 15,21-28. Desarmante e insólita, pois quando se trata de curar doentes, não é normal que Jesus se faça rogado tanto tempo. A norma é curá-los imediatamente. Mas aqui, é só à quarta tentativa (outra vez o esquema 3 + 1), três tentativas da mulher e uma dos discípulos, que Jesus se decide a curar a filha desta mulher e mãe libanesa. O extraordinário episódio acontece quando Jesus abandona Genesaré, na costa ocidental do Mar da Galileia, e vai para a região de Tiro e de Sídon, atual Líbano, terra pagã. Na maneira de ver do Antigo Testamento, a região de Tiro e de Sídon, a noroeste da Galileia, sobre a costa do Mediterrânio, era uma terra tipicamente pagã.

2. Uma mulher e mãe «libanesa», carregada com o drama da sua filha doente, situação verdadeira ontem como hoje, talvez ainda mais hoje após o drama da recente explosão no porto de Beirute, e que podemos ainda estender à Palestina, à Síria, ao Iraque e a tantos outros lugares do Médio Oriente, vem implorar de Jesus, num grito que lhe sai do fundo das entranhas, que lhe «faça graça» (eléêsón me, kýrie) (Mateus 15,22), isto é, que olhe para ela com bondade e ternura, como ela bem sabia, pois «fazer graça» é coisa de mãe que dirige o seu olhar embevecido para o bebé que embala nos seus braços.

3. A este primeiro pedido da mulher, refere o texto que Jesus nem lhe respondeu (cf. Mateus 15,23). Mas a mulher não desiste, mas insiste e persiste, e continua a gritar, a gritar, a gritar, de tal modo que agora são os discípulos que pedem (segundo pedido) a Jesus que a despache, «porque ela vem a gritar atrás de nós» (ópisthen hêmôn), dizem eles (Mateus 15,23b). Equívoco deles e nosso. Não é verdade que aquela mulher e mãe «libanesa» venha a gritar atrás deles ou de nós, para eles ou para nós. Está bom de ver que ela grita atrás de Jesus, para Jesus! E leva a sua insistência ainda mais longe, prostrando-se (verbo proskinéô) agora diante de Jesus, e formulando o seu segundo pedido (terceiro do relato): «Senhor, salva-me!» (Mateus 15,25). O gesto da prostração significa orientar a sua vida toda para Jesus, pôr-se totalmente na dependência de Jesus. A reação de Jesus é de uma dureza extrema: afasta a pobre mulher e mãe duramente, dizendo-lhe: «Não está bem (kalón) que se tome o pão dos filhos, para o lançar aos cachorrinhos» (Mateus 15,26), catalogando assim aquela pobre mulher e mãe «libanesa» na classe dos cachorros [= pagãos] e não dos filhos [= judeus] (Mateus 15,26). Só para estes é que ele veio.

4. Mas a mulher replica de modo admirável! É a sua terceira intervenção, que carrega o quarto pedido do relato. A resposta daquela mulher e mãe é de tal modo cortante, que deve ser traduzida à letra, para não se perder a sua força. Ela responde: «Mas sim, Senhor (naí kýrie)! É verdade que também os cachorrinhos se alimentam das migalhas que caem da mesa dos seus donos!» (Mateus 15,27). Face a esta tempestade de humildade e de ternura, Jesus replicou: «Ó Mulher, grande é a tua fé!» (ô gýnai, megálê sou hê pístis), e acrescentou: «faça-se como queres!» (Mateus 15,28).

5. Note-se bem que é a única vez que Jesus fala de «grande fé». E atribui-a a uma mulher e mãe «libanesa» cujo amor nunca se vergou perante a dureza e as dificuldades da vida. Em contraponto com esta mulher da «grande fé», note-se bem que Pedro é o homem da «pequena fé» (oligópistos), como vimos no episódio do Domingo passado (cf. Mateus 14,31), do mesmo modo que os discípulos são também os homens «da pequena fé» (oligópistoi) (cf. Mateus 6,30; 8,26; 16,8; 17,20). Admirável ainda que Jesus diga a esta mulher que não desiste, mas insiste e persiste: «faça-se como queres» (genêthêtô hôs théleis), um paralelo claro da oração do «Pai Nosso»: «Faça-se a tua vontade» (genêthêtô tò thélêmá sou) (Mateus 6,10)!

6. O episódio é de uma crueza e de uma beleza inauditas. Mas há ainda mais: é a insistência desta mulher e mãe «libanesa» que, por assim dizer, obriga Jesus a passar mais uma fronteira: de hebraeos ad gentes, dos hebreus para os pagãos! Mas fica também às claras o desmascaramento do ridículo das nossas atitudes falsamente endeusadas, de nós, que nos dizemos discípulos de Jesus, e que às vezes somos levados a pensar que as pessoas vêm «atrás de nós», que temos especiais poderes, e que até podemos conseguir especiais favores! Na verdade, discípula de Jesus é a pobre mulher do Evangelho de hoje, que vai «atrás de Jesus», que «se prostra diante dele», que grita para Ele, e que mostra uma fé inquebrantável!

7. Enquanto tentamos compreender melhor a ousadia da grande fé desta mulher e mãe «libanesa», que enche claramente este Domingo XX, não deixemos também de contemplar o rumor missionário que se faz ouvir, em perfeita sintonia, nas demais passagens ou paisagens bíblicas de hoje. Em primeiro lugar, e em pura sintonia com a universalidade do Evangelho, aí está a lição igualmente aberta de Isaías 56,1-7, que adscreve mais um belo nome a Jerusalém: «Casa de oração para todos os povos» (Isaías 56,7). Jesus citará este texto de Isaías em Mateus 21,13, Marcos 11,17 e Lucas 19,46. Em Mateus e Lucas, só a primeira parte é referida: «A minha casa será chamada casa de oração». Só em Marcos, a citação aparece por inteiro: «A minha casa será chamada casa de oração para todos os povos». Mas Isaías continua a anunciar que os estrangeiros que quiserem servir e amar o Deus santo e ser fiéis à sua aliança, serão por Ele conduzidos ao monte santo, e os seus sacrifícios e holocaustos serão do agrado de Deus (Isaías 56,6-7). Alguns desses estrangeiros serão mesmo escolhidos por Deus para sacerdotes e levitas (Isaías 66,21).

8. Mas este tom de comovida universalidade já se tinha feito ouvir, de forma surpreendente, em Isaías 19,24-25, em que Deus une na mesma bênção o Egito, a Assíria e Israel, sendo o Egito e a Assíria inimigos de Israel. Soa assim o requintado dizer de Deus: «Bendito o Egito, meu povo, a Assíria, obra das minhas mãos, e Israel, minha herança». O amor de Deus não conhece barreiras. A mesma admirável lição se encontra no Salmo 87,4, um maravilhoso Cântico de Sião: «Recordarei Raab e Babel entre os que me conhecem; eis a Filisteia e Tiro e a Etiópia: este nasceu lá». Eis Deus a escrever no livro anagráfico os nomes dos seus filhos. E aí vemos outra vez inscritos os inimigos de Israel: Raab, que é o Egito (Isaías 30,7), a Babilónia, os Filisteus, e os estrangeiros mais estrangeiros, a Etiópia (do grego aíthô [= acender, queimar], e ôps [= rosto]), que é país das pessoas de rosto queimado ou de cor negra, o país do fim do mundo, como escreve Homero, no princípio do Canto I da Odisseia.

9. Vai ainda no sentido da universalidade a lição de hoje da Carta aos Romanos 11,13-15.29-32. São Paulo intitula-se aí «Apóstolo das nações» (v. 13), e diz-nos que Deus usa de misericórdia para com todos (v. 32). É, porém, um facto que o Israel qualificado, entenda-se, a minoria mais fiel e religiosa, não aceitou a visita de Deus mediante o Filho. Foi por esta razão que Paulo foi enviado aos pagãos. Mas os israelitas continuam a ser «amados» (agapêtoí) de Deus (v. 28), e são-no para sempre, tal como o Filho Único é «amado» (agapêtós), pois a Vontade de Deus não muda.

10. Por isso, bem podemos hoje, com o Salmo 67, juntar as nossas vozes às vozes dos povos de toda a terra no mesmo louvor ao Deus que a todos faz graça e misericórdia. O Salmo 67 é uma oração de bênção em forma de petição. Em termos técnicos, equivale a uma epiclese: não «eu te bendigo», mas «Deus nos bendiga». O nosso Salmo 67 recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o singular, por assim dizer, «democratizando» a bênção, agora dirigida a todos, onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel.

António Couto


NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO

Agosto 14, 2020

1. Ainda que com títulos diferentes, mas com temas e conteúdos idênticos, as Igrejas do Oriente e do Ocidente, portanto a Igreja inteira, a Una e Santa, celebra no dia 15 de Agosto a maior e mais antiga festa da Mãe de Deus, a Virgem Santa Maria. No Oriente, é a festa da «Dormição» (koímêsis), enquanto que, no Ocidente, prevalece a tonalidade da «Assunção» (análêmpsis).

2. O Evangelho deste grande Dia relata o belíssimo episódio da «Visitação» (Lucas 1,39-45) seguido do cântico da «Exultação» ou «Magnificat» (Lucas 1,46-56). Note-se outra vez uma pequena diferença de tonalidade: o episódio evangélico que o Ocidente conhece por «Visitação», recebe no Oriente o nome de «Saudação» (aspasmós). E o episódio que precede e motiva esta «Visitação» ou «Saudação» recebe no Ocidente o nome de «Anunciação» e no Oriente o nome de «Evangelização» (euangelismós) (Lucas 1,26-38). Verdadeiramente é a Leveza e a Alegria em trânsito, a caminho, ao ritmo do vento do Espírito, música nova, inefável e bendita. Vinda de Deus até Maria, até Isabel, até João Baptista, outra vez até Deus. Lembra uma pequena parábola rabínica que, quando David andava fugido de Saul, buscando refúgio nas montanhas (1 Samuel 22 e seguintes), um dia dependurou a sua harpa numa árvore, e adormeceu. Mas o vento, passando, fez as cordas da harpa exalar uma suave melodia. Verdadeira música do Espírito.

3. É igualmente sugestiva a intuição dos Mestres judaicos, registrada por Martin Buber nos seus «Contos dos Justos». Citando o Salmo 147,1, em que se lê: «É bom cantar ao nosso Deus», Buber apresenta logo a bela interpretação que Rabbí Elimelek dava deste versículo: «É bom se o homem faz cantar Deus nele». Música divina. Assim Maria correndo sobre os montes e saudando Isabel, em casa de quem permanece cerca de três meses, e cantando as maravilhas de Deus no Magnificat, assim Isabel bendizendo Maria e bendizendo Deus, assim João Batista, dançando ao som dessa nova música inefável, no ventre de Isabel.

4. Maria correndo sobre os montes: feliz evocação do mensageiro de boas notícias de Isaías 52,7: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia boas novas a Sião…». Feliz evocação também do amado do Cântico dos Cânticos 2,8, assim cantado pela amada: «A voz do meu amado: ei-lo que vem correndo sobre os montes». Assim, com este simples acorde montanhoso, o narrador e grande retratista do terceiro Evangelho traça o perfil de Maria movida, não por uma pressa qualquer, mas por uma grande notícia e pelo amor. A aclamação de Isabel: «Bendita tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre» [= «Bendita tu e bendito Deus»], lembra o duplo «Bendito» na aclamação de Judite (13,18). A locução maravilhada de Isabel: «E de onde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?» (Lucas 1,43), remete para o atónito dizer de David: «E de onde me é dado que venha ao meu encontro a Arca do Senhor?» (2 Samuel 6,9). E a «dança de João» reclama a dança de David na presença da Arca do Senhor (2 Samuel 6,5.14.16.21). E os «cerca de três meses» de permanência de Maria em casa de Isabel, regressando então a sua casa (Lucas 1,56), não são, como vulgarmente se pensa, para indicar que Maria está presente no nascimento de João Baptista, pois este apenas é narrado no versículo seguinte (Lucas 1,57). É, antes, outra vez o acerto com a Arca do Senhor, que permanece cerca de três meses na casa de Obed-Edom (2 Samuel 6,11). Os acordes textuais evidentes mostram Maria como a Arca da Aliança, como, de resto, é aclamada pelo Povo de Deus, quando recita a ladainha de Nossa Senhora.

5. O que verdadeiramente me extasia e inebria é esta música outra, ventilando as cordas do nosso humano, e quase sempre orgulhoso, coração. Vem outra vez a propósito a velha sabedoria judaica, que nos legou esta bela pequena história: «Conta-se que, quando David terminou o Livro dos Salmos, se sentiu muito orgulhoso. Então disse para Deus: “Senhor do mundo, quem de entre todos os seres que criaste, canta melhor do que eu a tua glória?”. Naquele momento, apareceu uma rã que lhe disse: “David, não te envaideças. Eu canto melhor do que tu a glória de Deus”» (Sefer ha-Haggadah, 89b).

6. Aí está, a descoberto, na lição do Livro do Apocalipse (11,19; 12,1-6.10), a Arca da Aliança, a Mulher messiânica, a Igreja, Maria, grávida de um Filho que nasceu, «sinal» para sempre aceso e legível da presença viva e ativa de Deus no meio de nós, como a luz de uma vela, para a celebração festiva dos filhos de Deus reunidos. Avista-se, porém, outro «sinal» de sinal contrário, que serve para nos manter unidos e atentos no meio das dificuldades e perseguições desta vida, que, todavia, não devem toldar-nos a vista da salvação e da vitória, claramente a descoberto no horizonte onde brilha a esperança: «Agora cumpriu-se a salvação, a força e o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo» (Apocalipse 12,10).

7. O final da Primeira Carta aos Coríntios (15,20-27) põe um imenso selo de luz e de esperança na celebração luminosa deste Dia. Com a Ressurreição de Cristo salta à vista a poeira de toda a iniquidade e falsidade e morte, e já se vê a «assunção» da nossa frágil humanidade em Cristo e por Cristo até Deus Pai. «Cristo foi ressuscitado (egêgertai: perf. pass. de egeírô) dos mortos, primícias (aparchê) dos que adormeceram» (1 Coríntios 15,20). Ele é, portanto, o primeiro Homem a ser ressuscitado. E se é o primeiro e primícias, então representa-nos a todos e constitui promessa e certeza para todos. Nele a morte foi vencida para todos. A esperança fundamenta-se na certeza deste Acontecimento principal da Vida do Senhor, que dá significado a todos os outros acontecimentos da sua Vida, ao inteiro Antigo Testamento, à Igreja e à vida de todos os homens.

8. O belíssimo Canto de Amor, que é o Salmo 45, serve hoje para celebrar a Igreja Esposa e Mãe, e Maria Esposa e Mãe. Este belo hino, como o Cântico dos Cânticos, canta o Amor, que é sempre divino e humano. Na verdade, no amor humano pode ler-se o amor revelado por Deus, pelo que, se existe o amor, existe Deus. Não admira, por isso, que este Salmo tenha sido interpretado em clave messiânica quer no judaísmo quer no cristianismo.

9. Pela Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de 1 de Novembro de 1950, o Papa Pio XII proclamava a Assunção da Virgem Maria como dogma de fé. Mas é desde os primeiros séculos do Cristianismo que o Povo de Deus aclama, proclama e vive com amor intenso esta realidade. Quantas igrejas, paróquias e dioceses a têm como Padroeira! E, neste particular, este recanto Peninsular, terra de Santa Maria, não podia ser exceção. O Povo de Deus desde muito cedo aclamou a Assunção de Maria, Mãe de Deus e esperança da nossa frágil humanidade.

10. Um lugar guarda esta memória em Jerusalém. É preciso descer ao vale que corre a Oriente da cidade, o famoso vale do Cédron. Deixando à direita o Getsémani com as suas oliveiras seculares e a Basílica da Agonia de Jesus, muito próximo da Gruta dos Apóstolos ou da Prisão de Jesus, chega-se a um pátio pavimentado que dá para uma monumental fachada, que é o que resta de uma grande Igreja aí construída pelos Cruzados. Por detrás dessa fachada, estende-se uma escadaria que nos leva a uma cripta situada nas entranhas do vale do Cédron. É esta cripta que guarda um túmulo do século I, que a tradição cristã identifica com o túmulo de Maria, em forma de banco escavado na rocha, e que se apresenta bastante degradado devido à tentação dos peregrinos que, ao longo dos tempos, não resistiram a levar consigo um pedacinho da rocha que esteve em contacto com o corpo da «Bendita».

11. No dia da Solenidade da Assunção, é comovente ver aquela escadaria escura iluminada como um tapete de luz, devido às velas que os fiéis colocam em cada degrau. Conduzindo embora para um túmulo, a sensação que se cria é que aquela escadaria descendente, feita tapete de luz, abre para uma ianua coeli, «porta do céu», como também cantamos na litania de Maria.

12. No seguimento lógico da Assunção de Maria, a Igreja celebra oito dias depois, em 22 de Agosto, a Memória da Virgem Santa Maria, Rainha, proclamação também devida a Pio XII, através da Carta Encíclica Ad Coeli Reginam, de 11 de Outubro de 1954. Mãe Elevada aos Céus, mas Mãe que vela carinhosamente pelos seus filhos. O Rei e a Rainha não são, na Bíblia, títulos de nobreza, mas traduzem a dupla função de quem deve estar particularmente próximo de Deus e particularmente próximo dos homens. Para acolher de perto toda a Palavra que vem do coração de Deus, e para trazer à humanidade a prosperidade, o bem-estar e a felicidade. Tal é a função do Rei e da Rainha.

 

Nossa Senhora da Assunção,

Santa Maria do verão,

Ao céu elevada,

À minha beira sentada,

Com sua roca de linho,

E um novelo inteiro de carinho.

 

Olha por nós,

Senhora da Assunção,

Não nos deixes sós,

Dá-nos sempre a mão,

Vela pelos velhinhos,

Nesta hora de pandemia,

Não nos deixes morrer

Por míngua de oração

Ou de alegria.

 

Envolve-nos, Senhora,

No teu manto,

No teu manto de luz,

Que nos alumia,

E mostra-nos Jesus,

Que alivia

As nossas dores

E os nossos temores

No meio desta pandemia.

Ave-Maria!

 

António Couto


A VOZ DE UM FINO SILÊNCIO!

Agosto 8, 2020

1. A Igreja primitiva considerava a BARCA como figura da Igreja. Tertuliano (150-220) parece ter sido o primeiro a expressar esta temática por escrito (De Baptismo, XII, 7). E é fácil perceber a ligação: a BARCA aparece como um dos lugares em que JESUS está no meio dos seus discípulos e a sós com eles. De facto, a BARCA demarca um espaço privilegiado que JESUS condivide apenas com os seus discípulos. Mais ninguém entra nesta BARCA. No relato de Mateus, apenas por uma vez, e é o texto que temos a graça de escutar neste Domingo XIX (Mateus 14,22-33; cf. Marcos 6,45-52; João 6,16-21), os discípulos vão sozinhos na BARCA, sem Jesus. Mas surgem problemas, que os discípulos não conseguem resolver sozinhos. Esta importante cena serve também para mostrar que, sem Jesus, os discípulos não conseguem ter sucesso e correm perigo. A situação preparada por Jesus, que faz os seus discípulos subir sozinhos para aquela BARCA (cf. Mateus 14,22), serve para fazer ver aos seus discípulos de todos os tempos que precisamos de viver sabendo que Ele está sempre presente no meio de nós, ainda que não de modo visível e sensível, ainda que, porventura, nem sequer nos apercebamos da sua presença. A BARCA serve para atravessar o mar encapelado, que são as perseguições e as adversidades deste mundo. Mas apenas na companhia de JESUS. Ontem como hoje.

2. Na costa ocidental do Mar da Galileia, nas proximidades de Magdala, foi descoberta uma BARCA de pesca do tempo de Jesus. Tinha 8 metros de comprimento por 2,5 metros de largura. Já se vê que se trata de uma embarcação frágil, presa fácil das ondas.

3. Os relatos de Mateus e de Marcos anotam a hora da chegada de Jesus, andando sobre o mar: quarta vigília da noite, que o mesmo é dizer, entre as três e as seis horas da manhã. «Andando sobre o mar» é claramente um indicador divino, pois Deus é aquele «cuja estrada é no meio do mar,/ e o seu caminho sobre as muitas águas» (Salmo 77,20). Mas Mateus empresta a este episódio uma tonalidade própria, pois é o único a inserir o diálogo de Pedro com Jesus. Também Pedro caminha sobre as águas, a seu pedido, e seguindo a ordem de Jesus: «Vem!». Entenda-se bem: Pedro caminha sobre as águas como Jesus, mas não com autoridade própria. O que Pedro faz, assenta na Palavra de Jesus e na Fé que o liga a Jesus. Importante lição: Pedro faz o mesmo que faz Jesus enquanto permanecer vinculado a Jesus pela Fé. Esmorecendo a Fé em Jesus, Pedro torna-se presa fácil de outras forças e sucumbirá no meio da tempestade. Pedro como nós. Sentindo o perigo, Pedro grita: «Salva-me, Senhor!». E sente logo a mão de Jesus que o segura. Nós como Pedro.

4. A outra figura deste Domingo é Elias, «o fugitivo» (1 Reis 19,9-13). «Fugitivo» de si mesmo, de todos e de tudo. Todos o procuram para o matar, o mundo perdeu o seu encanto e o seu sentido, e até Deus não parece ser mais o mesmo. Como esta lição está cheia de atualidade…

5. E o certo é que este Elias, que surge solto na página, sem pai nem mãe, sem livro anagráfico, apenas com Deus do seu lado (cf. 1 Reis 17,1-24), continua a ser conduzido e comandado por Deus, que o salva da morte no deserto (cf. 1 Reis 19,5-8), e que o liberta das suas próprias amarras, fazendo-o sair (SAI!) para fora do escuro e do medo (cf. 1 Reis 19,11), e abrindo à sua frente um caminho novo, tenro e frágil, como o que espera um bebé que sai do ventre materno. SAIR (yatsa’) é o verbo do Êxodo, mas é também o verbo do nascimento! Ouve-se, nesta página imensa, por duas vezes: no v. 11, no imperativo («Sai!»), e no v. 13, no indicativo («Elias saiu»).

6. É assim que o menino Elias, recém-nascido e recém-libertado, assiste no Sinai à sequência teofânica antiga: vento forte, terramoto, fogo! Tudo manifestações desatualizadas de Deus. Outra vez a sequência 3 + 1, a fazer apostar toda a atenção no 4! E aqui, depois do vento, do terramoto, do fogo, Elias ouve «a voz de um fino silêncio!» (1 Reis 19,12b).

7. Entenda-se: a voz de um cortante silêncio, voz de Deus que arde e opera dentro de nós. Colagem de figuras: «A tua Palavra ardia no meu coração como um fogo devorador,/ encerrado dentro dos meus ossos», confessa Jeremias 20,9. Já Moisés tinha descoberto aquela chama viva, que ardia no meio da sarça e não queimava,/ mas chamava (cf. Êxodo 3,2-4). Também os dois de Emaús sentiram o coração a arder, devido à Palavra e ao Sentido novo que abria caminhos onde caminhos não havia (Lucas 24,32). Elias encontrou essa Palavra nova na «voz de um fino silêncio» (1 Reis 19,12), escrita fina de Deus,/ com ponta de diamante,/ no coração do homem (cf. Jeremias 17,1; 31,33). E o autor da Carta aos Hebreus compara esse «fino dizer» ou «escrever» a uma espada de dois gumes, um bisturi, que opera e limpa a esclerose do coração (cf. João 15,3) e o zelo estéril, que rasga o âmago do homem e lhe deixa soltas as pregas do coração (cf. Hebreus 4,12; Apocalipse 1,16). É claro que este silêncio suave não é o silêncio que Elias se preparou para fazer. Elias não se preparou para silêncio nenhum. Ele partiu para o Sinai à espera de se encontrar lá com o Deus forte e invencível, Senhor do vento, do terramoto e do fogo! Não é, portanto, o silêncio que move Elias. E quando lá chega, Elias também não faz silêncio! É o silêncio que faz Elias! Não sou eu que faço silêncio! É o silêncio que me faz!

8. Na lição de hoje da Carta aos Romanos, S. Paulo lembra-nos que há um amor maior, que o leva até ao ponto de desejar dar a vida pelos seus irmãos! (Romanos 9,1-5). Vê-se bem que Paulo atingiu a estatura de Cristo! (Efésios 4,13).

9. Sim, anda por aí um amor maior, que é o tesouro e a pedra preciosíssima de Mateus 13,44-46, que tivemos a graça de ouvir no Domingo XVII. Anda por aí a maravilha, e nós continuamos, desfocados pelo medo do vento ou da tempestade, ou à procura de maravilhas, e, sem dar por isso, estamos a perder a capacidade de cantar! Cantemos então, percorrendo as belíssimas avenidas do Salmo 85, que aqui redesenhamos com as palavras do poeta inglês John Milton (1608-1674): «Sim, a Fidelidade e a Justiça, então,/ retornarão ao encontro dos homens,/ envoltas num arco-íris, e, gloriosamente vestida,/ a Bondade sentar-se-á no meio…/ E o céu, como para uma festa,/ escancarará as portas do seu palácio excelso».

10. Sim, as avenidas são por dentro! É dentro que arde o fogo, que fala o silêncio, que corta o bisturi! Atenção, portanto, ao modo novo, intransitivo, de viver!

 

Elias anda ao sabor de Deus,

Como um moinho ao vento,

Como um pássaro ao relento,

Como a voz de um fino silêncio,

A amadurar no coração de um grão de trigo

Ou de um amigo.

 

Como se pode combater este incêndio,

Apagar esta chama que chama,

Calar a voz deste fino silêncio,

Fugir deste bisturi que levamos cá dentro?

 

Jeremias tem outra vez razão:

É mais fácil enfrentar um furacão.

Esse, sabemos de onde vem e para onde vai!

 

António Couto


EM LINHA COM A RESSURREIÇÃO E A MISSÃO

Agosto 6, 2020

1. A Igreja celebra hoje, dia 6 de agosto, a Festa da Transfiguração do Senhor. Batizado no Jordão, tentado no deserto, mas Vitorioso, Jesus começou a executar o seu programa filial batismal que tem por meta a Cruz Gloriosa (Batismo consumado!) em que nós somos por Ele batizados com o fogo e com o Espírito Santo (sempre o luminoso texto de Lucas 12,49-50). Entre o Jordão e a Cruz Gloriosa aí está Hoje, a meio caminho do seu itinerário, o episódio da Transfiguração (Mateus 17,1-9), Luz incriada e inacessível (Mateus 17,2; cf. Salmo 104,2; 1 Timóteo 6,16) que investe a Humanidade de Jesus: experiência momentânea da Ressurreição, mediante a qual o Pai confirma o Filho na sua missão filial batismal, já iniciada, mas ainda não consumada. Que a Transfiguração deve ser vista à luz da Ressurreição, fica bem patente no dizer das Igrejas do Oriente que chamam à Festa da Transfiguração, que se celebra no dia 6 de Agosto, «a Páscoa do verão». Mas está também claro na ordem taxativa de Jesus ao descer do monte, que aponta também para a Ressurreição: «A ninguém digais esta visão até que o Filho do Homem seja Ressuscitado dos mortos» (Mateus 17,9).

2. Jesus impõe, portanto, na nossa pauta musical pausa e bemol, e mostra-nos a clave em que deve ser vivida, compreendida e transmitida a vida cristã. Não podemos dizer a Transfiguração do Senhor, antes da Ressurreição do Senhor. E não podemos, porque não sabemos. E não sabemos, porque é só o Ressuscitado que faz vir o Espírito Santo sobre nós. Veja-se a lição do Livro dos Atos dos Apóstolos: «Este Jesus, Deus o Ressuscitou, e disto todos nós somos testemunhas. Exaltado à direita de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou-o, e é o que vedes e ouvis» (Atos 2,32-33). E o comentário preciso e precioso do narrador às palavras que Jesus acabava de proferir: «Isto disse do Espírito que haviam de receber os que tinham acreditado n’Ele, pois não havia ainda Espírito [para nós], porque Jesus ainda não tinha sido glorificado» (João 7,39). Pausa e bemol, porque importa que não sejamos nós a falar. Importa que seja o Espírito Santo a falar em nós. Toda a atenção, neste sentido, para o grande dizer de Jesus: «Quando vos entregarem, não vos preocupeis com ou como falais (laléô). Ser-vos-á dado naquela hora o que falar (laléô). Na verdade, não sois vós que falais (laléô), mas será o Espírito do vosso PAI que falará (laléô) em vós» (Mateus 10,19-20).

3. A tradição situa o «monte alto», que abre o episódio da Transfiguração (Mateus 17,1), no Tabor, um monte de forma arredondada que se ergue nos seus 582 metros no meio da planície galilaica de Jesrael ou Esdrelon. No sopé do Tabor ainda hoje se encontra a aldeia palestiniana de Daburiyya, cujo eco evoca a personagem bíblica mais importante desta região, a profetisa Débora (cf. Juízes 4,4-5,31). As Igrejas do Oriente conhecem este episódio da Transfiguração por «Metamorfose» (metamórphôsis), a partir das palavras do texto: «E transformou-se (metemorphôthê) diante deles [= Pedro, Tiago e João], e resplandeceu o seu rosto como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz» (Mateus 17,2). O branco é a cor divina. E a luz é o seu vestido, conforme o estupendo dizer do Salmo 104,2: «Vestido de Luz com de um manto». E, nesse cone de luz, o Apóstolo exorta-nos: «Caminhai como filhos da luz», e lembra-nos que «o fruto da luz é toda a bondade, justiça e verdade» (Efésios 5,8 e 9).

4. Batizado para a Cruz Gloriosa, Confirmado para a Cruz Gloriosa. As mesmas palavras do Pai no Batismo e na Transfiguração: «o Filho Meu», «o Amado» (Mateus 3,17; 17,5), agora seguidas pelo imperativo «Escutai-o!», dirigido a todos os discípulos: Jesus é também o «Profeta novo», como Moisés, prometido em Deuteronómio 18,15-18. Testemunham a cena grandiosa da Transfiguração três discípulos, como dispunha a Lei antiga: duas ou três testemunhas (Deuteronómio 17,6), os quais são igualmente confirmados para a sua missão futura (após a Ressurreição com a dádiva do Espírito) de dar testemunho d’Ele. Aparecem Moisés e Elias que falam com Jesus Transfigurado: é para Ele que aponta todo o Antigo Testamento! As «Escrituras», Moisés, todos os Profetas e os Salmos, falam acerca d’Ele! (Lucas 24,27 e 44; João 5,39 e 46; Atos dos Apóstolos 10,43). É o «segundo as Escrituras» que os discípulos também devem testemunhar. Pedro, sempre ele, em nome dos discípulos de então e de sempre, tenta impedir Jesus de prosseguir a sua missão filial batismal até à Cruz: «Senhor, bom é estarmos AQUI… Levantarei AQUI três tendas» (Mateus 17,4). AQUI significa deter-se no provisório, no preliminar e no penúltimo, e recusar caminhar para o definitivo e o último! Marcos 9,6 e Lucas 9,33 anotam criteriosamente que «não sabia o que dizia». Não sabia, porque ainda não tinha sido batizado com o Espírito Santo e com o fogo; quando o for, saberá também ele, discípulo fiel, batizado e confirmado, levar por diante a missão filial batismal em que foi investido, e dará testemunho até ao sangue.

5. A Ressurreição é a Transfiguração tornada permanente, eterna. Todos os batizados estão destinados à mesma Ressurreição, Transfiguração, do Senhor: a Divinização por graça.

6. Da lição do Livro de Daniel 7,9-10.13-14 e respetivo contexto imediatamente anterior (7,3-8) e posterior (7,15-27), faz transbordar a indescritível riqueza do nosso Deus, solenemente sentado no seu trono de Luz e de Fogo purificador, que inutiliza o poder das quatro bestas enormes saídas do mar com aspeto terrível, e que têm o aspeto de um leão com asas de águia, de um urso com costelas na boca, de um leopardo alado com quatro cabeças, e de um monstro metálico aterrorizador, com enormes dentes de ferro que tudo tritura e espezinha. Tinha ainda dez chifres na cabeça, mas nasceu-lhe entretanto um outro mais pequeno e insolente, com uma boca que proferia palavras arrogantes. Estas bestas representam quatro impérios: babilónio, medo, persa e grego (de Alexandre Magno e seus sucessores). Os dez chifres são os reis da dinastia Selêucida, e o décimo primeiro é Antíoco IV Epifânio (175-163). O tribunal divino toma assento para julgar o arrogante Antíoco, que é morto e destruído. E vê-se então, em contraponto com as bestas que saem do mar, símbolo da desordem e do mal, o Filho do Homem que vem sobre as nuvens, do mundo celeste, portanto. A ele é entregue o reino eterno, não assente no poder prepotente da brutalidade, mas no poder manso do Amor (Daniel 7,13-14). Fica bem claro que todos os nossos impérios prepotentes e ferozes, por mais fortes que pareçam, caem face à doçura da Palavra e da Atitude mansa do Filho do Homem, que dissolve no Amor, que é o poder manso que lhe é dado para sempre, as nossas raivas e violências, manifestações das bestas bravas que nos habitam. O Filho do Homem vence, portanto, sem combater, este combate. É assim que caem as quatro bestas ferozes que sobem do mar (Daniel 7,3), símbolo da confusão e do mal, e que deixará naturalmente de existir quando forem desenhados os novos mapas de um novo céu e de uma nova terra (Apocalipse 21,1).

7. O domínio novo do Filho do Homem que nos ama (Apocalipse 1,5), o domínio do Amor, é Primeiro e Último (Apocalipse 1,8). Entre o Primeiro e o Último instala-se o penúltimo, que é o domínio velho e podre da violência das bestas ferozes que nos habitam. O Bem é desde sempre e é para sempre. É Primeiro e é Último. O Bem não começou, portanto. O que começou foi o mal que se foi insinuando nas pregas do nosso coração empedernido e enrugado. Mas o que começa, também acaba. Os impérios da nossa violência, malvadez e estupidez caem, imagine-se, vencidos por um Amor que é desde sempre e para sempre, e que vence, sem combater (só pode ser por amor), a nossa tirania e prepotência!

8. Entenda-se bem que tem de ser sem combater. Porque, se combatesse, usaria os nossos métodos violentos, o que só aumentaria a violência. É assim que Jesus, o Filho do Homem, atravessa as páginas dos Evangelhos e da nossa história e da nossa vida, entregando-se por Amor à nossa violência, abraçando-a e, portanto, absorvendo-a, absolvendo-a e dissolvendo-a.

9. Pedro, na sua 2 Carta 1,16-19, coloca-se como Testemunha ocular, quer do poder do amor que Jesus recebeu de Deus Pai, quer da sua manifestação gloriosa no monte santo, que confirma a palavra dos profetas. Pedro exorta-nos a prestar atenção a esta palavra, que é como uma luz que brilha no escuro, até que surja a «Estrela da Manhã», que é Cristo (Apocalipse 22,16).

10. Canta-se Hoje o Salmo 97, que canta o Senhor na ação de reinar, isto é, de salvar, de justificar, de perdoar, de recriar, de trazer a prosperidade e o bem-estar ao seu povo e aos seus fiéis. Deus, como Rei, manifesta-se circundado pelos seus assistentes cósmicos (nuvens, trevas, fogo, relâmpagos) e históricos (justiça, direito, glória) (v. 1-6). Face a tão esplendorosa manifestação, os ídolos e idólatras caem por terra (v. 7-9), e os fiéis exultam de alegria (v. 10-12). Os fiéis e justos são definidos com sete expressões particularmente significativas: 1) aqueles que amam o Senhor; 2) aqueles que odeiam o mal; 3) aqueles que são fiéis (hasîdîm); 4) aqueles que são justos (tsaddîqîm); 5) os retos de coração; 6) homens de alegria; 7) aqueles que celebram o «memorial da sua santidade» (zeqer qodshô). Comenta bem o Livro dos Mistérios, de Qumran, que perante a manifestação e inauguração deste Reino novo de Deus, «a impiedade recuará diante da justiça, como as trevas recuarão diante da luz; a impiedade desaparecerá para sempre, e a justiça, como o sol, apresentar-se-á como princípio de ordem no mundo» (1Q27, I,5-7).

11. A Festa que a Igreja hoje celebra é antiga e fortemente impressiva no Oriente. Celebra-se a Imagem de Cristo Transfigurado, e que nos Transfigura. Daí, a importância da Contemplação. O Ocidente conheceu esta Festa tardiamente e celebrou-a esporadicamente, com oscilações locais e de calendário. A Igreja Universal celebra esta Festa apenas desde 1457.

António Couto


O PÃO NÃO SE MATA!

Agosto 1, 2020

1. O Evangelho deste Domingo XVIII do Tempo Comum (Mateus 14,13-21) é conhecido como a primeira «multiplicação dos pães», realizada, neste caso, em mundo judaico. Mas vê-se bem que o título de «multiplicação» é inadequado, pois o que está aqui em causa não é, na verdade, uma multiplicação, mas uma divisão, condivisão ou partilha.

2. Neste episódio, salta à vista o comportamento compassivo, acolhedor, hospitaleiro, inclusivo e de partilha de Jesus em confronto com o comportamento insensível, não-acolhedor, exclusivista, frio, mercantilista, consumista, egoísta e egocêntrico destes discípulos de Jesus, que propõem a Jesus que mande as pessoas embora, para que cada um compre de comer para si mesmo (Mateus 14,15). Em cena estão duas maneiras opostas de ver e de fazer: a de Jesus e a dos discípulos de Jesus. O diagrama a seguir mostra os dois comportamentos em confronto:

Jesus Discípulos
Misericórdia

Acolher

Curar

Dar

Condividir

Insensibilidade

Excluir

Mandar embora

Comprar

Cada um para si

 

3. Vistas bem as coisas, o comportamento destes discípulos, e, se calhar, o nosso também, opõe-se, ponto por ponto, ao comportamento novo de Jesus. O que Jesus faz à vista dos seus discípulos e em confronto com os seus discípulos parece ser em primeiro lugar para eles, para nós, para baralhar as nossas contas e a nossa esquadria mercantilista. A questão não está, de facto, em produzir mais. A questão está em partilhar mais, de preferência tudo. O que Jesus ensina a estes discípulos de mentalidade consumista é que condividir, partilhar, é a melhor maneira de multiplicar. Não é preciso produzir mais para partilhar mais. A grande operação de sinal : [= dividir] ou x [= multiplicar] é na lousa do coração que se faz. A celebração da Eucaristia, com Jesus sempre no meio de nós, partindo e repartindo o seu pão, reclama de nós que ensaiemos novas maneiras de fazer!

4. O narrador termina o episódio, informando-nos que aquela multidão de pessoas ficou saciada, e que ainda «sobraram» doze cestos! (Mateus 14,20). Note-se que o verbo grego usado para dizer «sobrar» é o verbo perisseúô, que implica o excesso que ultrapassa toda a medida e a abundância que transborda, tornando inadequadas e ultrapassadas todas as nossas pequenas medidas! É assim normal que o narrador nos informe de que, com os pedaços que sobraram, os discípulos encheram doze cestos, símbolo da plenitude transbordante e inesgotável. Quem aprendeu a partilhar a vida sabe bem que sobra sempre mais!

5. De notar que, aos olhos atónitos dos discípulos e dos nossos, Jesus não fez uma operação de «multiplicação» dos pães, mas de «divisão» e «condivisão», «partilha» dos pães! O milagre de Jesus – aquilo que suscita surpresa e maravilha – não consiste em aumentar a quantidade do pão (que permanece a mesma), mas em abrir os olhos aos seus discípulos e a nós que, como cegos, só conhecemos e pensamos na lógica consumista de produzir mais, vender mais e comprar, bons acionistas, e não chegamos a saborear a lógica da gratuidade, que é a do nosso Pai celeste que faz nascer o sol para os bons e para os maus. Entrar nesta lógica é acreditar na força do dom, e ir por este mundo consumista, partindo o pão e dividindo-o, com a clara consciência de que onde isto acontecer, não só se instaura o necessário para todos («todos comeram e foram saciados»), mas instaura-se igualmente o «excesso» que toda a dádiva e partilha contêm, a superabundância da graça («os discípulos encheram doze cestos»). E tudo isto acontece num deserto! Devia ser mais fácil ver aí exposta sobre a mesa a lição da nossa auto inssuficiência!

6. Em perfeita sintonia com o Evangelho de hoje, a lição de Isaías 55,1-3 é fantástica: «Todos vós que tendes sede, vinde às águas!/ Vós, que não tendes dinheiro, vinde!/ Comprai cereal e comei!/ Comprai cereal sem dinheiro,/ e sem pagar, vinho e leite./ […] Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom!» (Isaías 55,1-2). Está aqui o elo que faltava: o verbo comprar, significativamente não agrafado com dinheiro. Comprar cereal sem dinheiro. Mas esta lição de Isaías reforça ainda a conjunção entre palavra e alimento, com aquela proposta: «Ouvi-me, ouvi-me, e comei!», que soa também a abrir o Livro do grande profeta: «Se vierdes e escutardes, o melhor da terra comereis» (Isaías 1,19), clarificada pelo confronto: «Mas se vos recusardes e vos rebelardes, será a espada que vos comerá» (Isaías 1,20). Um Deus bom e Pai convida os seus filhos sedentos e famintos a sentar-se à sua mesa e a comprar sem dinheiro o bom alimento. Note-se bem o oxímoro (comprar sem dinheiro) que nos deve (des)orientar sempre! Enquanto não entendermos isto, reprovaremos sempre no teste que Jesus fez a Filipe e faz a nós hoje também: «Filipe, onde compraremos pão para que eles comam?» (João 6,5). Era um teste, diz-nos o narrador (João 6,6), e Filipe pôs-se a contar o dinheiro e a pensar no shopping! (João 6,7). Pelos vistos, não conhecia este imenso texto de Isaías, nem o Deus bom e Pai que dá coisas boas aos seus filhos! Nem aquela fantástica articulação do ouvido com o alimento («Ouvi-me, ouvi-me, e comei!»), que faz da Palavra de Deus o verdadeiro pão dos seus filhos! No meio de uma pandemia, devia ser mais fácil perceber a nossa auto inssuficiência, mas continuamos orgulhosamente a apregoar a nossa autossuficiência!

7. O pão dado, partido, condividido é um dom de Deus («Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom!») (Isaías 55,2), faz nascer novas maneiras de viver, alarga a tenda e o coração, gera fraternidade e comunhão. Também por isso, ainda hoje, os beduínos do deserto não cortam o pão com a faca, e explicam que «o pão não se mata!». Sim, «o pão não se mata!»: parte-se e reparte-se!

8. De facto, quando matamos este pão cujo fermento é o amor e a alegria de estarmos reunidos como filhos e irmãos, o que nos resta? Sim, diz bem S. Paulo, na lição de hoje da Carta aos Romanos 8,35-39: «Nada nos pode separar do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo!».

9. Por isso, cantemos hoje, com o hino do Salmo 145, até que vibrem as cordas do nosso coração, e enquanto saboreamos a sua graça, misericórdia, amor e bondade (Salmo 145,8-9): «Abris, Senhor, a vossa mão, e saciais a nossa fome!» (Salmo 145,16). Tanta coisa nova para aprender neste Domingo.

 

Bendito o dia em que outra vez rezamos,

E outra vez sempre de novo.

Rezar é voltar sempre ao princípio,

E recitar com mais amor cada uma das tuas maravilhas.

 

Assim,

Talvez a oração não tenha fim,

Porque é uma viagem dentro de mim,

Fora de mim,

Enunciando nomes, dores, alegrias, guerras, fomes,

Calcorreando montanhas, vales, avenidas,

Colhendo frutos no coração das árvores,

Partilhá-los com os passarinhos

Na toalha multicolor que estendeste sobre este chão dourado.

 

Rezar é saber bem

Que as coisas belas que vemos neste mundo são todas tuas,

E a mais ninguém pertencem.

E quem agora as tem na mão deve acariciá-las,

Partilhá-las,

Porque as tem apenas emprestadas.

 

Obrigado, Senhor,

Pelo céu e pelo chão,

Pelo vinho e pelo pão,

E por cada irmão que me deste.

 

António Couto