CAMINHOS QUARESMAIS

Fevereiro 25, 2023

Ao entrarmos no tempo santo da Quaresma,

Devemos ter a coragem de atravessar a poeira dos caminhos

Intransitivos do nosso coração,

Isto é, de limpar as mentiras, ódios, raivas, violências, banalidades,

Que tantas vezes preenchem os nossos dias.

A Quaresma é tempo de nos expormos

Ao vendaval criador e purificador do Espírito,

Sem termos a pretensão de o querer transformar em ar condicionado.

Toma em tuas mãos, Senhor,

A nossa terra ardida.

Beija-a.

Sopra nela outra vez o teu alento,

A tua aragem,

E veremos nela outra vez impressa a tua imagem.

Tu sabes bem, Senhor, que somos frágeis.

Mas contigo por perto,

Seremos fortes e ágeis,

Capazes de abrir estradas no deserto,

A céu aberto.

E, quem sabe, talvez nasça aí um mundo novo,

De tal modo novo,

Que ninguém pode dizer que já sabia.

E por estranho que pareça,

Para que esse mundo novo aconteça,

Para que esse mundo novo nasça

E rasgue a crosta da nossa apistía,

Basta que a Tua vontade se faça,

E se reparta o pão nosso de cada dia.

António Couto


NO DESERTO A CÉU ABERTO

Fevereiro 24, 2023

Gn 2,7-9; 3,1-7; Sl 51; Rm 5,12.17-19; Mt 4,1-11

1. Só secundariamente a Quaresma «prepara» para a Ressur­reição do Senhor. Na verdade, todos os «Tempos» e todos os Domingos do Ano Litúrgico, portanto, também a Quaresma e os seus Domingos, estão depois da Ressurreição e por causa da Ressurreição. E é só sob a intensa luz do Senhor Ressusci­tado com o Espírito Santo (Batismo consumado: Lucas 12,49‑50) que a Igreja, e cada um de nós, pode celebrar autenti­camente a sua fé, proceder à correta «leitura» das Escri­turas e encetar a «caminhada» quaresmal. Neste sentido, todos os batizados são chamados a refazer com Cristo bati­zado o seu programa batismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Batismo no Jordão, passando pela Trans­figuração no Tabor, até à Cruz eà Glória da Ressurreição (Batismo consumado!), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as «obras» do Reino (Atos dos Apóstolos 10,37-43: texto emblemático). Por sua vez, os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos batizados, «pre­param‑se» intensamente para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã. Assim, a Igreja Santa, toda Batizada e Crismada, sabe bem que é dali, daquela Cruz Santa e Gloriosa, e da enxurrada de Vida Nova, Ressuscitada, e da dádiva do Espírito que dela jorra, que nos é oferecida a «consumação» (teleíôsis) (cf. João 19,28-30), o cumprimento, a chegada à perfeição da nossa vida, deste segmento de tempo que, por graça, nos é dado viver.

2. O Evangelho deste Domingo I da Quaresma oferece-nos o episódio das Tentações de Jesus, conforme o relato de Mateus 4,1-11. Note-se bem que o episódio imediatamente anterior (Mateus 3,13-17) nos apresenta Jesus que vem da Galileia ao Jordão, à região de Bêthabarah, [= Casa da Passagem] (João 1,28), um pouco a norte de Jericó, para ser batizado por João, que a esse ato pretende opor-se, dado que, no seu entender, é ele, João, que deve ser batizado por Jesus, e não o contrário. Aceita, no entanto, a explicação dada por Jesus de que assim deve ser para ser cumprida toda a justiça, isto é, para ser feita ou cumprida a vontade de Deus. Ao sair da água, Jesus vê o Espírito de Deus descer sobre Ele, e ouve-se uma voz vinda do Céu, de Deus, do Pai, que faz uma declaração pública: «Este é (houtós estin) o Filho meu, o Amado, em quem me comprazo» (Mateus 3,17). É importante apercebermo-nos de que, em Mateus, este dizer do Pai se dirige a nós, revelação ou proclamação a nós feita, pois a voz do Céu faz-se ouvir em 3.ª pessoa: «Este é o Filho meu, o Amado, em quem me comprazo». De modo diferente, em Marcos e em Lucas, o dizer do Pai dirige-se a Jesus, pois a voz do Céu faz-se ouvir em 2.ª pessoa: «Tu és (sù eî) o Filho meu, o Amado, em ti me comprazo» (Marcos 1,11; Lucas 3,22). Importa, pois, salientar desde já esta vinculação do Pai e do Filho, bem como a sua proximidade e intimidade. Do Pai, que apresenta o seu Filho e declara o seu amor e comprazimento nele. Do Filho, que não age por conta própria, mas faz a vontade do Pai.

3. Bem vistas as coisas, Jesus vem da Galileia ao Jordão para ser batizado por João (Mateus 3,13-17), e regressa pouco depois à Galileia para dar início à sua vida pública (Mateus 4,12-17). Entre a vinda da Galileia e o regresso à Galileia, Mateus introduz o chamado episódio das «tentações» de Jesus (Mateus 4,1-11). O texto começa por dizer que Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, para ser tentado (peirázô) pelo diabo (diábolos), e acrescenta que Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e que no fim teve fome (Mateus 4,1-2). Ao contrário do que se possa pensar, este início do texto não tem carga negativa. Basta pensar que Jesus é conduzido pelo Espírito. Ir para o deserto, ser tentado e ter fome são modos de dizer que Jesus faz sua a história de Israel. No deserto, o povo de Israel sucumbiu à tentação e à fome. Indo ao deserto, Jesus assume a história do seu povo, mas vence onde Israel sucumbiu. E ao mesmo tempo prepara com o jejum a missão que está para iniciar na Galileia. Voltemos ao facto da fome de Jesus, pois é neste ponto preciso que se aproxima «o Tentador» (ho peirázôn). Este vocábulo só é usado aqui e em 1 Tessalonicenses 3,5, e define a função específica do diabo, o seu ofício ou afazer, que não consiste em pôr os homens à prova, mas em incitá-los ao pecado, que consiste em retirar a Deus a condução da ação para a atribuir ao diabo. No caso de Jesus, o Filho Amado de Deus, a tentação do diabo consiste, portanto, em procurar desfazer o nó do Amor mútuo que une o Pai e o Filho, em desvincular Jesus de fazer a vontade do Pai, de obedecer ao Pai, atitude própria da sua vocação de Filho obediente, para usar a sua autoridade de Filho e passar a agir por conta própria. A tentação é subtil, e pretende insinuar que Jesus pode prover à sua própria existência, de forma autónoma, sem precisar de depender exclusivamente do Pai. Jesus, o Filho de Deus, tem fome. De que estás à espera, diz o diabo, e sugere: «Se és o Filho de Deus, diz que estas pedras se transformem em pão» (Mateus 4,3). Vê-se a subtileza da tentação: transformar pedras em pão não é uma tentação para qualquer um; é uma tentação apenas para alguém que pode fazer isso! Jesus recusa a tentação diabólica. E fá-lo, não respondendo de forma autónoma, mas citando a Palavra antiga de Deus: «Nem só de pão vive o homem, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus» (Deuteronómio 8,3). Com esta resposta, Jesus mostra-se como Filho de Deus, mas também filho da Escritura.

4. Na segunda vaga da tentação, parece que o diabo leva a sério a resposta de Jesus, faz também ele uso da Palavra de Deus, e sugere mais ou menos isto: «Uma vez que queres viver da Palavra de Deus, e te abandonas na sua providência, então mostra lá que levas a sério a Palavra de Deus que diz que os anjos te seguram nas suas mãos, e atira-te daqui abaixo». O diabo citou o Salmo 91,11-12, mas interpreta erradamente as palavras citadas, como se alguém fosse pôr propositadamente a sua vida em risco, e ao mesmo tempo exigisse a Deus que o salvasse! Pura provocação. Por isso, Jesus responde de forma liminar: «Não tentarás o Senhor, teu Deus», citando o Deuteronómio 6,16. O diabo faz um uso literalista do Salmo 91. Jesus responde-lhe com um procedimento que podemos chamar exegese teológica: claro que é bom confiar em Deus, mas é preciso vigiar para que esta confiança não seja pervertida pela tentação de se poder pôr o poder de Deus ao serviço da ambição religiosa do homem.

5. Na terceira tentação, o Tentador renuncia à Escritura, deixa de chamar a Jesus «Filho de Deus», abandona todos os disfarces, e mostra-se tal como é: o «príncipe deste mundo» (João 12,31; 14,30; 16,11) ou o «deus deste mundo» (2 Coríntios 4,4), e promete «todos os reinos do mundo e a sua glória» (Mateus 4,8). O preço a pagar é prostrar-se diante do Tentador e adorá-lo (Mateus 4,9). Esta terceira tentação não provém de nenhuma necessidade fundamental do homem (como a primeira), nem de uma falsa visão de Deus (como a segunda). A tentação abdica completamente de Deus, corta radicalmente com Deus, e tem em conta apenas o que este mundo fechado pode oferecer: poder, influência, sucesso, riqueza. Completo fechamento a Deus. A resposta de Jesus é taxativa, citando agora Deuteronómio 6,13: «Ao Senhor, teu Deus, adorarás; só a Ele prestarás culto» (Mateus 4,10).

6. É fácil agora compreender que todas as tentações diabólicas (as duas primeiras explicitamente) pretendem atingir Jesus na sua condição filial batismal de «Filho de Deus», tentando separá-lo de Deus e dos irmãos, não fosse o diabo, diá-bolos, o máximo «divisor» ou «separador» comum. É, portanto, na sua condição de batizado, isto é, de Filho de Deus, que Jesus é tentado. Na verdade, todas as tentações, as de Jesus Cristo como as nossas, começam sempre da mesma maneira: «Se és o Filho de Deus…». Atente-se em como se repete nos mesmos termos sob a Cruz (Mt 27,39-44), também por três vezes, em três vagas sucessivas, sendo aqui os tentadores os transeuntes, os chefes dos sacerdotes com os escribas e os anciãos, e depois os ladrões crucificados com Jesus. Portanto, sempre. Do Batismo até à Morte, a tentação visa afastar-nos de Deus e da sua providência, e pôr-nos ao serviço do «deus deste mundo» (2 Coríntios 4,4; cf. João 12,31; 14,30; 16,11). Veja-se a última oferta do «Tentador» do Evangelho de hoje: «todos os reinos deste mundo» em troca do afastamento de Deus, de um mundo sem Deus (Mateus 4,8-9). E a resposta contundente de Jesus: «Vai-te, Satanás!» (Mateus 4,10). Jesus, o Filho de Deus, permanece sempre vinculado ao Pai, nunca deixando de fazer a vontade do Pai. Mesmo quando responde ao «Tentador», não o faz com palavras próprias, mas unicamente com a Palavra de Deus, que cita sempre a propósito. Filho de Deus e filho da Escritura.

7. Este episódio começa com Jesus a ser conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado. Com esta ida ao deserto, lugar exposto à tentação, Jesus reclama como sua a história de Israel. Com duas diferenças: 1) na história de Israel, o Jordão vem depois do deserto; na história de Jesus, o deserto vem depois do Jordão; 2) no deserto, Israel cai em inúmeras tentações; Jesus, porém, vai sair vencedor das tentações. O deserto é sempre um lugar provisório e preliminar, preambular, longe do que é nosso, mas onde se está «a céu aberto» com Deus, e se pode começar a ver surgir a «obra» nova de Deus (Isaías 43,19). Lugar ideal, também com a nota do jejum, para Jesus preparar a missão que está para iniciar na Galileia. No deserto não há pontos de referência nem marcos de sinalização. Só podemos prosseguir, se tivermos um bom guia. E o andamento do texto lembra outra vez Israel, mas também Moisés e Elias, que experimentaram no deserto a condução de Deus. Este deserto é então também uma metáfora da nossa vida como lugar onde estamos sujeitos à tentação, mas onde devemos saber escutar a «Voz do fino silêncio» de Deus e ler o mapa da sua Palavra. Como Jesus, o Filho de Deus e filho da Escritura.

8. Leem-se também hoje dois bocadinhos do Livro do Génesis 2,7-9 e 3,1-7. O homem de todos os tempos e de todos os lugares, nós também, modelado pelas mãos puras de Deus e acariciado com um «beijo de Deus» – é assim que os rabinos interpretam aquele sopro de Deus no rosto do homem (Génesis 2,7) –, cedeu à tentação, afastando-se do Bom Deus Criador e aderindo aos «deuses deste mundo», aqui simbolizados na cobra, animal que anda rente à terra ou por dentro da terra, a grande deusa-mãe, comungando da sua vitalidade, e tornando-se, por isso, em símbolo do culto da fertilidade, fecundidade e vitalidade em todo o Médio Oriente Antigo e ainda hoje no nosso mundo: vejam-se os painéis que assinalam as portas das farmácias, ostentando uma cobra enrolada numa árvore verde! Está diante de nós o orgulho do homem de todos os tempos, que não quer ser dependente e contingente, que é a condição da criatura boa que se recebe sempre do Deus Criador, mas quer ser autónomo e independente, senhor tirânico e prepotente, como os deuses dos mitos mesopotâmicos ou gregos. Admirável contraponto do Evangelho de hoje.

9. No grande texto da Carta aos Romanos 5,12-19, S. Paulo repete que somos pecadores, pois todos nos podemos rever em Adão como em um espelho. Adam é ao mesmo tempo um nome singular e coletivo, que pode ser traduzido por Adão ou por Humanidade. De acordo com a personalidade corporativa que envolve o povo bíblico, Adam é um nome singular, epónimo da humanidade, e é ao mesmo tempo a Humanidade que se revê no seu epónimo. Mas agora, insiste Paulo, é tempo de vermos a nossa vida à luz de Cristo, com Cristo, em Cristo, para Cristo. Fixamente, para não nos perdermos no caminho filial, fraternal, batismal. Onde abundou o pecado, superabundou a graça. É esta a Sabedoria que Paulo nos transmite.

10. Cantamos hoje o Salmo 51, a súplica penitencial por excelência, que constitui a ossatura espiritual de Agostinho, de Charles de Foucauld, de Joana D’Arc, que inspirou a pena de muitíssimos Padres da Igreja, e ecoa na música de Bach, Lulli, Donizetti, Honegger… Hoje é a nossa vez de nos sentarmos um pouco a trautear esta melodia que nos atravessa e nos põe de pé. Está aqui a letra e a música do homem, de qualquer homem, de qualquer tempo, seja ele quem for, de que raça for, de que religião for. Deixo aqui, a fechar, as palavras altíssimas da grande mística muçulmana do século VIII, Rabiʽa, de seu nome: «Um homem disse a Rabiʽa: “Cometi muitos pecados e muitas transgressões; se me arrepender, Deus perdoar-me-á?”. Disse Rabiʽa: “Não. Tu arrepender-te-ás se Ele te perdoar”» (I detti di Rabiʽa, XII, 2).

António Couto


VIVER NAS ALTURAS SEM TIRAR OS PÉS DA TERRA

Fevereiro 19, 2023

«A santidade é a medida alta da vida cristã ordinária».

Os santos vivem, portanto, nas alturas,

Sem, todavia, levantarem os pés da terra.

Também Jesus se sentou no alto do Monte,

Para aí declarar felizes, felizes, felizes

Os pobres, os mansos, os aflitos,

Os famintos, os sedentos, os misericordiosos,

Os pacificadores, os perseguidos.

E Jesus repete estas felicitações,

E por nove vezes as atira

Contra os vidros embaciados

Do nosso empedernido coração.

É do alto do monte que Jesus proclama estas maravilhas.

Há coisas que só se podem dizer nas alturas.

Senhor Jesus,

Mestre diferente dos escribas de todos os tempos,

Ensina-nos a descobrir a sabedoria que há nos pobres

Quando estendem para nós as suas mãos abertas e vazias,

A ternura que há nos pacificadores e misericordiosos

Quando se colocam diante das nossas armas,

A esperança que há nos perseguidos e refugiados

Quando batem às nossas portas fechadas.

Ensina-nos, Senhor, a compreender

Que sempre foram os santos e os justos

A abrir caminhos novos e belos

Onde os poderosos só sabem estender muros e arame farpado.

António Couto


OH SUBLIME CIÊNCIA DAS ALTURAS

Fevereiro 17, 2023

Lv 19,1-2.17-18; Sl 103; 1 Cor 3,16-23; Mt 5,38-48

1. Neste Domingo VII do Tempo Comum, continuamos a escutar nas alturas, em alta-frequência e alta-fidelidade, o que não se pode escutar cá por baixo, em onda média, no meio do barulho e do entulho. E soam hoje, aos nossos ouvidos atónitos, no nosso coração atónito, as duas últimas das «seis antíteses» proferidas por Jesus no SERMÃO da MONTANHA, e referentes à lei de talião e ao amor ao próximo (Mateus 5,38-48).

2. Diz a conhecida «Lei de talião», do latim talio, talis [tal, igual] ou ius talionis [lei do corte ou contusão], assim formulada no Livro do Êxodo: «vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, contusão por contusão» (Êxodo 21,24-25). Formulação semelhante desta Lei já se encontra, de resto, nos parágrafos 196 e 197 do famoso código de Hammurabi, que remonta mais ou menos a 1700 anos antes de Cristo. E, ao contrário do que se diz habitualmente, esta Lei não representa a barbaridade, mas um avanço civilizacional, pois assenta, não na multiplicação desenfreada da vingança e da violência, mas na sua contenção, pois condena o agressor a receber apenas a sanção igual àquela que ele provocou à vítima.

3. Bem diferente é a chamada Lei da vingança desenfreada, traduzida, por exemplo, no famoso «Cântico da espada» de Lamec, que se expressa assim no Livro do Génesis: «Eu matei um homem por uma ferida, uma criança por uma contusão. Sim, Caim é vingado sete vezes, mas Lamec setenta e sete vezes!» (Génesis 4,23-24). O que se vê aqui é que Lamec respira uma vingança irracional, um ódio irracional. O que ouvimos nas alturas da Montanha é que Jesus respira e ensina um amor irracional, até ao paroxismo, até ao absurdo e à estupidez (!), dissolvendo completamente os ódios, vinganças e violências do «Cântico de Lamec», mas ultrapassando também a fria simetria da «Lei de talião». «Ouvistes o que foi dito: “Olho por olho, dente por dente”. Porém, eu digo-vos: “Não resistais (anthístêmi = levantar-se contra) ao homem mau. E exemplifica: se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda; se alguém te levar ao tribunal para ficar com a tua túnica (chitôn), oferece-lhe também o manto (himátion); se alguém te forçar a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas!”» (Mateus 5,38-41). A milha (mílion) romana media mil passos, o equivalente a 1478,5 metros.

4. Pura assimetria. Levantar-se contra o homem mau, ou fazer-lhe frente, implica aumentar a violência e o mal. Portanto, ao mal não se responde com o mal, «não se paga (ou retribui) o mal com o mal» (Romanos 12,17; cf. 1 Tessalonicenses 5,15); «não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Romanos 12,21), sentencia e recomenda S. Paulo, que sabe bem que fazer o mal seja a quem for, inclusive a quem acaba de nos fazer mal, significa sempre perder, ser vencido pelo mal, e não ser vencedor do mal. Ser vencido pelo mal significa que o mal manda em mim, me domina, em vez de ser eu a dominar o mal. Para fazer ver melhor esta realidade e para a fazer entrar pelos nossos olhos dentro, Jesus opera uma espécie de redução ao absurdo, quando refere que a quem nos bater numa face se deve oferecer também a outra, que a quem nos quiser levar a túnica devemos oferecer-lhe também o manto, e a quem nos obrigar a fazer um serviço de transporte por uma certa distância, devemos até fazer o dobro. Na cultura do Médio Oriente Antigo, em que a Bíblia se insere, esbofetear alguém constituía uma afronta grave à própria dignidade da pessoa (cf. Job 16,10; Lamentações 3,30). Alguns profetas, como Miqueias e o Servo do Senhor, de Isaías, sofreram este tipo de insulto (cf. 1 Reis 22,24; 2 Crónicas 18,23; Isaías 50,6). E Jesus também (cf. Mateus 26,67). Face a este tipo de insulto, Jesus propõe, não a retaliação, mas o perdão excessivo! No mesmo mundo do Médio Oriente Antigo, as pessoas usavam habitualmente um traje exterior, que é uma espécie de manto, que servia também de resguardo ou cobertor durante a noite, e uma peça de vestuário por baixo, que é a túnica. Ora, se a quem nos quiser tirar a túnica, lhe dermos também o manto, ficamos nus e expostos ao frio e à vergonha. Quanto ao serviço de transporte, as pessoas eram muitas vezes requisitadas pelas forças de ocupação, a fazer estes serviços: veja-se o caso de Simão de Cirene (Mateus 27,32).

5. E Jesus continua em alta sintonia, altíssima alegria, altíssimo amor, estendendo o amor para além dos círculos restritos das nossas simpatias, até aos nossos próprios inimigos! Amar os inimigos, em vez de os odiar (cf. Mateus 5,43-44), é mais uma imensa provocação. O ódio aos inimigos não aparece em nenhum mandamento do Antigo Testamento, mas é expressamente incutido (cf. Salmo 109,6-20). Ora, Jesus manda amar os inimigos, e, em vez de se invocarem maldições sobre eles (ver outra vez o Salmo 109,6-20), Jesus manda rezar por eles. Amor assimétrico e radical, portanto, que Jesus ensina agora nas alturas, e que praticará e ensinará até à Cruz! Ele leva até ao alto do Monte das Bem-Aventuranças e até ao alto do Calvário os nossos ódios desenfreados, a nossa fria justiça distributiva, a nossa cinzenta indiferença, e restitui-nos em troca o perdão excessivo e o amor transbordante.

6. Ao tempo de Jesus, o panorama do judaísmo palestinense era dominado por duas escolas: a escola conservadora e rigorista de Shammai e a escola liberal de Hillel. Conta-se que, um dia, um homem se terá apresentado na escola de Shammai, e fez ao mestre um estranho pedido: «quero que», diz o homem, «enquanto eu me mantiver apenas com um pé no chão, tu me expliques toda a Lei». Diz-se que Shammai se limitou a pegar na sua vara de mestre e a correr o homem pela porta fora, pois era óbvio que o homem fazia um pedido impossível de cumprir, tal era a vastidão da Lei, e o pouco tempo concedido para a sua explicação. Mas o homem não desanimou e dirigiu-se à escola de Hillel, a quem formulou o mesmo pedido. E Hillel terá respondido de pronto: «Nada mais fácil: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti!”». A esta sentença de Hillel, na sua formulação negativa, deu-se o nome de «regra de ouro». Em boa verdade, ela já aparece no Livro de Tobias 4,15. É, todavia, fácil de verificar, que esta sentença é de fácil cumprimento. Dado que o seu teor é negativo, para a cumprir, basta a alguém cruzar os braços e nada fazer. Procedendo assim, nada fará de inconveniente a ninguém, cumprindo assim escrupulosamente a sentença formulada.

7. Tentando talvez evitar a inação acoitada na formulação negativa anterior, os Evangelhos apresentam desta máxima uma formulação positiva: «Faz aos outros o que queres que te façam ti!» (Mateus 7,12; Lucas 6,31). Levando a sério esta formulação, já não é suficiente jogar à defesa e nada fazer, mas é, de facto, requerido fazer alguma coisa. Seja como for, as duas formulações apresentadas, quer a negativa quer a positiva, padecem do mesmo vício: sou eu o centro, é à minha volta que tudo roda, e o que eu faço ou deixo de fazer é com o objetivo claro de que me seja retribuído outro tanto! O tom positivo da referida «regra de ouro» recebe ainda outra bem conhecida formulação: «Ama o teu próximo como a ti mesmo!», que atravessa a inteira Escritura: Levítico 19,18; Mateus 22,39; Romanos 13,9; Gálatas 5,14; Tiago 2,8. Mas também esta formulação é perigosa: primeiro, porque eu continuo o ser o centro, sendo eu a medida do amor devido aos outros; segundo, porque, se alguém não se ama a si mesmo (e são, infelizmente, cada vez mais os casos!), como poderá cumprir devidamente esta máxima?

8. É aqui que cai, como uma lâmina, a força do Evangelho que sai dos lábios de Jesus: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei!» (João 13,34; 15,12). Aqui, a medida não sou eu. Aqui, a medida é Jesus, o das alturas, o do alto das montanhas. Aqui, a medida é sem medida! Aqui, o amor não é interesseiro. Aqui, o amor é puro, radical, incondicional, assimétrico, sem retorno. Aqui, o amor é até ao fim! Oh sublime ciência das alturas!

9. O texto do Antigo Testamento que faz hoje companhia ao Evangelho é retirado do Livro do Levítico 19,1-2.17-18, e nele fica desenhado o caminho e a fonte da santidade: «Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo» (Levítico 19,2); mas é também tirado a limpo que o nosso caminho, isto é, o nosso comportamento para com os nossos irmãos, não pode passar nunca pelo ódio nem pela vingança, mas apenas pelo amor (Levítico 19,18), ainda que numa formulação muito simétrica: «Ama o teu próximo como a ti mesmo», a única vez, de resto, que encontramos esta formulação no AT.

10. O Apóstolo Paulo continua a interpelar, com a força do Evangelho, a comunidade cristã de Corinto e as nossas comunidades cristãs de hoje (1 Coríntios 3,16-23). Sim, diz Paulo com extrema precisão: «O Espírito Santo habita em vós» (1 Coríntios 3,16). E acrescenta ainda: «Tudo é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus» (1 Coríntios 3,22-23). Portanto, tudo e todos caminhamos para a casa do Pai; entretanto, é Cristo o único Senhor, o único caminho e o único companheiro da nossa vida.

11. O Salmo 103 é uma das joias do Antigo Testamento e constitui um grande canto ao amor de Deus, uma espécie de prelúdio ao «Deus é amor» (1 João 4,8). Desenrola-se em dois movimentos. O primeiro (v. 1-9) trata o amor e o perdão de Deus com sucessivos particípios hínicos, que mostram um Deus que perdoa, cura, redime, coroa de amor e misericórdia, sacia de bem, e uma série de nomes (justiça, dá a conhecer, obras, misericordioso, gracioso). O segundo movimento (v. 10-18) põe lado a lado o amor permanente de Deus e a nossa humana fraqueza. A linha vertical (céu-terra) serve para mostrar a imensidão do amor de Deus (v. 11), escrevendo-se na linha horizontal (oriente-ocidente) a grandeza sem medida do seu perdão (v. 12). O belíssimo v. 13 passa a imagem inultrapassável de Deus como um pai com ventre maternal (rehem). A fragilidade humana aparece traduzida nas imagens do pó (v. 14) e da erva (v. 15-16), em contraponto com a estabilidade do amor de Deus (v. 17). Sem este amor, sem esta música, seríamos talvez levados melancolicamente a pensar que é o mesmo o destino das folhas outonais e dos homens! Deixemos ecoar em nós as belas notas deste grande Salmo 103, que alguns autores já chamaram o Te Deum do Antigo Testamento.

António Couto


MAIS ALTO

Fevereiro 11, 2023

Ensina-me, Senhor, a subir mais alto,

Como os lírios do campo,

Como os passarinhos.

Ensina-me a ser santo

Como os pequeninos.

Só sendo assim me posso sentar à tua mesa,

Onde se come e se reza,

E o ambiente é familiar e quente

Como uma lareira acesa.

Até as aves do céu vêm abrigar-se em tua casa,

Comer à tua mesa,

Beber no teu ribeiro manso.

Aqui fazem os passarinhos os seus ninhos,

E até os bandos de estorninhos

Encontram aqui o seu descanso.

Dá-nos, Senhor,

Em cada dia

Da nossa vida,

Às vezes sombria,

Às vezes escura,

A água pura da tua luz e alegria,

Que nos enche de paz e de ternura.

António Couto


HABITAR NAS ALTURAS

Fevereiro 10, 2023

Sir 15,16-21; Sl 119; 1 Cor 2,6-10; Mt 5,17-37

1. Continuamos a escutar, neste VI Domingo do Tempo Comum, o sublime Discurso da Montanha, hoje as quatro primeiras das famosas «seis antíteses» (Mateus 5,17-48), cujos temas são: o homicídio (1), o adultério (2), o divórcio (3), o perjúrio (4), a lei de talião (5), o amor ao próximo (6). Ouviremos então, neste VI Domingo do Tempo Comum, o sublime dizer de Jesus sobre os primeiros quatro temas: homicídio, adultério, divórcio e perjúrio (Mateus 5,17-37), enquanto nos preparamos para ouvir no próximo Domingo, VII do Tempo Comum, os últimos dois importantes temas: a lei de talião e o amor que a todos devemos (Mateus 5,38-48).

2. Não nos esqueçamos que continuamos na Montanha, nas alturas, pois há certas maneiras de viver e de sentir que só podem ter o seu habitat nas alturas. O Papa S. João Paulo II escreveu na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte [2001], n.º 31, que perguntar a um catecúmeno se ele quer receber o batismo é o mesmo que perguntar-lhe se ele quer ser santo, e fazer-lhe esta última pergunta é colocá-lo no caminho do Sermão da Montanha. E logo a seguir, na mesma Carta e no mesmo número, S. João Paulo II define a santidade como a «”medida alta” da vida cristã ordinária». É, portanto, imperioso que o cristão aprenda a ganhar altura, não para se separar dos caminhos lamacentos do quotidiano, mas para os encher de um amor maior.

3. Cada uma das «seis antíteses» abre com as palavras de Jesus: «Ouvistes o que foi dito […]; porém, eu digo-vos», fazendo-nos compreender, com o uso desta locução, que fala com a autoridade de Deus. Em termos formais, Jesus usa a técnica de contraponto, e não quer que se desperdice nada do Antigo Testamento; quer antes enchê-lo (plêróô), levar quanto aí é dito, que é Palavra de Deus, ao seu ponto mais fundo e mais alto. Por exemplo, quando ouvimos o que foi dito: «Não matarás!» (Mateus 5,21), para cumprirmos este mandamento, não basta determo-nos no limiar do assassínio, como manda a letra, de acordo com uma leitura literalista e legalista da Palavra de Deus. É preciso ir mais fundo e mais alto: mondar todas as raízes da ira, do ciúme, da inveja, do ódio, desprezo e desamor, e encher todos os regos e cicatrizes de mais amor, mais amor, mais amor, só amor. Não se trata apenas de travar a fundo no último momento, evitando o acidente; trata-se de viver permanentemente a nova cultura do amor. Neste sentido, escreve S. João, com ponta fina de diamante, não na pedra ou no papiro ou no papel, mas no nosso coração meio embotado e engessado: «Quem não ama o seu irmão, é homicida» (1 João 3,15).

4. «Não matarás!». Palavra fortíssima e de extrema mansidão, inscrita no Rosto ou viso nu do Outro, de qualquer outro, pobre e nu e senhor, pobre porque nu, e senhor porque pobre e nu, que de improviso te visita e te elege, e te ordena, de forma imperativa e não optativa [soa: «Não me matarás!», e não: «se quiseres, podes não me matar!»], entregando-te uma palavra que é um mandamento, que não te deixa em estado de decisão, que não se dirige, portanto, à tua liberdade de escolha, mas à tua responsabilidade, pois te manda responder a ele e por ele, pela sua vida, resposta que não podes adiar nem delegar. Na verdade, foi a ti que ele elegeu, é a ti que ele dirige o seu mandamento: «Não matarás!», obrigando-te, portanto, a responder, e não te dando a possibilidade de não responder. Reclama a tua responsabilidade: por muito que te custe compreender, trata-se de uma responsabilidade anterior à liberdade! Coisa simples, que só não compreendes se não quiseres. É o “bom dia” antes do cogito. Devemos estar atentos, porque o rosto pobre e nu do outro é o único soberano que existe. Pode estar em coma à beira da estrada, na soleira da tua porta, na cama de um hospital. Não tem nenhum poder (não te aponta uma arma, não tem dinheiro para te seduzir ou para te pagar…), e, todavia, obriga-te, sem te obrigar, a debruçares-te sobre ele. Quando dás por ti, estás debruçado sobre ele a prestar-lhe todos os cuidados. Vês, então, como ele é soberano? É o único que te pode libertar dos cadeados da tua Sinngebung (da tua capacidade de produção de sentido subjetivo). Os que têm espingardas e dinheiro, na verdade, pouco podem fazer por ti: apenas te podem escravizar! Não te podem libertar! São tiranos e prepotentes. Não são soberanos! Seguem as leis da natureza. Não sabem fazer milagres!

5. E assim também o adultério, o divórcio, o perjúrio. Qualquer destes pontos representa o fim de um amor, que é sempre um acontecimento dramático. Veja-se atentamente, neste mundo cinzento e insípido, sem sol e sem sal, em que vivemos, o drama imenso que cada divórcio comporta. Digo-o em termos de sociedade e de humanidade. E o estranho é que, no meio deste nevoeiro de «compromissos enlatados» ou «relações de bolso», ainda haja gente perversa ou simplesmente imersa na piscina da banalidade a contar os divórcios com imensa volúpia, pensando de forma sarcástica e mordaz que é a Igreja Católica que está em perda e a afundar-se. Nem imaginam que o terreno também lhes está a fugir de debaixo dos pés! Mas, para encher de sentido o «porém, eu digo-vos» de Jesus sobre estes pontos precisos, também não basta viver uma vida cinzenta e mentirosa e evitar em cima da linha chegar ao adultério, ao divórcio ou ao perjúrio. É necessário encher a vida inteira de amor, de mais amor, só de amor. É preciso verificar tudo o que está antes da ação má que estamos para fazer. É fácil de ver que não basta, no limite, «cortar a mão direita» ou «arrancar o olho direito». Já se sabe que estas expressões não são para tomar à letra. Na verdade, não é o olho que peca, mas o homem. E mesmo que se arrancasse o olho, bem sabemos que ainda lá ficam a imaginação, a fantasia e a doentia vontade do homem.

6. Para todas as situações de desentendimento, Jesus propõe, não apenas que se impeça que se chegue a fazer mal a alguém, mas que por todos os meios e modos, primeiro, primeiro, primeiro (prôton), se chegue à «reconciliação» (diallássô). Jesus vê aqui um remédio ou um «sal» tão importante que, por causa dele, é lícito interromper o próprio culto a Deus (Mateus 5,24). A reconciliação aparece como uma condição indispensável para se poder prestar culto a Deus. E nem é preciso que saibas e sintas que és tu que tens alguma coisa contra o teu irmão. Basta que te recordes que «o teu irmão tem alguma coisa contra ti» (Mateus 5,23). Mesmo que penses que é o teu irmão que tem alguma coisa contra ti, não podes pensar que não é nada contigo. Tens de te pôr a caminho para sanar a situação. Já se sabe que este comportamento passa por cima dos códigos de boas maneiras. Mas o Evangelho requer de ti esta atitude, e não te deixa ficar tranquilamente à espera. Por aqui se vê que é requerido um paladar apurado e uma sensibilidade afinadíssima nas nossas relações fraternas para nos apercebermos quando alguma coisa não está bem. Não se fala sequer de haver culpas. O que aparece como decisivo e necessário é estarmos em fraternas relações com os irmãos, para nos podermos aproximar de Deus. Compreende-se a prioridade de Jesus neste relacionamento fraterno, pois, se este não estiver assegurado, como é que podemos ainda voltar-nos para Deus, Nosso Pai, e rezar em boa consciência a oração do «Pai Nosso», que está no centro do Sermão da Montanha, isto é, no coração dos ensinamentos de Jesus? Sim, é óbvio que, para rezarmos com verdade a Deus, a quem Jesus nos ensina a chamar, não apenas Pai, mas «Pai Nosso», precisamos mesmo de estar em fraterna sintonia com todos os nossos irmãos. Se assim não for, é claro que a nossa oração é mentirosa e o nosso culto vazio. Vê-se que é preciso pôr sal na vida, não deixar que o nosso coração se torne pesado e insípido, para que possamos permanecer no cimo da Montanha, e nos deixemos deslumbrar, como as multidões, com este novíssimo, em conteúdo e método, ensinamento de Jesus (Mateus 7,28-29).

7. O belo Livro de Jesus Ben-Sira, de que hoje recebemos a deliciosa lição de 15,16-21, lembra-nos que os mandamentos de Deus estão sempre cheios apenas de bondade. Serve essa fortíssima afirmação para nos advertir que a nenhum de nós foi dada licença para pecar, nem sequer para produzirmos coisas vãs e ocas, sem ponta de sal ou de sentido. Vale ainda saber que este livro delicioso, de tom edificante, terá sido escrito por Jesus Ben-Sira em hebraico no primeiro quartel do século II a.C., aí por volta dos anos 180-175, tendo sido depois lido e muito apreciado por um seu neto, no Egito, parece que no ano 132 a.C. Tanto o neto apreciou o texto do seu avô, que resolveu traduzi-lo para grego, para possibilitar que muitos outros o pudessem ler também com proveito. Bela também esta ligação entre as gerações.

8. S. Paulo fala-nos na lição de hoje da Primeira Carta aos Coríntios (2,6-10) da Sabedoria de Deus. E lembra-nos que a Sabedoria de Deus não está à venda em nenhum mercado deste mundo, nem está na posse dos senhores deste mundo. E precisa ainda que a sabedoria dos senhores deste mundo, que é sempre a sabedoria orgulhosa e arrogante que nos pode fazer senhores do mundo, mas nos conduz sempre fatalmente para a ruína. A verdadeira sabedoria, a de Deus, é depositada no nosso coração pelo Espírito de Deus, dando-nos assim acesso, por graça, às insondáveis riquezas divinas que Deus, desde sempre, tem preparadas para nós. Em vez da ruína, fica aberta diante de nós uma maneira nova de viver e de morrer. Chama-se santidade, «medida alta» da vida cristã ordinária.

9. À nossa frente estão sempre os caminhos do Senhor, que devemos calcorrear com alegria e felicidade recebida e dada, enquanto cantamos a imensa partitura do Salmo 119, admirável composição de 1064 palavras hebraicas reunidas, repartidas, repetidas, entretecidas e entretidas à volta da Palavra de Deus que alumia a nossa vida. O grande pensador francês Blaise Pascal (1623-1662), de quem o Papa Francisco já anunciou querer abrir o processo de beatificação, recitava este Salmo todos os dias.

António Couto


LANÇAI OS FUNDAMENTOS NO CÉU

Fevereiro 4, 2023

Se o Senhor não construir a casa,

Em vão trabalham os que a constroem.

Se o Senhor não guardar a cidade,

Em vão vigiam as sentinelas.

Não se pode esconder uma cidade

Situada no cimo de um monte,

Ou sobre a linha do horizonte,

Porque alumia, alumia, alumia,

Irradia, irradia, irradia,

De noite e de dia.

Cidade de alto-a-baixo erguida,

Como um manto de orvalho caída,

Como uma ermida,

Uma jazida

De luz

E de Jesus.

Tudo ao contrário do que vem nos manuais ou nos jornais,

Lançai os fundamentos no céu,

Construí desde o cume,

Sobre o gume da Palavra

Que de Deus vem

Rasgar

E salgar os nossos destemperados corações.

António Couto


UM ABRAÇO DE ALMA A ALMA

Fevereiro 3, 2023

Is 58,7-10; Sl 112; 1 Cor 2,1-5; Mt 5,13-16

1. Entrámos no Domingo passado (IV do Tempo Comum) no Sermão da Montanha, e fomos logo felicitados por aquele encantatório rol de felicitações, em que por nove vezes se repetia a palavra FELIZES, sendo as oito primeiras formuladas na terceira pessoa do plural, e a última, a nona, formulada na segunda pessoa do plural, que aqui recuperamos: «FELIZES sois vós, quando vos ultrajarem e perseguirem e, mentindo, disserem contra vós toda a espécie de mal por causa de mim (éneken emoû)» (Mateus 5,11). Não, não se trata de acentuar qualquer conduta moral, mas de acentuar a total adesão a Cristo. Nas primeiras oito felicitações, é Deus que dá os parabéns aos pobres e desqualificados, aos últimos da sociedade, àqueles que não estão habituados a receber parabéns de ninguém, mas que não tiram os olhos de Deus nem deixam de para Ele levantar as mãos. O uso da terceira pessoa dá a estas felicitações uma forma generalizada e abstrata. Ao passar a formulação para a segunda pessoa do plural [«Felizes sois vós…»], é àquela audiência concreta, ali presente, que Jesus se dirige, vinculando-a a si [«por causa de mim»], mas expondo-a também face a um mundo adverso e perseguidor. Todavia, estes pobres, perseguidos pelos homens, são felicitados por Deus. O seu mundo não é esquizofrénico: não se separam de Deus, mas tão-pouco se separam do mundo que tudo faz para os ver separados.

2. O Evangelho deste Domingo V do Tempo Comum (Mateus 5,13-16) continua a glosar as notas da nona Felicitação, e mantém acesa a clave do «Vós sois» [uns-com-os-outros e uns-para-os-outros, e não uns-contra-os-outros], sem qualquer cedência a esquizofrenias nem ao moderno individualismo ocidental, e, nos tempos que correm, praticamente mundial, em que se podem contar cerca de oito biliões de solidões alérgicas. Hoje começamos por estender o texto do Evangelho diante dos nossos olhos, para melhor lhe podermos captar a importância de que se reveste, mas também o sabor e a sabedoria, sem descurar a forma direta de que se reveste no seguimento do v. 11.

«Vós sois o sal da terra. Mas se o sal se tornar insípido, com que o salgaremos? Não serve para nada, senão para se deitar fora e ser calcado pelos homens.

Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte. Não se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro para alumiar todos os que estão na casa.

Assim brilhe a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem o vosso Pai que está nos céus».

3. Aquele «Vós» (hymeîs) a abrir os v. 13 e 14 dá ênfase ao «Vós sois» que introduz o v. 11, e ajuda-nos a identificar com SAL E LUZ aqueles que são perseguidos «por causa de Jesus». Acabámos de ouvir acordes como estes: «Vós sois o SAL da terra» (Mateus 5,13); «Vós sois a LUZ do mundo» (Mateus 5,14). O SAL dá sabor. A LUZ alumia. O mundo inteiro por horizonte. É, portanto, necessário abrir os horizontes. O mundo é a nossa casa. Compreenda-se já que o SAL e a LUZ são belíssimas metáforas das OBRAS que fazemos: «Assim brilhe a vossa LUZ diante dos homens, para que vejam as vossas BOAS OBRAS» (Mateus 5,16). Mas entenda-se também de imediato que «as nossas OBRAS BOAS» não são do domínio das nossas mãos (a LUZ escapa-nos das mãos), mas do domínio da Graça de Deus que, como em Maria, também em nós «faz grandes coisas» (Lucas 1,49). São mesmo as OBRAS que se devem ler no cone de luz da LUZ e do SAL. De resto, é sabido que, quimicamente falando, o SAL não pode perder o seu sabor. Mas um homem sem OBRAS BOAS é insípido e inútil. O SAL só é inútil enquanto está retido no saleiro. E a LUZ enquanto está impedida de brilhar. E nós, quando nos blindamos dentro das portas e das janelas do nosso egoísmo e comodismo. É assim que nos tornamos insípidos e deixamos apagar a nossa luz. O verbo grego môraínô, que aparece no texto para dizer que o sal «se torna insípido» (v. 13), é usado mais habitualmente para dizer o homem que «se torna estúpido». Podemos estar perante um daqueles duplos sentidos que tantas vezes encontramos na expressão escrita. E pode bem ser disso que se trata, dado que, em hebraico e aramaico, o verbo tapel significa ao mesmo tempo «ser insípido» e «ser estúpido». E não faltam indicadores rabínicos a referir que, com a vinda do Messias, «a sabedoria dos escribas se há de tornar insípida».

4. É ainda necessário dar um passo em frente, e entender bem que aquele plural «Vós sois» se reveste seguramente de significado comunitário, como é usual em Mateus, que nunca perde de vista a comunidade eclesial. Assim, sois vós em comunidade que sois a Luz do mundo, que sois o Sal da terra, e não cada um por si, isoladamente. Assim também a lâmpada é para alumiar todos os que estão na casa, toda a comunidade da família de Deus. E o sal, o sal da aliança (Levítico 2,13), está lá também para dar o autêntico sabor da aliança a toda a oferta feita pela comunidade a Deus (Êxodo 30,25; Levítico 2,13), e a todo o recém-nascido a nós dado por Deus (Ezequiel 4,16).

5. Bem se vê que o SAL e a LUZ são metáforas que mostram a comunidade reunida com Jesus na Montanha e as BOAS OBRAS que deve realizar. Finalidade: para que seja glorificado «o vosso Pai que está nos Céus». A expressão «o vosso Pai que está nos Céus» é usada por Mateus apenas no Sermão da Montanha. Assim, percebemos melhor que estamos em casa, e que temos de aprender a ser filhos e irmãos.

6. O Livro do Deuteronómio atira-se contra a nossa tranquila indiferença: «Se houver no meio de ti qualquer irmão necessitado, não endureças o teu coração e não feches a tua mão» (Deuteronómio 15,7). Precisamos, hoje mais do que nunca, de viver ao estilo de Jesus, Bom Pastor, e ao estilo do Bom Samaritano, com «um coração que vê», para usar a expressão feliz de Bento XVI (Deus caritas est, 25 de dezembro de 2005, n.º 31).

7. É assim que Isaías 58,10 nos desafia literalmente (aí está o sabor das traduções literais!) a «oferecer ao faminto a tua alma (nefesh),/ e saciar a alma (nefesh) do oprimido». Trata-se de muito mais do que uma simples ajuda material. É um abraço entre duas almas, entre duas vidas, entre dois intensos desejos de viver, entre dois alentos de vida! Portanto, com o Deus criador e providente sempre por detrás.

8. Só entende esta intensidade quem sabe que a sua LUZ é reflexa, porque a recebe de Deus. É assim, com «um coração que vê» à flor da pele ou da alma, que S. Paulo não se apresenta no meio de nós ou da comunidade de Corinto com fortes argumentos da sabedoria humana, conforme a sua lição de hoje (1 Coríntios 2,1-5). Ele quer que nós compreendamos bem que a nossa fé assenta em Cristo e no seu poder, e não em qualquer humano raciocínio e respetiva força. «A fraqueza de Deus é mais forte do que os homens» (1 Coríntios 1,25). E «quando eu sou fraco, então é que eu sou forte» (2 Coríntios 12,10). Portanto, Paulo não se apresentou em Corinto cheio de si, mas cheio de Deus. Não se anunciou (kêrýssô) a si mesmo, mas a Cristo Jesus (2 Coríntios 4,5). Sim, é a Luz que devemos saber levar em vasos de barro, para que se veja bem que esse tesouro e esse poder (dýnamis) vêm de Deus, e não de nós (2 Coríntios 4,7). É o poder (dýnamis) de Deus que move Paulo (1 Coríntios 2,5), e que nos deve mover também a nós.

9. Com tanto Sal na mão e tanta Luz a alumiar o coração, o nosso tempo é sempre tempo dado para nos questionarmos de verdade, pondo em causa os nossos egoísmos e as nossas portas fechadas à graça de Deus e aos irmãos que Ele nos deu. Com base no sentido do SAL e da LUZ, pode abrir-se diante de nós um tempo de verificação: cheio de mim ou cheio de Ti? Estou no centro das atenções ou sei orientar todos os olhares para Ti? Conheço-Te e celebro-Te e dou testemunho da Tua Ressurreição? Os meus atos anunciam a tua Vinda, isto é, revelam e desvelam a tua presença permanente? Ou será que o meu olhar é mau porque Tu és Bom? (Mateus 20,15; cf. Ben Sira 14,9-10). Por que é que eu tenho tão poucos (ou nenhuns) encontros CONTIGO marcados na minha agenda? O que faço eu com o relógio na mão o dia inteiro? Por que corro tanto e para onde corro tanto? Debruço-me com amor, e com tempo, sobre os meus irmãos abandonados à beira do caminho ou postos ali mesmo à entrada da minha porta? A minha casa está construída sobre a rocha ou sobre a areia? E a LUZ alumia ou está apagada? E o SAL dá sabor à minha vida e à vida dos outros?

10. O Salmo 112 é irmão gémeo do Salmo 111. Neste é Deus o sujeito. Naquele o homem justo, «imitador de Deus». O Salmo de hoje tem apenas 77 palavras divididas por dez versículos, em nove dos quais se desenha o homem justo, de coração e mãos largas para dar com abundância. Ao ímpio é reservado apenas um versículo, e é retratado só para ver o sucesso do justo e para se roer de raiva e de inveja até se atolar na ruína. O justo é uma casa iluminada. O ímpio desaparece nas trevas.

António Couto


UMA VIDA COM DEDICATÓRIA

Fevereiro 1, 2023

Toda a vida consagrada

É uma vida com dedicatória

Obrigatória

Ao autor de cada madrugada

Perfumada,

Senhor de mim

E do meu sim.

Desde sempre pensado e amado,

É-me dado um segmento de tempo

Para responder ao Amor,

E a eternidade inteira

Para viver à tua beira,

À tua maneira.

Ó mar imenso do Amor,

A que eu chamo Senhor,

Obrigado por olhares por mim e para mim,

Tão humano e pequenino,

E por me dares por destino

O teu coração divino.

Que eu seja, então, sempre Amor em cada dia,

Ao teu dispor,

Senhor da minha alegria.

António Couto


APRESENTADO AO SENHOR

Fevereiro 1, 2023

Ml 3,1-4; Sl 24; Hb 2,14-18; Lc 2,22-40

1. A Igreja Una e Santa celebra no dia 2 de Fevereiro, quarenta dias depois do Natal, a Festa da Apresentação do Senhor, que as Igrejas do Oriente conhecem por Festa do Encontro (Hypapantê) e dos Encontros: Encontro de Deus com o seu Povo agradecido, mas também de Maria, de José e de Jesus com Simeão e Ana. Também connosco.

2. Quarenta dias depois do seu nascimento, sujeito à Lei (Gálatas 4,4), Jesus, como filho varão primogénito, é apresentado a Deus, a quem, sempre segundo a Lei de Deus, pertence. De facto, o Livro do Êxodo prescreve que todo o filho primogénito, macho, quer dos homens quer dos animais, é pertença de Deus e a Deus deve ser consagrado, conforme se diz no Livro do Êxodo: «Consagra-me todo o primogénito, aquele que abre o ventre materno, entre os filhos de Israel, dos homens e dos animais. Ele é meu» (Êxodo 13,2). Mas ver também o belo cesto de razões apresentado em Êxodo 13,11-16. E avrescente-se que também os primeiros frutos dos campos serão consagrados ao Senhor (Deuteronómio 26,1-10).

3. É assim que, para cumprir a Lei de Deus, quarenta dias depois do seu nascimento, Jesus é levado pela primeira vez ao Templo, onde, também pela primeira vez, se deixa ver como a Luz do mundo e a nossa esperança.

4. O Evangelho a escutar, amar e admirar é Lucas 2,22-40. Compõe a cena um velhinho chamado Simeão, nome que significa «Escutador», que vive atentamente à escuta, em Hi-Fi, alta-fidelidade, alta frequência, alta definição, amor novo, e que o Evangelho apresenta como um homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel. Ora, esse velhinho que vivia à espera e à escuta, com extremosa atenção e coração vigilante, veio ao Templo sob o impulso do Espírito (en tô pneúmati). Fica aqui declarada a qualidade da energia e da alegria que move o velho e querido Simeão: não é movido a carvão, nem a água, nem a vento, nem a petróleo e seus derivados, nem a eletricidade, nem sequer a energia nuclear. Simeão é movido pelo Espírito Santo. Maneira novíssima de viver, pausa e bemol na nossa impetuosidade, na nossa vontade de aparecer e de fazer, pausa e bemol nos nossos protagonismos e vontade de poder. Falamos quase sempre antes do tempo, e não chegamos a dar lugar à suave voz do Espírito. Na verdade, adverte-nos Jesus: «Não sois vós que falais, mas o Espírito Santo» (Marcos 13,11; cf. Mateus 10,20; Lucas 12,12). Portanto, é urgente esperar! Regressemos, pois, à beleza de Simeão. Ao ver aquele Menino, recebeu-o carinhosamente nos braços. Por isso, os Padres gregos dão a Simeão o título belo de Theodóchos [= «recebedor de Deus»]. É então que Simeão entoa o canto feliz do entardecer da sua vida, um dos mais belos cantos que a Bíblia regista: «Agora, Senhor, podes deixar o teu servo partir em paz, porque os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos, Luz que vem iluminar as nações e glória do teu povo, Israel!» (Lucas 2,29-32).

5. E, na circunstância, também uma velhinha chegou carregada de Graça e de Esperança. Chamava-se Ana, que significa «Graça». É dita «Profetisa», isto é, que anda, também ela, sintonizada em Hi-Fi, alta-fidelidade, com a Palavra de Deus escutada, vivida e anunciada. Diz ainda o texto que era filha de Fanuel, nome que significa «Rosto de Deus», e que era da tribo de Aser, que quer dizer «Felicidade». Tanta intimidade com Deus! Também esta velhinha, serena e feliz, com 84 anos, número perfeito de números perfeitos (7 x 12), teve a Graça de ver aquele Menino. E diz bem o texto do Evangelho que Ana «falava daquele Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém» (Lucas 2,38). Outra vez a beleza inteira do díptico do Evangelho de Lucas: Simeão e Ana. Simeão esperava e Ana anunciava. Eis aqui presente, nestes dois maravilhosos velhinhos, a inteira Escritura dos dois Testamentos, e o retrato a corpo inteiro do Consagrado, que, na Bíblia hebraica, se diz Nazîr, um nome passivo e recetivo, totalmente dedicado a Deus, conduzido por Deus, «compondo» com emoção os acontecimentos de Deus.

6. Esta é a Festa da Alegria e da Esperança acumulada e realizada. É a Festa da Luz. Simeão e Ana viram a Luz e exultaram de Alegria. Hoje somos nós que nos chamamos Simeão e Ana. Somos nós que recebemos esta Luz nos braços, e que ficamos a fazer parte da família da Felicidade e a viver pertinho de Deus, Rosto a Rosto com Deus, Escutadores atentos do bater do coração de Deus, movidos pelo Espírito de Deus, Recebedores de Deus, Anunciadores de Deus. Rezamos hoje para que, nesta sociedade de coisas e de números (cf. Isaías 5,8), os Consagrados vivam cada vez mais Rosto a Rosto com Deus, e deem testemunho no mundo deste Dom maravilhoso.

7. Por isso e para isso é que Ele vem, conforme a lição de Malaquias 3,1-4 e Hebreus 2,14-18. Vem de Deus, mas senta-se connosco. Em tudo semelhante aos seus irmãos. Lava-nos os pés e a alma. Apaga os nossos pecados. Põe-nos em comunhão com Deus. Tanta proximidade faz deste Dia a Festa do Encontro. Hebreus 2,17 é o primeiro texto em absoluto do Novo Testamento a atribuir a Jesus o título de sumo-sacerdote. Novidade nova em contraponto e contracorrente com quanto vem antes. Foi preciso alisar o caminho, aplaná-lo, para ser possível assegurar este título a Jesus. Os sumo-sacerdotes do AT e do judaísmo estariam, porventura, perto de Deus (a tanto os obrigavam as normas legais e rituais), mas estavam bem distantes dos homens, seus irmãos. Portanto, o título não se ajustava a Jesus.

8. Não nos conformemos, pois, com as pedras e as pautas deste mundo (Romanos 12,2). Experimentemos viver em Hi-Fi, alta frequência, alta-fidelidade, alta dedicação, amor novo. Anda por aí uma música nova à nossa espera. É como um som que nunca se ouviu, como um silêncio que nunca se calou! Que Maria, a Mãe da Alegria, nos leve pela mão e nos ensine a subir e a descer a escadaria do coração.

9. Por isso, cantemos e aclamemos, com o Salmo 24, o Senhor do Universo e Rei da Glória, que vem e entra no seu Templo e na nossa frágil humanidade, que Ele glorifica. No último andamento deste Salmo (v. 7-10), justamente a parte Hoje cantada, as portas do Templo e as da nossa vida, personificadas, são convidadas a abrir-se e a levantar-se, para que possa entrar em nossa Casa o Rei, Senhor dos Exércitos, um título que a Bíblia registra por 279 vezes. Gerhard Ebeling (1912-2001) comenta assim este Salmo arcaico: «São três os pressupostos fundamentais do texto. O primeiro é que Deus criou o mundo, e é o seu Senhor. O segundo é que devemos comparecer junto de Deus e ser interrogados sobre o que fizemos. O terceiro é que Deus vem para o que é seu, e deseja ter livre acesso. Estas são três formas elementares da experiência de Deus e da relação com Deus: nós vivemos por obra de Deus, diante de Deus, e podemos viver com Deus». E o poeta francês Paul Claudel (1868-1955), recolhendo o último tema, o da vida com Deus, exclamava: «Aqui, Deus! Aqui, o nosso Deus, o Senhor dos Exércitos, que está empenhado, através dos séculos, em transferir-nos para a sua eternidade».

António Couto