UM SIMPLES COPO DE ÁGUA…

Junho 26, 2011
Ó vós, construtores de cidades e de mundos,
comerciantes,
vendedores de trapos e de sonhos,
antropólogos,
sociólogos,
sindicalistas,
apregoadores das boas graças do trabalho do homem,
pregadores,
calculistas,
aprendedores,
impostores,
não dizeis vós
que faltam ainda quatro meses para a ceifa?
 
Em verdade vos digo:
erguei os olhos e vede os campos:
estão brancos para a ceifa.
 
Aí está como o reino de Deus
é como quando
como quando
quando
a terra lavrada de repente se faz trigo,
o verde se faz loiro,
uma semente,
um copo de água,
um pedaço de pão
trazem pela mão a eternidade.
 
E então direis lá do fundo dos vossos olhos embotados:
quando foi, Senhor,
que nós te vimos com fome ou com sede,
nu, doente ou na prisão,
e Te fomos socorrer?
 
Em verdade vos digo:
todas as vezes que o fizestes
a um destes meus irmãos mais pequeninos,
foi a mim que o fizestes.
 
E aí está como o reino de Deus
é como quando
como quando
quando
a terra lavrada de repente se faz trigo,
o verde se faz loiro,
uma semente,
um copo de água,
um pedaço de pão
trazem pela mão a eternidade.
 
Atentos, portanto,
que pode a semente germinar antes do tempo
e a espiga amadurar antes do campo!

 António Couto


EM DEUS, PENSAMENTO, EXPRESSÃO, COMUNICAÇÃO, EFEITO, ALFA E OMEGA SÃO SIMULTÂNEOS E COETERNOS

Junho 19, 2011

 

1. Nesta «era do vazio» que nos atravessa, a Trindade pode parecer insignificante, e ficar remetida apenas para velhos compêndios de uma espécie de geometria religiosa. Impõe-se, portanto, uma reflexão forte e renovada, em que a Trindade surja como fonte de vivificação para a nossa experiência cristã quotidiana.

2. Na Triadologia do Novo Testamento, preparada pelo Antigo Testamento, Deus, enquanto dádiva suprema fundante, é o Pai. Mas a dádiva suprema do Pai, infinita riqueza, constitui o Filho, infinita pobreza, que tudo recebe. Mas, ao receber tudo, infinita recepção, o Filho volta a dar tudo numa infinita doação sem defesa e sem limites. E esta comunhão-comunicação-vida-amor de si a si, circular, vertiginosa, tranquila e imperecível, constitui o Espírito Santo, a Pessoa-Dom incriado (segundo a bela expressão de João Paulo II), o Dom que vem de si mesmo a si mesmo, Dom de si a si, o Dom absolutamente um com ele mesmo, o Dom idêntico ao Ser.

 3. Esta feliz definição, se bem compreendida e explorada, pode trazer importantes consequências práticas. A nossa experiência ensina-nos como nós somos sensíveis ao Dom, como o nosso coração se abre diante do Dom. O Dom tem uma força própria. Não é uma força exterior que se imponha desde fora. É uma força interior, persuasiva, suave e calorosa, que move o coração desde dentro, quebrando toda a dureza e resistência. O Dom é uma terceira realidade entre mim e o meu amigo. O meu amigo quer dar-se a mim por amor. Mas não pode deixar de ser ele, para passar a ser eu. Eu quero dar-me ao meu amigo por amor, mas não posso deixar de ser eu, para passar a ser ele. Aliás, se esta fusão pudesse acontecer, punha termo ao amor existente entre mim e o meu amigo. O Dom provém da alteridade e garante a alteridade. Provém da intencionalidade da união entre mim e o meu amigo, mas garante também a nossa alteridade. O Dom é o meu amigo dando-se a si mesmo a mim por amor e sou eu recebendo o meu amigo por amor, princípio e termo da doação. Em Deus, o Pai dá-se ao Filho por amor – princípio da doação –, mas não perde a sua dimensão paterna, tornando-se Filho; do mesmo modo que o Filho, acolhendo o dom da paternidade por amor – termo da doação –, não anula a sua determinação filial, tornando-se Pai. Uma acção requer sempre a outra para se completar, estando as duas pessoas reciprocamente implicadas. Entre mim e o meu amigo, o Dom é um objecto, mas quanto mais intensamente é Dom, isto é, quanto mais significa a nossa doação íntima e pessoal, menos é um objecto materialmente determinado. Por isso eu gasto tanto tempo até encontrar o Presente que quero oferecer ao meu amigo, um objecto que signifique a nossa intimidade. Em Deus, entre o Pai e o Filho, o Dom é o Espírito, Pessoa divina subsistente, distinto do Pai e do Filho, dos quais procede, mas distinto também do acto da doação, de que é o efeito e a significação. Se ele fosse o acto da doação, não constituiria uma pessoa subsistente, pois não existiria como tal; seria a soma de duas pessoas, não uma terceira.

4. O Espírito, Pessoa-Dom incriado, é o protagonista da missão e de toda a vida eclesial. É, porém, um protagonista silencioso como o Dom é silencioso. Silencioso, mas eficaz. A sua acção calorosa processa-se, não com palavras sensíveis que afectam os órgãos da audição (Romanos 8,26), mas na interioridade da inteligência da fé num «gemido sem palavras» (stenagmòs alálêtos) (Romanos 8,26), que acende no nosso coração o vivo desejo de comunicar com Deus. A acção calorosa do Espírito-Dom não se limita a certos países, línguas, povos, etnias, religiões, e nem sequer tem um alcance limitado como é limitado o alcance daquele que usa as cordas vocais (ou mesmo os meios de comunicação social) para se fazer ouvir. Ele está para além de todas essas barreiras, pois actua directamente na inteligência e no coração de cada homem. E em termos de inteligência e de coração, em termos de humanidade e intimidade, são iguais o chinês, o português e o inglês, o católico, o hinduísta e o muçulmano…

 5. A grande teologia bíblica está atravessada por este Mistério (mystêrion) do Amor de Deus – que é Deus vindo ao mesmo tempo de si mesmo e a si mesmo –, Mistério escondido eternamente em Deus (Romanos 16,25; Efésios 3,9; Colossenses 1,26), mas já presente e actuante na história dos homens desde a Criação (João 1,3; Colossenses 1,16) e agora dado a conhecer (gnôrízô) em Cristo (Romanos 16,25-26; Efésios 1,9; 3,3.10; Colossenses 1,27), tornando-se, portanto, Mistério conhecido (!), Revelação divina gratuita – doação do Dom e dicção do Dito –, totalmente entregue aos homens, para a viverem totalmente. Este «para nós» do Mistério do Amor de Deus é o Propósito (próthesis) eterno divino (Romanos 8,28; Efésios 1,11), a Vontade (thélêma) eterna divina (Gálatas 1,4; Efésios 1,5.9.11) – em Deus, pensamento, expressão, comunicação, efeito, Alfa e Omega, são simultâneos e coeternos – de elevar a nossa humanidade a viver por graça ao nível da sua divindade (2 Pedro 1,4; 1 João 3,2). Se, na grande teologia bíblica, o homem confessa que Deus se revela, confessa então que Deus é o acto de se revelar. E, então, o Mistério de Deus é a sua revelação, e a sua revelação é o seu Mistério. Nesse sentido, Deus vem a si mesmo como vem ao mundo. E quando Deus se comunica e se manifesta ao mundo, trata-se verdadeiramente de uma comunicação de si a si e de uma manifestação de si a si. Donde: comunicação-manifestação de Deus ao mundo = comunicação-manifestação de Deus a si mesmo.

 6. No centro deste Mistério do Amor de Deus em acção na história dos homens está a Missão do Filho de Deus com o Espírito Santo, que é o Mistério de Cristo (Efésios 3,4), que é Cristo em nós (Colossenses 1,27) e nós em Cristo (Romanos 8,28-30). Assumindo a nossa condição humana por puro Dom de Amor total, concebido e nascido na sua/ nossa humanidade por Amor, com o nome «Jesus», não da carne e do sangue, mas do Espírito Santo (Mateus 1,18; Lucas 1,34-35; cf. João 3,6), tendo recebido na sua / nossa humanidade a plenitude do Espírito Santo no Baptismo do Jordão (Lucas 4,1; cf. João 1,32-33), e tendo-o recebido de novo, na sua / nossa humanidade Crucificada, Ressuscitada e Glorificada (Actos 2,32-33; 1 Coríntios 15,45.49) na Morte / Ressurreição que é o Baptismo consumado (Lucas 12,49-50), Ele pode agora, enquanto Homem verdadeiro divinizado, tornado na sua / nossa Humanidade «Espírito vivificante» (pneûma zôopoioûn) (1 Coríntios 15,45), dar o Espírito Santo aos outros homens seus irmãos, vivos e mortos (João 19,30 e 34; 20,22; Actos 2,32-33; 1 Coríntios 15,49).

 7. No decurso da sua vida terrena ainda não podia dar o Espírito, embora o possuísse em plenitude. Anota cuidadosamente o Evangelista que «não havia ainda Espírito, porque Jesus ainda não fora glorificado (João 7,39). Na verdade, na Economia divina, «Economia da carne», como dizem os Padres, porque a carne decaiu, a carne devia levantar-se, e onde a carne tinha sido vencida, a carne devia vencer (S.to Ireneu). Foi por isso necessário que o Verbo Deus  assumisse a condição do Adão antigo «numa carne semelhante à do pecado» (Romanos 8,3), «feito pecado por causa de nós» (2 Coríntios 5,21), «tornado maldição por causa de nós» (Gálatas 3,13), sujeito, enfim, à morte. Sem esta, não se verificava a assunção completa da nossa condição (Hebreus 2,9.14a.17). Assumiu, portanto, as consequências do nosso pecado, sem se tornar, no entanto, cúmplice do pecado (Hebreus 4,15; 1 Pedro 2,22). Impunha-se que fosse sem pecado, para poder enfrentar a morte, não como quem lhe é naturalmente devedor, mas num acto de pura generosidade. Não bastava ser sem pecado. Ao ser sem pecado era necessário juntar uma atitude de puro amor subversivo (Hebreus 2,10.14b.18). No decurso da sua vida terrena, nem a sua união com Deus, nem a sua união com os homens, tinham atingido a sua perfeição: enquanto homem terreno, Jesus não estava perfeitamente unido a Deus na glória: era necessária uma transformação radical da sua humanidade; mas tão-pouco a sua solidariedade com os homens estava completa. É só após ter efectuado esta assimilação total, que a «carne do Verbo Deus» opera agora aquela que é a máxima operação divina: dar o Espírito Santo, vivificar-nos com o contacto do seu corpo pneumatóforo. De facto, é só no fim da sua vida terrena, no extremo da sua incarnação levada até ao extremo – que comporta a sua morte e a sua ressurreição, a glorificação da sua humanidade –, que podemos proclamar a identidade (de ideîn) de Jesus como Filho Deus, obra do Espírito em nós. Por isso, só quando Jesus desaparecer na Glória, o Espírito pode vir para nós. Todas as palavras relativas ao Paráclito, o atestam à sua maneira. Todas falam do envio do Espírito Santo Paráclito no futuro (João 14,16; 14,26; 15,26; 16,7; 16,13-15). O contexto da quarta referência é particularmente elucidativo: «se eu não for, o Paráclito não virá para vós; mas se eu for, eu enviá-lo-ei para vós» (João 16,7). A razão não está em que Jesus, que está corporalmente presente, deva desaparecer para que a sua «espiritualidade» possa ser tornada presente, mas em que uma exegese do Verbo feito carne, na sua totalidade, «na verdade toda» (en tê alêtheía pásê) (Jo 16,13), não pode realizar-se senão a partir do momento em que Ele é proferido até ao fim, o que comporta a sua morte e ressurreição.

 8. O Espírito Santo é assim a Dádiva de Deus (hê dôreà toû theoû) (Actos 2,38; 8,20; 10,45; 11,17; Hebreus 6,4; cf. Lucas 11,9.13) que vem a nós sempre da única Fonte inexaurível que é a Humanidade Crucificada, Ressuscitada e Glorificada do Senhor. É só aí e daí, mediante adesão sacramental ao seu Corpo pneumatóforo – «quem adere (kolláô) ao Senhor torna-se com Ele único Espírito» (1 Coríntios 6,17) –, que recebemos a nossa verdadeira identidade, a filiação divina (hyiothesía) (Romanos 8,15-16; Gálatas 4,5), e ousamos rezar «Abba, Pai!» (Gálatas 4,4-6; Romanos 8,15.26-27) e proclamar «Senhor é Jesus!» (1 Coríntios 12,3; Filipenses 2,11). É verdade que «o Espírito sopra onde quer» (João 3,8), em qualquer povo, debaixo de qualquer céu, avivando as brasas do desejo inscrito na nossa carne humana, mas vem a nós somente através da Humanidade Crucificada, Ressuscitada e Glorificada do Senhor Jesus, e é para lá que remete e reconduz sempre, desvendando e saciando o nosso desejo do Filho. O Espírito Santo não Se revela – «não falará de si mesmo» (João 16,13) –, mas revela sempre na Humanidade Crucificada, Ressuscitada e Glorificada do Senhor Jesus o Filho de Deus. E só o Filho de Deus, concebido e nascido na sua / nossa Humanidade – Jesus –, Crucificado, Ressuscitado e Glorificado na sua / nossa Humanidade, dador do Espírito Santo e por Ele revelado, pode revelar o Pai. Tudo vem do Pai, mediante o Filho, no Espírito; tudo volta ao Pai, mediante o Filho, no Espírito.

 9. O Espírito Santo Deus, Dádiva total do Pai e do Filho, Divina Comunhão (2 Coríntios 13,13; Filipenses 2,1), e que brota para nós da única Fonte sacramental da Humanidade Crucificada, Ressuscitada e Glorificada do Senhor, está operante na nossa humanidade e na nossa história. Vindo (João 15,26; 16,7.8.13), Ensinando (João 14,26; 1 João 2,20.27) e Recordando (João 14,26), Conduzindo (João 16,13), Recebendo (João 16,14.15) e Anunciando (João 16,13.14.15), Testemunhando (João 15,26), Dando (1 Coríntios 12,7 e 8) e Edificando (1 Coríntios 14,3.4.5.12.26), Vivificando (João 6,63; Romanos 8,10; 2 Coríntios 3,6), Ele (ekeînos) é o verdadeiro protagonista da mesma Missão Filial Baptismal do Senhor que a Igreja Fiel Baptizada e Confirmada deve prosseguir, para dela viver e para dela fazer viver, como ficou documentado de forma paradigmática na vida das comunidades cristãs nascentes, tal como atestam as Cartas de S. Paulo e o inteiro Livro dos Actos dos Apóstolos.

 10. Vindo, Recebendo, Ensinando, Recordando, Conduzindo, Testemunhando, Dando, Edificando. O Espírito Paráclito recebe (lambánô) do que é de Jesus (João 16,14 e 15), do mesmo modo que Jesus recebeu do Pai (João 10,18; Apocalipse 2,28), que lhe deu tudo o que tem e é. Do mesmo modo, o ensinamento (didachê) do Espírito Paráclito é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), e processa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência da fé, avivando as brasas do desejo da Palavra primeira e criadora no coração de cada homem, debaixo de qualquer céu. Este ensinamento interior do Espírito é comparado à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos conheceis (oídate)» (1 João 2,20); ou então: «a unção (chrísma) dele vos que vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 João 2,27). Cumpre-se assim a profecia de Jeremias 31,31-34 (38,31-34 LXX) que refere que «todos me conhecerão (eidêsousin)» com uma ciência que não resulta da instrução, mas que é incutida por Deus no coração. Do mesmo modo, a acção de recordar (hypomimnêskô) (João 14,26) não tem nada de comum com a memória banal de um acontecimento ordinário, mas implica uma compreensão nova dos factos e palavras de Jesus e de todo o Antigo Testamento. Jesus tinha dito que reconstruiria o Templo? Na verdade, ele falava do seu próprio corpo (João 2,22). Jesus tinha entrado em Jerusalém montado num jumento? Na verdade, realizava a profecia de Zacarias 9,9 (João 12,16). Nos dois casos, é dito que os discípulos «se recordaram» (mimnêskomai). O Espírito dá-lhes a inteligência da vida e da paixão de Jesus e de todo o Antigo Testamento. Nesta acção de recordar, o passado é reclamado, não para suscitar em nós o orgulho pela obra feita, mas para salientar o excesso do dom, deixando-nos em estado de recitação que provoca em nós a decisão de nos empenharmos no presente para respondermos agora ao dom que sempre nos precede. É assim que o Espírito actua na memória viva da Igreja: provocando a recitação da criação e avivando o desejo da filiação.

 11. «Ó abismo de riqueza e sabedoria e conhecimento de Deus! Como são insondáveis os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos! (…) Porque d’Ele, por Ele e para Ele são todas as coisas. A Ele a glória pelos séculos, ámen!» (Romanos 11,33 e 36).

António Couto


O ESPÍRITO SANTO, MESTRE DOS TEMPOS NOVOS

Junho 11, 2011

 

1. O Evangelho da Solenidade deste Dia Grande de Pentecostes (João 20,19-23) mostra-nos os discípulos de Jesus fechados num certo lugar, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou impedir, nem as portas fechadas daquele lugar fechado, vem e fica de pé no MEIO deles, o lugar da Presidência, e saúda-os: «A paz convosco!». Mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e vincula os seus discípulos à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): a sua missão começou e continua. Não terminou. Ele continua em missão. A nossa missão está no presente. O presente da nossa missão aparece, portanto, vinculado e agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). «Como o Pai me enviou, também Eu vos mando ir». Este como define o estilo da nossa missão de acordo com o estilo e a missão de Jesus. É-nos dito ainda que os discípulos ficaram cheios de alegria (o medo foi dissipado) ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo, também eles vêm com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão, Jubileu Divino do Espírito. Este sopro só aparece neste lugar em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

 2. O texto luminoso do Livro dos Actos dos Apóstolos 2,1-11 mostra-nos todos reunidos e varridos ou recriados pelo vento impetuoso do Espírito, que varre as teias de aranha que ainda nos tolhem, e pelo seu fogo que nos purifica. O Espírito senta-se (kathízô) sobre nós, novo Mestre que orienta e guia a nossa vida. Verificação: eis-nos a falar outras línguas, dádiva do Espírito! Milagre: cessam incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças, e nasce um mundo novo de comunhão e comunicação plena, pois todos nos entendemos tão bem como se se tratasse da nossa língua materna, da palavra antes das palavras, divina e humana lalação. Chame-se-lhe confiança, intimidade e ternura. Impõe-se, nesta bela comunidade, uma atitude de vigilância permanente, pois será sempre grande a tentação de querer levar o Espírito à letra! E aí está a advertência vinda dos Coríntios, cujo falar em línguas ninguém entende (1 Coríntios 14,2), sendo preciso o recurso a intérpretes (1 Coríntios 14,28). Todos consideraríamos um absurdo a existência de um intérprete entre a mãe e o seu bebé!

 3. O Espírito Santo é também enviado em missão. E é Aquele que recebe o que é do Filho (João 16,14 e 15), e que o Filho recebeu do Pai. O Filho é a transparência do Pai. O Espírito Santo é a transparência do Filho. O ensinamento do Espírito Santo é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), e processa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência e do coração de cada ser humano. Este ensinamento interior do Espírito Santo é comparado à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos conheceis (oídate)» (1 João 2,20); ou então: «a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 João 2,27). É a unção que lentamente penetra em nós, ocupa o nosso interior, suaviza as nossas asperezas, e faz nascer comunidade e comunhão.

 4. Ensinamento novo. Não exterior, com sons e palavras, mas directamente nas pregas da inteligência e do coração. É assim que a linguagem nova do Espírito afecta ao mesmo tempo o português e o chinês, o inglês e o russo, o católico, o muçulmano e o hebreu. É como quando, em vez de se porem a falar cada um a sua língua incompreensível para o outro, o português e o chinês entregassem uma flor um ao outro! É assim que fala o Espírito, é assim que age o Espírito, Pessoa-Dom, fonte de dons.

 5. O Salmo 104 faz-nos contemplar as obras maravilhosas de Deus, cheias do seu alento, que são a alegria de Deus (Salmo 104,31), e a alegria de Deus é a nossa alegria (Salmo 104,34). De notar que a temática de Deus que se alegra é muito rara na Escritura. Aparece hoje no meio deste mundo novo e maravilhoso. Tema, portanto, para recuperar, pois é também a fonte da nossa alegria!

 6. Nós somos do tempo da missão do Espírito. Note-se a fortíssima vinculação: «O Espírito Santo e nós» (Actos 15,28).

 7. Deus habitando em nós (João 14,24). Deus connosco (Apocalipse 21). Cidade nova, Consolação nova, Bênção nova, Paz nova, não com a medida do mundo, mas de Deus (João 14,27; Salmo 67).

  

O medo não habita a nossa casa
O medo transforma a nossa casa em fortaleza
Tranca portas e janelas
Esconde-se debaixo da mesa.
 
Mas vem Jesus e senta-nos à mesa
Começa a contar histórias e estrelas
Leva-nos até ao colo de Abraão, até à Criação,
Sopra sobre nós um vento novo,
Rasga uma estrada direitinha ao coração:
Chama-se Perdão, Espírito, Nova Criação.
 
Varrido para o canto da casa pelo vento,
Rapidamente todo o medo arde.
Ardem também bolsas, portas e paredes,
E surge um lume novo a arder dentro de nós
Mas esse não nos queima nem o podemos apagar.
 
Estamos lá tantos à roda desse vento, desse fogo,
Com esse vento, com esse fogo dentro,
Portugueses, russos, gregos e chineses,
Começamos a falar e tão bem nos entendemos,
Que custa a crer que tenhamos passaportes diferentes.
 
E afinal não temos.
Vendo melhor, maternais mãos invisíveis nos embalam,
Nos sustentam.
Sentimos que estamos a nascer de novo,
Percebemos que somos irmãos,
Filhos renascidos deste vento, deste lume.
E não é verdade que falamos,
Mas que alguém dentro de nós fala por nós,
Chama por Deus
Como um menino pelo Pai.

 António Couto


UM OLHAR CHEIO DE JESUS FAZ VER JESUS, FAZ VIR JESUS

Junho 4, 2011

1. Mateus 28,16-20: última página do Evangelho de Mateus, que hoje, Solenidade da Ascensão do Senhor, é solenemente proclamada para nós. Encerra o Evangelho, condensa-o e ressume-o, e abre aos Discípulos e Irmãos do Ressuscitado novos e insuspeitados horizontes.

 2. Três temas enchem a página, o pátio, o átrio sempre entreaberto: a autoridade soberana e nova de Jesus, assente, não na distância, mas na proximidade e familiaridade (1); a missão universal confiada à Igreja (2); a Presença nova e permanente do Ressuscitado na comunidade fiel (3). A soberania nova, próxima e familiar, é já preparada pela cena anterior em que o anjo reorienta os passos das mulheres do túmulo para a Galileia, dizendo-lhes: «Ide depressa dizer aos seus discípulos que Ele ressuscitou dos mortos e vos precede na Galileia» (Mateus 28,7). De forma grandemente significativa, Jesus apresenta-se às mulheres no caminho, e reformula assim o dizer do anjo: «Ide anunciar aos meus irmãos…» (Mateus 28,10). Aí está a nascer a nova e indestrutível familiaridade: meus irmãos, diz Jesus, apontando para nós e envolvendo-os num imenso abraço fraternal. E chegados à Galileia, e à montanha (Mateus 28,16), é Jesus que se aproxima deles (Mateus 28,18), de nós. A montanha lembra as bem-aventuranças (Mateus 5,1), as curas (Mateus 15,29), a Transfiguração (Mateus 17,1), em que é sempre Ele que abraça o nossa frágil humanidade. O «Ide e fazei discípulos de todas as nações» (Mateus 28,19) é a missão sem fim que nos aponta, pois todas as nações são todos os corações. E «Ir» é não ficar aqui ou ali à espera. É a estrada sem medida de Abraão que se abre à nossa frente. E se tem medida é a medida sem medida da eleição, da bênção e da missão. Mas não estamos sozinhos nessa estrada. Ele está sempre connosco. O seu nome, a sua identidade, é estar connosco. É assim a terminar o Evangelho (Mateus 28,20). É assim a abrir o Evangelho (Mateus 1,23). Então é assim todo o Evangelho. É esta Presença que é o Evangelho.

 3. É esta imensa, impenetrável notícia que os Discípulos de Jesus devem saber levar e semear de mansinho no subtilíssimo segredo de cada humano coração. Jesus Cristo, o Ressuscitado, vem visitar os seus Irmãos. Não. Não se trata de uma visita rápida, de quem está apenas de passagem. Ele vem para ficar connosco sempre, tanto nos ama. Imensa fraternidade em ascendente movimento filial, como uma seara nova e verdejante a ondular ao vento suavíssimo do Espírito, elevando-se da nossa terra do Alto visitada e semeada, ternamente por Deus olhada, agraciada, abençoada.

 4. O Livro dos Actos dos Apóstolos retoma esta lição. «E estas coisas tendo dito, vendo (blépô) eles, ELE foi Elevado (epêrthê), e uma nuvem O subtraiu (hypolambáno) dos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). E como tinham o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde ELE ia, eis (idoú) dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, e DISSERAM: “Homens Galileus, por que estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu”» (Actos 1,9-11).

 5. Tanto VER. Da panóplia de verbos registrados (blépô, atenízô, horáô, emblépô, theáomai), os mais fortes e intensos são, com certeza, atenízô [= «olhar fixamente»] e emblépô [= «perscrutar», «ver dentro»]. Ambos exprimem a observação profunda e prolongada, para além das aparências: VER o invisível (cf. Hebreus 11,27), VER o céu, VER a glória de Deus. Mas mais ainda do que o que se vê, estes verbos acentuam o modo como se vê. É para aí que apontam os dois homens vestidos de branco, de rompante surgidos na cena, para entregar um importante DIZER que interpreta e orienta tanto VER. Já os tínhamos encontrado no túmulo reorientando os olhos entristecidos das mulheres: «Por que () procurais entre os mortos Aquele que está Vivo? Não está aqui. Ressuscitou!» (Lucas 24,5-6). Dizem agora: «Por que () estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu» (Actos 1,11). Ao Arrebatamento de JESUS para o céu, os dois homens vestidos de branco agrafam a Vinda de JESUS. Importante colagem da Ascensão com a Vinda. E importante passo em frente para quem estava ali simplesmente especado. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Sim, Ver. Porque ELE Virá do mesmo modo que O Vistes IR. Importante guardar este Ver, viver este Ver, Ver com este Ver. Porque é Vendo assim que o SENHOR Virá. Vinda que não tem de ser relegada para uma Parusia distante e espectacular, mas que começa, hic et nunc, neste Olhar novo e significativo de quem Vê o SENHOR JESUS. Vinda que não é tanto um regresso, mas o desvelamento de uma presença permanente. Vinda já em curso, portanto, ainda que não plenamente realizada.

 6. Guardemos este Olhar e prossigamos. Eis-nos no primeiro ACTO propriamente dito dos Actos dos Apóstolos depois do Pentecostes: a cura de um coxo de nascença descrita em Actos 3,1-10: «Então Pedro e João subiam ao Templo para a oração da hora nona [= 15h00]. E um certo homem, que era coxo (chôlós) desde o ventre da sua mãe, era trazido e posto todos os dias diante da Porta do Templo, dita a Bela, para pedir esmola àqueles que entravam no Templo. Vendo (idôn) Pedro e João, que estavam a entrar no Templo, pedia esmola para receber. Então, fixando o olhar (atenísas) nele, Pedro, com João, disse: “Olha para nós” (blépson eis hemâs). Então ele observava-os (epeîchen), esperando receber deles alguma coisa. Disse então Pedro: “Prata e ouro não tenho, mas o que tenho, isso te dou: no nome de JESUS CRISTO, o Nazareno, [levanta-te e] caminha. E, tomando-o pela mão direita, levantou-o. Imediatamente se firmaram os seus pés e os calcanhares. Com um salto, pôs-se em pé, e caminhava, e entrou com eles no Templo caminhando e saltando e louvando a Deus. E todo o povo o viu (eîden) a caminhar e a louvar a Deus. E reconheciam que era aquele que, sentado, pedia esmola à Porta Bela do Templo, e ficaram cheios de admiração e de assombro por aquilo que lhe aconteceu» (Actos 3,1-10).

 7. Outro impressionante condensado de olhares marca este primeiro ACTO dos Actos dos Apóstolos. Soam no texto cinco notas visuais, servidas por quatro verbos: horáô, atenízô, blépô, epéchô. Atenízô desenha o Olhar de Pedro e João fixado no coxo de nascença. Blépô retrata o Ver com que o coxo é mandado olhar o Olhar dos Apóstolos. Significativo agrafo: estes dois Olhares, com atenízô e blépô, só tinham sido usados antes, no Livro dos Actos dos Apóstolos, uma única vez, precisamente no relato da Ascensão (Actos 1,9-10). De resto, blépô conhecerá apenas mais quatro menções no Livro dos Actos dos Apóstolos: duas no relato da vocação de Paulo (Actos 9,8-9), a terceira no discurso de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia (Actos 13,41; cit. de Habacuc 1,5), e a quarta e última no decurso da viagem marítima de Paulo para Roma (Actos 27,12). Atenízô, por sua vez, far-se-á notar em lugares de relevo, sempre para expressar um Ver novo e significativo, um Ver sem haver: os membros do Sinédrio fixam os olhos (atenízô) em Estêvão, e vêem-no semelhante a um anjo (Actos 6,15); Estêvão, por sua vez, fixa os olhos (atenízô) no céu, e vê a glória de Deus e JESUS, de pé, à direita de Deus (Actos 7,55); Cornélio fixa os olhos (atenízô) no anjo do Senhor, que o interpela (Actos 10,4); Pedro fixa os olhos (atenízô) na visão, vinda do céu, dos animais impuros (Actos 11,6); Paulo fixa os olhos (atenízô) no mago Elimas, de Chipre, para o fulminar pela sua falsidade e malícia (Actos 13,9), e o mesmo faz no Sinédrio, dando testemunho de JESUS (Actos 23,1).

 8. É este Ver JESUS, Ver sem haver, sem poder, sem ouro nem prata (Actos 3,6), que se fixa sobre o coxo de nascença, mandado, por sua vez, olhar para este Olhar, Ver desta maneira. Como Abraão e Moisés, convidados a Ver para receber, e não para haver, a Terra Prometida: «a terra que Eu te farei Ver» (Génesis 12,1), «que YHWH lhe fez Ver» (Deuteronómio 34,1), «Eu a fiz Ver aos teus olhos» (Deuteronómio 34,4). O narrador anota mais à frente que o coxo de nascença, agora curado, tinha mais de 40 anos (Actos 4,22), tipologia do povo perdido no deserto antes de entrar na Terra Prometida. Como o homem doente havia 38 anos, que Jesus encontra junto da piscina de Bezetha, e que será curado (João 5,1-9).

 9. É sintomático que o Ver da Ascensão e da Vinda do SENHOR JESUS seja o Ver que preenche por inteiro o primeiro ACTO dos Actos dos Apóstolos, com realce para Pedro. Mas é ainda grandemente sintomático que o primeiro ACTO de Paulo, descrito em Actos 14,8-10, que é também o primeiro passo da missão perante o paganismo popular, em Listra, quase copie o primeiro ACTO dos Apóstolos e de Pedro, certamente com o intuito de pôr em paralelo os dois grandes Apóstolos e os dois tempos da missão. Eis o texto referido de Act 14,8-10: «E em Listra um homem estava sentado, sem força nos pés, coxo desde o ventre da sua mãe, e que nunca tinha andado. Este ouviu falar Paulo, o qual, tendo fixado os olhos (atenísas) nele, e tendo visto que tinha fé para ser salvo, diz com voz forte: “Levanta-te direito sobre os teus pés!” E ele deu um salto e caminhava» (Actos 14,8-10). Aqui temos o mesmo coxo de nascença, o mesmo Olhar significativo e diaconal, sem poder, sem ouro nem prata, Ver JESUS, o mesmo levantamento do coxo. E também aqui, na sequência do texto, temos o aceno à multidão que disperdia o olhar, vendo em Paulo e Barnabé deuses em forma humana, e a mesma correcção, feita por Paulo, apontando JESUS (Actos 14,11-18).

 10. Importante agrafo da Ascensão com a Vinda do Senhor. Tanto Ver. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Guardemos este Olhar cheio de Jesus e olhemos agora para esta terra árida e cinzenta, para tantos corações tristes e perdidos. Nascerá um mundo muito mais belo, novos corações pulsarão nas pessoas. Corações iluminados, como diz o Apóstolo à comunidade mãe da Ásia Menor, Éfeso (Efésios 1,18). Um Olhar cheio de Jesus faz Ver Jesus, faz Vir Jesus!

 António Couto