JESUS, O PAI E NÓS SEMPRE EM REDE

Maio 9, 2020

1. Os nomes JESUS e PAI juntam-se para entretecer uma rede finíssima que atravessa e extravasa o corpo do inteiro IV Evangelho, onde se ouvem respetivamente por 237 vezes e 124 vezes. Entenda-se: a vida de JESUS está completamente nas mãos do PAI, dele provém e para ele se orienta totalmente, de modo a JESUS poder dizer: «EU e o PAI somos um (hén)» (João 10,30) – não para indicar uma só pessoa, mas uma só realidade, bem traduzida no modo neutro, e não masculino, do numeral «um» (hén) – ou: «Quem ME vê, vê o PAI» (João 14,9). Só no Evangelho deste Domingo V da Páscoa (João 14,1-12), pode contar-se o nome PAI por 12 vezes!

2. Total orientação da sua vida para o PAI. Diz, na verdade, Jesus para os seus discípulos: «Para onde EU vou, vós conheceis o caminho» (João 14,4), mudando logo o lugar pela pessoa: «EU para o PAI vou» (João 14,12). Pelo meio, cruza-se a incompreensão ou incompetência expressa de dois dos seus discípulos: Tomé e Filipe, que o mesmo é dizer, a nossa incompreensão e incompetência. Tomé, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»], não sabe para onde vai JESUS; logo, não sabe o caminho (João 14,5), e Filipe recebe de Jesus uma repreensão que também nos atinge, pois é proferida no plural, e soa assim: «Há tanto tempo estou convosco, e não ME conheces, Filipe?» (João 14,9).

3. Tomé é bem Gémeo nosso, nosso irmão gémeo, muito parecido connosco, nesta passagem e em muitas outras. E Filipe [«Amigo dos cavalos»], único nome verdadeiramente grego, isto é, pagão, entre os Apóstolos de Jesus, também se manifesta muito semelhante a nós aqui e em outros lugares, como, por exemplo, João 6,5-7, onde é literalmente posto à prova por Jesus, e chumba claramente no teste. Na verdade, Jesus pergunta-lhe, para o pôr à prova: «Filipe, onde compraremos pão para que eles comam» (João 6,5). E Filipe põe-se a contar o dinheiro, dizendo onde põe a sua confiança, e responde que não há nada a fazer, porque não há dinheiro (João 6,7). Filipe, talvez como nós, ainda não sabia que o onde (póthen) a que Jesus se refere não é o shopping, mas é o PAI. Ainda não sabia ou conhecia Isaías 55,1-2, em que Deus nos convida a comprar a Ele pão, sem gastar qualquer dinheiro: «Todos vós que tendes sede, vinde às águas!/ Vós, que não tendes dinheiro, vinde!/ Comprai (agorázô LXX) cereal e comei!/ Comprai cereal sem dinheiro,/ e sem pagar, vinho e leite./ […] Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom!» (Isaías 55,1-2).

4. O Jesus que anima este diálogo connosco é verdadeiramente o CAMINHO, a VERDADE e a VIDA (João 14,6). Não é um caminho de terra batida ou uma estrada de asfalto. É um CAMINHO pessoal, uma maneira de viver, com entranhas, pés, mãos e coração. Não é uma verdade de tipo filosófico, jurídico ou político, a usual adequação da mente à coisa. Não é uma coisa. A VERDADE bíblica [hebraico ʼemet] não responde à pergunta: «O que é a verdade?», à boa maneira de Pilatos (João 18,38), mas à pergunta inédita: «QUEM é a VERDADE?». De facto, ʼemet deriva de ʼem [= mãe] e de ʼaman [= firmar, confiar], e remete para CONFIANÇA e FIDELIDADE. Não é uma verdade que se saiba. É uma atitude que se aprende. É aquela VERDADE que uma criança vai aprendendo ao colo da sua mãe. Está ali ALGUÉM que a segura e que a ama, ALGUÉM em quem a criança pode confiar, que em caso algum a vai deixar cair ao chão, como bem refere Edith Stein (Santa Teresa Benedita da Cruz). A VERDADE é ALGUÉM de fiar como uma MÃE, realidade bem patente na etimologia, dado que ʼemet [= verdade] deriva de ʼem [= mãe]. Não engana, portanto. É assim que JESUS é também a VIDA toda recebida (do PAI), toda a nós dada.

5. É assim também, maternalmente, que se entende a jovem e bela comunidade cristã nascente, atenta, outra vez como uma mãe, aos seus filhos que necessitam de assistência (Atos dos Apóstolos 6,1-7). Como é belo ver crescer, e cresce mesmo, uma comunidade de rosto maternal, de braços sempre abertos para acolher e abraçar, de mãos sempre abertas para receber, dar e acariciar. Tudo tão ao jeito e ao estilo de Jesus. Total dedicação à oração e ao serviço (diakonía) da Palavra de Deus (6,4). Total dedicação ao serviço (diakonía) da caridade. Atenção, porém: Filipe não aparece com o título de diácono (diákonos). O seu trabalho é evangelizar (Atos 8,26-40), e, se algum título lhe é atribuído, é o de «o evangelista» (ho euaggelistês) (Atos 21,8).

6. É claro, diz S. Pedro (1 Pedro 2,4-9), que Jesus é a pedra viva, base de um novo tipo de edifício, que nenhum arquiteto sabe desenhar ou projetar. É, na verdade, um edifício espiritual, feito de pedras vivas (!). E nós somos essas pedras vivas, esse Templo espiritual, que tem em Cristo a sua referência permanente. Um Templo novo e inédito com sangue, entranhas, mãos, pés e coração.

7. Enfim, o Salmo 33, que hoje cantamos, é um verdadeiro «canto novo» (shîr hadash) a fazer vibrar as fibras do nosso coração com a música do amor misericordioso que nos vem de Deus. Mas é também música sem palavras (terûʽah) (v. 2), jubilação, exultação, lalação de radical confiança da criança que em nós sorri e dança, porque Deus vela por nós. Comenta Santo Agostinho: «Já sabes o que é o canto novo: um homem novo, um canto novo».

 

«O lugar para onde Eu vou,

Vós sabeis o caminho para lá», diz Jesus.

«Nós não sabemos para onde vais,

Como podemos saber o caminho para lá?»,

Retorquiu Tomé.

 

Tomé é como nós:

Não sabe trabalhar sem metas e objetivos.

E é em função das metas e objetivos,

Que escolhe caminhos e metodologias.

 

Deus disse a Abraão: «Vai do teu país

Para o país que Eu te fizer ver».

E o narrador diz-nos que «Abraão foi».

Para onde? Para qual país?

Não interessa.

Interessa é saber que uma mão segura nos guia,

E que o caminho que trilhamos nos conduz sempre ao destino.

 

É assim que faz Jesus também.

Não nos indica no mapa o lugar do destino,

Mas mostra-nos o caminho para chegar lá.

Por isso nos diz: «Vinde atrás de Mim…».

 

É assim a procissão e a peregrinação.

Ele vai connosco e à nossa frente.

Ele é o caminho,

A mão segura,

A água pura,

O pão de trigo.

 

Ensina-nos, Senhor,

A caminhar contigo.

 

António Couto

Advertisement

O PERCURSO DE TOMÉ, CHAMADO GÉMEO

Abril 18, 2020

1. Novos percursos se abrem, e é aqui que se inicia o Evangelho do Domingo II da Páscoa (João 20,19-31), que o Papa João Paulo II, em 30 de Abril do ano 2000, consagrou como «Domingo da Divina Misericórdia». Os discípulos estão num lugar, com as portas fechadas, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter, vem e fica no MEIO deles, o lugar da Presidência e da Precedência, e saúda-os: «A paz convosco!». Mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e agrafa-os à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): está sempre em missão; o nosso está no presente, e passa. O presente da nossa missão aparece, portanto, agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). É-nos dito que os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo, também eles vêm com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão. Este sopro só aparece aqui em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

2. A identidade do Senhor Ressuscitado está para além do rosto. Por isso, vê-lo não implica necessariamente reconhecê-lo, como sucede em não poucas páginas dos Evangelhos. A identidade do Ressuscitado não é do domínio da fotografia. Vem de dentro. Reside na sua vida a nós dada por amor até ao fim, aponta para a Cruz. Por isso, Jesus mostra as mãos e o lado, sinais abertos para entrar no sacrário da sua intimidade, dádiva infinita que rebenta as paredes dos nossos olhos embotados e do nosso coração empedernido. Entenda-se também que a missão que nos é confiada é mostrar Jesus. Está bom de ver que não basta exibir as capas do catecismo que mostram um Jesus de olhos azuis. Só o podemos mostrar com a nossa vida dele recebida, e igualmente dada e comprometida.

3. O narrador informa-nos logo a seguir que, afinal, Tomé (Toma’), chamado Gémeo (Dídymos), não estava com eles quando veio Jesus. Dídymos é, na verdade, a tradução literal, em grego, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»]. Mas os outros diziam-lhe repetidamente (élegon: imperf. de légô), imperfeito de duração, com a mesma linguagem da Madalena, mas no plural: «Vimos (heôrákamen: perf. de horáô) o Senhor!» (João 20,25). Portanto, também eles são testemunhas, pois viram e continuam a ver o Senhor, de acordo com o tempo perfeito do verbo grego. Mas Tomé quer tudo controlado e verificado, ponto por ponto, e refere: «Se eu não vir (ídô: conj. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) nas suas mãos a marca dos cravos, e não meter o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, não acreditarei» (João 20,25).

4. Novo desarme: oito dias depois, estavam outra vez os discípulos com as portas fechadas (mas o medo já não é mencionado), e Tomé estava com eles. Veio Jesus, ficou no MEIO, saudou-os com a paz, e dirigiu-se logo a Tomé desta maneira: «Traz o teu dedo aqui e vê (íde: imper. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) as minhas mãos, e traz a tua mão e mete-a no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crente!» (João 20,27). Aí está Tomé adivinhado, desvendado e desarmado. Também ele podia ter pensado: «E como é que ele sabia que eu queria fazer aquilo?». Tomé cai aqui, adivinhado e antecipado, por assim dizer, rasteirado, precedido por Aquele que nos precede sempre. Não quer tirar mais provas. Confessa de imediato: «Meu Senhor e meu Deus!» (João 20,28), uma das mais belas profissões de fé de toda a Escritura. E Jesus diz para ele: «Porque me viste e continuas a ver (heôrakás me), tempo perfeito de horáô, acreditaste e continuas a acreditar (pepísteukas), tempo perfeito de pisteúô; felizes (makárioi) os que, não tendo visto (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo), acreditaram (pisteúsantes: part. aor. de pisteúô)!» (João 20,29), tempo aoristo, fé e confiança, adesão histórica. Esta felicitação é para nós.

5. Notável o percurso dos Discípulos. Fechados e com medo, viram Jesus entrar e ficar no MEIO deles, sem que as portas e as paredes constituíssem obstáculo. Trocaram o medo pela alegria, e também eles começaram a ver de forma continuada o Senhor e a dizê-lo repetidamente. Notável e exemplar para nós o percurso de Tomé, chamado Gémeo: não estava com a comunidade, tão-pouco aceitou o seu testemunho; queria provas. Mas quando veio Jesus e o adivinhou, entrando dentro dele, precedendo-o e presidindo-o, entregou-se completamente! Tomé, chamado Gémeo! Irmão gémeo! Irmão gémeo de quem? Meu e teu, assim pretende o narrador. De vez em quando, também nós não estamos com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. Por vezes, também duvidamos e queremos provas. Como Tomé, chamado Gémeo. Salta à vista que também devemos estar com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. E professar convictamente a nossa fé no Ressuscitado que nos preside (no MEIO) e nos precede sempre. Como Tomé, chamado Gémeo.

6. A lição do Livro dos Atos dos Apóstolos (2,42-47, mas ver também 4,32-35 e 5,12-16) deste Domingo II da Páscoa é outra vez soberba. Trata-se de uma visita guiada ao Cenáculo, a primeira Catedral da Igreja nascente – mas com ramificações em todas as casas, em todos os corações –, bem assente em quatro colunas: o ensino dos Apóstolos (1), a comunhão fraterna (2), a fração do pão (3) e a oração (4). Com a boca cheia de louvor, os olhos de graça, as mãos de paz e de pão, as entranhas de misericórdia, a comunidade bela crescia, crescia, crescia. Não admira. Era tão jovem, leve e bela, que as pessoas lutavam por entrar nela!

7. Filhos renascidos da grande misericórdia do nosso Deus, verificada pela Ressurreição de Jesus Cristo, exultamos de alegria. Não o tendo visto na história (aoristo de ideîn), nós o amamos agora, e não o vendo agora com os nossos olhos (horôntes), acreditamos agora (pisteúontes). A Primeira Carta de Pedro (1,3-9) apresenta-nos uma síntese feliz da visão nova da fé e da obra da misericórdia de Deus em nós, os dois grandes temas deste Domingo II da Páscoa ou da Divina Misericórdia.

8. Cantemos, por isso, o Salmo 118, que é o último canto do chamado «Pequeno Hallel Pascal» (113-118), mas que era seguramente cantado noutras festividades de Israel, nomeadamente na Festa das Tendas, tendo em conta o seu teor processional, e até a sua distribuição por coros. Este Salmo levanta-se do meio da alegria própria da Festa [«Este é o dia que o Senhor fez,/ nele nos alegremos e exultemos!»: v. 24], e eleva ao Deus sempre fiel uma grande Ação de Graças por todas as maravilhas que Ele tem realizado em favor do seu povo. Sim, toda a nossa energia e toda a melodia que nos habita é o próprio Senhor, conforme o belíssimo v. 14: «Minha força e meu canto YAH!», que soa assim em hebraico: ‘azzî wezimrat YAH. Além do nosso Salmo, a expressão densa e impressiva encontra-se ainda em Êxodo 15,2 e Isaías 12,2. YAH está por YHWH. O refrão que vamos cantar aparece a abrir e a fechar este grande Salmo, e constitui como que o envelope onde guardamos a bela melodia que cantamos. Soa assim: «Louvai o Senhor porque Ele é bom,/ porque para sempre é o seu amor!» (vv. 1 e 29).

 

Senhor Jesus,

Há tanta gente que Te procura à pressa e Te quer ver.

Mas quando dizem que Te querem ver,

Não é para Te conhecer.

É o teu rosto, a cor dos teus olhos e cabelos,

A tez da tua pele, a tua forma de vestir que os atrai e contagia.

Querem ver-te como se fosse numa fotografia.

 

Mas Tu, Senhor Jesus Ressuscitado,

Quando Te dás a conhecer a nós,

Não mostras o rosto,

Uma fotografia,

O cartão de cidadão.

Se fosse assim,

Mal seria que os teus amigos Te não reconhecessem.

 

E o facto é que,

Quando surges no meio deles,

Não Te reconhecem.

E em vez do rosto,

São, afinal, as mãos e o lado que apresentas.

Entenda-se: é a tua maneira de viver que nos queres fazer ver.

Na verdade, a tua identidade é dar a vida,

É dar a mão e o coração.

É essa a tua lição, a tua paixão, a tua ressurreição.

 

Senhor, dá-nos sempre desse pão!

 

António Couto


O PERCURSO DE TOMÉ, CHAMADO «GÉMEO»

Abril 7, 2018

1. Novos percursos se abrem, e é aqui que se inicia o Evangelho do Domingo II da Páscoa (João 20,19-31), que o Papa João Paulo II, em 30 de Abril do ano 2000, consagrou como «Domingo da Divina Misericórdia». Os discípulos estão num lugar, com as portas fechadas, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter, vem e fica no MEIO deles, o lugar da Presidência, e saúda-os: «A paz convosco!». Mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e agrafa-os à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): está sempre em missão; o nosso está no presente, e passa. O presente da nossa missão aparece, portanto, agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). É-nos dito que os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo (cf. João 20,8), também eles veem com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão. Este sopro só aparece aqui em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (napah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

2. A identidade do Senhor Ressuscitado está para além do rosto. Por isso, vê-lo não implica necessariamente reconhecê-lo, como sucede em não poucas páginas dos Evangelhos. A identidade do Ressuscitado não é do domínio da fotografia. Vem de dentro. Reside na sua vida a nós dada por amor até ao fim, aponta para a Cruz. Por isso, Jesus mostra as mãos e o lado, sinais abertos para entrar no sacrário da sua intimidade, dádiva infinita que rebenta as paredes dos nossos olhos embotados e do nosso coração empedernido. Entenda-se também que a missão que nos é confiada é mostrar Jesus. Está bom de ver que não basta exibir as capas do catecismo que mostram um Jesus de olhos azuis e cabelo louro encaracolado. Só o podemos mostrar com a nossa vida dele recebida, e igualmente dada e comprometida.

3. O narrador informa-nos logo a seguir que, afinal, Tomé (Toma’), chamado Gémeo (Dídymos), não estava com eles quando veio Jesus. Dídymos é, na verdade, a tradução literal, em grego, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»]. Mas os outros diziam-lhe repetidamente (élegon: imperf. de légô), imperfeito de duração, com a mesma linguagem da Madalena, mas no plural: «Vimos (heôrákamen: perf. de horáô) o Senhor!» (João 20,25). Portanto, também eles são testemunhas, pois viram e continuam a ver o Senhor, de acordo com o tempo perfeito do verbo grego. Mas Tomé quer tudo controlado e verificado, ponto por ponto, e refere: «Se eu não vir (ídô: conj. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) nas suas mãos a marca dos cravos, e não meter o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, não acreditarei» (João 20,25).

4. Novo desarme: oito dias depois, estavam outra vez os discípulos com as portas fechadas (mas o medo já não é mencionado), e Tomé estava com eles. Veio Jesus, ficou no MEIO, saudou-os com a paz, e dirigiu-se logo a Tomé desta maneira: «Traz o teu dedo aqui e vê (íde: imper. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) as minhas mãos, e traz a tua mão e mete-a no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crente!» (João 20,27). Aí está Tomé adivinhado, desvendado e desarmado. Também ele podia ter pensado: «E como é que ele sabia que eu queria fazer aquilo?». Tomé cai aqui, adivinhado e antecipado, precedido por Aquele que nos precede sempre. Não quer tirar mais provas. Diz de imediato: «Meu Senhor e meu Deus!» (João 20,28), uma das mais belas profissões de fé de toda a Escritura. E Jesus diz para ele: «Porque me viste e continuas a ver (heôrakás me), tempo perfeito de horáô, acreditaste e continuas a acreditar (pepísteukas), tempo perfeito de pisteúô; felizes (makárioi) os que, não tendo visto (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo), acreditaram (pisteúsantes: part. aor. de pisteúô)!» (João 20,29), tempo aoristo. Esta felicitação é para nós.

5. Notável o percurso dos Discípulos. Fechados e com medo, viram Jesus entrar e ficar no MEIO deles, sem que as portas e as paredes constituíssem obstáculo. Trocaram o medo pela alegria, e também eles começaram a ver de forma continuada o Senhor e a dizê-lo repetidamente. Notável e exemplar para nós o percurso de Tomé, chamado Gémeo: não estava com a comunidade, tão-pouco aceitou o seu testemunho; queria provas. Mas quando veio Jesus e o adivinhou, precedendo-o e presidindo-o, entregou-se completamente! Tomé, chamado Gémeo! Irmão gémeo! Irmão gémeo de quem? Meu e teu, assim pretende o narrador. De vez em quando, também nós não estamos com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. Por vezes, também duvidamos e queremos provas. Como Tomé, chamado Gémeo. Salta à vista que também devemos estar com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. E professar convictamente a nossa fé no Ressuscitado que nos preside (no MEIO) e nos precede sempre. Como Tomé, chamado Gémeo.

6. A lição do Livro dos Atos dos Apóstolos (4,32-35, mas ver também 2,42-47 e 5,12-16) deste Domingo II da Páscoa é outra vez soberba. Trata-se de uma visita guiada ao Cenáculo, a primeira Catedral da Igreja nascente, mas com ramificações em todas as casas, em todos os corações, bem assente em quatro colunas: o ensino dos Apóstolos (1), a comunhão fraterna (2), a fração do pão (3) e a oração (4). Com a boca cheia de louvor, os olhos de graça, as mãos de paz e de pão, as entranhas de misericórdia, a comunidade bela crescia, crescia, crescia. Não admira. Era tão jovem, leve e bela, que as pessoas lutavam por entrar nela!

7. Nascer de Deus, amar a Deus e o Filho Unigénito de Deus, amar no Filho os filhos de Deus, é a lição da Primeira Carta de São João 5,1-6. O critério é: se nascemos de Deus, então somos filhos de Deus, e, sendo filhos de Deus, somos irmãos. E, se nascemos de Deus, também o amor que nos vincula aos irmãos é de Deus. Amar a Deus é, então, o critério último da fé e da caridade. A vida de Deus em nós, amar como Deus nos ama, permanece, portanto o único critério verdadeiro. Na Primeira Carta de São João 4,20-21, tínhamos anotado o critério de que o nosso amor a Deus é verificável no nosso amor ao próximo. Mas São Paulo adverte-nos com sabedoria que o amor ao próximo pode fingir-se, pois podemos dar todos os nossos bens aos pobres, e não ter a caridade verdadeira (1 Coríntios 13,3). Neste sentido, diz acertadamente São Máximo Confessor (580-662) que «a Páscoa gera a fé e a fé gera o amor». A misericórdia é a chama divina com que devemos acender e purificar o nosso coração.

8. Cantemos por isso o Salmo 118, que é o último canto do chamado «Pequeno Hallel Pascal» (113-118), mas que era seguramente cantado noutras festividades de Israel, nomeadamente na Festa das Tendas, tendo em conta o seu teor processional, e até a sua distribuição por coros. Este Salmo levanta-se do meio da alegria própria da Festa («Este é o dia que o Senhor fez,/ nele nos alegremos e exultemos!»: v. 24) e eleva ao Deus sempre fiel uma grande Ação de Graças por todas as maravilhas que Ele tem realizado em favor do seu povo. Sim, toda a nossa energia e toda a melodia que nos habita é o próprio Senhor, conforme o belíssimo v. 14: «Minha força e meu canto YAH!», que soa assim em hebraico: ‘azzî wezimrat YAH. Além do nosso Salmo, a expressão densa e impressiva encontra-se ainda em Êxodo 15,2 e Isaías 12,2. YAH está por YHWH. O refrão que vamos cantar aparece a abrir e a fechar este grande Salmo, e constitui como que o envelope onde guardamos a bela melodia que cantamos. Soa assim: «Louvai o Senhor porque Ele é bom,/ porque para sempre é o seu amor!» (vv. 1 e 29).

9. Em tudo e sempre nos precede o nosso bom Deus com a iniciativa do seu amor primeiro e misericordioso.

 

«O lugar para onde Eu vou,

Vós sabeis o caminho para lá», diz Jesus.

«Nós não sabemos para onde vais,

Como podemos saber o caminho para lá?»,

Retorquiu Tomé.

 

Tomé é como nós:

Não sabe trabalhar sem metas e objetivos.

E é em função das metas e objetivos,

Que escolhe caminhos e metodologias.

 

Deus disse a Abraão: «Vai do teu país

Para o país que Eu te fizer ver».

E o narrador diz-nos que «Abraão foi».

Para onde? Para qual país?

Não interessa.

Interessa é saber que uma mão segura nos guia,

E que o caminho que trilhamos nos conduz sempre ao destino.

 

É assim que faz Jesus também.

Não nos indica no mapa o lugar do destino,

Mas mostra-nos o caminho para chegar lá.

Por isso nos diz: «Vinde atrás de Mim…».

 

É assim a procissão e a peregrinação.

Ele vai connosco e à nossa frente.

Ele é o caminho, a mão segura,

A água pura,

O pão de trigo.

 

Ensina-nos, Senhor,

A caminhar contigo.

 

António Couto