A SOLENE EXPOSIÇÃO DO FILHO

Fevereiro 26, 2021

1. Batizado com o Espírito Santo (Marcos 1,9-10), chamado pelo Pai «o Filho meu», «o Amado» (Marcos 1,11), tentado durante quarenta dias no nosso deserto, mas superando a prova, dominando pela doçura os animais e a nossa selvagem animalidade, Jesus, totalmente vinculado ao Pai, pois d’Ele é o Filho, o Amado, vincula-se também à nossa humana condição e vincula-nos a Si («Vamos» [ágômen]: o mesmo dizer vinculativo em Marcos 1,38, na hora da Missão, e Marcos 14,42, na hora da Paixão), refazendo os nossos caminhos há muito por nós abandonados. O seu caminho filial batismal é agora também o nosso caminho.

2. O Evangelho de Marcos refere, de facto, que Jesus nos fez deixar para trás os nossos planos (Marcos 1,37), e nos levou consigo, na hora da Missão, a Anunciar o Evangelho de Deus pelos caminhos da Galileia (Marcos 1,38), prolepse fantástica da inteira vida cristã, discipular e apostólica: com Jesus nos caminhos da sua Missão, que passam também pelo caminho da sua Paixão (Marcos 14,42). A locução «no caminho» (en tê hodô), usada sobretudo na importante secção do seguimento de Jesus «no caminho» (Marcos 8,27-10,52), fazendo-se aí ouvir por cinco vezes (Marcos 8,27; 9,33.34; 10,32.52), ajuda-nos a compreender ainda melhor que o discípulo de Jesus deve aprender a «dizer vigorosamente não» (apernéomai) a si mesmo (Marcos 8,34), expressão fortíssima empregada no texto grego de Isaías para dizer «desfazer-se dos seus ídolos de ouro e prata» (Isaías 31,7), para fazer completamente seu o mesmo caminho de Jesus.

3. É assim que chegamos ao Evangelho deste Domingo II da Quaresma (Marcos 9,2-10), em que nos é mostrada, no meio do caminho de Jesus, a cena extraordinária da Transfiguração de Jesus. A iniciativa começa por ser de Jesus, que toma consigo (paralambánô) Pedro, Tigo e João, e os faz subir (anaphérô) a um monte alto, mas passa logo para Deus com o passivo divino ou teológico «foi transfigurado» (metemorphôthê: aoristo passivo de metamorphéô) (Marcos 9,2). É a segunda vez que Jesus toma consigo apenas Pedro, Tiago e João (a primeira foi aquando da ressuscitação da filha de Jairo: 5,35-43). O facto de os levar para um monte alto, significa que o que se vai passar cai fora da agitação da vida quotidiana; a transfiguração de Jesus não se realiza na praça pública ou perante uma grande multidão. Não é narrada a figura de Jesus transfigurado. Apenas se fala das suas vestes brancas de uma brancura não terrena (Marcos 9,3). Fala-se também da «aparição» de Elias com Moisés (Marcos 9,4). A «aparição» de Moisés e Elias faz-nos compreender que Jesus não surge de improviso, mas se insere numa longa história que retrata a solicitude de Deus com o seu povo. «Aparição»: literalmente «fez-se ver» (ôpthê: aoristo passivo de horáô) «a eles» (autoîs). Trata-se de um passivo intransitivo, isto é, são Moisés e Elias que se fazem ver a eles, isto é, a Pedro, Tiago e João, e não são estes que veem Moisés e Elias. De per si, os nossos olhos não têm capacidade de ver tanto. Por isso também aquele «a eles» é gramaticalmente chamado um dativo do beneficiário. Eles beneficiam desta visão. É também desta maneira que são apresentadas as aparições de Deus no Antigo Testamento e as do Ressuscitado no Novo Testamento.

4. Em Marcos 9,5, Pedro reage a tanto ver. Mas o seu dizer não se ajusta ao contexto, é manifestamente desapropriado. Tendas terrenas não podem abrigar seres celestes. Por isso, certeiramente nos diz o narrador que «não sabia o que dizia» (Marcos 9,6).

5. E eis o clímax do relato, com a introdução de dois elementos divinos: a nuvem e a voz, símbolos respetivamente da presença velada de Deus e da sua transcendência (Êxodo 24,16). Da nuvem uma voz, a voz de Deus, o único que sabe dizer bem o que se passa: «Este é o Filho meu, o Amado» (Marcos 9,8). Notem-se duas pequenas diferenças em relação ao cenário do Batismo. Aí, a voz de Deus provém do céu (não da nuvem), e dirige-se a Jesus, em 2.ª pessoa: «Tu és o Filho meu, o Amado» (Marcos 1,11). Aqui, a voz provém da nuvem, e dirige-se a nós, em 3.ª pessoa. É, portanto, a apresentação que Deus nos faz do Seu próprio Filho. Tanto que, acrescenta logo o imperativo: «Escutai-O» (Marcos 9,8). Com este divino dizer, o Pai vincula a Si o Seu Filho do modo mais profundo: Deus não se revela a si mesmo, como no Êxodo, mas revela o Filho, e vincula-nos a nós também ao Seu Filho, sendo Ele a Palavra que devemos escutar todos os dias, a Pessoa a quem devemos prestar atenção todos os dias. Note-se que o Filho é, antes de mais, aquele que recebe a vida, e só depois aquele que tem uma missão para cumprir. Está aqui o escândalo da revelação: Deus não se qualifica apenas como Criador e Pai que dá a vida, mas também como Filho que a recebe, para a dar!

6. Eis-nos, portanto, outra vez a sós com Jesus (Marcos 9,8), que põe a Transfiguração em linha com a Ressurreição, abrindo-nos já proleticamente os caminhos da Missão depois da Ressurreição. Que a Transfiguração deve ser vista à luz da Ressurreição, fica bem patente no dizer das Igrejas do Oriente que chamam à Festa da Transfiguração, que se celebra no dia 6 de Agosto, «a Páscoa do verão». Mas está também claro na ordem dada por Jesus ao descer do monte de «A ninguém narrarem (diêgéomai) o que viram senão quando o Filho do Homem ressuscitar dos mortos» (Marcos 9,9).

7. Jesus impõe, portanto, na nossa pauta musical pausa e bemol. Na verdade, não podemos dizer a Transfiguração do Senhor, antes da Ressurreição do Senhor e independentemente da Ressurreição do Senhor. E não podemos, porque não sabemos. E não sabemos, porque é só o Ressuscitado que faz vir o Espírito Santo sobre nós. Veja-se a lição do Livro dos Atos dos Apóstolos: «Este Jesus, Deus o Ressuscitou, e disto todos nós somos testemunhas. Exaltado à direita de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou-o, e é o que vedes e ouvis» (2,32-33). E o comentário preciso e precioso do narrador às palavras que Jesus acabava de proferir: «Isto disse do Espírito que haviam de receber os que tinham acreditado n’Ele, pois não havia ainda Espírito [para nós], porque Jesus ainda não tinha sido glorificado» (João 7,39). Pausa e bemol, porque importa que não sejamos nós a falar, porque nós falamos sempre antes do tempo! Importa que seja o Espírito Santo a falar em nós. Toda a atenção, neste sentido, para o grande dizer de Jesus: «Quando vos conduzirem, entregando-vos, não vos preocupeis com o que ides falar (laléô); mas o que vos for dado (dothê: conj. aor. pass. de dídômi) nessa hora, isso falai (laléô); na verdade, não sois vós que falais (laléô), mas o ESPÍRITO SANTO» (Marcos 13,11). Falar, com o verbo laléô, é linguagem de revelação e ultrapassa os níveis da nossa competência!

8. A tradição situa o «monte alto», que abre o episódio da Transfiguração (Marcos 9,2), no Tabor, um monte de forma arredondada que se ergue nos seus 582 metros no meio da planície galilaica de Jesrael ou Esdrelon. No sopé do Tabor ainda hoje se encontra a aldeia palestiniana de Daburiyya, cujo eco evoca a personagem bíblica mais importante desta região, a profetisa Débora. As Igrejas do Oriente conhecem este episódio da Transfiguração por «Metamorfose» (Metamórphôsis), a partir das palavras do texto: «E transformou-se (metemorphôthê) diante deles [= Pedro, Tiago e João], e as suas vestes tornaram-se resplandecentes, grandemente brancas» (Marcos 9,2-3). O branco é a cor divina. E a luz é o seu vestido, conforme o dizer do Salmo 104,2: «Vestido de Luz como de um manto». E, nesse cone de luz, o Apóstolo exorta-nos: «Caminhai como filhos da luz», e lembra-nos que «o fruto da luz é toda a bondade, justiça e verdade» (Efésios 5,8 e 9).

9. A Lição do Livro do Génesis 22,1-18 apresenta-nos a figura de Abraão, também ele vencedor da prova da sempre idolátrica posse que se apega a nós e a que nós nos apegamos. Na verdade, há ainda uma última posse de que Abraão tem de ser libertado: em relação a Abraão, o narrador insiste em chamar a Isaac «seu» filho (Génesis 22,3.6.9.10.13), e o próprio Abraão diz para Isaac «meu» filho (Génesis 22,7 e 8). Um refrão os reúne por duas vezes: «E iam os dois juntos» (Génesis 22,6 e 8). Ora, Isaac é o filho da promessa, é um dom, e um dom não é para se reter ou possuir. Segundo o dizer autorizado do anjo do Senhor que se faz ouvir dos céus por duas vezes, Abraão passa a prova exatamente porque «não retiveste o teu filho, o teu único, longe de mim» (Génesis 22,12 e 16). Abraão não o reteve. Deu-o. Desapossou-se dele. Deu-o a Deus e deu-se a Deus na sua paternidade, «fazendo subir em holocausto», não um cordeiro (seh) (Génesis 22,7-8), mas um carneiro (ʼayil) (Gn 22,13). Neste episódio imenso, intenso e nebuloso, nós podemos, todavia, compreender que, em vez de sacrificar Isaac, Abraão deverá sacrificar a sua vontade de o possuir como propriedade: é esta vontade que é mortal. Procedendo assim, Abraão é o anti-Adam. É preciso testemunhas desta libertação imensa, incrível, dramática, divina. São os dois jovens depositários do dizer de Abraão: «Vamos lá acima adorar, e voltaremos para vós» (Génesis 22,5. Importante dizer, dado que, após a ação de adoração lá em cima, o narrador dirá: «Voltou Abraão para os jovens» (Génesis 22,19). Depositários de um dizer que afirmava o regresso de Abraão e Isaac, as duas testemunhas podem constatar agora, não o regresso dos dois, mas somente de Abraão. Lição de insuperável liberdade.

10. Outro imenso texto de São Paulo atravessa este Domingo II da Quaresma: Romanos 8,31‑34. «Deus entregou o seu Filho por nós» (Romanos 8,32). Eis o Desígnio (Mistério) de Deus anunciado no Antigo Testamento, realizado em Cristo, batizado para a Morte, confirmado para a Morte, entregue por Deus à Morte. Nesta Morte Gloriosa fomos nós batizados e confirmados com o Espírito Santo e com o fogo, e foi‑nos dado a conhecer esse Desígnio (Mistério conhecido!) (Romanos 16,25‑26; 1 Coríntios 2,7‑l0; Efésios 3,3‑11; Colossenses 1,26‑27). Desígnio (Mistério)de Deus anunciado, realizado, e dado a conhecer. A nossa missão filial batismal é proclamá‑lo e testemunhá‑lo como o Apóstolo o proclama e testemunha.

11. O Salmo 116 é o quarto canto do chamado «Hallel Pascal», que reúne os Salmos 113-118. O Salmo 116 enche de música e de cor a Ceia Pascal hebraica. Na verdade, neste Salmo, canta-se a liberdade e a alegria confiante de vermos a nossa vida segura nas mãos de Deus, que nos retira do esquecimento do túmulo, e reacende a chama que se extingue. Entre os admiradores deste Salmo conta-se, com algum espanto nosso, o filósofo francês Voltaire (1694-1778), que privilegiava o v. 12: «Como restituirei (heshîb) ao Senhor por todos os seus benefícios (gemûlôt) que me deu?». O Salmo fornece logo a seguir a resposta: «O cálice da salvação erguerei,/ e o Nome do Senhor invocarei./ Os meus votos ao Senhor cumprirei,/ diante de todo o seu povo» (vv. 13-14). Este cálice erguido e partilhado assinala, no ritual (seder) da Ceia Pascal hebraica, o momento em que ia passando entre os comensais a terceira taça de vinho, a da Ação de Graças. De resto, o orante sabe bem que não pode «restituir» a Deus. Por isso, no Saltério, o sujeito do verbo «restituir» (heshîb: hiphil de shûb) é, por norma, Deus (21 sobre 28 vezes). Mas o orante pode sempre agradecer a Deus e anunciar a todos que Deus atua em favor do seu povo, ação de evangelização.

 

A quaresma é uma estrada

Entrecortada

Por estações de serviço de paz e de perdão,

Uma avenida

Florida

De oração,

Uma praça

De graça

E contemplação.

 

A quaresma é uma escada,

Que do céu desce,

Trazendo até nós a mão de Deus,

E ao céu se eleva,

Levando até Deus a nossa prece.

 

A quaresma é um caminho

Direitinho

Ao coração.

É preciso limpá-lo

De todo o lixo acumulado.

É preciso entregá-lo a Deus,

Limpo e cultivado.

 

Senhor desta estrada deserta,

Que vai de Jerusalém a Gaza,

Mantém a minha alma sempre alerta,

Conduz nesta viagem os meus passos,

Pegada a pegada,

Até ao limiar da tua casa

Iluminada.

 

António Couto

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MÚSICA NOVA COM PAUSA E BEMOL

Março 7, 2020

1. Batizado no Jordão, tentado no deserto, mas Vitorioso, Jesus começou a executar o seu programa filial batismal que tem por meta a Cruz Gloriosa (Batismo consumado!) em que nós somos por Ele batizados com o fogo e com o Espírito Santo (sempre o luminoso texto de Lucas 12,49-50). Entre o Jordão e a Cruz Gloriosa aí está Hoje, Domingo II da Quaresma, o episódio da Transfiguração (Mateus 17,1-9) – Luz incriada e inacessível (Mateus 17,2; cf. Salmo 104,2; 1 Timóteo 6,16) que investe a Humanidade de Jesus: experiência momentânea da Ressurreição –, mediante a qual o Pai confirma o Filho na sua missão filial batismal, já iniciada, mas ainda não consumada. Que a Transfiguração deve ser vista à luz da Ressurreição, fica bem patente no dizer das Igrejas do Oriente que chamam à Festa da Transfiguração, que se celebra no dia 6 de Agosto, «a Páscoa do verão». Mas está também claro na ordem taxativa de Jesus ao descer do monte: «A ninguém digais esta visão até que o Filho do Homem seja Ressuscitado dos mortos» (Mateus 17,9).

2. Jesus impõe, portanto, na nossa pauta musical, pausa e bemol. Não podemos dizer a Transfiguração do Senhor, antes da Ressurreição do Senhor. E não podemos, porque não sabemos. E não sabemos, porque é só o Ressuscitado que faz vir o Espírito Santo sobre nós. Veja-se a lição do Livro dos Atos dos Apóstolos: «Este Jesus, Deus o Ressuscitou, e disto todos nós somos testemunhas. Exaltado à direita de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou-o, e é o que vedes e ouvis» (2,32-33). E o comentário preciso e precioso do narrador às palavras que Jesus acabava de proferir: «Isto disse do Espírito que haviam de receber os que tinham acreditado n’Ele, pois não havia ainda Espírito [para nós], porque Jesus ainda não tinha sido glorificado» (João 7,39). Pausa e bemol, porque importa que não sejamos nós a falar. Importa que seja o Espírito Santo a falar em nós. Toda a atenção, neste sentido, para o grande dizer de Jesus: «Quando vos entregarem, não vos preocupeis com ou como falais (laléô). Ser-vos-á dado naquela hora o que falar (laléô). Na verdade, não sois vós que falais (laléô), mas será o Espírito do vosso PAI que falará (laléô) em vós» (Mateus 10,19-20).

3. A tradição situa o «monte alto», que abre o episódio da Transfiguração (Mateus 17,1), no Tabor, um monte de forma arredondada que se ergue nos seus 582 metros no meio da planície galilaica de Jesrael ou Esdrelon. No sopé do Tabor ainda hoje se encontra a aldeia palestiniana de Daburiyya, cujo eco evoca a personagem bíblica mais importante desta região, a profetisa Débora. As Igrejas do Oriente conhecem este episódio da Transfiguração por «Metamorfose» (Metamórphôsis), a partir das palavras do texto: «E transformou-se (metemorphôthê) diante deles [= Pedro, Tiago e João], e resplandeceu o seu rosto como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz» (Mateus 17,2). O branco é a cor divina. E a luz é o seu vestido, conforme o dizer do Salmo 104,2: «Vestido de Luz como de um manto». E, nesse cone de luz, o Apóstolo exorta-nos: «Caminhai como filhos da luz», e lembra-nos que «o fruto da luz é toda a bondade, justiça e verdade» (Efésios 5,8 e 9).

4. Batizado para a Cruz Gloriosa, Confirmado para a Cruz Gloriosa. As mesmas palavras do Pai no Batismo e na Transfiguração / Confirmação: «o Filho Meu», «o Amado» (Mateus 3,17; 17,5), agora seguidas pelo imperativo «Escutai-o!», dirigido a todos os discípulos: Jesus é também o «Profeta novo», como Moisés, prometido em Deuteronómio 18,15-18. Testemunham a cena grandiosa da Transfiguração / Confirmação três discípulos – como dispunha a Lei antiga: duas ou três testemunhas (Deuteronómio 17,6) –, os quais são igualmente confirmados para a sua missão futura (após a Ressurreição com a dádiva do Espírito) de dar testemunho d’Ele. Aparecem Moisés e Elias que falam com Jesus Transfigurado / Ressuscitado: é para Ele que aponta todo o Antigo Testamento! As «Escrituras», Moisés, todos os Profetas e os Salmos, falam acerca d’Ele! (Lucas 24,27 e 44; João 5,39 e 46; Atos dos Apóstolos 10,43). É o «Segundo as Escrituras» que os discípulos também devem testemunhar. Pedro, sempre ele, em nome dos discípulos de então e de sempre, tenta impedir Jesus de prosseguir a sua missão filial batismal até à Cruz: «Senhor, bom é estarmos AQUI… Levantarei AQUI três tendas» (Mateus 17,4). AQUI significa deter-se no provisório, no preliminar e no penúltimo, e recusar caminhar para o definitivo e o último! Marcos 9,6 e Lucas 9,33 anotam criteriosamente que «não sabia o que dizia». Não sabia, porque ainda não tinha sido batizado com o Espírito Santo e com o fogo; quando o for, saberá também ele, discípulo fiel, batizado / confirmado, levar por diante a missão filial batismal em que foi investido, e dará testemunho até ao sangue.

5. A Ressurreição é a Transfiguração tornada permanente, eterna. Todos os batizados / confirmados estão destinados à mesma Ressurreição / Transfiguração do Senhor: a Divinização.

6. A lição do Livro do Génesis (12,1-4) abre diante de nós o caminho novo já apontado no Evangelho: «VAI para ti (lek-leka), do teu país, da tua parentela e da casa do teu pai, para o país que Eu te farei ver» (Génesis 12,1). Com este imperativo, Deus põe em marcha Abraão e a inteira história da salvação que se lhe segue. «E Abraão partiu» (Génesis 12,4). Com este gesto esplendorosamente mudo, Abraão comprometeu-se e comprometeu-nos a nós também. Abraão arrasta consigo a história toda. Ele parte (e a história com ele) em direção a Jesus Cristo, que é a sua verdadeira descendência (Gálatas 3,16). Abraão viu-O e saudou-O de longe (Hebreus 11,13), cheio de alegria (João 8,56). A sua meta é clara e define e alumia a sua estrada que até lá conduz e em que caminha Abraão, fazendo assim dele também antecipadamente «filho da Luz». Abraão não se despede do passado, e faz ao futuro um aceno de esperança e de alegria. São tão simples, tão novos e tão decididos os gestos e os passos de Abraão! Talvez devamos mesmo seguir o conselho de Isaías, o profeta: «Olhai para Abraão, vosso Pai» (Isaías 51,2). E partir com ele DAQUI, do provisório, do preliminar, do penúltimo, ao encontro de Jesus Cristo Ressuscitado.

7. Movido pela Palavra de Deus, único verdadeiro motor da sua vida, Abraão parte do seu país e da casa do seu pai. Mas não se trata apenas de uma viagem no mapa. Não é meramente da ordem da geografia. É sobretudo da ordem suprema da pessoa e da liberdade. Note-se bem que o texto não diz simplesmente: «VAI (lek) do teu país», mas «VAI para ti (lek-leka) do teu país», especialíssima locução que a gramática hebraica classifica como «dativo ético». Viagem diferente, que implica um trabalho de casa, dentro da própria casa, dentro da própria pessoa, trabalho de libertação para a liberdade, até nos fazermos verdadeiramente livres, abertos, disponíveis, acolhidos, acolhedores, abençoados, abençoadores.

8. É ainda nesse sentido que Abraão é chamado «o hebreu» (ha-‘ibrî) (Génesis 14,13). ‘ibrî reporta-se a ‘eber, que significa «margem». Ele vem da «outra margem do Rio» (Josué 24,3). Mas reporta-se também a ‘abar, que significa «passar», «atravessar», «ir além de», «converter-se», «abrir uma passagem», «transferir», o que implica um movimento ao mesmo tempo objetivo e subjetivo, ativo e passivo. Abraão é o homem que atravessa fronteiras, mas é sobretudo o homem que se atravessa a si mesmo. Viajante transitivo e intransitivo.

9. E o Apóstolo testemunha (2 Timóteo 1,8-10) que o mesmo Deus que chamou Abraão, também nos chamou a nós (2 Timóteo 1,9). Por pura graça. Para dar testemunho do Evangelho e participar na sua vida. Por isso, tal como Abraão, também Paulo saiu do passado e correu para o futuro (Filipenses 3,13). E quer agora empenhar nesta «corrida» o seu discípulo Timóteo. E a nós também. Contra a contínua tentação de querermos ficar AQUI, no provisório, no preliminar, no penúltimo, como Pedro (Evangelho) e todos os discípulos (Atos dos Apóstolos 1,11).

10. Enfim, o Salmo 33, que hoje cantamos, é um verdadeiro «canto novo» (shîr hadash) a fazer vibrar as fibras do nosso coração. Mas é também música sem palavras (terûʽah) (v. 2), jubilação, exultação, lalação de radical confiança da criança que em nós sorri e dança, porque Deus vela por nós. Comenta Santo Agostinho: «Já sabes o que é o canto novo: um homem novo, um canto novo».

 

A quaresma é uma estrada

Entrecortada

Por estações de serviço de paz e de perdão,

Uma avenida

Florida

De oração,

Uma praça

De graça

E contemplação.

 

A quaresma é uma escada,

Que do céu desce,

Trazendo até nós a mão de Deus,

E ao céu se eleva,

Levando até Deus a nossa prece.

 

A quaresma é um caminho

Direitinho

Ao coração.

É preciso limpá-lo

De todo o lixo acumulado.

É preciso entregá-lo a Deus,

Limpo e cultivado.

 

Senhor desta estrada deserta,

Que vai de Jerusalém a Gaza,

Conduz os meus passos

Até ao limiar da tua casa.

 

António Couto


O TRÍPTICO DA ORAÇÃO

Julho 27, 2019

1. Depois do tríptico sobre o discípulo de Jesus, que contemplámos nos últimos três Domingos (XIV, XV e XVI), em que foi proclamado, em três andamentos, o saboroso texto de Lucas 10 (o envio dos 72 discípulos; o bom samaritano; Maria que escolheu estar sentada a escutar a Palavra de Jesus), eis-nos já perante um novo belo tríptico, agora sobre a oração cristã, que não se distribui por vários Domingos, mas que entra todo por este Domingo XVII adentro, e que Lucas nos oferece em 11,1-13.

2. O primeiro quadro deste tríptico sobre a oração pode intitular-se INTIMIDADE, e tem a sua explicitação altíssima na oração do PAI NOSSO, ensinada por Jesus aos seus discípulos (Lucas 11,1-4). Jesus é o modelo de oração oferecido aos discípulos. Por isso, aparece ao fundo da cena a rezar sozinho ao Pai (Lucas 11,1), totalmente voltado para o seio do Pai (João 1,18), completamente ocupado nas Realidades do Pai (Lucas 2,49), repousando toda a sua existência no Pai. Os discípulos veem Jesus a rezar, mas não ousam interromper tão intensa corrente de confiança e de amor. Veem apenas. O deslumbramento tolhe-lhes os movimentos e as palavras. Mas eis que Jesus termina a sua oração ao Pai. Então, ainda extasiado, um dos discípulos, em nome de todos, também em nosso nome, atreveu-se a formular este pedido: «Senhor, ensina-nos a rezar como João Batista ensinou a rezar os seus discípulos!» (Lucas 11,1).

3. E foi então que Jesus ensinou a eles e a nós, a todos, o segredo mais profundo da sua vida e da nossa vida, a orientação da sua vida e da nossa vida: para onde, melhor, para quem, devem estar sempre voltados o nosso coração, os nossos olhos, as nossas mãos, os nossos pés, a nossa vida toda.
E disse: «Quando rezardes, dizei:

“Pai (páter),
1. Santifica o teu Nome,
2. Venha o teu Reino,
3. Dá-nos o pão nosso (árton hêmôn) de cada dia,
4. Perdoa os nossos pecados,
5. Não nos deixes cair na tentação”» (Lucas 11,2-4).

4. Como bem se vê, não se trata de uma lição teórica, mas da comunicação de uma experiência, de um segredo, de um tesouro, de uma intimidade. Rezar é orientar a nossa vida toda para Deus, a quem tratamos carinhosamente por ’Abba’, nome de radical ternura, simplicidade, verdade, confidência e dependência, posto na boca de Jesus em Marcos 14,36, e na nossa em Romanos 8,15 e Gálatas 4,6. Sim, aqui não está em jogo a instituição paterna, o pai, ʼAb, que impõe respeito, autoridade e distância. Trata-se, antes, de ’Abba’, ’Ab-ba’ soletrado, que implica a duplicação das sílabas, que é uma característica da linguagem infantil, uma Lallwort de intolerável confiança! São as criancinhas que usam este tipo de linguagem. A tanto carinho e simplicidade nós somos chamados! A oração é composta no texto de Lucas por cinco pedidos (Mateus apresenta sete: Mateus 6,9-13), sendo o do meio o do «pão nosso», dado por Deus. A pergunta infantil, ou científica, ou de mera curiosidade, é sempre a mesma: «O que é isto?». A nossa resposta habitual é também sempre a mesma: «é pão». Impõe-se que nós, modernos, aprendamos e ensinemos novas notas, novas pautas, novos acordes. A resposta correta, aprendida na Escritura Santa, soa assim: «É o pão que Deus nos dá» (Êxodo 16,15).

5. De acordo com a retórica bíblica, o pedido do meio é o mais importante, pois é o que estrutura a inteira oração, constituindo por assim dizer a clave musical de toda a oração e relação com Deus-Pai. Não esqueçamos que o pedido do meio (o n.º 3) consiste em pedir o «Pão nosso». E aqui é preciso descer abaixo das escadarias da importância e do orgulho e das estratégias que diariamente usamos, pois é imperioso assumir a atitude evangélica das crianças, dado que só elas sabem pedir pão com verdade e simplicidade, sem maquilhagens, truques ou reboco de qualquer espécie! De resto, a nós, crescidos e importantes, basta sairmos à rua e tentarmos fazer o exercício de pedir pão, para vermos a triste figura que fazemos e percebermos logo que não temos mesmo jeito nenhum para isso. Sim, teremos então, evangelicamente, de aprender com as crianças!

6. Notemos ainda que este pedido n.º 3 não consiste apenas em pedir pão. Trata-se, na verdade, de pedir o «pão nosso». E aí está outra bomba a rebentar no nosso coração e na nossa mesa. É que o «pão nosso» não é o «pão meu». E isto quer dizer que o pão que está sobre a minha mesa, dado por Deus, não é «meu». É «nosso». Não é mais possível comer descansado, saciar-me, quando sei que há irmãos meus que passam fome. Aí está a dimensão social, horizontal, da oração, que é então um espantoso exercício de fraternidade.

7. O quarto pedido desta oração por Jesus rezada e vivida e a nós por Ele ensinada é sobre o perdão. Pedimos a Deus o perdão dos nossos «pecados» (hamartía) (Lucas 11,4a), para que, segundo o modelo de Deus, nós perdoemos as «dívidas» (opheílô) dos nossos irmãos (Lucas 11,4b). Na verdade, os gregos não conhecem a metáfora da «dívida» para indicar «pecado». São os hebreus que usam essa metáfora (veja-se Mateus 6,12, que usa sempre «dívidas»). Note-se, porém, a agudeza do pedido formulado por Lucas. Pedimos a Deus que nos perdoe os nossos pecados. Mas este modelo serve para nós aprendermos a perdoar ao nosso próximo também as suas dívidas concretas, não apenas as ofensas morais!

8. O segundo quadro deste tríptico sobre a oração trata o tema da CONSTÂNCIA da oração, retratada imediatamente a seguir (Lucas 11,5-8), na atitude do amigo que de noite bate à porta do seu amigo, e não desiste até ser atendido. Este quadro mostra que a oração cristã não é apenas emoção passageira, mas a respiração permanente da alma, que não se extingue perante as adversidades, nem sequer durante a noite!

9. O terceiro quadro deste tríptico trata o tema da EFICÁCIA da oração (Lucas 11,9-13): «Pedi e ser-vos-á dado, procurai e encontrareis, batei e abrir-se-vos-á». Entenda-se, todavia, que se trata de uma eficácia que não tem de responder diretamente aos cânones do que esperamos obter, aos desejos que formulamos, mas sim aos planos de Deus, que devemos saber acolher com humildade e prontidão. Como refere o poeta libanês Khalil Gibran (1883-1931), «Deus não escuta as nossas palavras, se não é Ele próprio a pronunciá-las com os nossos lábios».

10. Essencial é saber que dirigimos sempre a nossa oração ao Pai, que dá sempre o melhor aos seus filhos. E é grandemente significativo que o verbo REZAR, que aparece no tríptico três vezes (Lucas 11,1[2 x] e 2), apareça praticamente traduzido por PEDIR, que contamos no texto cinco vezes (Lucas 11,9.10.11.12.13), e cujo corolário é DAR, com nove menções no texto (Lucas 11,3.7.8[2 x].9.11.12.13[2 x].

11. Feita esta explicitação vocabular, salta à vista a importância dada à oração de súplica. Todos sabemos que a oração de súplica é muitas vezes vista como uma forma secundária de oração, quase como um subproduto, quando comparada com a oração de louvor ou de ação de graças. Ora, este tríptico diz-nos que, de acordo com Jesus, REZAR é PEDIR, é mesmo só PEDIR. Aprofundando um pouco, compreendemos então que PEDIR é próprio do filho. E é como Filho que Jesus REZA, e é, portanto, no lugar de filhos, e, por consequência, de irmãos, que Jesus nos quer colocar. Por isso também nos ensina a REZAR, dizendo: «Pai…». E também já sabemos que o Filho é aquele que recebe tudo do Pai, sendo o Pai aquele que dá tudo ao Filho.

12. Coloquemo-nos então no nosso lugar correto: o de filhos, que tudo recebem do Pai, e tudo partilham como irmãos. E compreendamos bem que, para recebermos tudo, não podemos possuir nada! Se possuirmos alguma coisa, já não podemos receber tudo! Impõe-se que temos de ser radicalmente pobres, filhos e irmãos! Só assim podemos começar a REZAR.

13. O contraponto musical de hoje vem do Livro do Génesis 18,20-32. Abraão é visto no papel do orante que negoceia com Deus a salvação de Sodoma. A sequência da intercessão de Abraão lembra o procedimento habitual nos mercados do Médio Oriente, em que o cliente faz sucessivas tentativas para baixar o preço do produto que pretende adquirir. Abraão faz seis tentativas: começa por propor 50 justos pela salvação de toda a cidade; passa depois para 45, depois para 40, depois para 30, depois para 20, finalmente 10. Vê-se que não havia nenhum, e a cidade, com todos os seus habitantes, é destruída (Génesis 19,24-25). Mas ficam desde aqui já em aberto duas coisas: a primeira é que, como referem os doutores do Talmude, não se pode deixar Deus sozinho, como fez Abraão, que se foi embora (Génesis 18,33); a segunda é que, para poder atender a oração de Abraão e a nossa, terá Deus de enviar ao nosso mundo um justo verdadeiro, «Jesus Cristo Justo» (1 João 2,1). É Ele, na verdade, o nosso Redentor e Salvador.

A cidade inteira
Cheira a enxofre e feno
E a todo o momento uma fogueira
Pode transformar esta lixeira
Num inferno.

Vem Abraão contando pelos dedos
Percorre a escala toda de cinquenta a dez,
Passando por quarenta e cinco,
Quarenta, trinta e vinte.
Ele quer salvar Sodoma a todo o custo
Mas não encontra nem sequer um justo
Para oferecer em troca dos seus medos.

Ao todo, seis lances,
Seis ofertas atiradas para o chão.
Fica, pois, com a sétima, a última, na mão
Sob registo.
E no dia em que for aberta
Ver-se-á que é divina a letra
E que o nome é Cristo.

14. A página de São Paulo aos Colossenses (2,12-14), hoje lida e escutada, é outra vez sublime e espantosa, e, talvez, original, pois este agrafo do nosso batismo com o mistério da morte e da ressurreição de Cristo pode constituir uma originalidade paulina (ver também Romanos 6,3-5). Fomos sepultados com Ele, com-sepultados (syntaphéntes: part. aor. pass. de syntháptô), no batismo, e com Ele ressuscitados, com-ressuscitados (synêgérthête: aor. pass. de synegeírô), e com Ele vivificados, com-vivificados (synezôopoíêsen: aor. de synzôopoiéô), linguagem fortíssima que enxerta a nossa vida na vida de Cristo. O título da dívida (cheirógraphon), o contrato escrito e assinado pelo credor e pelo devedor, nós não o podíamos cumprir; foi suprimido pelo credor, que o cravou na Cruz. Mais uma vez é verificável, e Paulo mostra-o até à exaustão, que a Cruz de Cristo constitui o chão e o critério da identidade cristã e apostólica.

15. O Salmo 138, que hoje cantamos, é «o canto do chamamento universal», como o define S.to Atanásio (séc. IV). O orante, voltado para o Templo (v. 2), como era usual fazer-se no judaísmo tardio (o islamismo fá-lo-á mais tarde em relação a Meca), sente e sabe que a sua oração não esbarra contra um céu cerrado, surdo e mudo, mas é registada e repercute-se no coração de Deus, que em caso algum abandona a obra das suas mãos (v. 8). Grande Ação de Graças deste orante (v. 1) e dos reis de toda a terra (v. 4). Nossa também.

Bendito o dia em que outra vez rezamos,
E outra vez sempre de novo.
Rezar é voltar sempre ao princípio,
E recitar com mais amor cada uma das tuas maravilhas.

Assim,
Talvez a oração não tenha fim,
Porque é uma viagem dentro de mim,
Fora de mim,
Enunciando nomes, dores, alegrias, guerras, fomes,
Calcorreando montanhas, vales, avenidas,
Colhendo frutos no coração das árvores,
Partilhá-los com os passarinhos
Na toalha multicolor que estendeste sobre este chão dourado.

Rezar é saber bem
Que as coisas belas que vemos neste mundo são todas tuas,
E a mais ninguém pertencem.
E quem agora as tem na mão deve acariciá-las,
Partilhá-las,
Porque as tem apenas emprestadas.

Obrigado, Senhor,
Pelo céu e pelo chão,
Pelo vinho e pelo pão,
E por cada irmão que me deste.

António Couto


A SENHORA DONA MARTA E A DISCÍPULA MARIA

Julho 20, 2019

1. Imediatamente a seguir ao belo trabalho de amor do Bom Samaritano (Lucas 10,25-37), apresentado como figura do discípulo de Jesus, eis-nos a braços com outra cena de exceção do Evangelho de Lucas: Jesus, Marta e Maria (Lucas 10,38-42), que continua a expor diante de nós, neste Domingo XVI do Tempo Comum, traços salientes para continuarmos a compor a figura do discípulo de Jesus.

2. A primeira anotação do narrador é para nos comunicar que, estando Jesus em viagem, uma mulher, de nome Marta, o recebeu em sua casa (Lucas 10,38). Acrescenta logo que Marta tinha uma irmã, chamada Maria (Lucas 10,39), e começa de imediato a desenhar o retrato das duas irmãs.

3. De Maria, diz-nos que se SENTOU aos pés de Jesus e que ESCUTAVA a sua Palavra (Lucas 10,39). O leitor apercebe-se de imediato que Maria assume a figura de discípula atenta, dedicada e deliciada: SENTADA perto do Mestre, ESCUTAVA… O narrador usa outras tintas para pintar o retrato de Marta. Começa por nos dizer que andava DISTRAÍDA (verbo grego perispáô) com muito trabalho (Lucas 10,40a). Aproximando-se, porém, disse a Jesus com um certo ar de reprovação: «Senhor, a ti não te importa que a minha irmã me deixe sozinha a trabalhar?» (Lucas 10,40b). E sem esperar pela resposta, como quem está cheia de razão, acrescenta logo, como quem tem autoridade para dar ordens até a Jesus: «Diz-lhe, pois, que me venha ajudar!» (Lucas 10,40c). É aqui que intervém Jesus, com a sua Palavra serena e soberana, para lhe dizer: «Marta, Marta, andas PREOCUPADA (verbo grego merimnáô) e ÀS VOLTAS (verbo grego thorybázô) com MUITAS COISAS (pollá), quando UMA SÓ (henós) é necessária» (Lucas 10,41-42). E conclui, para total espanto nosso e de Marta: «Maria ESCOLHEU (eklégomai) a parte BOA (e bela), que não lhe será tirada» (Lucas 10,42).

4. Importa ver já, com clareza, que Maria não diz uma palavra em todo o episódio. Não se ouve a sua voz. Ela está tranquilamente SENTADA e totalmente concentrada na ESCUTA de outra VOZ, que não a sua. Maria é a mulher de UMA COISA e de UMA PESSOA. Por isso, na base da sua vida, tem de haver uma ESCOLHA. Nas páginas da Escritura Santa, é normalmente Deus o sujeito do verbo ESCOLHER. Quando também nós ousamos ESCOLHER, então já se percebe que deixamos muitos mundos para trás e que nasce em nós um mundo novo, por acostagem ao mundo de Deus.

5. Marta começa por receber Jesus na casa dela. É a senhora dona Marta. Olha de soslaio para a sua irmã Maria que acusa de não fazer nada, e repreende Jesus por não se importar com isso, e acaba mesmo dando ordens a Jesus, para que, por sua vez, dê ordens a Maria para a ir ajudar. É a senhora dona Marta. Manda, ou pensa que manda, em casa, na sua irmã e em Jesus!

6. A sua vida é uma azáfama, anda às voltas, ocupada por preocupações e preconceitos, descentrada e desconcentrada. O seu fazer é tradicional e convencional. Nunca ESCOLHEU. Apenas CONTINUOU a fazer o habitual. O narrador diz-nos que anda DISTRAÍDA, e Jesus diz-lhe que anda PREOCUPADA (merimnáô) e ÀS VOLTAS (thorybázô)… Vocabulário importante. Um pouco adiante, Jesus adverte os seus discípulos para não se PREOCUPAREM (merimnáô) com a vida, quanto ao que hão de comer, nem com o corpo, quanto ao que hão de vestir (Lucas 12,22), e acrescenta logo que isso – afadigar-se com o que comer, beber e andar freneticamente, de lado para lado, como meteoritos (meteôrízô) – são coisas dos pagãos! (Lucas 12,30). E põe-nos diante dos olhos este tesouro evangélico e poético: «Considerai os lírios do campo, que não fiam nem tecem!…» (Lucas 12,27).

7. Ressalta deste finíssimo quadro que também o agitar-se por Deus ou pelo próximo pode ser coisa pagã. Não necessariamente por ser pagão o objeto da busca, mas por ser pagão o modo de procurar: com afã, inquietação, agitação! Na verdade, as «muitas coisas» podem viciar, não apenas a escuta, mas também o verdadeiro serviço. Fazer muito pode ser sinal de amor, mas pode também fazer morrer o amor! Ao hóspede é necessário oferecer companhia, não apenas coisas!

8. Ao contrário da senhora dona Marta, que nunca abriu mão da sua condição de dona, Maria percebeu bem que não é dona, mas simplesmente hóspede. Não da sua irmã Marta, mas de Jesus. Maria está, na verdade, hospedada em casa de Jesus. Por isso, está assim serena e tranquila. Entregou-lhe tudo: o coração, as mãos, os olhos, o cofre, a chave do cofre, a chave de casa. Marta não é apresentada como sendo má pessoa, mas não compreendeu que, quando Jesus entra em nossa casa, é dele a casa, e nós simplesmente seus hóspedes, tranquilamente sentados junto dele! Ai esta nossa entranhada tentação patronal!

9. Dizia um velho rabino acerca de um seu colega: «anda de tal modo ocupado com as COISAS de Deus, que até se esquece de que ELE existe!». Convenhamos que se trata de um esquecimento desastroso…

10. Veja-se bem a simplicidade, a prontidão e a candura desarmantes da lição do velho Abraão do Antigo Testamento de hoje (Génesis 18,1-10). Parece mesmo que Abraão já estava ali, à porta da tenda, à espera de alguém ou de Alguém! Depois de entrever Alguém ao longe, percorre aquela avenida num instante, e, como bom beduíno oriental, quase implora que não passem adiante sem descansar e retemperar as forças na sua tenda. Os viandantes aceitam. Abraão corre, apressa-se, e, no mesmo movimento de alegria, entram Sara, sua esposa, e o seu servo, escrupulosamente seguindo as diretrizes de Abraão. Mesmo quando os seus hóspedes estão recostados à mesa, isto é, à volta de uma pele de vaca sobre o chão à entrada da tenda, debaixo da árvore, estendida, Abraão permanece de pé, em atitude de disponibilidade e serviço. Abraão apresenta-se loquaz e atarefado, enquanto os seus hóspedes estão tranquilos e pronunciam frases curtas, antes da grande palavra de esperança, completamente inesperada, que abre novos horizontes para toda a humanidade! Note-se ainda que as três medidas de farinha (Génesis 18,6), mais coisa menos coisa como 60 quilos de farinha, que Abraão manda Sara amassar e meter ao forno apontam já para a parábola do Evangelho (Mateus 13,33; Lucas 13,21), e, para além disso, dada a quantidade, para o banquete do Reino de Deus! Mas também aquele filho prometido (Génesis 18,10) aponta para o Filho que encherá as páginas do Novo Testamento e da nossa vida!

11. Na lição de hoje da Carta aos Colossenses 1,24-28, Paulo apresenta-se como «servidor» (diákonos) do Evangelho a toda a criatura (v. 23) e como «servidor» (diákonos) do corpo de Cristo, que é a Igreja (ekklêsía) (v. 24). Tudo isto, não por vontade do Apóstolo, mas segundo a «economia» (oikonomía) de Deus, dada a ele por Deus para proveito nosso para levar a cumprimento a Palavra de Deus (v. 25). A Deus aprouve dar-nos a conhecer (gnôrízô) o seu mistério (mystêrion). Portanto, o mistério bíblico não é o que não se sabe nem se pode saber; é, antes, aquilo ou Aquele que Deus nos dá a conhecer (vv. 26-28). Mistério, portanto, prometido, anunciado, ensinado e conhecido! Para glória de Deus e nossa! Mas Paulo, o Apóstolo, ainda quer deixar diante de nós uma leitura nova do sofrimento, de que tanto fugimos e que a tanto custo suportamos. Diz o Apóstolo: «Alegro-me (chaírô) nos sofrimentos em vosso favor e completo o que falta nas tribulações de Cristo na minha carne em favor do seu corpo, que é a Igreja» (v. 24). Só o amor dá sentido à dor.

12. O Salmo 15 é uma «Liturgia de ingresso» no santuário, ou uma «Liturgia das portas». Constituía, na prática, uma espécie de liturgia penitencial ou exame de consciência feito à porta do Templo, para se aquilatar se a pessoa reúne condições para poder entrar no Templo. Quer isto dizer que, para alguém poder transpor o limiar do Templo, para poder ir à presença de Deus, tem de preencher uma série de requisitos morais e existenciais, e não apenas de pureza ritual, que nem sequer é falada no Salmo. Nas fachadas dos santuários do Egito e da Mesopotâmia estavam inscritas as condições requeridas para se aceder ao culto. Tratava-se, em quase todos os casos, de preceitos de natureza ritual ou exterior. Também o Talmude lembrava que «o homem não deve subir ao monte do Templo com sapatos ou bolsa ou com os pés cheios de pó; não deve reduzir os átrios do templo a entradas apressadas, e muito menos cuspir neles». Como se vê, o nosso Salmo não se entretém com ritualismos exteriores, mas requer comportamentos como o cumprimento de atos éticos e existenciais, que envolvam a justiça e a verdade, que evitem a calúnia e o insulto e a usura. Tenha-se presente que, no mundo oriental, o empréstimo interesseiro atingia, por vezes, níveis altíssimos. Por exemplo, na Mesopotâmia, as taxas de empréstimo chegaram a variar entre 17 e 50%. O nosso Salmo apela à verdade e à generosidade.

António Couto


CAMINHO DE LUZ E DE JESUS

Março 16, 2019

1. Batizado no Jordão enquanto estava em oração (nota típica de Lucas), tentado, mas Vitorioso, Jesus começou a executar o seu programa filial batismal que tem por meta a Cruz Gloriosa (Batismo consumado!) em que nós somos por Ele batizados com o fogo e com o Espírito Santo (ainda o luminoso texto de Lucas 12,49-50). Entre o Jordão e a Cruz Gloriosa aí está, no Evangelho deste Domingo II da Quaresma (Lucas 9,28-36), a Transfiguração, Luz incriada e inacessível (Lucas 9,29; cf. Salmo 104,2; 1 Timóteo 6,16) que investe a Humanidade de Jesus, experiência momentânea da Ressurreição, mediante a qual o Pai confirma o Filho na sua missão filial batismal, já iniciada, mas ainda não consumada. Também aqui temos a nota típica de Lucas de que Jesus subiu ao monte para orar, acontecendo a Transfiguração do Rosto e das vestes enquanto orava (9,28).

2. Batizado para a Cruz Gloriosa, Confirmado para a Cruz Gloriosa. As mesmas palavras do Pai no Batismo e na Transfiguração / Confirmação: «o Filho Meu», «o Amado» – «o Eleito» (Lucas 3,22; 9,35), agora seguidas pelo imperativo «Escutai-o!», dirigido a todos os discípulos: Jesus é também o «Profeta novo», como Moisés, prometido em Deuteronómio 18,15-18. Como dispunha a Lei antiga, que requeria duas ou três testemunhas (Deuteronómio 17,6), testemunham a cena grandiosa da Transfiguração / Confirmação três discípulos, os quais são igualmente transfigurados / confirmados, não no Rosto e nas vestes, mas no coração, para a sua missão futura (após a Ressurreição com a dádiva do Espírito) de dar testemunho d’Ele.

3. Aparecem Moisés e Elias que falam com Jesus Transfigurado / Ressuscitado. É para Ele que aponta todo o Antigo Testamento! As «Escrituras», Moisés, todos os profetas e os Salmos falam acerca d’Ele! (Lucas 24,27 e 44; João 5,39 e 46; Atos 10,43). É o «segundo as Escrituras» que os discípulos também devem testemunhar. Só em Lucas temos o assunto falado: «falavam do Êxodo d’Ele que se consumaria em Jerusalém!» (9,31). Passagem deste mundo para o Pai, Liberdade definitiva, cumprimento do Êxodo antigo!

4. Pedro, sempre ele, em nome dos discípulos de então e de sempre, tenta impedir Jesus de prosseguir a sua missão filial batismal até à Cruz: «Mestre, belo é estarmos aqui e fazermos aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias» (Lucas 9,33). Aqui significa deter-se no penúltimo e provisório e recusar caminhar para o último e definitivo! Lucas 9,33 (e Marcos 9,6) anotam corretamente que «não sabia o que dizia». Não sabia, porque ainda não tinha sido batizado com o Espírito Santo e com o fogo; quando o for, saberá também ele, discípulo fiel, batizado / confirmado, levar por diante a missão filial batismal em que foi investido, e dará testemunho até ao sangue.

5. A Ressurreição é a Transfiguração tornada permanente, eterna. Todos os batizados / confirmados estão destinados à mesma Ressurreição / Transfiguração da Humanidade do Senhor, a divinização por graça.

6. Em consonância com a manifestação de Luz do Evangelho da Transfiguração (Lucas 9,28-36), aí está o Lume Aceso, que é Deus, a passar pelo nosso mundo (Génesis 15,5-12 e 17-18). Abraão representa-nos. Tem dúvidas. Deus dissipa-lhas, comprometendo-se com ele e connosco. O ritual que sela este compromisso é antigo, mas ainda hoje se pratica entre os beduínos. Cortam-se ao meio animais puros, e põe-se uma metade diante da outra. A seguir os contraentes passam entre as carnes divididas dos animais, proferindo uma auto maldição, do género: «Suceda-me o que sucedeu a estes animais, se eu não for fiel à palavra dada!». Note-se que, no texto de hoje, caiu sobre Abraão (e nós com ele) um sono profundo, dom de Deus. Sim, Deus também dá sono e faz sonhar! Há, nas páginas da Escritura Santa, um sono dado por Deus ao homem, um sono que não dormimos porque temos sono, mas um sono milagroso, que só Deus pode e sabe fazer dormir ao homem. A Escritura Santa chama a este sono, na língua hebraica, tardemah. É o sono/sonho de Deus. É o sono que, por amor, Deus deu a Abraão (Génesis 15,12) e a Pedro, Tiago e João (Lucas 9,32), para só citar dois grandes textos Hoje lidos. Deus dá um sono e um sonho. Transfiguração. Transfigura a nossa desfiguração, e, por amor, a si nos configura. Configuração. Toda a figura está aberta à sua realização. Mas a realização não sucede à figura: enche-a! Jesus Cristo não aparece depois do Antigo Testamento: está no meio dele: enche-o! Transborda dele!

7. Este sono/sonho a nós dado e dado a Abraão é importante. Enquanto isso, é só Deus que passa, no fogo, por entre as carnes divididas dos animais. Só Ele, portanto, se compromete. Nós, ensonados e ensonhados, somos apenas beneficiários deste compromisso de Deus de levar a nossa história em direção a Cristo, que é a verdadeira descendência de Abraão (Gálatas 3,16), que Abraão vê e saúda de longe (Hebreus 11,13), cheio de alegria (João 8,56). A meta de Abraão torna-se clara e define e alumia a estrada que segue. Por isso, Abraão não se despede do passado, e faz ao futuro um aceno de esperança e de alegria. É tão simples, tão novo e tão decidido este sono/sonho dado a Abraão, a Pedro, João e Tiago! Talvez devamos mesmo seguir o conselho de Isaías, o profeta: «Olhai para Abraão, vosso Pai» (Isaías 51,2). E partir com ele daqui, do penúltimo e provisório, ao encontro de Cristo Transfigurado / Ressuscitado.

8. A Carta de S. Paulo aos Filipenses (3,17-4,1) põe outra vez tudo às claras: ou agarrados aqui ao penúltimo e provisório, ou a caminho do último, da cidade dada por Deus aos seus filhos e filhas, vida nova e transfigurada e conformada à Humanidade glorificada de Jesus.

9. O Salmo 27 é belo e expressivo. Pode deixar-nos nos braços de Deus, cantando e decantando a luz e a confiança que d’Ele recebemos. Mas também a suavidade, a bondade e a beleza nos encantam. Corolário normal, ainda que sempre de excecional elevação, para este dia e para esta liturgia, que nos deixa sempre tranquilos a brincar à porta da Casa de Deus.

10. A Quaresma é esta estrada de Luz e de Jesus.

 

A quaresma é uma estrada

Entrecortada

Por estações de serviço de paz e de perdão,

Uma avenida

Florida

De oração,

Uma praça

De graça

E contemplação.

 

A quaresma é uma escada,

Que do céu desce,

Trazendo até nós a mão de Deus,

E ao céu se eleva,

Levando até Deus a nossa prece.

 

A quaresma é um caminho

Direitinho

Ao coração.

É preciso limpá-lo

De todo o lixo ali acumulado.

É preciso entregá-lo a Deus,

Limpo e cultivado.

 

Senhor desta estrada deserta,

Que vai de Jerusalém a Gaza,

Conduz os meus passos

Até ao limiar da tua casa.

 

António Couto