SANTA MARIA, MÃE DE DEUS, RAINHA DA PAZ

Dezembro 31, 2018

1. Oito dias depois da Solenidade do Natal do Senhor, que a liturgia oriental designa significativamente por «a Páscoa do Natal», eis-nos no Primeiro Dia do Ano Civil de 2019, tradicionalmente designado como Dia de «Ano Bom», a celebrar a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus.

2. A figura que enche este Dia, e que motiva a nossa Alegria, é, portanto, a figura de Maria, na sua fisionomia mais alta, a de Mãe de Deus, como foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, em 431, mas já assim luminosamente desenhada nas páginas do Novo Testamento.

3. É assim que a encontramos no Lecionário de hoje. Desde logo naquela menção sóbria, e ousamos mesmo dizer pobre (na riqueza espiritual que o termo contém), com que Paulo se refere à Mãe de Jesus, escrevendo aos Gálatas: «Deus mandou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei» (Gálatas 4,4). Nesta linha breve e densa aparece compendiado o mistério da Incarnação, ao mesmo tempo que se sente já pulsar o coração da Mariologia: Maria não é grande em si mesma; é, na verdade, uma «mulher», verdadeiramente nossa irmã na sua condição de humana criatura. Não é grande em si mesma, mas é grande por ser a Mãe do Filho de Deus, e é aqui que ela nos ultrapassa, imaculada por graça, bem-aventurada e bem-aventurança, nossa mãe na fé e na esperança. Maria não é grande em si mesma; vem-lhe de Deus essa grandeza.

4. O Evangelho deste Dia de Maria (Lucas 2,16-21) guarda também uma preciosidade, quando Lucas nos diz que «todos os que tinham escutado as coisas faladas pelos pastores ficaram maravilhados, mas Maria guardava (synetêrei) todas estas Palavras que aconteceram (tà rhêmata), compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,18-19). Em contraponto com o espanto de todos os que ouviram as palavras dos pastores, Lucas pinta um quadro mariano de extraordinária beleza: «Maria, ao contrário, guardava todas estas Palavras que aconteceram, compondo-as no seu coração». Há o espanto e a maravilha que se exprimem no louvor e no canto, e há o espanto e a maravilha que se exprimem no silêncio e na escuta. Maria, a Senhora deste Dia, aparece a guardar com ternura todas estas Palavras que acontecem, todos estes acontecimentos que falam e não esquecem. O verbo guardar implica atenção cheia de ternura, como quem leva nas suas mãos uma coisa preciosa. Este guardar atencioso e carinhoso não é um ato de um momento, mas a atitude de uma vida, uma vez que o verbo grego está no imperfeito, que implica duração.

5. O outro verbo belo mostra-nos Maria como que a compor, isto é, a «pôr em conjunto» (symbállô), a organizar, para melhor entender. É como quem, com aquelas Palavras, compõe um Poema, uma Sinfonia, e se entretém a vida toda a trautear essa melodia e a conjugar novos acordes de alegria. E é dito ainda, num pleonasmo único na Escritura Santa, que Maria «concebeu no ventre» (syllambánô en tê koilía) (Lucas 2,21). Redundância. Música divina. O ventre de Maria em consonância com o «ventre de misericórdia do nosso Deus» (Lucas 1,78), causa da Luz que nas alturas se levanta e visita toda a gente, causa do Rebento que na nossa terra germina, que a nossa terra aquece e alumia, Jesus, filho de Deus e de Maria, a quem neste oitavo Dia é posto o Nome.

6. Esta solicitude maternal de Maria, habitada por esta imensa melodia que nos vem de Deus, levou o Papa Paulo VI, a associar, desde 1968, à Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a celebração do Dia Mundial da Paz. Hoje é já o 52.º Dia Mundial da Paz que se celebra. A paz é uma refeição saborosa, servida por Deus aos seus filhos. Chega, portanto, a todos, pastores, fiéis leigos e a todos os homens de boa vontade, e a todos sacia e envia a desenhar um mundo novo e feliz para todos, hoje, amanhã e sempre. Esta paz saborosa atinge-nos em cheio, pois todos estamos imersos no lodaçal da indiferença, talvez a mais grave doença que afeta a humanidade deste tempo sem horizontes. Na verdade, nesta «noite do mundo» em que domina o princípio da necrofilia, a nefasta atração pela morte, tudo nos aparece sem rosto e sem rumo. É preciso, portanto, abrir os olhos, dar asas aos nossos sonhos belos, dar as mãos e ter a coragem de recomeçar. Que não nos fechemos no mundo egocêntrico, egolátrico e autorreferencial da hipertrofia do «eu» que pensa que se basta a si mesmo, e não precisa de nada nem de ninguém, conforme o paradigma de Laodiceia. Contra a sedução das ideologias, que não salvam ninguém, de reduzir o mundo e o homem a três dimensões – comprimento, largura e altura –, anulando o horizonte de Deus, compete-nos a todos dar um novo rosto à família, à escola, à política, aos media, e remarmos todos juntos para construir novas atitudes e novas relações estáveis e felizes, assentes na gratuidade, na fraternidade e no amor, novos cenários que proporcionem que chegue a todos os homens o mundo belo que Deus a todos reparte dia após dia. É preciso educar para a paz, isto é, educar para sabermos acolher o outro, diferente de nós, e olhar para ele com amor e sem preconceitos. Educar, na sua etimologia latina, de educere, significa, não levar para dentro de qualquer prisão do «eu» ou outra, mas conduzir para fora de si mesmo, ao encontro dos outros e da realidade. E é sempre bom lembrar que a justiça é o sabor que vem de Deus, e a paz não é a paz romana, assente no poder das armas, nem a paz do judaísmo palestinense, assente nos acordos entre as partes. A paz é um Dom de Deus! Portanto, mais do que conquistá-la, é preciso recebê-la e partilhá-la.

7. De Deus vem sempre um mundo novo, belo, maravilhoso. Tão novo, belo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).

8. O Salmo 67 é uma oração de bênção em forma de petição. Em termos técnicos, equivale a uma epiclese: não «eu te bendigo», mas «Deus nos bendiga». O nosso Salmo recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o singular, por assim dizer, «democratizando» a bênção, agora dirigida a todos, onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel.

9. Olhada por Deus com singular olhar de Graça foi Maria, também Pobre, também Feliz, Bem-aventurada, Santa Maria, Mãe de Deus, que hoje celebramos em uníssono com a Igreja inteira. Para ela elevamos hoje os nossos olhos de filhos enlevados.

10. Mãe de Deus, Senhora da Alegria, Mãe igual ao Dia, Maria. A primeira página do ano é toda tua, Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora de Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de Janeiro, do Dia primeiro e do Ano inteiro.

11. Abençoa, Mãe, os nossos dias breves. Ensina-nos a vivê-los todos como tu viveste os teus, sempre sob o olhar de Deus, sempre a olhar por Deus. É verdade. A grande verdade da tua vida, o teu segredo de ouro. Tu soubeste sempre que Deus velava por ti, enchendo-te de graça. Mas tu soubeste sempre olhar por Deus, porque tu soubeste bem que Deus também é pequenino. Acariciada por Deus, viveste acariciando Deus. Por isso, todas as gerações te proclamam «Bem-aventurada»! Por isso, nós te proclamamos «Bem-aventurada»!

12. Senhora e Mãe de Janeiro, do Dia Primeiro e do Ano inteiro. Acaricia-nos. Senta-nos em casa ao redor do amor, do coração. Somos tão modernos e tão cheios de coisas estes teus filhos de hoje! Tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade! Temos tudo. Mas falta-nos, se calhar, o essencial: a tua simplicidade e alegria. Faz-nos sentir, Mãe, o calor da tua mão no nosso rosto frio, insensível, enrugado, e faz-nos correr, com alegria, ao encontro dos pobres e necessitados.

13. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos os irmãos que Deus nos deu! E que Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe nos abençoe também. Amen!

 

Que Deus nos abençoe e nos guarde,

Que nos acompanhe, nos acorde e nos incomode,

Que os nossos pés calcorreiem as montanhas,

Cheios de amor, de paz e de alegria,

Que a tua Palavra nos arda nas entranhas,

E nos ponha no caminho de Maria.

 

O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.

O fiat que disseste, Maria, é de quem se fia

Num amor maior do que um letreiro.

Vela por nós, Maria, em cada dia

Deste ano inteiro,

Para que levemos a cada enfermaria,

A cada periferia,

Um amor como o teu, primeiro e verdadeiro.

 

António Couto


COM O MENINO NOS BRAÇOS E NO CORAÇÃO

Dezembro 29, 2018

1. Atravessamos ainda a Solenidade do Natal do Senhor, dado que esta Solenidade se prolonga durante oito dias (Oitava) até à Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, que se celebra no primeiro Dia de Janeiro.

2. O Natal do Senhor põe diante do nosso olhar contemplativo uma Família humilde e bela, Jesus, Maria e José, mas traz também consigo uma forte sensibilidade Familiar, tornando-se o tempo forte da reunião festiva das nossas Famílias. Estes dois acertos são importantes para se compreender a razão pela qual, no Domingo dentro da Oitava do Natal, a Igreja celebra a Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José.

3. Os textos da Liturgia são outra vez preciosos. O Evangelho põe no nosso coração o último episódio do Evangelho da Infância de S. Lucas, conhecido por «Encontro de Jesus no Templo» (2,41-52). Na verdade, o texto refere, logo a abrir, que «os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém pela Festa da Páscoa», certamente envoltos na intensa alegria com que os judeus piedosos acorriam ao Templo do Senhor nas três Festas de Peregrinação – Páscoa, Semanas e Tendas –, cantando: «Que alegria quando me disseram: vamos para a Casa do Senhor!» (Salmo 122,1). Eram oito dias de alegria filial e fraternal, uma vez que, na Casa do Senhor, todos eram e se sentiam verdadeiramente filhos e irmãos.

4. Mas este belíssimo episódio guarda ainda mais alguns sabores requintados. Primeira nota: diz-nos o texto que, nessa Páscoa, Jesus já tinha completado doze anos, que o mesmo é dizer que tinha passado da infância à idade adulta, e que, portanto, sobre ele incumbia agora também o dever de subir três vezes por ano a Jerusalém e de responder pessoalmente, sem a mediação dos pais, pelo cumprimento dos mandamentos de Deus, como ainda hoje se verifica na cerimónia pública chamada «bar mitswah» [= filho do mandamento], que os rapazes judeus piedosos realizam aos 12 anos.

5. Segunda nota: no regresso a Nazaré, após um dia de viagem, Maria e José aperceberam-se de que Jesus «não fazia caminho com eles», e ficaram preocupados e foram procurá-lo. Sinal importante para as restantes páginas do Evangelho e para nós: quando nos apercebermos de que Jesus não está a fazer caminho connosco, devemos ficar preocupados e ir à procura dele. Por outras palavras: não podemos perder Jesus. Podemos perder coisas e tralhas que atrapalham e sobrecarregam. Mas Jesus é a nossa vida (se o perdemos, perdemo-nos!), e é Ele que todos nos pedem: «Nós queremos ver Jesus!» (João 12,21). Se o perdemos, não o temos para dar!

6. Terceira nota: não o encontram onde e como seria de esperar, entre os parentes e conhecidos. Quarta nota: Jesus é encontrado três dias depois no Templo (Casa de Deus), num claríssimo aceno à Ressurreição (três dias) e ao verdadeiro parentesco e identidade de Jesus (Casa de Deus). Quinta nota: está sentado na cátedra (kathezómenos) no meio dos mestres. Então Ele é o Mestre, e o seu lugar é sempre no meio de nós a ensinar.

7. Sexta nota: a resposta serena de Jesus à sua mãe preocupada («Olha que o teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura», diz Maria): «Não sabíeis que é para mim necessário estar nas coisas do meu Pai?», responde Jesus. Mas era óbvio que, depois da cerimónia do «bar mitswah», competia a Jesus responder pessoalmente a Deus. Note-se ainda o confronto do «teu pai», de Maria, com o «meu Pai», de Jesus. E note-se também que Jesus não se ocupa simplesmente das coisas do Pai, mas está nas coisas do Pai. Expressão fortíssima, de intimidade e dedicação total, que implica a própria vida, e não um mero negócio de coisas exteriores.

8. Sétima nota: embora não compreendendo, Maria guardava todas estas palavras e acontecimentos, compondo-os (symbállousa) no seu coração. Expressão belíssima que mostra bem a altura do crente verdadeiro, que não tem de compreender tudo já, mas guarda e vai compondo palavras e acontecimentos divinos numa bela melodia, como quem compõe uma música, um poema, embebida e embebecida de sentido. Sim, vê-se bem que, tal como Jesus, também Maria não se ocupa, de vez em quando, com as coisas de Deus; ela está sempre nas coisas de Deus!

9. Dentro da temática da Família, o Antigo Testamento traz-nos hoje um extrato sapiencial retirado do Livro de Ben-Sirá (ou Eclesiástico) 3,2-6.12-14, e que nos convida ao amor dedicado aos nossos pais sempre, para que o Senhor ponha sobre nós o seu olhar de bondade.

10. O Salmo 128 é a música suave, de teor didático-sapiencial, que canta uma família feliz e nos mostra a fonte dessa felicidade: a bênção paternal do Senhor. «Felizes os que esperam no Senhor,/ e seguem os seus caminhos» é a bela litania em que o refrão nos faz entrar hoje.

11. Finalmente, o Apóstolo Paulo, na Carta aos Colossenses 3,12-21, exorta esposos, pais e filhos ao amor mútuo, mostrando ainda de que sentimentos nos devemos vestir por dentro e de que música devemos encher o nosso coração. Salta à vista que a misericórdia, a bondade, a humildade, a mansidão, a longanimidade, o amor, o perdão são vestidos importantes para a festa, mas não se compram nem vendem por aí em nenhum pronto-a-vestir. De resto, vê-se bem que andamos todos bem vestidos por fora, mas andamos muitas vezes nus por dentro! E é para aqui que aponta a exortação de S. Paulo. Nesta época de bastante consumismo e vestidos novos, convém que nunca nos esqueçamos de Deus, pois é Ele, e só Ele, que veste carinhosamente o coração e as entranhas dos seus filhos.

 

Santa Maria de um amor maior,

Do tamanho do Menino que levas ao colo,

Diante de ti me ajoelho e esmolo

A graça de um lar unido ao teu redor.

 

Protege, Senhora, as nossas famílias,

Todos os casais, os filhos e os pais,

E enche de alegria, mais e mais e mais,

Todos os seus dias, manhãs, tardes, noites e vigílias.

 

Vela, Senhora, por cada criança,

Por cada mãe, por cada pai, por cada irmão,

A todos os velhinhos, Senhora, dá a mão,

E deixa em cada rosto um afago de esperança.

 

António Couto


CONTEMPLAR O PRESÉPIO

Dezembro 24, 2018

1. «Exultemos de alegria no Senhor, porque nasceu na terra o nosso Salvador», é a Antífona do Cântico de Entrada da Missa da Meia-Noite, que dá o devido tom de exultação a esta Solenidade, magnífico pórtico para este intenso feixe de Luz, Mistério de Jesus, fazendo logo ver o Natal à Luz da Páscoa, «a Páscoa do Natal», assim o diz significativamente a liturgia oriental. A Antífona da Missa da Aurora prossegue a mesma sinfonia, conjugando Isaías 9,1 e Lucas 2,11, e soa assim: «Hoje sobre nós resplandece uma Luz: nasceu o Senhor». A Antífona da Missa do Dia continua a indicar o «para nós» deste Filho e do seu Mistério, trazendo ao de cima outra vez a pauta musical de Isaías: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado» (Isaías 9,6).

2. A linha dos Evangelhos deste Dia é de excecional riqueza, e desenvolve-se em três movimentos: o acontecimento, o anúncio e o acolhimento. Começa com Lucas 2,1-14 (Meia-Noite), e continua com Lucas 2,15-20 (Aurora), que nos trazem o quadro histórico-geográfico do nascimento de Jesus (Lucas 2,1-7), o seu anúncio (Lucas 2,8-14) e acolhimento (Lucas 2,15-29). O nascimento de Jesus, na sua nudez, aparece narrado três vezes, nos três movimentos do texto (Lucas 2,7.12.16). Ele é claramente o centro. Aparece logo situado no decurso do recenseamento do mundo romano ordenado por César Augusto, sendo Quirino prefeito romano da Síria (Lucas 2,1-2). O reinado de Augusto estende-se por muitos anos (27 a.C.-14 d.C.), mas Pôncio Sulpício Quirino foi prefeito da Síria apenas no ano 6 d.C., sendo então que liquida os bens de Arquelau, filho de Herodes o Grande, e anexa definitivamente a Judeia ao Império Romano. O leitor menos prevenido dirá logo que há aqui uma imprecisão histórica. Acrescento então que este recenseamento foi iniciado em 7-6 a.C. por Sêncio Saturnino, prefeito da Síria durante os anos 9-6 a.C. É sabido, de resto, que a era cristã atualmente em vigor foi fixada no século VI pelo monge xiita, de origem egípcia, Dionísio o Pequeno, com um pequeno erro de cálculo que resultou no atraso de 6 ou 7 anos em relação ao nascimento de Jesus. Portanto, Jesus terá nascido 6 ou 7 anos antes do início da era cristã fixada pelo monge Dionísio. E aí está então tudo em dia: Jesus nasce quando Sêncio Saturnino dá início ao recenseamento. Dirá outra vez o leitor incauto: se assim foi, por que é que Lucas fala de Quirino, e não de Saturnino? Se repararmos bem, Lucas faz exatamente como nós fazemos hoje. Nas placas que colocamos nos edifícios públicos que inauguramos, constam os nomes das autoridades que os terminam e inauguram, e não daqueles que os iniciam. O mesmo se diga da promulgação de leis e tratados.

3. É ainda no quadro deste recenseamento que José, acompanhado por Maria, sua esposa, sobe a Belém para se recensear. O texto explica bem que esta deslocação se fica a dever ao facto de José ser da descendência de David (Lucas 2,3-4). Alguém poderá perguntar: então por que foi José viver para Nazaré, se ele era natural de Belém, a uns 150 km de distância? Provavelmente dentro do programa político-religioso de rejudaização da Galileia, iniciado por Alexandre Janeu (103-76 a.C.), em que colonos judeus eram incentivados a repovoar e rejudaizar a Galileia.

4. O próximo passo refere que não havia lugar para eles (José e Maria) na sala (Lucas 2,7). Note-se que o texto refere, de forma clara, sala, grego katályma, e não hospedaria, como se lê em muitas e preconceituosas traduções. Na verdade, Lucas sabe bem dizer hospedaria, como faz na passagem do bom samaritano (Lucas 10,34), em que usa o termo grego pandocheîon. Katályma não significa hospedaria. Significa sala. Pode ser a sala do andar superior (Lucas 22,11), mas é, neste caso, a sala de hóspedes que a arqueologia pôs a descoberto no rés-do-chão de muitas das casas da Palestina do tempo de Jesus. Esta sala apresenta forma quadrada ou retangular, com um banco rochoso ao longo das paredes, destinado ao descanso das pessoas. Uma única porta de entrada dava acesso à sala a pessoas e animais. Ao fundo da sala localizava-se outra porta, que dava para um estábulo, para onde as pessoas conduziam naturalmente os animais. É neste estábulo anexo à sala de hóspedes que vai nascer Jesus, e é também aqui que se compreende perfeitamente a presença da manjedoura (Lucas 2,7 e 12).

5. Vem depois a cena maravilhosa da manifestação desta Notícia aos pastores dos campos de Belém. Os pastores são os últimos da sociedade, e não entram nas contas de ninguém, tal como o pequeno pastor de Belém, David, não entra nas contas já encerradas de seu pai (1 Samuel 16,10-11), mas entra nas de Deus (1 Samuel 16,11-12). Assim é também aos pastores de Belém que o mensageiro celeste anuncia a Alegria do nascimento de um Salvador para todo o povo, Hoje nascido em Belém (Lucas 2,8-11).

6. E, deste acontecimento, o mensageiro celeste dá um sinal (sêmeîon) aos pastores e a nós: «encontrareis um recém-nascido envolto em faixas e deposto numa manjedoura» (Lucas 2,12). Entra então subitamente em cena uma multidão do exército celeste (Lucas 2,13) – expressão que só se encontra aqui nos Evangelhos – para entoar aquele celestial e humano Gloria in excelsis Deo [= «Glória a Deus nas alturas»] e Paz na terra aos homens que Ele ama (Lucas 2,14). Depois desta cena grandiosa e única, aí vão eles, os pastores, aqueles com quem ninguém conta e que não entram em nenhuma lista de convidados, aí vão eles apressadamente (Lucas 2,16), como Maria (Lucas 1,39), verificar (ideîn) os acontecimentos a eles dados a conhecer por Deus (Lucas 2,15), e que, como verdadeiros anunciadores, não podem calar, e devem dar também a conhecer a todos (Lucas 2,17). Note-se esta Paz diferente, que não é obra das armas, como no mundo romano, nem de acordos entre as partes, como no judaísmo palestinense, mas dom de Deus!

7. Cena sublime e suprema ironia. Os senhores do mundo (César Augusto e Quirino) são mencionados, mas saem logo de cena, para dar lugar aos pastores, que assumem o papel de verdadeiros protagonistas. Os senhores do mundo ocupam um único versículo cada um (Lucas 2,1 e 2). Os pastores enchem treze versículos (Lucas 2,8-20)! Também lá estão Maria, José e o Menino, mas não dizem uma única palavra. A palavra é toda dos Anjos e dos pastores. Mas Maria é estupendamente retratada a «guardar todas aquelas palavras, compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,19).

8. Note-se ainda o sinal dado aos pastores e a nós, leitores: um recém-nascido envolto em faixas, deposto numa manjedoura. É preciso também ver já aqui a Luz da Páscoa, com o corpo de Jesus a ser envolto num lençol e deposto num sepulcro (Lucas 23,53). Mas também a sala (katályma) onde não havia lugar para eles (Lucas 2,7) reclama já a sala para comer a Páscoa (Lucas 22,11). O Evangelho do Dia (João 1,1-18) deixa-nos de joelhos em contemplação: «E o Verbo se fez carne e pôs a sua tenda entre nós, e nós contemplámos (theáomai) a sua glória» (João 1,14). Mas também: «Veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (João 1,11).

9. Os passos dos peregrinos e os nossos convergem Hoje para a Basílica da Natividade em Belém. Não obstante os múltiplos trabalhos de reconstrução e conservação ao longo dos séculos, a Basílica que hoje se depara ao peregrino é, nas suas linhas gerais, obra do imperador Justiniano, edificada entre 531 e 565, e é mesmo o único templo, provindo de Justiniano, que resta na Palestina. Escapou mesmo à razia dos Persas de Cosroé, em 614, contra os templos cristãos, devido ao facto de os frescos que adornam a Basílica conterem representações dos Magos, o que muito terá sensibilizado os Persas. Esta não é, porém, a Basílica primitiva. Os trabalhos arqueológicos efetuados pelo P. Bagatti em 1949-1950 mostraram, por debaixo do pavimento da atual Basílica, os traços arquitetónicos de outra grandiosa Basílica, levantada entre 326 e 333, por Santa Helena, mãe do imperador Constantino. Esta primitiva Basílica foi assolada por diversos incêndios e depois grandemente devastada pela revolta dos Samaritanos de Nablus em 529 contra o governo bizantino. Foi sobre as ruínas desta Basílica Constantiniana que o imperador Justiniano fez construir, com traços arquitetónicos diferentes, a Basílica atual.

10. Mas a Basílica Constantiniana também não representa o estádio primitivo do culto cristão em Belém. Este encontra-se certamente na cripta da Basílica atual, guardado num espaço retangular de 12,30 metros de comprimento por 3,50 metros de largura, para onde convergem os passos dos peregrinos. Este espaço corresponde ao estábulo anexo à já mencionada sala de hóspedes. Aí se encontra o Altar da Natividade, debaixo do qual se pode ver uma estrela de prata com a inscrição: Hic de Virgine Mariae Jesus Christus natus est [= «Aqui da Virgem Maria nasceu Jesus Cristo»]. A Basílica da Natividade guarda na sua cripta o mistério do nascimento de Jesus, da pobreza, da humildade, do amor, da paz. Daquele e daquilo que não tem lugar na sala do nosso bem-estar, poder, ódio, ostentação, tirania. Na tua casa e na tua sala há lugar para quem e para quê, meu irmão deste Dia de Natal?

 

Há dois mil anos Deus sonhou

E foi

Natal em Belém.

Sonha também.

Se o jumento corou

E o boi se ajoelhou,

Não deixes tu de orar também.

 

A notícia ecoou nos campos de Belém.

Com o celeste recital que ali se deu,

O céu ficou ao léu,

A terra emudeceu de espanto,

E os pastores dançaram tanto, tanto,

Que até os mansos animais entraram nesse canto.

 

Isaías 1,3 antecipou a cena,

E gravou com o fulgor da sua pena

O manso boi e o pacífico jumento

Comendo as flores de açucena da vara de José sentado ao lume,

E bafejando depois suavemente o Menino de perfume.

Enquanto os meigos animais vão comer à mão do dono,

O meu povo, diz Deus, não me conhece,

E perde-se nos buracos de ozono.

 

Vem, Menino!

E quando vieres para a tua doirada sementeira,

Que logo cresce e se faz messe (João 4,35),

Quando assobiares às boieiras,

Chama também por mim,

Diz bem alto o meu nome,

Vamos os dois para o campo e para a eira,

E enche-me de fome

De um amor como o teu,

Pequenino e enorme.

 

António Couto


NATAL 2018

Dezembro 23, 2018

 

O Senhor do Tempo

É Aquele-que-Vem

Nascer em Belém,

Bater à nossa porta,

Pedir ao nosso coração

Um bocadinho de pão.

 

Tão pouco e tanto

Nos pede Jesus,

E para nosso espanto,

E encanto nosso,

O Filho de Maria

Vem vestido de irmão nosso

De cada dia.

 

Ele anda por aí,

Ao frio e ao calor,

Rico e pobrezinho,

Nosso Senhor.

 

Vem, Menino,

Senhor do mundo,

Do sol e da lua,

Bate à minha porta,

Entra em minha casa,

E que, por graça,

Entre eu também na tua.

 

Desejo a todos os meus irmãos e irmãs, sacerdotes, diáconos, consagrados e consagradas, fiéis leigos, doentes, idosos, jovens e crianças, migrantes, das 223 Paróquias da nossa Diocese de Lamego, e da Igreja inteira, a todos e a ti também, um Santo Natal com Jesus sempre no meio de nós, e um Novo Ano cheio da Graça e da Alegria do Evangelho.

Vem, Senhor Jesus, bate à nossa porta, encandeia a nossa vida, e conduz os nossos passos pelo caminho da Paz e do Carinho.

+ António, vosso bispo e irmão


SENHORA DA VISITAÇÃO

Dezembro 22, 2018

1. A liturgia deste Domingo IV do Advento, já quase em cima do Natal do Senhor, convida-nos a contemplar com amor emocionado algumas joias da Escritura Santa.

2. Em Primeiro lugar, porque o Evangelho tem sempre o primeiro lugar, o Evangelho de Lucas 1,39-45. As Igrejas do Ocidente conhecem este episódio por «Visitação» de Maria a Isabel, enquanto que os nossos irmãos do Oriente preferem denominá-lo «Saudação» de Maria a Isabel. O episódio é deslumbrante, e começa por nos mostrar Maria a correr sobre os montes para ir ao encontro de Isabel. Ao correr sobre os montes, Maria reveste-se dos traços sublimes do mensageiro de Isaías 52,7, que diz: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a Paz, que leva Boas Novas a Sião!». Claramente, Maria aparece como portadora de Notícias Felizes. Mas, ao correr sobre os montes, Maria reveste-se também do perfume do amor novo do Cântico dos Cânticos 2,8, onde se ouve a amada a dizer: «A voz do meu amado, ei-lo que vem correndo sobre os montes!». Assim, com esta simples nota narrativa, Maria aparece-nos como uma Mulher Bela, Encantada, cheia de Alegria, Esposa Amada e Habitada por Notícias Felizes, pela Notícia Feliz, isto é, pelo Evangelho em Pessoa, Jesus, que Maria humildemente serve e ternamente apresenta, mais tarde a Senhora Odighítria, venerada nas Igrejas do Oriente, que com a mão aponta o caminho verdadeiro, o seu Filho Jesus, que leva ternamente ao colo.

3. Seria bom que nos demorássemos longamente a contemplar esta figura de Maria, bela, leve e feliz. Contemplando esta figura cheia de beleza e de leveza, estamos já a ver, em contraluz, o retrato dos Evangelizadores do Evangelho, também belos, leves e felizes e habitados por um amor novo: sem ouro nem prata nem cobre nem alforge nem duas túnicas. E, se olharmos agora um bocadinho para nós, verificaremos logo, em contraponto, que talvez levemos peso a mais!

4. Esta Mulher Bela, Esposa Amada e Feliz, saúda Isabel. Não pode senão encher de Alegria o mundo de Isabel, que irrompe naturalmente num hino de louvor, acrescentando mais umas palavras à oração da «Ave-Maria», iniciada pelo Anjo: «Ave [Maria], cheia de graça, o Senhor é contigo», disse o Anjo (Lucas 1,28). Acrescenta agora Isabel: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre [Jesus]» (Lucas 1,42), e aponta logo a seguir Maria como «Mãe do meu Senhor» (Lucas 1,43), desvelando o seu nome grande de «Mãe de Deus», começo da «[Santa Maria], Mãe de Deus».

5. A segunda joia da Escritura Santa, que hoje nos é dado contemplar, é o texto singular da profecia de Miqueias 5,1-4, que começa: «E tu, Belém de Éfrata, pequena entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que será o governador (môshel) de Israel» (Miqueias 5,1). E termina, afirmando: «E ele será a Paz!» (Miqueias 5,4).

6. Postando-se na esteira de luz de Isaías, Miqueias vê também que vai nascer um mundo novo. Mas de forma diferente do citadino Isaías, o camponês Miqueias não vê o mundo novo provir do Palácio ou do Templo da capital. Do Palácio e do Templo, do Rei e dos Sacerdotes, o humilde Miqueias apenas vê sair exploração, opressão, opulência, mentira e violência. É por isso que Miqueias critica asperamente os grandes da Capital que esbulham o povo, cortando a sua carne aos pedaços, e metendo-a na panela (Miqueias 3). Por isso, quando Miqueias ousa sonhar e vislumbrar um mundo novo, não é para a Capital que ele olha, mas para a província. E o condutor deste mundo novo não é um Rei nem um filho de Rei, mas um môshel, um contador de histórias ou de parábolas (meshalîm, sing. mashal), portanto, um guia sábio, simples e direto e penetrante, como Jesus, que guiará o mundo com o sabor do sol e do sal da sua humilde sabedoria. Genial esta avenida de sentido que atravessa as Escrituras Santas: Miqueias canta um môshel, um contador de histórias e de parábolas, como condutor de um mundo novo; os Evangelhos apresentam Jesus, que fala apenas em parábolas, e sem parábolas nada lhes falava (Mateus 13,34; Marcos 4,34). E nós sabemos bem que Jesus não nos guia com exércitos e carros de combate, leis, polícia, alfândega ou pesados impostos, mas com a brancura dos lírios do campo e a inocente alegria dos pássaros do céu! É por isso que Miqueias evita Jerusalém, e se volta para Belém. Os Evangelistas Mateus e Lucas saberão ler muito bem esta preciosa indicação de Miqueias.

7. A terceira joia é o texto da Carta aos Hebreus 10,5-10, em que Cristo supera ao mesmo tempo o sacerdócio antigo e os sacrifícios rituais da antiga liturgia do Templo. Cristo é o novo Sumo-Sacerdote que inaugura um culto novo, oferecendo-se a si mesmo ao Pai, por nós, para nós. Nós somos do tempo, não das coisas e dos animais, mas da pessoa.

8. Enfim, o Salmo 80, com o nosso desejo expresso de ver o rosto de Deus: «Mostrai-nos, Senhor, o vosso rosto, e seremos salvos!». E o Natal do Senhor ali tão perto!

 

Senhora da Visitação,

Que corres ligeira sobre os montes,

Vela por nós,

Fica à nossa beira.

É bom ter a esperança como companheira.

 

Contigo rezamos ao Senhor:

 

Dá-nos, Senhor,

Um coração sensível e fraterno,

Capaz de escutar

E de recomeçar.

 

Mantém-nos reunidos, Senhor,

À volta do pão e da palavra.

Ajuda-nos a discernir

Os rumos a seguir

Nos caminhos sinuosos deste tempo,

Por Ti semeado e por Ti redimido.

 

Ensina-nos a tornar a tua Igreja toda missionária,

E a fazer de cada paróquia,

Que é a Igreja a residir no meio das casas dos teus filhos e das tuas filhas,

Uma Casa grande, aberta e feliz,

Átrio de fraternidade,

De onde se possa sempre ver o céu,

E o céu nos possa sempre ver a nós.

 

António Couto


E NÓS QUE DEVEMOS FAZER?

Dezembro 15, 2018

1. Como tivemos oportunidade de ver e de sentir, o Evangelho do Domingo II do Advento (Lucas 3,1-6) rasga este mundo ao meio de forma clara e impiedosa. Diz o narrador, com a precisão do bisturi, que a Palavra de Deus passa ao lado dos senhores deste mundo, e cita Tibério César, Pilatos, Herodes Antipas, Filipe, Lisânias, Anás e Caifás, e nós podemos sempre atualizar esta lista, incluindo nela outros nomes e o nosso também. Aí está o golpe a sangrar do bisturi de dois gumes que é a Palavra de Deus (Salmo 149,6; Juízes 3,16-22; Hebreus 4,12). Então, a Palavra de Deus passa ao lado deste mundo rico e poderoso, autorreferencial, impiedoso, insensível e indiferente, e, para espanto nosso, vai cair sobre um pobre, João Batista, que não habita em palácios, mas no deserto! Com esse bisturi da Palavra, João Batista pode sempre limpar (João 15,3) o silvado que nos enche os ouvidos, lavar as gorduras que embotam o nosso humano coração e desfazer, com o martelo pneumático, o pedregulho que petrifica o nosso quotidiano.

2. Aí está, então, no Evangelho deste Domingo III do Advento (Lucas 3,10-18), outra vez João Batista em cena, irrompendo agora com o bisturi da Palavra direto aos ouvidos dos homens deste tempo, ouvidos obstruídos por mato e por silvas, anunciando que o tempo está maduro para limpar a eira e recolher o trigo, que a hora é de frutos novos!

3. «E nós que devemos fazer?» (Lucas 3,10.12.14), perguntam as multidões, os publicanos, os soldados. Perguntamos nós também. Responde João Batista, que acaba de abrir caminho por entre o mato e as silvas que obstruem o caminho que vai dos nossos ouvidos até ao nosso coração empedernido: vós não vos canseis de dar, não roubeis, não pratiqueis a injustiça, não façais violência! Amai! Reparemos que todos os frutos de conversão que João Batista menciona e reclama se referem sempre ao nosso comportamento para com o próximo. Fica claro que a conversão, isto é, o nosso voltar-se para Deus, passa sempre pelos nossos gestos para com o próximo, nomeadamente pela partilha para além do impensável. Se eu tenho duas túnicas, e o meu próximo nenhuma, devo dar-lhe uma. Fica então claro que, nesta nossa sociedade, em que poucos têm muito, muitíssimo, quase tudo, e os outros nada, andamos a brincar com o Evangelho!

4. Mas este verbo «partilhar» é terrível. Sem darmos por isso, é a última palavra que queremos ouvir. Na verdade, «partilhar» desvenda e despoja-nos da nossa falsa boa vontade, da nossa generosidade virtual, do nosso vão sentimentalismo religioso, enfim, da nossa hipocrisia. Partilhar não é «depositar» nos outros apenas o supérfluo, as sobras. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Efésios 5,2), por mim (Gálatas 2,20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre. Mas João Batista, verdadeiro guardião da fronteira entre este mundo que passa e o mundo que vem, anuncia também uma Presença nova, a d’Aquele-Que-Vem, com o Espírito, que dá a vida verdadeira: ei-lo que vem, o noivo, o esposo, aquele de quem eu, diz João Batista, não tenho o direito nem o poder de desatar a correia da sandália!

5. Desatar a correia da sandália. Não é de um simples gesto de humildade que se trata. A sandália leva-nos para o campo do direito de posse e também do direito matrimonial. Basta ler o Livro do Deuteronómio 25,5-9 sobre a Lei do Levirato e o Livro de Rute 4,7-10 acerca do casamento de Booz com Rute. O noivo, que é o primeiro a ter o direito de desposar a noiva, se quiser prescindir desse direito em favor do segundo, tira a sua própria sandália (ou é-lhe retirada) e entrega-a ao segundo na ordem do direito. Era esta a prática do direito matrimonial no antigo Israel. João Batista não pode desatar a sandália daquele que tem o direito à noiva. Só este é que é o noivo, o esposo. João Batista não é o noivo, mas indica-o. Ei-lo que está a chegar! O esposo é Cristo. E a esposa é do esposo. A hora é de alegria, é de amor, é de frutos de alegria e de amor!

6. Portanto, «Alegrai-vos sempre no Senhor!», porque «o Senhor está próximo!», grita de alegria o Apóstolo Paulo aos ouvidos dos cristãos de Filipos (Filipenses 4,4-7). E a lição é para nós também.

7. E o Profeta Sofonias (3,14-18) mantém alta a tonalidade festiva: «Rejubila, filha de Sião!,/ Solta gritos de alegria, Israel!»,/ «porque o Senhor está no meio de Ti!». Também este intenso convite é para nós, hoje, e deve ser vivido por nós, hoje e aqui, reunidos em assembleia litúrgica festiva, que confessamos uma e outra vez: «Ele está no meio de nós!».

8. Sempre em tom de festa e de alegria, o Salmo Responsorial, hoje um hino de louvor retirado de Isaías 12,3-6, deixa a nossa alma cheia de canções, fazendo-nos repetir (e nós repetimos o que amamos): «Povo do Senhor, exulta e canta de alegria!», ou «Exultai de alegria, porque está no meio de vós o Santo de Israel!». Sim, o povo de Deus, a sua Igreja Una e Santa, vive da música de Deus, cantando com um dos mais belos versos da inteira Escritura: «Minha força e meu canto Yah!» (Salmo 118,14; Isaías 12,2; cf. Êxodo 15,2). Yah de YHWH, como quando cantamos «Alelu-yah!» [= Louvai Yah], louvai Deus, o nosso Deus, Aquele que está no meio de nós, hoje e sempre, operando maravilhas.

9. Por tudo isto, e não é pouco, este Domingo III do Advento é chamado «Domingo laetare», «Domingo da alegria». Que o seja de verdade nos nossos corações. Deixemo-nos, então, atravessar pela Alegria, e sintamos bem fundo, para além da capa do nosso sentimentalismo religioso, o bisturi da Palavra de Deus e o martelo pneumático do Espírito.

 

São estes os caminhos do Advento,

cheiinhos do vento do Espírito,

que derruba as folhas secas das árvores,

e nos faz ver

que somos todos como a erva,

e a nossa glória não é mais do que a flor da erva.

Mas seca a erva e murcha a flor,

e nós passamos.

 

Sim, estamos de passagem.

Mas sentimos no rosto,

ou talvez no coração,

a tua aragem mansa,

que nos enche de paz e confiança.

 

O Advento é uma escola de esperança

e de oração,

de coragem e de alento.

O Advento é uma viagem

até ao nascimento

do menino de Belém,

lá, e dentro de nós também.

 

António Couto

 


UM CAMINHO DIREITINHO AO CORAÇÃO

Dezembro 8, 2018

1. Sempre considerei o texto de Lucas 3,1-6, que constitui a passagem do Evangelho que temos a graça de ouvir neste Domingo II do Advento, como uma das páginas mais admiráveis, e, ao mesmo tempo, mais implacáveis que me vieram ter à mão. À primeira vista, parece que o narrador pretende apenas situar as principais figuras e os principais acontecimentos da salvação bem no coração da história e da geografia humanas. É assim que o vemos traçar com rigorosa precisão a vinda da Palavra de Deus sobre João Batista, no deserto, no 15.º ano do império (hêgemonia) de Tibério (Lucas 3,1). Como Tibério reinou de 14 a 37, o 15.º ano do seu governo corresponde, segundo o cálculo comum, ao ano 28-29, ou, segundo o cálculo siríaco, ao ano 27-28, sempre de outono a outono.

2. Se a pretensão do narrador fosse apenas a de situar as figuras de João Batista e, sobretudo, Jesus, no centro da história de então, bastava a referência precisa que faz a Tibério. Mas o narrador acrescenta-lhe quatro nomes, que têm a ver com a divisão do território do reino de Herodes o Grande (37-4 a. C.): Pôncio Pilatos, governador romano da Judeia (26-36 d.C.), que condenará Jesus à morte na cruz (Lucas 23,24), como recitamos no Credo; Herodes Antipas, responsável pela prisão e decapitação de João Batista (Lucas 3,20; 9,9), e que, enquanto tetrarca da Galileia (4 a.C-39 d.C.), tem também jurisdição sobre Jesus (Lucas 13,31), sendo esse o motivo pelo qual Pilatos lhe enviará Jesus (Lucas 23,6-12). Estas duas figuras estão diretamente ligadas à morte violenta de Jesus e de João Batista. As menções de Filipe, tetrarca da Itureia e da Traconítide, regiões que se estendiam a norte e oriente do Mar da Galileia, e de Lisânias, tetrarca de Abilene, que se situava na Beqaa libanesa, parecem servir para mostrar que a história de Jesus e a salvação que Ele traz têm a ver, não apenas com os hebreus, mas com todos os povos, até os mais insignificantes, hoje diríamos, com as periferias. Os nomes de Anás e Caifás, sumos-sacerdotes de 5 a.C. a 15 d.C. e de 18 a 36 d.C., respetivamente, trazem para a cena o poder religioso judaico, que se escandalizou com o comportamento de Jesus e solicitou a sua condenação à morte.

3. Ora bem, é este mapa do mundo civil e religioso que é aberto ao meio de forma clara e impiedosa pela Palavra de Deus (rhêma Theoû) que veio como um acontecimento (egéneto) sobre João Batista, no deserto (Lucas 3,2). Então, recebendo a página de outra maneira, a mais intensa, o elenco dos nomes dos grandes do mundo de então não traduz tanto a pretensão do narrador de fazer história. Em vez disso, com a precisão do bisturi, quer dizer-nos que a Palavra de Deus passa ao lado dos senhores deste mundo, e cita Tibério César, Herodes Antipas, Filipe, Lisânias, Anás e Caifás, e nós podemos sempre atualizar este elenco, incluindo nele outros nomes e o nosso também. Aí está o golpe a sangrar do bisturi de dois gumes que é a Palavra de Deus (Salmo 149,6; Hebreus 4,12). De forma grandemente sintomática, a Palavra de Deus passa ao lado deste mundo rico e saciado, poderoso e religioso, impiedoso e insensível, e, para grande espanto nosso, vai cair sobre um pobre, João Batista, que não habita em palácios, mas no deserto! E, tal como na primeira página do Livro do Génesis, a Palavra de Deus dita e feita veio (wayhî TM; egéneto LXX) sobre o caos (Génesis 1,3), ordenando-o e imprimindo-lhe um sentido, sendo depois ordenado ao homem que continuasse essa tarefa, aqui está um novo sentido imprimido à caótica história humana, sintomaticamente não pelos ricos e importantes, mas pelos pobres, e também não nas capitais, mas nas periferias, no deserto!

4. No deserto nada é obra das mãos do homem. Nada é idolátrico, portanto. É tudo obra das mãos de Deus. Nova criação à vista, onde irrompe outra vez a voz de Deus: uma voz que nunca se ouviu, um silêncio que nunca se calou! Caminhos novos, retificados, plenificados. Pura engenharia divina. A salvação de Deus ao alcance de todos. Universalidade. É significativo que, ao contrário de Mateus 3,3, de Marcos 1,3 e de João 1,23, que citam apenas Isaías 40,3, Lucas alarga a citação a Isaías 40,3-5, para incluir que «toda a carne verá a salvação de Deus». «Toda a carne», isto é, toda a humanidade. Como habitualmente, Lucas é universalista e missionário (Evangelho missionário), e quer que a voz criadora de Deus desenhe caminhos novos para todos, retina em todos os ouvidos e leve a salvação a todos os corações.

5. Este Domingo II do Advento serve-nos também a delícia de Baruc 5,1-9, isto é, todo o Capítulo 5 do Livro deuterocanónico de Baruc. Baruc passa por ser o secretário de Jeremias. Mas o Livro de Baruc, só conhecido em grego, é tardio. E canta, de forma esplendorosa, a cidade de Jerusalém personificada como Esposa e como Mãe. Esposa de Deus, e como tal maravilhosamente vestida e adornada, e como Mãe dos filhos de Deus, que regressam festivamente a Casa, vindos dos quatro cantos do mundo, unidos e reunidos, livres e felizes, saídos de todas as opressões, de todos os exílios, de todas as orfandades.

6. Por detrás desta Esposa bela e Mãe radiante, pode ver-se em filigrana a Noiva do Apocalipse, bela como uma Esposa adornada para o seu Esposo, a Igreja nossa Mãe. No texto de Baruc, esta Esposa e Mãe recebe um nome novo, dado por Deus. Quando é Deus a dar o nome, isso significa criar: nova criatura, dileta, imagem perfeita de Deus, filha do amor, mãe do amor. Nós, que formamos esta Igreja, Esposa bela e Mãe radiante, não podemos hoje deixar de cantar bem alto a nossa gratidão e a nossa alegria. Impõe-se ainda que façamos da nossa Igreja local, da nossa Paróquia, onde nos reunimos, «a Casa carinhosa e acolhedora de Deus no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas», para o dizer com as palavras belas de S. João Paulo II, na Exortação Apostólica Christifideles laici [30 de Dezembro de 1988], n.º 26), que alguns anos antes já tinha dito, no mesmo sentido, que a vocação da paróquia «é a de ser a casa de família, fraterna e acolhedora» (Exortação Apostólica Catechesi tradendae [16 de Outubro de 1979], n.º 67).

7. Para dizer esta alegria filial, batismal, temos de cantar que «o Senhor fez maravilhas em favor do seu povo». É o Salmo 126, o canto do regresso a Casa, de um sonho feliz, da estação das canções e das colheitas. Verdadeiramente Deus cuida de nós. O Canto ritmado deste Salmo serve para nos abrir bem os olhos do coração para vermos bem as inumeráveis maravilhas com que Deus enche os nossos caminhos todos os dias. Entre a sementeira e a ceifa, entre a dor e a alegria, o inverno e a primavera, a semente não erra e não mente. Segue o seu curso natural. Suavemente. Aí está, portanto, outra vez a jubilosa procissão dos exilados! E nós, extasiados, como quem sonha, a boca cheia de riso e os lábios de canções.

8. E aí está o princípio da Carta de S. Paulo aos Filipenses (1,4-6.8-11). Filipos foi a primeira comunidade cristã fundada por Paulo em solo europeu, aí pelo ano 49 ou 50. Quanta alegria, quanta ternura, quanto amor, quanta sensibilidade cristã perpassa esta bela página de São Paulo. Deliciemo-nos. Ser cristão, filho de Deus, membro desta Igreja Esposa e Mãe, é deliciar-se e ser delicioso. Este é o caminho novo que urge abrir direitinho ao nosso coração e ao coração da humanidade.

O Senhor do Advento

É Aquele-que-Vem

Nascer em Belém,

Bater à nossa porta,

Pedir ao nosso coração

Um bocadinho de pão.

 

Tão pouco e tanto

Nos pede Jesus,

E para nosso espanto,

E encanto nosso,

O Filho de Maria

Vem vestido de irmão nosso

De cada dia.

 

Ele anda por aí,

Ao frio e ao calor,

Rico e pobrezinho,

Nosso Senhor.

 

Vem, Menino,

Senhor do mundo,

Do sol e da lua,

Bate à minha porta,

Entra em minha casa,

E que, por graça,

Entre eu também na tua.

 

António Couto


«CHAÎRE» MARIA!

Dezembro 7, 2018

1. «Fazendo memória da Toda Santa, imaculada, sobrebendita, gloriosa Senhora nossa, Mãe de Deus e Sempre Virgem Maria, juntamente com todos os Santos, consagramo-nos nós e toda a nossa vida a Cristo Deus». Assim se conclui, no rito bizantino, a oração que abre a celebração deste Dia, à qual a assembleia responde: «a Ti, Senhor!». É o «fiat», o «faça-se» dito por Maria (Lucas 1,38), a Serva do Senhor, a ecoar também no nosso coração e a brotar dos nossos lábios. É o eco daquele «faça-se» de Deus na primeira página da Escritura Santa a ecoar no coração de Maria e no nosso também. É aquele «Sim» imenso que atravessa as primeiras 452 palavras da Escritura Santa (Génesis 1,1-2,4a), onde não se lê um único «Não». «Tudo, na verdade, foi feito pelo Verbo» (João 1,3), «n’Ele foram criadas todas as coisas» (Colossenses 1,16), e o Verbo incarnado, Jesus Cristo, no dizer do Apóstolo, «foi sempre Sim, e nunca não» (2 Coríntios 1,19). Aí está a filigrana que faz vibrar a melodia e mostra a verdadeira harmonia da Escritura. Imensa sintonia a ecoar hoje em tantos corações! As partituras desta música divina vêm hoje de Lucas 1,26-38, Génesis 3,9-15.20, Efésios 1,3-6.11-12 e do Salmo 98.

2. É bom sabermos e sentirmos que as Igrejas do Oriente e do Ocidente, embora divididas entre si, nos dias 8 e 9 de Dezembro (8 no Ocidente e 9 no Oriente), nove meses antes da Festa da sua Natividade (8 de Setembro), juntam as suas vozes em maravilhosa harmonia para celebrar a Mãe de Deus no singular privilégio da Conceição Imaculada da sua humanidade.

3. Bem sabemos, além disso, que os Coptos dedicam a Maria o inteiro mês de Kiahq, que coincide mais ou menos com o nosso mês de Dezembro, e os Caldeus, os Antioquenos e os Maronitas celebram, também nesta altura do ano, e durante pelo menos quatro Domingos, o tempo do chamado Sûbbarâ ou «Anunciação» ou «Evangelização», Vinda de Deus ao nosso mundo, notícia após notícia, para abrir as nossas trincheiras e fazer nascer em nós um mundo novo, um cântico novo.

4. «Onde estás?», pergunta o Deus-Que-Vem por amor ao encontro da sua criatura dileta (Génesis 3,9). «Tive medo e escondi-me», respondemos nós, amedrontados (Génesis 3,10). A narrativa exemplar de Génesis 3, que hoje lemos, desvenda todas as nossas inúteis estratégias de defesa, e faz-nos ver como nós nos escondemos de nós mesmos e de Deus, e como alijamos facilmente as nossas culpas sobre os outros. Correto, limpo, terapêutico, salvador, era assumirmos e confessarmos humildemente as nossas culpas. Mas não. Fugimos, escondemo-nos de nós, e respondemos: «Foi a mulher», «foi aquele», «foi aquela», e, em última análise, «foste Tu, foste Tu, Deus» (Génesis 3,12), porque foste Tu que me deste a maravilha de um irmão, de uma irmã, e foi esse irmão dado por Ti, essa irmã dada por Ti, que me deu a comer aquele fruto, fruto de um furto! És Tu, portanto, e em última análise, o culpado. Aí estamos nós a fugir de nós mesmos, e a acusar os outros! E se não assumimos as nossas culpas, como podemos corrigir os nossos erros, e como podemos chegar a descobrir a realidade humana e divina do perdão? Sim, porque quando nos escondemos de Deus, estamos também a esconder Deus e os seus dons, a Alegria, o Amor, o Perdão.

5. Sim, esta história tem a ver connosco. Estando o Rabbi Shneur Zalman (1745-1812) preso em S. Petersburgo, entrou na sua cela o comandante da guarda, e pôs-se a conversar com ele sobre assuntos diversos. No final, perguntou: «Como se deve interpretar que Deus Omnisciente pergunte a Adam: “Onde estás?”». «Você acredita», respondeu o Rabbi, «que a Escritura é eterna e que diz respeito a todos os tempos, a todas as gerações e a todas as pessoas?». «Sim, acredito», disse o comandante da guarda. «Então», respondeu o Rabbi, «em cada tempo Deus pergunta a cada homem: “Onde estás no teu mundo? Dos dias e dos anos que te foram atribuídos, já passaram muitos: entretanto, até onde é que tu chegaste no teu mundo?”. Deus disse, por exemplo: “Vê, já há 46 anos que andas aqui. Onde te encontras?”». Ao ouvir o número exato dos seus anos, o comandante sentiu dificuldade em controlar-se, pôs a mão no ombro do Rabbi, e exclamou: «Bravo!». Mas o seu coração tremia.

6. É usual dizer-se que esta conhecida página do Livro do Génesis narra a entrada do mal no coração do homem e no mundo. Mas do que se trata mesmo é da importância da relação do homem com Deus, e diz-nos que o mal entra no mundo quando o homem quebra esta relação e se desliga de Deus. Por isso também, daí para a frente, a Escritura Santa ocupa-se em mostrar que a resposta a dar ao mal não é apenas o bem, mas o santo. Entenda-se: não o homem fechado sobre si, autossuficiente e autorreferencial, mas completamente aberto e voltado para Deus, de quem por amor tudo recebe e se recebe. E completamente voltado para os outros, a quem tudo entrega por amor. Como Maria, a figura deste luminoso Dia.

7. Em perfeita sintonia, aí está o Apóstolo a dizer o fundamental: «que Deus nos escolheu para sermos santos» (Efésios 1,4) e para nos dar, através de Jesus Cristo, a nossa verdadeira identidade, a filiação divina (hyiothesía) (Efésios 1,5). Entrando assim, por graça, na casa de Deus (Efésios 4,19), andaremos sempre na sua presença. Ele é o Deus Santo que nos santifica. Escutemos também a melodia admirável em que o Apóstolo nos faz entrar na Carta aos Romanos 15,4-9. Como seria belo um mundo pautado por uma verdadeira fraternidade em que todos vivêssemos sob o impulso e o alento carinhoso e criador de Deus. Na verdade, todos respiramos o mesmo alento, que o texto grego diz com o belo termo composto homothymadón (Romanos 15,6), que junta homós [= mesma] e thymós [= alma], sendo que thymós deriva de thýô [= soprar]. E que mundo maravilhoso surgiria, rompendo a crosta do egoísmo e da dureza de coração, se «nos acolhêssemos uns aos outros, como Cristo nos acolheu a nós» (Romanos 15,7). Aí está então a comunidade humana irmanada e reunida, porque todos recebemos de Deus o mesmo alento, o mesmo sopro criador (Génesis 2,7), e com uma só boca (en henì stómati) e a uma só voz cantamos os louvores do nosso Deus (Romanos 15,6), autor de tantas maravilhas (Êxodo 15,11)! Esta linguagem e esta harmonia enchem por inteiro a comunidade primitiva (Atos 1,14; 2,46; 5,12).

8. O ícone desta santidade, neste mundo, é Maria, no grande texto da Anunciação (Lucas 1,26-38). Vale a pena contemplá-la demoradamente, como fazem as Igrejas do Oriente e do Ocidente. Ao contrário de nós, Maria, visitada por Deus, não foge, não se esconde de si mesma, não se esconde de Deus, não esconde Deus na sua vida. Tinha consagrado a Deus toda a sua vida, a sua virgindade. Não sendo usual no mundo judaico do seu tempo, esta maneira de viver está, porém, solidamente documentada por parte de homens e mulheres. Ao contrário do homem do Génesis e desta sociedade em que vivemos, Maria não se esconde de Deus nem esconde Deus. Expõe-se, na sua verdade e simplicidade, ao imenso clarão de Deus. É assim que se expõe a Deus e que expõe Deus, recebendo e aceitando com amor intenso a sua nova Vocação que lhe vem de Deus. Maria vai ser a Mãe, não de um filho, mas do Filho há muito ansiado, esperado e anunciado nas páginas da Escritura Santa Antiga. É o Filho de Deus, totalmente consubstancial a Deus, e é o Filho de Maria, totalmente consubstancial à sua Mãe. Santa Maria, Mãe de Deus.

9. Por isso, «Alegra-te, Maria» [= «Chaîre Maria»; «Ave Maria»], «não tenhas medo», «o Senhor está contigo» (Lucas 1, 28 e 30). Alguns anos mais tarde, as mulheres que vão ao túmulo de Jesus ouvirão também a mesma música divina: «Alegrai-vos», «não tenhais medo» (Mateus 28,5 e 9). E nós, Assembleia Santa que hoje se reúne para celebrar os mistérios do seu Senhor e também de Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, estamos também permanentemente a ouvir esta divina melodia. Portanto, irmãos amados em Cristo, Alegrai-vos, não tenhais medo, o Senhor está no meio de nós!

10. «Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua Palavra» (Lucas 1,38). Deus chama, mas não impõe. A Maria, e a cada um de nós. Podemos sempre aceitar Deus ou esconder-nos de Deus. Deixar Deus entrar, ou fechar-lhe a porta. Maria aceitou, e, por isso, todas as gerações a proclamarão Bem-aventurada (Lucas 1,48). É o que estamos hoje e aqui a fazer: Feliz és tu, Maria, pioneira de um mundo novo, porque acreditaste em tudo quanto te foi dito da parte do Senhor (Lucas 1,45)! Feliz também aquele que ouve a Palavra de Deus e a põe em prática (Lucas 11,28)!

11. Memorial desta beleza incandescente é a Basílica da Anunciação, em Nazaré. Esta grandiosa Basílica, em três planos, foi inaugurada em 25 de Março de 1969, e foi visitada, ainda as obras estavam em curso, em 1964, pelo Papa Paulo VI. Escavações feitas antes desta grandiosa construção puseram a descoberto, e podem ver-se ainda hoje, os majestosos pilares de uma Catedral levantada em 1099, pelo príncipe cruzado Tancredo, bem como o pavimento em mosaico de uma igreja bizantina, que pode ser datada do ano 450. Mas, descendo mais fundo, até às entranhas da atual Basílica, acede-se à Gruta da Anunciação, sob cujo altar se lê a inscrição Verbum caro hic factum est [«Aqui o Verbo se fez carne»], e a outros lugares de culto antigos, talvez já do século II. Numa grafite antiga foi encontrada a gravação XE MAPIA, abreviação de Chaîre Maria, a primeira Ave-Maria da história.

12. A uns 200 metros para nordeste encontra-se a Igreja da Nutrição, que guarda a memória de S. José e dos «irmãos de Jesus» do ramo de José, muito zelosos dos seus direitos, tradição bem conhecida na Igreja primitiva, a partir do século II, e fechados aos gentio-cristãos pelo dogma da habdalah [= separação entre os judeo-cristãos e os cristãos da Grande Igreja]. Nesse sentido, é sabido que em 570 impediram o Anónimo de Piacenza de visitar a «casa de José», e, em 614, alistaram-se com os Persas de Cosroé, vindo ao de cima o seu zelo destruidor de igrejas «cristãs». Com a vitória de Heráclio, estes judeo-cristãos nazarenos levaram consigo as suas tradições sobre Nazaré e S. José, e ter-se-ão refugiado junto dos coptos egípcios. Logo a seguir, em 670, Arculfo já pôde visitar e descrever a casa de S. José em Nazaré. A descrição de Arculfo vê-se confirmada mais tarde, nas escavações do P. Viaud e de Fr. Benedetto Vlaminck, nos anos de 1890 e 1909-1910, e, mais tarde ainda, em 1970, pelo P. Bagatti.

13. Foi o Concílio de Basileia (1439) que sugeriu a definição do dogma da Imaculada Conceição, proclamado depois por Pio IX em 08 de Dezembro de 1854, através da bula Ineffabilis Deus. Note-se que o termo «conceção», na linguagem bíblica, indica a totalidade da existência. O velho orante do Salmo 71, olhando retrospetivamente para a sua vida de fidelidade e de amor, exclama extasiado: «Sobre ti me apoiei desde o ventre, desde as entranhas de minha mãe» (Salmo 71,6). Assim também, a existência de Maria está, desde o seu início, sob a proteção de Deus, marcada com o selo de Deus, não estando nunca sob o selo do pecado original, que mostra a existência humana marcada por um projeto alternativo ao de Deus, em que cada existência humana, eu, o meu pai, os filhos que aparecerão sobre a face da terra, queremos ser por nossas próprias forças «como deus, conhecedores do bem e mal» (Génesis 3,5).

14. Esta celebração da Mãe de Deus e nossa Mãe e Padroeira Principal de Portugal é um desafio imenso para o homem «em fuga» deste tempo, que se esconde de si mesmo, que continua a esconder-se de Deus, e que pretende esconder Deus, retirando-o da via pública e da vida pública. Atravessamos verdadeiramente a «noite do mundo» (Weltnacht), diz Martin Heidegger, onde «Cada um está sozinho no coração da terra/ atravessado por um raio de sol:/ e é logo noite», como bem escreve o escritor italiano Salvatore Quasimodo. Homem deste tempo às escuras, engessado, triste, exilado, escondido, anestesiado, volta para a Luz, reentra em tua casa, no teu coração despedaçado. Há de seguramente por lá haver ainda, caída no fundo da alma, uma lágrima dorida e uma mão de Mãe à tua espera!

 

Senhora de dezembro,

Maria, minha Mãe,

Passa hoje o dia da tua Imaculada Conceição.

 

Senhora de dezembro,

Dos dias frios e frágeis,

Dos passos firmes e ágeis,

Do coração que velava

À espera de quem te amava.

 

Assim te entregaste a Deus,

De coração inteiro,

Como um tinteiro

Todo derramado numa página.

 

Tu és a mais bela página de Deus,

A Deus doada, apresentada, dedicada,

Mãe da vida consagrada,

Imaculada,

Ensina-me a tua tabuada,

A tua nova alegria,

A luz do Evangelho que te aquece e alumia.

 

Eu te saúdo, Maria,

Neste dia da tua Imaculada Conceição.

Ave-Maria.

 

António Couto


PARA VÓS, SENHOR, ELEVO A MINHA ALMA!

Dezembro 1, 2018

1. «Para vós, Senhor, elevo a minha alma» (Salmo 25,1). Antífona do Cântico de Entrada que inaugura a celebração eucarística do Advento, do Ano litúrgico, do Ano inteiro. Aponta a atitude a assumir pela Assembleia fiel e orante: a oblação permanente, a oração constante. Para que esta atitude não fique esquecida, mas tome verdadeiramente conta de nós, as mesmas palavras são, em parte, repetidas no refrão do Salmo responsorial, que reclama também a confiança (bathah) em Deus. Extraordinário pórtico de entrada no Advento e no novo Ano litúrgico. Belíssima forma de viver, elevando para Deus a nossa vida: a oração é a nossa vida! A nossa vida em ascensão e oração permanente, sacrifício de suave odor, incenso puro subindo para o nosso Deus. Sempre. O Evangelho dirá com a mesma energia e alegria: «Erguei-vos e levantai a cabeça» (Lucas 21,28). É o gesto do justo justificado por Deus (Job 22,26). Página em branco, Primeira e Última, que podemos apresentar a Deus neste início de Advento e de Ano litúrgico. De Deus é a palavra e a escrita que não passa.

2. «Orando em todo o tempo», diz, a terminar, a lição do Evangelho deste Primeiro Domingo do Advento (Lucas 21,25-28 e 34-36). «Orar em todo o tempo» significa não se deixar enterrar na lama dos caminhos banais e fúteis deste tempo, de qualquer tempo, e que o Evangelho mostra que a busca desenfreada do sucesso e das falsas soluções da devassidão, da embriaguez e das preocupações da vida (Lucas 21,34) é uma teia que nos enreda e não nos deixa ver bem, belo e bom. Andamos sempre tão atarefados com inúmeros afazeres, campos, bois, negócios, casamentos, que ficamos com o «coração pesado» e insensível, incapaz de ver o Filho-do-Homem-que-vem (Lucas 21,27), a toda a hora, nos nossos irmãos mais pequeninos! Ora, o Advento é o Filho-do-Homem-que-vem, para que nós o acolhamos. Se o acolhermos, saímos fora da teia dos nossos afazeres que nos sufoca, o penúltimo, e entramos no mundo maravilhoso do Último, do Amor, da Liberdade, que rompe as nossas cadeias.

3. Sinais no sol, na lua, nas estrelas, sobre a terra, convulsões no mar, medos vários, são acontecimentos que o Antigo Testamento refere a propósito do «Dia do Senhor», com a intervenção do próprio Deus (Isaías 13,6-22; Joel 2,1-11). O facto de agora, no Evangelho que estamos a ler, tais acontecimentos aparecerem conjugados com a Vinda do Filho do Homem é a indicação clara de que esta Vinda é a manifestação de Deus (1). Além disso, os acontecimentos assinalados mostram ainda que o mundo presente não é definitivo, mas transitório, e abrem caminho para a nova criação, o novo céu e a nova terra (Apocalipse 21,1) (2). Mas é ainda percetível a nossa habituação à ordem fixa do mundo, em que nos habituámos a confiar, vindo ao de cima o desconforto sentido e o tom de angústia e confusão que as mudanças assinaladas nos trazem (Lucas 21,26) (3). E fica também a descoberto que devemos aprender a confiar, não nestas velhas realidades passageiras, mas no Dia novo que aí vem (4).

4. Mas que os acontecimentos assinalados abrem, não para vias negativas, mas para perspetivas de salvação, pode ver-se na atitude que Jesus indica aos seus discípulos: «Quando estas coisas começarem a acontecer, erguei-vos e levantai a cabeça, porque está próxima (eggízei) a vossa libertação (apolýtrôsis)» (Lucas 21,28). A hora é, portanto, de libertação. E note-se que Lucas usa o termo «libertação» sobretudo para retratar a nova situação de um prisioneiro a quem foram retiradas as cadeias, e a quem é concedida a liberdade. Quer isto dizer que os discípulos de Jesus não devem estar mais presos, amarrados, às situações terrenas, sempre difíceis, instáveis e transitórias, mas podem entrar «na liberdade da glória dos filhos de Deus» (Romanos 8,21). A proximidade anotada é a proximidade do Reino de Deus que, pondo em causa o nosso arco instintivo e desiderativo e as nossas amarras autorreferenciais, nos liberta, fazendo irromper em nós a gratuidade e o amor assimétrico. Esta proximidade faz-se presente em cada geração. E é por isso que, neste tempo novo, tudo é urgente e decisivo, não por ser breve, mas por estar grávido de oportunidades salvíficas.

5. O escritor argentino Jorge Luis Borges deixou-nos versos densos como estes, acentuando a importância e a intensidade de cada momento da nossa vida a não desperdiçar: «Não há um instante que não esteja carregado como uma arma»; «Em cada instante o galo pode ter cantado três vezes»; «Em cada instante a clépsidra deixa cair a última gota». E o poeta brasileiro Vinícius de Moraes escreveu assim num belíssimo poema: «A coisa mais divina/ Que há no mundo/ É viver cada segundo/ Como nunca mais». É assim, sempre vigilantes, amantes e esperantes, sempre à escuta e à espera de alguém, com Amor imenso e intenso, que rasga o próprio tempo, que devemos encher todos os nossos instantes, como se fosse a primeira vez, como se fosse a última vez. Tudo no Evangelho é decisivo: cada passo conta, cada gesto conta, cada palavra conta, cada copo de água conta!

6. Átrio de um tempo novo, habitado, «carregado» de justiça e de bondade. Obra de Deus no nosso mundo. E só dele. Obra terna, tenra e nova, como um «rebento» de um jovem casal ou de uma planta. Sinal de Primavera no meio da invernia e da lama em que nos vamos atolando, ensonados e enlatados, sem sequer darmos por isso. É, portanto, mesmo preciso que Ele venha e que nos acorde e nos levante da nossa letargia com novas pautas e novos acordes musicais! E que nos dê nomes novos a nós, aos nossos corações, às nossas cidades e aldeias, às nossas escolas, aos nossos hospitais, às nossas ruas! Dar nome é criar e recriar. Obra só de Deus. Extraordinária lição de Jeremias 33,14-16.

7. Paulo passa por Tessalónica (1 Tessalonicenses 3,12-4,2), ou pela nossa terra, e ensina-nos a levantar a nossa vida para Deus, para dele acolhermos o alento criador, e a rivalizarmos no pagamento das dívidas de amor que dia a dia vamos contraindo uns para com os outros. O paradigma, o modelo, o exemplo, é sempre o amor que Deus nos tem, e de que Paulo é testemunha qualificada. Há quem estranhe e pense mesmo que se trata de um mistério o facto de Paulo, quando fala de amor (agápê), quase não mencionar o nosso amor a Deus [apenas mencionado de passagem em Romanos 8,28; 1 Coríntios 2,9; 8,3; 16,22 (philéô); Efésios 6,24; 2 Tessalonicenses 3,5 e 2 Timóteo 3,4 (philéô)], para acentuar sobretudo o amor de Deus para connosco e o nosso amor para com o próximo. Na verdade, não é para estranhar, e muito menos se trata de um mistério. Na verdade, quer a Bíblia Hebraica quer o coração dos Evangelhos falam menos do nosso amor para com Deus, e muito mais do nosso amor para com o próximo e para com o estrangeiro e o inimigo! E não se trata de um amor que satisfaz o nosso desejo, mas da imitação do amor de Deus e de obedecer a um mandamento. Ora, Deus ama o desvalor e manda-nos amar como Ele ama. Então, a nossa resposta ao amor de Deus não consiste na redamatio ou retribuição a Deus do amor com que Ele nos ama, mas volta-se para a frente e traduz-se no amor ao outro, próximo, estrangeiro ou inimigo. Quer na Revelação patente no AT quer em Jesus, o amor ao próximo aparece como o lugar, o único lugar da epifania do nosso amor a Deus.

8. Os acordes do Salmo 25, que hoje cantamos, trazem à tona os rumos e os caminhos de Deus, que são sempre bondade, verdade, ternura e misericórdia – caminhos intransitivos, entenda-se –, que se vão insinuando mansamente dentro de nós, mais ou menos como deixou escrito, no seu Diário, com data de 23 de janeiro de 1948, o grande escritor francês George Bernanos: «Que doçura pensar que, embora ofendendo-o, não deixamos de desejar, desde o mais profundo santuário da alma, aquilo que Ele deseja».

9. Vem, Senhor Jesus! Vem, vem, que Te esperamos!

 

Como é fácil, Senhor Jesus,

Daqui, de ao pé da tua Cruz,

Avistar a paisagem do Advento,

Compreender-lhe a mensagem,

Respirar-lhe o alento.

 

Daqui, de ao pé da tua Cruz de Luz,

Sem dúvida o lugar mais alto do mundo,

Mais alto e mais profundo,

Vê-se bem, com toda a claridade,

Que a lonjura do Advento não é horizontal.

Eleva-se em altura.

Como a tua túnica tecida de Alto-a-baixo,

Vertical,

E sem costura.

 

Tu vens do Alto, Senhor.

Tu vens de Deus.

Tu és Deus.

Tu és o Justo

Que chove das alturas

Sobre a nossa humanidade sedenta e às escuras.

 

Vem, Senhor Jesus,

Alumia e rega a nossa terra dura,

Acaricia o nosso humilde chão

E modela com as tuas mãos de amor

Em cada um de nós

Um novo coração

Capaz de ver.

Capaz de Te ver

Nascer

Em cada irmão.

 

António Couto