NÃO ADORES NUNCA NINGUÉM MAIS…

Maio 29, 2021

1. Mateus 28,16-20: última página do Evangelho de Mateus, que hoje, Solenidade da Santíssima Trindade, é solenemente proclamada para nós. Encerra o Evangelho de Mateus, condensa-o e resume-o, e abre aos Discípulos e Irmãos do Ressuscitado novos e insuspeitados horizontes.

2. Algumas notas surpreendentes enchem a página, o pátio, o átrio sempre entreaberto do Evangelho para o mundo: a autoridade soberana e nova de Jesus, assente, não na distância, mas na proximidade e familiaridade (1); a missão universal confiada a uma Igreja discipular, toda reunida à volta de um único Mestre e Senhor (2); só nesta página é dito que os Discípulos devem, por sua vez, ensinar, não se tornando, todavia, Mestres, mas permanecendo Discípulos (3); não ensinam, por isso, nada de próprio nem por conta própria, mas apenas «tudo o que Ele mandou» (4); a Presença nova e permanente [= «todos os dias»] do Ressuscitado na comunidade dos discípulos (5).

3. A soberania nova, próxima e familiar, é já preparada pela cena anterior em que o anjo reorienta os passos das mulheres do túmulo para a Galileia, dizendo-lhes: «Indo depressa, dizei aos seus discípulos que Ele ressuscitou dos mortos e vos precede (proágei hymâs) na Galileia» (Mateus 28,7). De forma grandemente significativa, Jesus apresenta-se às mulheres no caminho, e reformula assim o dizer do anjo: «Ide e anunciai aos meus irmãos que partam para a Galileia, e lá me verão» (Mateus 28,10). Aí está a nascer a nova e indestrutível familiaridade: meus irmãos, diz Jesus, apontando para nós e envolvendo-nos num imenso abraço fraternal. E chegados à Galileia, de acordo com o dizer de Jesus, e à montanha indicada por Jesus (Mateus 28,16), é ainda Jesus que toma a dianteira e se aproxima deles e de nós (Mateus 28,18). É sempre d’Ele a iniciativa. A montanha lembra e reúne em analepse todas as montanhas que atravessam o Evangelho de Mateus: a montanha da tentação (Mateus 4,8), a das bem-aventuranças (Mateus 5,1), a da oração (Mateus 14,23), a das curas (Mateus 15,29) e a da Transfiguração (Mateus 17,1), em que é sempre Ele que abraça e abre caminhos à nossa frágil humanidade.

4. Aquele «Indo (poreuthéntes), fazei discípulos (mathêteúsate) de todas as nações» (Mateus 28,19), é a missão sem fim que é colocada diante dos nossos olhos, pois todas as nações são todos os corações. E «Ir» é não ficar aqui ou ali à espera. É a estrada sem medida de Abraão que se abre à nossa frente. E se medida tem é a medida sem medida da eleição, da bênção e da missão. Mas não estamos sozinhos nessa estrada. Ele está connosco todos os dias. O seu nome, a sua identidade, é estar connosco. É assim a terminar o Evangelho: «Eu convosco sou todos os dias até ao fim dos tempos» (Mateus 28,20). Note-se a intensidade e a beleza da sanduíche: «Eu convosco sou» (Egô meth’ hymôn eimi). É assim a abrir o Evangelho: «Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um Filho, e chamá-lo-ão Emanuel, que se traduz: “Deus connosco”» (Mateus 1,23). Então é assim todo o Evangelho, como indica a figura da inclusão literária. Mas a inclusão literária em paralelismo ou em confronto vai ainda da Galileia (Mateus 4,12-17) à Galileia (Mateus 28,16), da visão (Mateus 2,11) à visão (Mateus 28,17), da adoração (Mateus 2,11; 4,9) à adoração (Mateus 28,17), do poder dado (Mateus 4,9) ao poder dado (Mateus 28,18).

5. E aquele «ensinando» (didáskontes) discipular, e não magistral, apela mais à nossa fidelidade do que à nossa autoridade e criatividade. De resto, para evitar dúvidas e deixar tudo claro, lá está bem expresso o conteúdo deste ensinamento novo: «tudo o que Eu vos mandei» (Mateus 28,20). É só permanecendo Discípulos fiéis que se pode ensinar. Discípulo define o estilo de vida de quem segue com fidelidade o Senhor que nos preside e nos precede sempre.

6. Atente-se também neste discurso em dois tempos de Moisés no Livro do Deuteronómio (4,32-40), salientando a iniciativa gratuita de Deus e exortando-nos à verdadeira Sabedoria bíblica: SABE HOJE! Não se trata de um saber assente naquilo que fizemos, fazemos ou faremos, centrado em nós, mas naquilo que, por amor, nos foi feito, nos é feito e nos será feito. Páginas admiráveis, em que a consciência do homem não é a autoconsciência daquilo que eu fiz, mas a hétero-consciência daquilo que me é feito e que eu sou HOJE chamado a reconhecer: «SABE HOJE e volta-o no teu coração: sim, o Senhor, teu Deus, é o único Deus nos céus, no alto, e sobre a terra, em baixo, e não há outro» (Deuteronómio 4,39).

7. SABE hoje e VOLTA-O NO TEU CORAÇÃO! Outra Sabedoria, outro saber, outro sabor. À outra luz do coração, que é onde arde o dom de Deus, Sabedoria de Deus, escrita nova de Deus no coração, viagem de Jeremias 17,1 a Jeremias 31,33, lume novo no coração dos dois Discípulos de Emaús (Lucas 24,32), em todos os que estavam reunidos em Jerusalém (Atos 2,3), e que Paulo quer acender no coração de Timóteo e no nosso (2 Timóteo 1,6).

8. Mas também o Espírito Santo, ensina-nos Paulo na Carta aos Romanos 8,14-17, hoje lida, escutada e meditada, opera em nós, tornando-nos de tal modo participantes da vida do Filho, que nos capacita a tratar a Deus por ʼAbbaʼ, Pai, com a mesma intimidade de Jesus (Romanos 8,15). É a adoção filial, a hyiothesía, termo jurídico grego, desconhecido no mundo hebraico, com o qual Paulo quer indicar a graça divina que constitui o homem na dignidade de filho de Deus de modo totalmente imprevisível e gratuito. Oh admirável ciência do amor e da graça, que nos põe a nós, filhos acabados de nascer, a balbuciar o mais belo nome de Deus!

9. Enfim, o Salmo 33, que hoje cantamos, é um verdadeiro «canto novo» (shîr hadash) a fazer vibrar as fibras do nosso coração. Mas é também música sem palavras (terûʽah) (Salmo 33,2), jubilação, exultação, lalação de radical confiança da criança que em nós sorri e dança, porque Deus vela por nós.

10. E não nos esqueçamos que «adorar» é «orientar a vida toda para…». Adorar Jesus é orientar a vida toda para Jesus. Adoremos hoje o Pai e o Filho e o Espírito Santo, unidos no mesmo Nome (Mateus 28,19). Não adores nunca ninguém mais…

O Filho e o Espírito Santo são,

No dizer de Santo Ireneu de Lião,

As duas mãos do Pai,

Enviadas em missão

Para junto dos seus filhos de adoção.

À semelhança, claro,

Daquelas mãos de amor,

Que, no alvor da Criação,

Modelaram da terra pura o nosso coração,

E de misericórdia o vestiram.

Filhos no Filho, divina hyiothesía,

Hemorragia de graça e de alegria:

Jesus, o Filho, assume a nossa humana condição,

E dá-nos em herança a sua divina filiação.

E o Espírito, que une e distingue o Pai e o Filho,

Divina comunhão, sem confusão,

Toma conta do nosso coração de filhos recém-nascidos,

E faz circular em nós, já hoje, já esta manhã,

A mais bela lalação que há, o nome novo Ab-ba!

António Couto

Advertisement

O ESPÍRITO SANTO E NÓS!

Maio 22, 2021

1. O Evangelho da Solenidade deste Dia Grande de Pentecostes (João 20,19-23) mostra-nos os discípulos de Jesus fechados num lugar, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou impedir de entrar ou de sair, nem as portas fechadas daquele lugar fechado, Vem e fica de pé no MEIO deles, o lugar da Presidência, e por duas vezes os saúda: «A paz convosco!», Shalôm. Mostra-lhes, não o rosto, mas as mãos e o lado, bilhete de identidade de Jesus, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, Vida dada por amor, para sempre e para todos, e vincula os seus discípulos à sua missão de dar a vida por amor: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): a sua missão começou e continua. Não terminou nem termina. Ele continua em missão. A nossa missão está no presente. O presente da nossa missão aparece, portanto, vinculado e agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). «Como o Pai me enviou, também Eu vos mando ir». Este como define o estilo da nossa missão de acordo com o estilo e a missão de Jesus. É-nos dito ainda que os discípulos ficaram cheios de alegria (o medo foi dissipado) ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo, também eles vêm com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito Santo, para a missão frágil-forte do Perdão, Jubileu Divino do Espírito. Este sopro, este vento, este alento, só aparece neste lugar em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

2. «Recebei o Espírito Santo» (João 20,22). É o Espírito Santo que nos faz «filhos de Deus», «filhos no Filho», irmãos de Jesus e seus contemporâneos, e impede que sejamos catalogados, como reza a história empírica, em simples continuadores de Jesus.

3. O texto luminoso do Livro dos Atos dos Apóstolos 2,1-11 mostra-nos o vento impetuoso do Espírito a recriar e renovar a nossa face e a face da terra, em duas vagas sucessivas: primeiro, no cenáculo, onde estávamos todos reunidos (v. 1-4); depois na rua, onde está a multidão das gentes oriundas do mundo inteiro (v. 5-11). Num e noutro lugar, em toda a parte, o vento impetuoso do Espírito varre as teias de aranha que ainda nos tolhem, e purifica os nossos corações com o seu fogo ardente. O Espírito, irrompendo em línguas como de fogo, não poisa, mas senta-se (kathízô) – bela e significativa expressão! – sobre nós (v. 3), Mestre novo dos tempos novos, que viria para orientar e guiar a nossa vida, como Jesus tinha prometido e anunciado, por cinco vezes, no Evangelho de João: 14,15-17; 14,25-26; 15,26; 16,7; 16,13-15. Verificação: eis-nos a falar outras línguas, dádiva do Espírito! Milagre: cessam incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças, e nasce um mundo novo de comunhão e comunicação plenas, pois todos nos entendemos tão bem como se se tratasse da nossa língua materna no seu sentido mais puro, da palavra antes das palavras, divina e humana lalação, aquele balbuciar, repetindo sons, entre a mãe e o seu bebé. Chame-se-lhe confiança, intimidade, ternura, amor. Impõe-se, nesta bela comunidade, uma atitude de vigilância permanente, pois será sempre grande a tentação de querer levar o Espírito à letra! E aí está a advertência vinda dos Coríntios, cujo falar em línguas ninguém entende (1 Coríntios 14,2), sendo preciso o recurso a intérpretes (1 Coríntios 14,28). Todos consideraríamos um absurdo a existência de um intérprete entre a mãe e o seu bebé para traduzir aquela lalação que os dois tão bem entendem!

4. É esta divina lalação (alálêtos) (Romanos 8,26) – única vez no Novo Testamento –, do Espírito que nos ensina a compreender que «Jesus é Senhor» (1 Coríntios 12,3) e que Deus é Pai (ʼAbbaʼ) (Gálatas 4,6; Romanos 8,15). Anote-se também a importante afirmação de que «a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum» (1 Coríntios 12,7) e «não para proveito próprio» (1 Coríntios 10,33), sendo que o que define o proveito comum é a edificação, não de si mesmo, mas dos outros (1 Coríntios 10,23-24).

5. A tradição situa no Cenáculo e à sua volta, em frequências cada vez mais alargadas, as duas cenas acima descritas (João 20,19-23 e Atos 2,1-11). É a sala da Ceia Primeira, do último serão de Jesus com os seus discípulos, da Aparição do Senhor aos seus Apóstolos, da eleição de Matias, da descida do Espírito Santo no Pentecostes, enfim, o primeiro lugar de encontro da primeira comunidade cristã reunida em oração com Maria (Atos 1,13-14), a primeira sede da Igreja nascente, a mãe de todas as Igrejas, a primeira domus-ecclesia [«casa-igreja»] do mundo, situada uns duzentos metros a sul da muralha de Jerusalém, em local muito próximo da Porta de Sião. O atual edifício remonta ao trabalho dos Padres Franciscanos no século XIV, e sucedeu a outras construções sucessivamente edificadas e destruídas, desde a basílica de Santa Sião [Hagía Sion], do século IV. Sintomaticamente, por se encontrar no quarteirão sul de Jerusalém, o primitivo Cenáculo resistiu à destruição romana da guerra de 70, pois os romanos atacaram e destruíram a cidade a partir da parte norte, mais facilmente expugnável.

6. Associada às cenas acima identificadas, a sala superior do Cenáculo [15,30 metros por 9,40 metros] assemelha-se ao Sinai com os fenómenos então lá registados. Veja-se, a propósito, a bela descrição que deles faz Fílon de Alexandria (± 20 a.C.-50 d.C.): «Deus não tinha boca ou língua, mas, com um prodígio, fez que um rombo se produzisse no ar, que um sopro se articulasse em palavras pondo o ar em movimento. Este transformou-se em fogo que tinha forma de chamas […], e uma voz ressoava do meio do fogo e descia do céu, e esta voz articulava-se no idioma próprio dos ouvintes». Mas também Babel é evocada em contraponto: em Génesis 11,7, «ninguém compreendia mais a língua do seu próximo», mas em Atos 2,6, «cada um compreendia na sua própria língua materna».

7. O Espírito Santo é também enviado em missão. E é Aquele que recebe o que é do Filho (João 16,14 e 15), e que o Filho recebeu do Pai. O Filho é a transparência do Pai. O Espírito Santo é a transparência do Filho. O ensinamento do Espírito Santo é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), e processa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência e do coração de cada ser humano. Este ensinamento interior do Espírito Santo é comparado à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos sabeis (oídate)» (1 João 2,20); ou então: «a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 João 2,27). É a unção que lentamente penetra em nós, ocupa o nosso interior, suaviza as nossas asperezas, cura as nossas dores e faz nascer entre nós comunidade e comunhão. Maravilhoso saber que nos assemelha a Deus, que sabe de nós (Êxodo 2,25), e nos põe em confronto com Caim, que não sabe do seu irmão (Génesis 4,9), e com Pedro, que não sabe de Jesus (Mateus 26,70.72.74).

8. Ensinamento novo. Não exterior, com sons e palavras, mas diretamente nas pregas da inteligência e do coração. É assim que a linguagem nova do Espírito afeta ao mesmo tempo o português e o chinês, o inglês e o russo, o católico, o muçulmano e o hebreu. É como quando, em vez de se porem a falar cada um a sua língua incompreensível para o outro, o português e o chinês entregassem uma flor um ao outro! É assim que fala o Espírito, é assim que age o Espírito, Pessoa-Dom, fonte de dons (1 Coríntios 12,3-13).

9. Escrevendo aos Romanos (8,9-13) e a nós, S. Paulo adverte-nos que não é «na carne» (en sarkí), mas «no Espírito» (en pneúmati), que devemos viver. E ele insiste em dizer como é importante Cristo estar «em vós» (en hymîn), e o Espírito, Aquele que ressuscitou Jesus dos mortos, habitar (oikéô) «em vós» (en hymîn). A carne tem a ver com o currículo, o status, a importância, a ganância… Para nossa instrução e mapa de vida, podemos sempre socorrer-nos do vasto elenco, sempre atualizado, das «obras da carne», que S. Paulo faz na Carta aos Gálatas: «São manifestas as obras da carne, que são: fornicação, impureza, devassidão, idolatria, magia, inimizades, rixa, ciúme, iras, ambições, dissensões, divisões, invejas, bebedeiras, orgias, e coisas semelhantes a estas, sobre as quais vos previno, como já preveni, que os que tais coisas fizerem não herdarão o Reino de Deus» (Gálatas 5,19-21). E podemos também ver o confronto que ele faz com os «frutos do Espírito», que são: «amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio» (Gálatas 5,22-23).

9. O Salmo 104 põe-nos a contemplar hoje as obras maravilhosas de Deus, cheias do seu alento, que são a alegria de Deus (Salmo 104,31), e a alegria de Deus é a nossa alegria (Salmo 104,34). «A alegria de Deus é a nossa força» (Neemias 8,10). De notar que a temática de Deus que se alegra é muito rara na Escritura. Aparece hoje no meio deste mundo novo e maravilhoso. Tema, portanto, para recuperar, pois é também a fonte da nossa alegria!

10. Nós somos do tempo da missão do Espírito, Aquele que vem para nós da humanidade glorificada do Filho de Deus e de Maria, Jesus. Note-se a fortíssima e ousada vinculação: «O Espírito Santo e nós» (Atos 15,28).

11. Deus habitando em nós (João 14,24). Deus connosco (Apocalipse 21). Cidade nova, Consolação nova, Bênção nova, Paz nova, não com a medida do mundo, mas de Deus (João 14,27; Salmo 67).

Todas as tuas criaturas, Senhor,

respiram, vivem, sorriem,

cantam,

por causa do teu alento criador.

O teu pão de mil sabores

sacia todas as fomes e todas as dores,

a tua Palavra bela e plena de harmonia

a todos envolve e alumia,

irmana, aconchega e alivia.

Por isso,

ainda que espalhados pelos quatro cantos do mundo,

continuamos todos reunidos no Cenáculo,

a primeira Catedral da Igreja nascente,

mas com ramificações em todas as casas,

em todos os corações,

bem assente em quatro colunas:

o ensino dos Apóstolos,

a comunhão fraterna,

a fração do pão

e a oração.

Com a boca cheia de louvor,

os olhos de graça,

as mãos de paz e de pão,

as entranhas de misericórdia e de perdão,

a comunidade bela crescia, crescia, crescia.

Não admira.

era tão jovem, leve e bela,

que as pessoas lutavam por entrar nela!

Envia, Senhor,

sobre nós,

o teu vento,

o teu alento,

o teu Espírito,

e renova por favor,

renova por amor

a nossa face

e a face da terra.

António Couto


ASCENSÃO DO SENHOR

Maio 15, 2021

1. Também hoje, Solenidade da Ascensão do Senhor, dada a riqueza e a delicadeza da filigrana do texto do Evangelho de Marcos 16,15-20, que constitui a sua conclusão, e que vamos ter a graça de escutar, parece-me importante começar por colocar o texto diante dos nossos olhos, começando com o v. 14:

«16,14Em último lugar fez-se ver aos Onze, enquanto estavam à mesa, e reprovou a sua incredulidade e dureza de coração, porque não acreditaram naqueles que o tinham visto ressuscitado. 15E disse-lhes: “Indo por todo o mundo, anunciai o Evangelho a toda a criatura”. 16Quem acreditar e for batizado, será salvo, mas quem não acreditar, será condenado. 17São estes os sinais que acompanharão os que acreditarem: no meu nome, expulsarão demónios, falarão línguas novas, 18e, se pegarem em cobras nas mãos e beberem veneno mortal, não lhes fará mal; imporão as mãos aos doentes, e ficarão bem.

19O Senhor Jesus, depois de ter falado com eles, foi elevado ao céu, e sentou-se à direita de Deus. 20Eles, então, tendo saído, anunciaram o Evangelho por toda a parte, enquanto o Senhor cooperava e confirmava a Palavra com os sinais que a acompanhavam» (Marcos 16,14-20).

2. Trata-se da última página do Evangelho de Marcos, certamente tardia, talvez do séc. II, mas grandiosa e imponente, e cheia de referências significativas para a vida cristã de qualquer tempo e lugar. Esta página fecha o Evangelho de Marcos, condensa-o e encerra-o numa grande inclusão literária e teológica através dos termos «anunciar», «acreditar» e «Evangelho», usados a abrir o Evangelho (1,14-15) e a fechar o Evangelho (16,15-16). Mas o anúncio do Evangelho a toda a criatura (16,15) reclama também o início da inteira Escritura, a página da Criação, com o ser humano a receber de Deus o mandato de dominar a criação inteira (Génesis 1,26 e 28). É ainda nesse sentido de inclusão literária e teológica com a Criação, que as cobras, uma das quais dominou então o ser humano (Génesis 3,1-5), são agora dominadas (16,18), do mesmo modo que é o bem (kalôs), em vez da cura, que agora se estabelece sobre os doentes (16,18). É outra vez o eco intertextual da Criação, onde, no texto grego dos LXX, o bem, bom e belo (kalós) impregna por completo a Criação inteira, atravessando-a por oito vezes (Génesis 1,4.8.10.12.18.21.25.31 LXX). No texto hebraico, é por sete vezes que soa esta nota com o termo tôb, que passa o mesmo significado de bem, bom e belo (Génesis 1,4.10.12.18.21.25.31).

3. «O Senhor Jesus» (ho Kýrios Iêsoûs) (16,19), única menção em todos os Evangelhos, enche a cena, quer para recriminar a nossa incredulidade e dureza de coração (16,14), quer para continuar a manifestar a sua confiança em nós, dado que, não obstante a nossa incredulidade, e, talvez por isso mesmo, insiste em enviar-nos e acompanhar-nos na missão «total» do Evangelho que agora nos confia (16,15 e 20). Cai aqui por terra uma certa retórica de santidade, que falsamente defende que só os santos são idóneos para a missão de anunciar o Evangelho! E ganham espaço os que fracassaram, como os Onze e nós com eles e como eles, que anunciam a Ressurreição de Jesus, que continua vivo e atuante no meio de nós, e a prova somos nós, pois Ele mudou a nossa vida de fracassados e desistentes para testemunhas fiéis e transparentes! E esta mudança operada em nós tem de fazer parte do relato que fazemos do Evangelho.

4. Cinco temas enchem a página, o pátio, o átrio sempre entreaberto do Evangelho: 1) a autoridade soberana e nova de Jesus assente, não na distância e tirania, mas na proximidade e familiaridade; 2) a missão total a nós confiada; 3) o mundo novo e bom, sadio e otimizado que brota da prática do Evangelho; 4) o envolvimento de todos; 5) a Presença nova e sempre ativa e comprometida do Ressuscitado connosco.

4.1. A soberania nova, próxima e familiar de Jesus fica registada no facto de toda a operação ser realizada no «nome de Jesus» (16,17), mediante envio seu (16,15), com a sua Presença cooperante (synergéô) (16,20) e confirmante (bebaióô) (16,20), o mesmo verbo da Confirmação sacramental (bebaíôsis). Etimologicamente, deriva do verbo baínô, que significa «caminhar», e supõe terreno firme e sólido (bébaios) sobre o qual se pode caminhar com destreza e segurança. É esta destreza e solidez que a Confirmação confere aos confirmados. Sem esquecer nunca que firmeza e solidez, em chão bíblico, remetem sempre para fidelidade e confiança no domínio interpessoal. A não esquecer também, neste contexto, que só um verdadeiro soberano confia a sua história e a sua missão a gente como nós, que só deu até agora sinais de fraqueza e de pouca ou nula fiabilidade. Um grande tema bíblico desde a Criação: a omnipotência de Deus como que limitada pela nossa liberdade, concedendo-nos aqui a imensa dignidade de partilhar connosco a sua autoridade, deixando também nas nossas mãos a capacidade de fazer surgir um mundo novo, cheio de bem, de bondade e de beleza.

4.2. A missão total a nós confiada, que deve envolver «todos, tudo e sempre» (Bento XVI, Mensagem para o 85.º Dia Missionário Mundial 2011), é retratada com tinta excecional em Marcos, ao usar as expressões «indo por todo o mundo» (16,15), «anunciai o Evangelho a toda a criatura» (16,15), e «tendo saído, anunciaram por toda a parte» (16,20). É a missão total, e não por etapas. Jesus não recomenda: «a começar pela rua tal, ou pela cidade tal…». Portanto, esta missão total também não é para levar a cabo ao sabor das emergências (ver a decisão de Jesus em Marcos 1,38-39; Lucas 4,42-43). A ventania do Pentecostes ou o vento suavíssimo do Espírito deve levar alento a toda a criatura, da mesma forma que a semente do Evangelho é para ser lançada por toda a parte, em todo o tipo de terreno, como na parábola do semeador, sem qualquer estudo prévio de rentabilidade.

4.3. Mundo novo e bom, salvo, sadio e saudável, otimizado, sem forças demoníacas e sem ponta de veneno. Esta ligação e eco intertextual das narrativas da Criação faz ver a missão como nova criação, em que o homem, finalmente transparência do Deus criador e senhor, sem raivas nem ódios, ciúmes e violências, «domina» a terra e os animais, isto é, estabelece a mansidão, a doçura da palavra e a harmonia sobre a terra (Génesis 1,26-31). Até a cobra perde a astúcia e o veneno mortal que ostenta em Génesis 3,1-5, e mostra-se mansa e sujeita ao domínio das mãos do homem. À luz da missão salutar e salvadora, nenhuma criatura é portadora de veneno (cf. Sabedoria 1,14), e a doença é vencida pela bênção que sai das mãos e do coração do missionário, outra vez à imagem de Deus, que enche este mundo de bem (kalôs LXX) (16,18), que é uma nota que atravessa o texto da Criação, vincando ainda mais a inclusão literária e teológica já atrás acenada. Note-se que, em vez da presença do bem, em situação de doença, seria de esperar, não o advérbio bem (kalôs), mas o verbo curar, que se usa habitualmente em situações idênticas, dito com o verbo therapeúô (cf. Mateus 4,24; 8,16; 10,1.8; Marcos 1,34; 3,10; 6,13; Lucas 4,40; 6,18b; 9,1.6) ou iáomai (Marcos 5,29; Lucas 6,18a.19; 9,2). De notar que a nossa Eucaristia, que é com certeza a mais alta forma de oração, catequese e evangelização, assenta as suas raízes mais fundas na bênção e em bendizer, sendo a sua expressão mais antiga «O cálice da bênção que bendizemos» (1 Coríntios 10,16). Celebrar a Eucaristia é, pois, sempre um grande exercício de «bendizer», isto é, de dizer bem, e não mal, e implica mudar a nossa vida toda da clave do mal para a clave do bem. O mal divide. O bem une. Levar uma comunidade a celebrar a Eucaristia é sempre transmitir aos seus membros uma nova cultura. Não de maledicência, mas de aprendermos a pensar, querer, ver, falar e fazer bem, belo e bom, que é a fonte da comunhão.

4.4. Nós já sabemos, são muitos os documentos a dizê-lo, que esta missão do anúncio do Evangelho de Jesus compete a todos. É por natureza que a Igreja é missionária, diz-nos o Decreto Conciliar Ad gentes, n.º 2, e «evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua identidade mais profunda», insiste Paulo VI, na feliz Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi [1975], n.º 14. Por isso, «a pregação do Evangelho não é para a Igreja um contributo facultativo, mas um dever que lhe incumbe» (Paulo VI, Evangelii nuntiandi, n.º 5; Bento XVI, Mensagem para o Dia Missionário Mundial, 2012). É a maneira de ser da Igreja, e é a nossa maneira de ser, dado que é a sua e a nossa identidade, vocação e graça. Mas de entre todos os Evangelhos, só esta página seleta de Marcos diz expressamente que os belos e maravilhosos «sinais» que acompanham o anúncio do Evangelho são realizados por todos os que acreditam (Marcos 16,17-18). Esta extraordinária «democratização» das maravilhas operadas por Deus por intermédio de todos os que acreditam serve para datar este texto do século II. No século I, estes prodígios estavam confinados aos Apóstolos, e, a partir do século III, será o clero o seu proprietário. Magnífico texto este, que põe todo o povo de Deus a realizar maravilhas! Portanto, queridos irmãos e irmãs, sede o que sois, sempre e em toda a parte, e não deixeis por mãos e corações alheios, as maravilhas do Evangelho que Deus vos dá para vós realizardes! É este o combustível do «Evangelho da alegria», que Deus deposita largamente no coração de todos os seus filhos e filhas, para consolação nossa e de todos os nossos irmãos e irmãs.

4.5. Chegados aqui, à última página do Evangelho de Marcos, ainda podemos verificar dois gestos opostos e significativos. Jesus terminou o seu caminho, é elevado ao céu, e senta-se à direita de Deus (16,19), sinal de proeminência e de bênção. E os discípulos de Jesus, que têm agora o mundo inteiro pela frente, levantam-se, saem, e anunciam o Evangelho (16,20). «Sair», hebraico yatsa՚, é o verbo clássico do Êxodo, mas é também, de forma muito significativa, o verbo do nascimento. «Sair de si» é um dos dinamismos mais poderosos do Evangelho, que o Papa Francisco lembrou e pediu à Igreja (Evangelii gaudium [2013], n.os 20.23.27.97.259.261. A Evangelização, que implica este dinamismo, continua a ser a tarefa central e sempre nova dos discípulos de Jesus de todos os tempos. «A Igreja existe para evangelizar» (Evangelii nuntiandi [1975], n.º 14). Fica ainda claro que a Ascensão de Jesus não o retira do nosso convívio, pois Ele continua connosco, cooperando e confirmando a missão da Evangelização que nos confiou.

5. O Livro dos Atos dos Apóstolos retoma esta lição. «E estas coisas tendo dito, vendo (blépô) eles, ELE foi Elevado (epêrthê), e uma nuvem O subtraiu (hypolambáno) dos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). E como tinham o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde ELE ia, eis (idoú) dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, e DISSERAM: “Homens Galileus, por que estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu”» (Atos 1,9-11).

6. Tanto VER. Da panóplia de verbos registados (blépô, atenízô, horáô, emblépô, theáomai), os mais fortes e intensos são, com certeza, atenízô [= «olhar fixamente»] e emblépô [= «perscrutar», «ver dentro»]. Ambos exprimem a observação profunda e prolongada, para além das aparências: VER o invisível (cf. Hebreus 11,27), VER o céu, VER a glória de Deus. Mas mais ainda do que o que se vê, estes verbos acentuam o modo como se vê. É para aí que apontam os dois homens vestidos de branco, de rompante surgidos na cena, para entregar um importante DIZER que interpreta e orienta tanto VER. Já os tínhamos encontrado no túmulo reorientando os olhos entristecidos das mulheres: «Por que () procurais entre os mortos Aquele que está Vivo? Não está aqui. Ressuscitou!» (Lucas 24,5-6). Dizem agora: «Por que () estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu» (Atos 1,11). Ao Arrebatamento de JESUS para o céu, os dois homens vestidos de branco agrafam a Vinda de JESUS. Importante colagem da Ascensão com a Vinda. E importante passo em frente para quem estava ali simplesmente especado. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Sim, Ver. Porque ELE Virá do mesmo modo que O Vistes IR. É, pois, importante guardar este Ver, viver este Ver, Ver com este Ver. Porque é Vendo assim que o SENHOR Virá. Vinda que não tem de ser relegada para uma Parusia distante e espetacular, mas que começa, hic et nunc, neste Olhar novo e significativo de quem Vê o SENHOR JESUS. Vinda que não é tanto um regresso, mas o desvelamento de uma presença permanente. Vinda já em curso, portanto, ainda que não plenamente realizada.

7. Verificação. Eis-nos no primeiro ATO propriamente dito dos Atos dos Apóstolos depois do Pentecostes: a cura de um coxo de nascença, descrita em Atos 3,1-10: «Então Pedro e João subiam ao Templo para a oração da hora nona [= 15h00]. E um certo homem, que era coxo (chôlós) desde o ventre da sua mãe, era trazido e posto todos os dias diante da Porta do Templo, dita a Bela, para pedir esmola àqueles que entravam no Templo. Vendo (idôn) Pedro e João, que estavam a entrar no Templo, pedia esmola para receber. Então, fixando o olhar (atenísas) nele, Pedro, com João, disse: “Olha para nós” (blépson eis hemâs). Então ele observava-os (epeîchen), esperando receber deles alguma coisa. Disse então Pedro: “Prata e ouro não tenho, mas o que tenho, isso te dou: no nome de JESUS CRISTO, o Nazareno, [levanta-te e] caminha. E, tomando-o pela mão direita, levantou-o. Imediatamente se firmaram os seus pés e os calcanhares. Com um salto, pôs-se em pé, e caminhava, e entrou com eles no Templo caminhando e saltando e louvando a Deus. E todo o povo o viu (eîden) a caminhar e a louvar a Deus. E reconheciam que era aquele que, sentado, pedia esmola à Porta Bela do Templo, e ficaram cheios de admiração e de assombro por aquilo que lhe aconteceu» (Atos 3,1-10).

8. Como se vê, há também um impressionante condensado de olhares a marcar este primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos. Soam no texto cinco notas visuais, servidas por quatro verbos: horáô, atenízô, blépô, epéchô. Atenízô desenha o Olhar de Pedro e João fixado no coxo de nascença. Blépô retrata o Ver com que o coxo é mandado olhar o Olhar dos Apóstolos. Significativo agrafo: estes dois Olhares, com atenízô e blépô, só tinham sido usados antes, no Livro dos Atos dos Apóstolos, uma única vez, precisamente no relato da Ascensão (Atos 1,9-10). De resto, blépô conhecerá apenas mais quatro menções no Livro dos Atos dos Apóstolos: duas no relato da vocação de Paulo (Atos 9,8-9), a terceira no discurso de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia (Atos 13,41; cit. de Habacuc 1,5), e a quarta e última no decurso da viagem marítima de Paulo para Roma (Atos 27,12). Atenízô, por sua vez, far-se-á notar em lugares de relevo, sempre para expressar um Ver novo e significativo, um Ver sem haver: os membros do Sinédrio fixam os olhos (atenízô) em Estêvão, e veem-no semelhante a um anjo (Atos 6,15); Estêvão, por sua vez, fixa os olhos (atenízô) no céu, e vê a glória de Deus e JESUS, de pé, à direita de Deus (Atos 7,55); Cornélio fixa os olhos (atenízô) no anjo do Senhor, que o interpela (Atos 10,4); Pedro fixa os olhos (atenízô) na visão, vinda do céu, dos animais impuros (Atos 11,6); Paulo fixa os olhos (atenízô) no mago Elimas, de Chipre, para o fulminar pela sua falsidade e malícia (Atos 13,9), e o mesmo faz no Sinédrio, dando testemunho de JESUS (Atos 23,1).

9. É este Ver JESUS, Ver sem haver, sem poder, sem ouro nem prata (Atos 3,6), que se fixa sobre o coxo de nascença, mandado, por sua vez, olhar para este Olhar, Ver desta maneira. Como Abraão e Moisés, convidados a Ver para receber, e não para haver, a Terra Prometida: «a terra que Eu te farei Ver» (Génesis 12,1), «que YHWH lhe fez Ver» (Deuteronómio 34,1), «Eu a fiz Ver aos teus olhos» (Deuteronómio 34,4). O narrador anota mais à frente que o coxo de nascença, agora curado, tinha mais de 40 anos (Atos 4,22), tipologia do povo perdido no deserto antes de entrar na Terra Prometida. Como o homem doente havia 38 anos, que Jesus encontra junto da piscina de Bezetha, e que será curado (João 5,1-9).

10. É sintomático que o Ver da Ascensão e da Vinda do SENHOR JESUS seja o Ver que preenche por inteiro o primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos, com realce para Pedro. Mas é ainda grandemente sintomático que o primeiro ATO de Paulo, descrito em Atos 14,8-10, que é também o primeiro passo da missão perante o paganismo popular, em Listra, quase copie o primeiro ATO dos Apóstolos e de Pedro, certamente com o intuito de pôr em paralelo os dois grandes Apóstolos e os dois tempos da missão. Eis o texto referido de Atos 14,8-10: «E em Listra um homem estava sentado, sem força nos pés, coxo desde o ventre da sua mãe, e que nunca tinha andado. Este ouviu falar Paulo, o qual, tendo fixado os olhos (atenísas) nele, e tendo visto que tinha fé para ser salvo, diz com voz forte: “Levanta-te direito sobre os teus pés!”. E ele deu um salto e caminhava» (Atos 14,8-10). Aqui temos o mesmo coxo de nascença, o mesmo Olhar significativo e diaconal, sem poder, sem ouro nem prata, Ver JESUS, o mesmo levantamento do coxo. E também aqui, na sequência do texto, temos o aceno à multidão que disperdia o olhar, vendo em Paulo e Barnabé deuses em forma humana, e a mesma correção, feita por Paulo, apontando JESUS (Atos 14,11-18).

11. Importante agrafo da Ascensão com a Vinda do Senhor. Tanto Ver. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Guardemos este Olhar cheio de Jesus e olhemos agora para esta terra árida e cinzenta, para tantos corações tristes e perdidos. Nascerá um mundo muito mais belo, novos corações pulsarão nas pessoas. Os olhos do coração iluminados, como diz o Apóstolo à comunidade-mãe da Ásia Menor, Éfeso (Efésios 1,18). Um Olhar cheio de Jesus faz Ver Jesus, faz Vir Jesus!

12. Ponhamos tudo isto em imagem, como convém neste Domingo em que a Igreja celebra o Dia das Comunicações Sociais, instituição que tem as suas raízes diretamente no Concílio Vaticano II (Decreto Inter Mirifica, n.º 18), e que foi celebrado pela primeira vez, com mensagem de Paulo VI, em 7 de maio de 1967. Eis então diante de nós, no cume do Monte das Oliveiras, um pequeno Templo, arredondado, chamado Imbomon [= «sobre o cume»], grecização do hebraico bamah [= «lugar alto»], a 818 metros de altitude, um pouco acima da Ecclesia in Eleona [= «no Olival»], que remonta a Santa Helena, hoje Pater Noster, e a curta distância de Jerusalém, a distância do caminho de um sábado (Atos 1,12), que corresponde a 1892 metros. As construções cristãs do Imbomon remontam ao longínquo ano de 376, com reconstrução dos Cruzados em 1152, ocupadas depois, em 1187, pelos muçulmanos. A construção dos Cruzados, que respeitava a primitiva construção, tinha no centro um tambor encimado por uma cúpula aberta no centro, justamente para servir de suporte à imagem da Ascensão patente em Atos 1,9-11. Em 1200, os muçulmanos fecharam esse ponto de luz com uma cúpula de estilo árabe, escondendo assim a visão de Atos 1,11: «Porque estais aí a olhar para o céu?».

13. O texto de hoje da Carta aos Efésios 1,17-23 completa maravilhosamente as passagens da Escritura que já vimos. Depois do grande hino (v. 3-14), em que se bendiz o Pai, mediante o Filho, no Espírito Santo a nós dado, cantamos agora, guiados sempre por São Paulo, o primado da Humanidade do Senhor, obra admirável do Pai, para proveito nosso. E começamos com a epiclese ao Pai para que nos dê o dom do Espírito, que é a Sabedoria divina, o «conhecimento profundo» (epígnôsis) das Realidades divinas (v. 17). Tudo provém do único e omnipotente Acontecimento divino: Jesus Cristo Ressuscitado e Sentado à direita nos Céus (v. 19-20). É assim que, da sua Humanidade glorificada, vem para nós, por graça, o Espírito Santo, a verdadeira plenitude (v. 23).

14. O Salmo 47 é um Salmo da realeza de YHWH, que canta, com grande energia, a soberania de Deus sobre todos os povos (v. 1-3.7-10), sem deixar também de particularizar Israel (v. 4-5), «a mais bela entre todas as nações» (Ezequiel 20,6). Ajusta-se também perfeitamente, no mundo católico, à Festa da Ascensão do Senhor, sobretudo por causa do v. 6, em que lemos que «Deus se eleva por entre aclamações». Devido ao seu tom geral, Israel canta este Salmo sete vezes antes de soar o toque do shôphar para assinalar a entrada do Ano Novo.

Quando a Palavra de Deus,

Como uma enchente,

Encheu o tempo,

Dando ao homem a necessária oportunidade de ter de responder

E de não poder não responder,

O Filho de Deus,

Sem deixar de ser Deus,

Fez-se também filho de Maria,

Jesus,

Assumindo assim também a nossa frágil natureza humana.

Com a sua Ressurreição e Ascensão aos Céus,

É glorificada a humanidade do Filho de Deus e de Maria,

Jesus,

E é desta humanidade glorificada,

À direita de Deus sentada,

Que vem o Espírito Santo para nós.

É, portanto, do vosso interesse, diz Jesus, que Eu vá,

Pois se Eu não for,

O Espírito Santo não virá para vós.

Com a Ressurreição, a Ascensão e o Pentecostes,

Celebramos, pois, a humanidade glorificada de Jesus,

Da qual,

Por contágio sacramental,

Recebemos o Dom de Deus, o Espírito Santo.

Senhor Jesus,

Enche a nossa frágil humanidade da riqueza da tua divindade,

E derrama no nosso humano coração

O Espírito da consolação,

Da paz e da alegria.

António Couto


COMO EU VOS AMEI

Maio 8, 2021

1. Sendo o Evangelho deste Domingo VI da Páscoa (João 15,9-17) a continuação imediata do Evangelho do Domingo V (João 15,1-8), e porque a sua rede terminológica continua a ser finíssima, vamos começar também por observar atentamente a sua paisagem textual:

«Como me amou (agapáô) o Pai, também eu vos amei. Permanecei no meu amor (agápê). Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor. Falei-vos (laléô) estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja plenificada (plêróô).

É este o meu mandamento (entolê): que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá (títhêmi) a sua vida (tên psychên autoû) pelos seus amigos (phíloi). Vós sois meus amigos, se fizerdes as coisas que eu vos mando (entéllomai). Não mais vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor, mas chamei-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi do meu Pai vo-las dei a conhecer (gnôrízô). Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos constituí para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça, para que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vos dê. Isto vos mando: que vos ameis uns aos outros» (João 15,9-17).

2. As notas mais vezes ouvidas nesta melodia são: «Amar/Amor» (9 vezes), «mandar/mandamento» (5 vezes), «Pai» (4 vezes), «permanecer» (4 vezes), «amigos» (3 vezes), «alegria» (2 vezes), «fruto» (2 vezes). Mas a raiz, o tronco e a seiva do texto, isto é, a sua verdadeira linha melódica, reside na rede exposta do amor: a fonte do amor é o Pai, que o comunica ao Filho, o qual, por sua vez, o comunica aos seus discípulos e amigos (João 15,9-10), para que estes o vivam e, por contágio, a outros o comuniquem, fazendo-o frutificar (João 15,16). O modo é sempre o mesmo e único: guardar os mandamentos. Jesus guarda os mandamentos do Pai (João 15,10), e entrega o seu mandamento aos seus discípulos fiéis: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (João 15,12; cf. 13,34), para que estes o guardem também (João 15,10.14).

3. Ainda se define claramente em que consiste este amor: amar assim é dar a própria vida (tên psychên autoû) (João 15,13). Este «dar» aparece no texto grego expresso com o verbo títhêmi, «pôr», «apostar» a vida. Tudo fica ainda mais claro se lermos com atenção o grande dito de Jesus no contexto do Bom e Belo Pastor: «Por isto o Pai me ama: porque Eu ponho (títhêmi) a minha vida, para de novo a receber (lambánô). Ninguém ma retira (aírô) de mim; sou Eu que a ponho (títhêmi) por mim mesmo. Tenho autoridade de a pôr (títhêmi), e tenho autoridade de a receber (lambánô) de novo. Este foi o mandamento (entolê) que recebi (lambánô) do meu Pai» (João 10,17-18). Sem qualquer equívoco agora: amar é dar a própria vida. E este amor novo, que consiste em dar a própria vida, é tudo o que o Pai manda fazer.

4. Pode parecer estranho, à primeira vista, que o Amor seja objeto de um mandamento. Mas prestando um pouco mais de atenção, acabamos por perceber que amar não é estar apaixonado. E estar apaixonado não significa necessariamente amar. Estar apaixonado é um estado; amar é um ato. Sofre-se um estado; decide-se um ato. É, por isso, que o Deus da Escritura manda amar. Se amar fosse simplesmente apaixonar-se, tal mandamento seria um absurdo, pois ninguém pode exigir a alguém que se apaixone. Amar é uma sucessão de atos em cadeia: uma guerra, portanto. Não é por acaso que agápê (amor) e agôn (luta) têm a mesma etimologia. Paradoxo do amor, que é uma luta, a luta do amor (agôn tês ágapês), do amor novo, que não é contra alguém, mas a favor de todos: o amor faz-te feliz, matando-te! Quanto mais amas, lutas, e te matas a amar, mais te encontras: «Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; ao contrário, quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á» (Lucas 9,24). Neste sentido, o amor (agápê) verdadeiro é agónico. Implica luta (agôn), porque implica decisões a todo o momento. Quando o amor não é agónico, então é egoísta. No mundo bíblico, a nascente do mal não reside na paixão, no coração que bate forte; está, antes, no coração duro, empedernido, empedrado, esclerosado, um «coração de pedra» (leb ha՚eben), oxímoro vertiginoso que o profeta Ezequiel usou para classificar o coração empedernido e embotado de Israel (Ezequiel 36,26).

5. É, portanto, tudo o que Jesus, o Filho, faz por nós. E nos manda fazer também, dado que nos manda amar como Ele nos amou (João 13,34; 15,12), nova e paradoxal, desmesurada medida do amor, que plenifica e subverte a antiga equação nivelada: «Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Levítico 19,18). Para tanto, dá-nos a conhecer, por graça, tudo o que ouviu do Pai (João 15,15), o divino colóquio, habilitando-nos assim a rezar ao Pai (João 15,16).

6. O Apóstolo reforça, na sua Primeira Carta (1 João 4,7-10), a insistência no horizonte novo do amor, repetindo que «quem ama, nasceu de Deus, e conhece-o (ginôskô) (1 João 4,7), ao contrário de quem não ama, que não conhece Deus (1 João 4,8). Se Deus é amor (1 João 4,8 e 16), e se «só o semelhante conhece o semelhante», é decisivo que este amor chegue até nós, para que, sendo feitos por amor semelhantes a Deus, possamos também conhecer Deus. E expõe de novo a rede do amor, desde a sua fonte, que é o Pai, que nos amou e enviou o seu Filho Unigénito para nos dar a vida mediante a oferta propiciatória (hilasmós) da sua vida pelos nossos pecados, que Ele absorve e absolve (1 João 4,9-10).

7. Atenção, porém, que o amor de Deus não é um património restrito e limitado, um exclusivo só acessível a alguns privilegiados, mediante inscrições, quotas pagas, registos, determinadas raças ou grupos. Chega a todos aqueles que o acolhem. Também esses nascem de Deus. O amor é de Deus; não é sequer prerrogativa dos discípulos de Jesus. Se quem ama nasceu de Deus, foi gerado por Deus (gennáô), então o amor não é nosso; é de Deus. Esta imensa afirmação implica que nunca nos podemos julgar donos do amor, pois não é nossa a patente do amor. Tem outro registo. Apenas nos é dado humildemente reconhecer que «é gerado por Deus» quem já vive no amor. Aí está, a prová-lo, na leitura de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos 10,25-48, o pagão Cornélio a entrar de pleno direito na comunidade dos filhos de Deus, perante o espanto dos judeo-cristãos de Jerusalém, que julgavam que Deus e o Amor de Deus eram só para eles!

8. É sempre importante que tomemos consciência de que temos o dever de entregar este amor a outros, e não de nos fecharmos dentro de uma cerca, ainda que de rosas seja a cerca! Escreveu bem e rezou bem, em «As idades da vida espiritual», o conhecido teólogo ortodoxo russo Pavel Evdokimov (1901-1970): «Não permitas, Senhor, que o teu Amor e a tua Palavra sejam na minha vida como um santuário, que uma vedação separa da casa e da estrada». Um tal fechamento seria pecar contra o Amor.

9. Levantar-se-á sempre, desde o santuário do nosso coração emocionado, o hino coral e universal, que é o Salmo 98. Tudo e todos são chamados a formar uma bela orquestra, que nunca deixe de cantar os louvores de Deus. Desde o Templo (harpa, cítara, shôphar) até à inteira criação: mar e terra, rios (que são os braços e as mãos do mar, e, por isso, batem palmas), montes e colinas.

António Couto