SANTA MARIA, MÃE DE DEUS

Dezembro 30, 2022

Nm 6,22-27; Sl 67; Gl 4,4-7; Lc 2,16-21

1. Oito dias depois da Solenidade do Natal do Senhor, que a liturgia oriental designa significativamente por «a Páscoa do Natal», eis-nos no Primeiro Dia do Ano Civil de 2023, tradicionalmente designado como Dia de «Ano Bom», a celebrar a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus. A figura que enche este Dia, e que motiva a nossa Alegria, é, portanto, a figura de Maria, na sua fisionomia mais alta, a de Mãe de Deus, como foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, em 431, mas já assim luminosamente desenhada nas páginas do Novo Testamento.

2. É assim que a encontramos no Lecionário de hoje. Desde logo naquela menção sóbria, e ousamos mesmo dizer pobre (na riqueza espiritual que o termo contém), com que Paulo se refere à Mãe de Jesus, escrevendo aos Gálatas: «Deus enviou o seu Filho, nascido (genómenon) de mulher, nascido (genómenon) sujeito à Lei» (Gálatas 4,4). Duplo nascimento: nascido de mulher, isto é, como todos nós, nosso irmão em humanidade; nascido sujeito à Lei, isto é, membro do povo hebreu, a quem Deus tinha dado a sua Lei. Nesta linha breve e densa e, todavia, com uma repetição vocabular só aparentemente desnecessária, aparece compendiado o mistério da Incarnação, ao mesmo tempo que se sente já pulsar o coração da Mariologia: Maria não é grande em si mesma; é, na verdade, uma «mulher», verdadeiramente nossa irmã na sua condição de humana criatura. Não é grande em si mesma, mas é grande por ser a Mãe do Filho de Deus, e é aqui que ela nos ultrapassa, imaculada por graça, bem-aventurada e bem-aventurança, nossa mãe na fé e na esperança. Ela é a Mãe do Filho de Deus e filho seu. Para falar do nascimento de João, refere o texto, de forma um tanto ou quanto indeterminada, que Isabel «deu à luz um filho» (egénnêsen hyión) (Lucas 1,57). Mas para falar do nascimento de Jesus, o texto diz, de um modo todo particular, que Maria deu à luz «o seu filho o primogénito» (tòn hyiòn autês tòn prôtótokon) (Lucas 2,7). O facto desta designação de Jesus como «o primogénito» não significa que Maria tenha tido outros filhos depois dele, mas revela tão-só a sua singular consagração a Deus, como vinha referido no Livro do Êxodo 13,2: «Consagra-me todo o primogénito, aquele que abre o ventre materno, entre os filhos de Israel, dos homens e dos animais. Ele é meu». É por isso que ao episódio do Evangelho de hoje (Lucas 2,16-21) se segue imediatamente o episódio da «apresentação ao Senhor» (Lucas 2,21-22). Maria não é grande em si mesma; vem-lhe de Deus essa grandeza. Vem-lhe do facto de ser a Mãe deste Filho, seu e de Deus.

3. O Evangelho deste Dia de Maria guarda também uma preciosidade, quando Lucas nos diz que «todos os que tinham escutado as coisas faladas pelos pastores ficaram maravilhados, mas Maria guardava (synetêrei) todas estas Palavras (tà rhêmata), compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,18-19). Em contraponto com o espanto de todos os que ouviram as palavras dos pastores, Lucas pinta um quadro mariano de extraordinária beleza: «Maria, ao contrário, guardava todas estas Palavras, compondo-as no seu coração». Há o espanto e a maravilha que se exprimem no louvor e no canto, e há o espanto e a maravilha que se exprimem no silêncio e na escuta qualificada. Maria, a Senhora deste Dia, aparece a guardar com ternura todas estas Palavras, todos estes acontecimentos que falam e não esquecem. O verbo guardar implica atenção cheia de ternura, como quem leva nas suas mãos uma coisa preciosa. Este guardar atencioso e carinhoso não é um ato de um momento, mas a atitude de uma vida, uma vez que o verbo grego está no imperfeito, que implica duração. Como quando o povo de Deus reza confiante: «Guardai-nos e defendei-nos como coisa própria vossa».

4. O outro verbo belo mostra-nos Maria como que a compor, isto é, a «pôr em conjunto» (symbállô), a organizar, para melhor entender, e para melhor dar a entender. É como quem, com aquelas Palavras, compõe um Poema, uma Sinfonia, e se entretém a vida inteira a trautear essa melodia e a conjugar novos acordes de alegria. E é dito ainda, num pleonasmo único na Escritura Santa, que Maria «concebeu no ventre» (syllambánô en tê koilía) (Lucas 2,21). De Isabel apenas se diz que «concebeu» (syllambánô) (Lucas 1,24). Redundância. Música divina. O ventre de Maria em consonância com o «ventre das misericórdias do nosso Deus» (Lucas 1,78), causa da Luz que nas alturas se levanta e visita toda a gente, causa do Rebento que na nossa terra germina, que a nossa terra aquece e alumia, Jesus, filho de Deus e de Maria, a quem neste oitavo Dia é posto o Nome de Jesus, Nome vindo de Deus através do anúncio de Gabriel (Lucas 1,31). Na Escritura Santa, a Luz que no céu nasce e irradia, como uma estrela, e o Rebento tenro, que na nossa terra germina, apontam e são figura do Messias, e dizem-se com o mesmo vocábulo grego, anatolê (hebraico, tsemah).

5. Esta solicitude maternal de Maria, habitada por esta imensa melodia que nos vem de Deus, levou o Papa Paulo VI, S. Paulo VI, a associar, desde 1968, à Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a celebração do Dia Mundial da Paz. Hoje é já o 56.º Dia Mundial da Paz que se celebra, a que o Papa Francisco, no seguimento da dura experiência da luta nos últimos anos contra a pandemia, apôs o lema «Ninguém pode salvar-se sozinho». Só que à pandemia sucedeu, entretanto, a guerra absurda que assola violentamente uma parte da Europa e cujos estilhaços se fazem sentir em todo o continente e um pouco por toda a parte. Guerra absurda, porque não se trata de uma guerra entre dois exércitos para tal preparados e armados. Trata-se de um despejo da nojenta estupidez que nos habita sobre uma população humana pacífica, normal e sensata, que nada tem a ver com tamanha, incomensurável e incompreensível cegueira, que envergonha a inteira humanidade. Neste contexto, o suspiro humano pela paz transformou-se num grito imenso que há de com certeza atingir o céu. A paz é mais, muito mais do que a ausência de guerras. A paz é uma refeição saborosa, servida por Deus aos seus filhos. Na verdade, não temos sabido gerir como filhos e irmãos o pão nosso de cada dia, que em cada dia nos é dado. Daí que, do meio da guerra que a todos nos atinge, se levante outra vez este grito dorido pela paz. E é bom que não deitemos a perder esta oportunidade que Deus nos dá para tomarmos consciência de que estamos doentes e nos temos vindo a arrastar no lamaçal da banalidade, da indiferença e da equivalência, em que vale tudo e tudo vale o mesmo, talvez a mais grave doença que afeta a humanidade deste tempo sem fontes e sem horizontes. Na verdade, nesta «noite do mundo», em que domina a escuridão, literal na Ucrânia, e a nefasta atração pela morte, palpável na guerra, mas também nas já consideradas conquistas da liberdade, como sejam a interrupção voluntária da gravidez e a eutanásia, tudo nos aparece sem Deus, sem rosto e sem rumo, só com fumo, sem irmão, sem irmã, tudo à medida sem medida da hipertrofia do «eu», que julga poder dispor de uma soberania e autonomia ilimitadas, sem sequer nos apercebermos do número cada vez mais elevado de deserdados, abandonados, refugiados e velhinhos que já perderam a soberania e a quem já roubámos a autonomia e a liberdade, e que continuamos a atirar com disfarçada subtileza para o sótão das inutilidades.

6. Ao contrário, de Deus vem sempre um mundo novo, belo, maravilhoso. Tão novo, belo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).

7. O Salmo 67 é uma oração de bênção em forma de petição. Em termos técnicos, equivale a uma epiclese: não «eu te bendigo», mas «Deus nos bendiga». O nosso Salmo recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o singular, por assim dizer, «democratizando» a bênção, agora dirigida a todos, onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel.

8. Olhada por Deus com singular olhar de Graça foi Maria, também Pobre, também Feliz, Bem-aventurada, Santa Maria, Mãe de Deus, que hoje celebramos em uníssono com a Igreja inteira. Para ela elevamos hoje os nossos olhos de filhos enlevados.

9. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos os irmãos que Deus nos deu! E que Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe nos abençoe também. Amen!

Que Deus nos abençoe e nos guarde,

Que nos acompanhe, nos acorde e nos incomode,

Que os nossos pés calcorreiem as montanhas,

Cheios de amor, de paz e de alegria,

Que a tua Palavra nos arda nas entranhas,

E nos ponha no caminho de Maria.

O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.

O fiat que disseste, Maria, é de quem se fia

Num amor maior do que um letreiro.

Vela por nós, Maria, em cada dia

Deste ano inteiro,

Para que levemos a cada enfermaria,

A cada periferia,

Um amor como o teu, primeiro e verdadeiro.

António Couto


O MENINO E A SUA MÃE

Dezembro 29, 2022

Sir 3,2-6.12-14; Sl 128; Cl 3,12-21; Mt 2,13-15.19-23

1. Atravessamos ainda a Solenidade do Natal do Senhor, dado que esta Solenidade se prolonga durante oito dias (Oitava) até à Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, que se celebra no primeiro Dia de Janeiro.

2. O Natal do Senhor põe diante do nosso olhar contemplativo uma Família humilde e bela, Jesus, Maria e José, mas traz também consigo uma forte sensibilidade Familiar, tornando-se o tempo forte da reunião festiva das nossas Famílias. Estes dois acertos são importantes para se compreender a razão pela qual, no Domingo dentro da Oitava do Natal, quando existe, ou no dia 30 de dezembro, como sucede este ano em que nenhum Domingo existe entre o Natal e o Ano Novo, a Igreja celebre a Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José.

3. Os textos da Liturgia são outra vez preciosos. O Evangelho põe no nosso coração os últimos episódios do Evangelho da Infância segundo S. Mateus (2,13-15.19-23), habitualmente conhecidos por «Fuga para o Egito» e «Regresso do Egito à Terra de Israel». Na inteireza do texto que Hoje, por graça, nos é dado ler e escutar, vemos e ouvimos por quatro vezes a extraordinária e significativa locução «o Menino e a sua Mãe» (tò paidíon kaì tên mêtéra autoû) (Mateus 2,13.14.20.21), formando uma unidade inseparável. A expressão, fortíssima, surge no contexto de uma missão por duas vezes confiada em sonho a José pelo Anjo do Senhor, para que «tome consigo o Menino e a sua Mãe» e procure refúgio no Egito, ou que do Egito volte para a Terra de Israel, o que José executa pronta e silenciosamente, «tomando consigo o Menino e a sua Mãe», e encaminhando-se diligentemente para os destinos indicados. Esta forte vinculação do Menino à sua Mãe, e dos dois a José, que os deve tomar consigo e a seu cargo (paralambánô) traduz bem a união familiar que hoje, Dia da Sagrada Família, se celebra.

4. Mas o texto de Mateus guarda muitos outros tesouros. Desde logo, o facto de vermos Jesus a refazer a história de Israel e a nossa história também, tornando-se assim verdadeiro filho de Israel e da nossa humanidade dorida, hoje com a Ucrânia em primeiro plano. Desde pequenino, Jesus desce ao nosso chão e ao nosso coração, sofre as nossas raivas e violências, conhece a perseguição, o mundo dos exilados e dos refugiados, vive como clandestino e «descartado», como tantos dos nossos concidadãos de hoje e de todos os tempos. Como aqueles irmãos nossos que da África partem para a Europa sem documentação e atravessando o Mediterrâneo em frágeis e sobrelotadas embarcações, em condições sub-humanas, e que, se escaparem da intempérie marítima, são retidos na fronteira e atirados para a fome e para a miséria ou simplesmente para o lixo. Assemelha-se ainda a quantos da Europa de Leste e do Terceiro Mundo entram no Ocidente, e conhecem todos os cantos e esquinas da clandestinidade, da rejeição e da indiferença humana. Assim Jesus entra na nossa história dorida e na história do seu Povo, Israel, fazendo a experiência fundamental do Êxodo, descendo ao Egito e saindo do Egito, para entrar na Terra de Israel. O quadro, convenhamos, está longe do tom romântico pintado por Murillo. O jumento, que a cultura popular associou a este episódio, pode provir de idêntico quadro e idêntica linguagem, do Livro do Êxodo 4,20.

5. Não é um Deus de luxo e uma família de luxo. Planta a sua tenda nos campos dos refugiados, e conhece a miséria total. Será, como é sabido, rejeitado na sua terra e crucificado fora dos muros da cidade dos homens, que se quer sempre tranquila e serena e não contaminada. É assim que Jesus absorve e absolve as nossas páginas mais doridas. É assim, profunda e subtil, a sua presença em solo ucraniano.

6. Aqui estão sempre as linhas entrelaçadas da perseguição e da libertação, com Deus sempre subtilmente por detrás. Revivendo a experiência fundamental da perseguição e do Êxodo, Jesus torna-se um verdadeiro filho de Israel. E, com a anotação precisa de que ENTROU na TERRA DE ISRAEL (Mateus 2,21), Jesus reúne e dá cumprimento a vários fios perdidos e dispersos na história bíblica. Desde logo, vai ao encontro de Moisés, que tinha ficado fora da Terra da Promessa (Deuteronómio 4,21-22; 32,51-52; 34,4), mas reúne também os exilados que, provindos da Babilónia, não entraram na Terra de Israel (Ezequiel 20,28). Em nome de todos, a todos reunindo, Jesus cumpre agora o ingresso definitivo nessa Terra.

7. E no versículo que se segue imediatamente no texto de Mateus (2,22), nós lemos que, uma vez mais guiado em sonho, isto é, por Deus, José não ficou em Jerusalém ou na Judeia, e foi para a região da GALILEIA. Com esta menção da região da GALILEIA, trata-se de estabelecer uma ponte para a Terra sombria, mas que será iluminada, de Isaías 8,23-9,1. Jesus é a grande LUZ que alumia essa região queimada e humilhada por sucessivos desastres históricos e calcada por muitas botas militares. Mas abre também uma ponte para o início do anúncio do Evangelho por parte de Jesus, referido em Mateus 4,12-17, que cita, de resto, na íntegra, a anterior passagem de Isaías. Mas é também o final do Evangelho de Mateus que fica iluminado, pois é na Galileia que Jesus precede sempre os seus discípulos-irmãos (Mateus 28,7 e 10), é para lá que eles se dirigem (Mateus 28,16), e é de lá que são enviados a levar o Evangelho a todos os corações (Mateus 28,18-20).

8. Em voz-off, mediante o sonho e através de citações da Escritura Santa, Deus guia esta Família, que assim é perseguida e rejeitada pelos homens, mas está sempre nas mãos de Deus. A primeira citação, «Do Egito chamei o meu filho», é de Oseias 11,1, e a segunda, «Será chamado Nazareu», sem provir de um lugar explícito, reúne preciosos fios de significado. Evoca Nazaré, uma pequena povoação desconhecida, que nunca é mencionada no Antigo Testamento, e que, no tempo de Jesus, não contaria mais de 500 habitantes, mas aponta ainda para Nazîr [= Consagrado] e Netser [= Rebento], termos densos de religiosidade, e o segundo de cariz claramente messiânico (Isaías 11,1).

9. Dentro da temática da Família, o Antigo Testamento traz-nos hoje um extrato sapiencial retirado do Livro de Ben Sira (ou Eclesiástico) 3,2-6.12-14, e que nos convida ao amor dedicado aos nossos pais sempre, para que o Senhor ponha sobre nós o seu olhar de bondade.

10. O Salmo 128 é a música suave, de teor didático-sapiencial, que canta uma família feliz e nos mostra a fonte dessa felicidade: a bênção paternal do Senhor. «Felizes os que esperam no Senhor,/ e seguem os seus caminhos», é a bela litania em que o refrão nos faz entrar.

11. Finalmente, o Apóstolo Paulo, na Carta aos Colossenses 3,12-21, exorta esposos, pais e filhos ao amor mútuo, mostrando ainda de que sentimentos nos devemos vestir por dentro e de que música devemos encher o nosso coração. Salta à vista que a bondade, a humildade, a mansidão, a longanimidade, o amor, o perdão são vestidos importantes para a festa, mas não se compram nem vendem por aí em nenhum pronto-a-vestir. Nesta época de bastante consumismo, convém que nunca nos esqueçamos de Deus, pois é Ele, e só Ele, que veste carinhosamente o coração dos seus filhos.

Santa Maria de um amor maior,

Do tamanho do Menino que levas ao colo,

Diante de ti me ajoelho e esmolo

A graça de um lar unido ao teu redor.

Protege, Senhora, as nossas famílias,

Todos os casais, os filhos e os pais,

E enche de alegria, mais e mais e mais,

Todos os seus dias, manhãs, tardes, noites e vigílias.

Vela, Senhora, por cada criança,

Por cada mãe, por cada pai, por cada irmão,

A todos os velhinhos, Senhora, dá a mão,

E deixa em cada rosto um afago de esperança.

António Couto


JESUS VEM NASCER EM BELÉM

Dezembro 23, 2022

Noite: Is 9,1-6; Sl 96; Tt 2,11-14; Lc 2,1-14

Aurora: Is 62,11-12; Sl 97; Tt 3,4-7; Lc 2,15-20

Dia: Is 52,7-10; Sl 98; Hb 1,1-6; Jo 1,1-18

1. «Exultemos de alegria no Senhor, porque nasceu na terra o nosso Salvador», é a Antífona do Cântico de Entrada da Missa da Noite, que dá o devido tom de exultação a esta Solenidade, magnífico pórtico para este intenso feixe de Luz, Mistério de Jesus, fazendo logo ver o Natal à Luz da Páscoa, «a Páscoa do Natal», assim o diz significativamente a liturgia oriental. A Antífona da Missa da Aurora prossegue a mesma sintonia, conjugando Isaías 9,1 e Lucas 2,11, e soa assim: «Hoje sobre nós resplandece uma Luz: nasceu o Senhor». A Antífona da Missa do Dia continua a indicar o «para nós» deste Filho e do seu Mistério, trazendo ao de cima outra vez a pauta luminosa de Isaías: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado» (Isaías 9,6).

2. A linha dos Evangelhos deste Dia é de excecional riqueza, e desenvolve-se em quatro andamentos: o acontecimento, o anúncio, o acolhimento e a revelação do Verbo feito carne. Começa com Lucas 2,1-14 (Noite), e continua com Lucas 2,15-20 (Aurora), que nos trazem o quadro histórico-geográfico do nascimento de Jesus (Lucas 2,1-7), o seu anúncio (Lucas 2,8-14) e acolhimento (Lucas 2,15-20), e culmina com o prólogo de João 1,1-18 (Dia), que nos mostra a Luz fulgurante do Verbo de Deus feito carne, o Único que nos pode dizer Deus. O nascimento de Jesus, na sua nudez, aparece narrado três vezes, nos três andamentos do texto lucano (Lucas 2,7.12.16). Ele é claramente o centro. Aparece logo situado no decurso do recenseamento do mundo romano ordenado por César Augusto, sendo Quirino prefeito romano da Síria (Lucas 2,1-2). O reinado de Augusto estende-se por muitos anos (27 a.C.-14 d.C.), mas Pôncio Sulpício Quirino foi prefeito da Síria apenas no ano 6 d.C., sendo então que liquida os bens de Arquelau, filho de Herodes o Grande, e anexa definitivamente a Judeia ao Império Romano. O leitor menos prevenido dirá logo que há aqui uma imprecisão histórica. Acrescento então que este recenseamento foi iniciado em 7-6 a.C. por Sêncio Saturnino, prefeito da Síria durante os anos 9-6 a.C. É sabido, de resto, que a era cristã atualmente em vigor foi fixada no século VI pelo monge xiita, de origem egípcia, Dionísio o Pequeno, com um pequeno erro de cálculo que resultou no atraso de 6 ou 7 anos em relação ao nascimento de Jesus. Portanto, Jesus terá nascido 6 ou 7 anos antes do início da era cristã fixada pelo monge Dionísio. E aí está então tudo em dia: Jesus nasce quando Sêncio Saturnino dá início ao recenseamento. Dirá outra vez o leitor incauto: se assim foi, por que é que Lucas fala de Quirino, e não de Saturnino? Se repararmos bem, Lucas faz exatamente como nós fazemos hoje. Nas placas que colocamos nos edifícios públicos que inauguramos constam os nomes das autoridades que os terminam e inauguram, e não daqueles que os iniciam. O mesmo se diga da promulgação de leis e tratados.

3. É ainda no quadro deste recenseamento que José, acompanhado por Maria, sua esposa, sobe a Belém para se recensear. O texto explica bem que esta deslocação se fica a dever ao facto de José ser da descendência de David (Lucas 2,3-4). O próximo passo refere que, quando chegaram (José e Maria), não havia lugar para eles na sala (Lucas 2,7). Note-se que o texto refere, de forma clara, sala, grego katályma, e não hospedaria, como se lê em muitas e preconceituosas traduções. Na verdade, Lucas sabe bem dizer hospedaria, como faz na passagem do bom samaritano (Lucas 10,34), em que usa o termo grego pandocheîon. Katályma não significa hospedaria. Significa sala. Pode ser a sala do andar superior (Lucas 22,11), que ficou conhecida como Cenáculo, onde Jesus comerá a Ceia da Páscoa com os seus discípulos. No episódio de Belém, que estamos a ler, pode tratar-se de uma sala destinada a hóspedes que a arqueologia pôs a descoberto no rés-do-chão de muitas das casas da Judeia do tempo de Jesus. Esta sala apresenta forma quadrangular ou retangular, com um banco rochoso ao longo das paredes, destinado ao descanso das pessoas. A sala tinha uma única porta de entrada, por onde entravam as pessoas com os seus animais de transporte. Ao fundo da sala localizava-se outra porta, que dava para um estábulo, para onde as pessoas conduziam naturalmente os animais. É neste estábulo anexo à sala destinada aos hóspedes que vai nascer Jesus, e é também aqui que se compreende perfeitamente a presença da manjedoura (Lucas 2,7 e 12).

4. Vem depois a cena maravilhosa da manifestação desta Notícia aos pastores dos campos de Belém. Os pastores são os últimos da sociedade, e não entram nas contas de ninguém, tal como o pequeno pastor de Belém, David, não entra nas contas já encerradas de seu pai (1 Samuel 16,10-11), mas entra nas contas de Deus (1 Samuel 16,11-12). O mesmo acontece com os pastores de Belém, a quem o mensageiro celeste anuncia a Alegria do nascimento de um Salvador para todo o povo, Hoje nascido em Belém (Lucas 2,8-11). E, deste acontecimento, o mensageiro celeste dá um sinal (sêmeîon) aos pastores e a nós: «encontrareis um recém-nascido envolto em faixas e deposto numa manjedoura» (Lucas 2,12). E, depois daquele celestial e humano Gloria in excelsis Deo e Paz na terra aos homens que Ele ama (Lucas 2,14), aí vão eles, os pastores, aqueles com quem ninguém conta e que não entram em nenhuma lista de pessoas dignas de consideração, aí vão eles apressadamente (Lucas 2,16), como Maria (Lucas 1,39), verificar (ideîn) os acontecimentos a eles dados a conhecer por Deus (Lucas 2,15), e que, como verdadeiros anunciadores, não podem calar, e devem dar também a conhecer a todos (Lucas 2,17). Note-se o aroma desta Paz diferente, que não é obra das armas, como no mundo romano, nem de acordos entre as partes, como no judaísmo palestinense, mas dom de Deus!

5. Cena sublime e suprema ironia. Os senhores do mundo (César Augusto e Quirino) são mencionados, mas saem logo de cena, para dar lugar aos pastores, que assumem o papel de verdadeiros protagonistas. Os senhores do mundo ocupam um único versículo cada um (Lucas 2,1 e 2). Os pastores enchem treze versículos (Lucas 2,8-20). Também lá estão Maria, José e o Menino, mas não dizem uma única palavra. A palavra é toda dos Anjos e dos pastores. Mas Maria é estupendamente retratada a «guardar todas aquelas palavras, compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,19). Note-se ainda o sinal dado aos pastores e a nós, leitores: um recém-nascido envolto em faixas, deposto numa manjedoura. É preciso também começar a ver já aqui a Luz da Páscoa, a «Páscoa do Natal», com o corpo de Jesus a ser envolto num lençol e deposto num sepulcro (Lucas 23,53). Mas também a sala (katályma) onde não havia lugar para eles (Lucas 2,7) reclama já a sala (katályma) para comer a Páscoa (Lucas 22,11), onde haverá lugar para Jesus e para nós! O Evangelho do Dia, o prólogo do Evangelho de João 1,1-18, deixa-nos de joelhos em contemplação: «E o Verbo se fez carne e pôs a sua tenda (eskênôsen) entre nós, e nós contemplámos (theáomai) a sua glória» (João 1,14). Mas também: «Veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (João 1,11). Leitura sublime do presépio, da falta de lugar para Jesus, e a sua rejeição já desde então encenada e em prolepse acenada.

6. Mas é imperioso ler este extraordinário texto até ao fim. E, no final, no v. 18, lemos: «Deus (theón), ninguém (oudeís) viu (heôraken: perf. de horáô) nunca (pôpote); o Monogénito Deus (monogenês theós), Aquele-que-é (ho ôn) para o seio do Pai (heis tòn kólpon toû patrós), Ele (ekeînos) fez exegese (exêgêsato)» (Jo 1,18). Este texto imenso introduz a afirmação da revelação pelo Filho Monogénito e marca bem a invisibilidade de Deus por nós, que exclui toda a espécie de “visão” humana, quer física quer intelectual. Revelação exclusiva: nenhum ser humano atinge diretamente Deus. E gratuita: note-se a mudança de sujeito: não nós, mas o Filho Monogénito trouxe a revelação. É sobre esta nova dimensão da revelação de Deus a cargo do Verbo, na parte final do v. 18, que recai o acento do inteiro versículo. Este texto traz, portanto, um dado novo: a exclusividade do agente da revelação. Só o Filho Único de Deus (monogenês designa o Filho e exprime a sua relação única, que não se pode comparar a nenhuma outra, com Deus), voltado para o seio do Pai, para a sua Origem, para o seio em que é eternamente gerado, verdadeira «cátedra» divina, pode explicar-nos o Deus que nunca ninguém viu (heôraken). Não é que a tese seja a invisibilidade de Deus. O texto, imenso, não tem vocação metafísica. Com o recurso ao verbo no tempo perfeito (heôraken), que cobre o passado e o presente, e ao advérbio temporal pôpote [= nunca], que exclui a história humana, o texto pretende colocar-nos perante o momento decisivo da história entre Deus e a humanidade. E é Jesus o centro dessa história.

7. Este Filho em Belém e na Cruz nascido, totalmente voltado para o seio do Pai, e que é eternamente consciente de receber do Pai todo o seu ser filial, é o único capaz de nos trazer a revelação. Sendo o revelador definido pela sua relação filial e intradivina, podemos então esperar que o ato de revelação e o seu conteúdo sejam constituídos por esta relação filial. Neste sentido, podemos agora notar com atenção meticulosa como o termo theós [= Deus], que abre o v. 18, vem a ser intencionalmente substituído no fecho, em 18b, pelo termo patrós [= Pai]. Na verdade, esta relação divina, inefável oceano da Divindade Única, é, sem mediação temporal, coextensivamente e coeternamente, in eterno, o Gerar paterno e o Ser-gerado filial: um único Gerar, um único Ser-gerado. Seguindo a preciosa formulação de S. Gregório de Nazianzo (329-389), que mereceu o título de «O teólogo» (ho theólohos), desta relação intradivina única entre o Pai e o Filho, o Pai, Arquétipo divino paterno, que é eternamente, «Aquele que é sem princípio» (ánarchos), e o Filho Monogénito, que é eternamente gerado, «Aquele que é gerado sem princípio» (ánarchôs gennêthéntes), Imagem divina filial, nada saberíamos, se o Verbo Único do Pai, Imagem eterna do Pai, e em si mesmo, como Deus, invisível por definição, não se tivesse feito, filialmente, também Imagem espacial e temporal do Pai, através da Incarnação, também esplendidamente afirmada e formulada no prólogo joanino (v. 14), que aqui inserimos novamente: «E o Verbo fez-se (egéneto) carne e pôs a sua tenda (eskênôsen) no meio de nós, e nós contemplámos (etheasámmetha) a sua Glória (dóxa), Glória de Monogénito do Pai, Cheio de graça e de verdade» (João 1,14).

8. Fica assim a claro a vinculação e unidade entre os v. 14 e 18, entre a invisibilidade de Deus (v. 18) e a visibilidade da Glória do Verbo Incarnado (v. 14), que podemos demorada e intensamente contemplar, como sugere o uso do verbo theáomai, um olhar prolongado que se abre à contemplação e interioridade. O Verbo Único de Deus, Deus Ele mesmo, sem deixar de ser o que eternamente é junto do Pai, com o Espírito Santo, fez-se também a nossa carne humana, e cumpriu o Êxodo histórico juntamente connosco ao pôr a sua tenda no deserto da vida humana, «entre nós, em nós», connosco. Há que acentuar aquele «fez-se» (egéneto), que põe em relação a divindade com a carne, associação que é absolutamente estranha e incompreensível para a mentalidade grega, segundo a qual a essência divina é por definição imutável e impassível, excluindo a ousía divina qualquer alteração, que seria “geração e corrução”. Outra vez a feliz formulação de S. Gregório de Nazianzo: «O que era, manteve; e o que não era, assumiu. Antes, era sem causa (anaitíôs), pois a causa (aitía) de Deus, qual é? Mais tarde, nasceu devido a uma causa (di’ aitían), para que tu fosses salvo, tu, que o insultaste; tu, que desprezaste a divindade, por ela ter acolhido a tua baixeza». Oh insondável mistério do amor de Deus!

9. Os passos dos peregrinos e os nossos convergem Hoje para a Basílica da Natividade em Belém. Não obstante os múltiplos trabalhos de reconstrução e conservação ao longo dos séculos, a Basílica que hoje se depara ao peregrino é, nas suas linhas gerais, obra do imperador Justiniano, edificada entre 531 e 565, e é mesmo o único templo, provindo de Justiniano, que resta na Palestina. Escapou à razia dos Persas de Cosroé II, em 614, contra os templos cristãos, devido ao facto de os frescos que adornam a Basílica conterem representações dos Magos, o que muito terá sensibilizado os Persas. Esta não é, porém, a Basílica primitiva. Os trabalhos arqueológicos efetuados pelo P. Bagatti em 1949-1950 mostraram, por debaixo do pavimento da atual Basílica, os traços arquitetónicos de outra grandiosa Basílica, levantada entre 326 e 333, por Santa Helena, mãe do imperador Constantino. Esta primitiva Basílica foi assolada por diversos incêndios e depois grandemente devastada pela revolta dos Samaritanos de Nablus em 529 contra o governo bizantino. Foi sobre as ruínas desta Basílica Constantiniana que o imperador Justiniano fez construir, com traços arquitetónicos diferentes, a Basílica atual.

10. Mas a Basílica Constantiniana também não representa o estádio primitivo do culto cristão em Belém. Este encontra-se certamente na cripta da Basílica atual, guardado num espaço retangular de 12,30 metros de comprimento por 3,50 metros de largura, para onde convergem os passos dos peregrinos. Este espaço corresponde ao estábulo anexo à já mencionada sala de hóspedes. Aí se encontra o Altar da Natividade, debaixo do qual se pode ver uma estrela de prata com a inscrição: Hic de Virgine Mariae Jesus Christus natus est [= «Aqui da Virgem Maria nasceu Jesus Cristo»]. A Basílica da Natividade guarda na sua cripta o mistério do nascimento de Jesus, da pobreza, da humildade, do amor, da paz. Daquele e daquilo que não tem lugar na sala do nosso bem-estar, poder, ódio, ostentação, tirania. Na tua casa e na tua sala há lugar para quem e para quê, meu irmão deste Dia de Natal?

António Couto


LER A EUROPA

Dezembro 23, 2022

1. A Europa, que nós, europeus, vemos sempre como centro do mundo, foi durante muito tempo um conceito vago. Nas suas famosas Histórias, o historiador grego Heródoto (484-425 a.C.) refere que a Europa e a terra dos gregos era o que ficava para cá das fronteiras dos Persas, que consideravam a Ásia como a sua terra.

2. Eneias, o herói virgiliano que, no Livro Segundo da Eneida, parte de Troia em direção ao Lácio carregando aos ombros o velho pai Anquises e apertando a mão do seu pequeno filho Iulo, pode constituir o arquétipo literário, universalmente reconhecido, que serve para dar corpo plástico ao tema: «Os fundamentos de uma Europa em construção».

3. Com a formação dos Estados Helénicos e do Império Romano construiu-se um continente, que veio mais tarde a ser a Europa, mas com fronteiras muito diferentes. Começou por integrar as terras à volta do Mediterrâneo, que se sentiam unidas por laços culturais, comunicações e trocas comerciais, idêntico sistema político. Em termos religiosos, foi o Cristianismo que desde cedo veio dar uma maior consistência a esta bacia do Mediterrâneo.

4. Todavia, com a marcha triunfal do Islão no séc. VII e princípios do séc. VIII, o Mediterrâneo foi cortado ao meio, de tal modo que aquilo que até aí era um continente, fica então dividido em três: Ásia, África e Europa. Por volta do ano 700, este espaço cultural e religioso perde definitivamente a zona meridional do Mediterrâneo, mas estende-se para Norte, incluindo as Gálias, a Bretanha e a Germânia, até à Escandinávia. E em finais do séc. VIII, princípios do IX, com Carlos Magno (742-814), para alguns historiadores o verdadeiro fundador da Europa, consolida-se esta nova Europa, herdeira cultural do antigo Império Romano, que agora se vê como que renascido e fortemente impregnado pelo Cristianismo. Carlos Magno foi coroado em Roma, no Natal de 800, pelo Papa Leão III.

5. Entretanto, com o fim do Império Carolíngio, esta ideia de Europa desvanece-se, para voltar a aparecer de novo no início dos tempos modernos, em 1493, por causa do perigo turco. Mas só no séc. XVIII se afirmará de forma universal.

6. Se o Império Romano teve no Ocidente uma história atribulada, no Oriente, com centro em Constantinopla, resistiu até ao séc. XV, irradiando o lume Cristão pelo mundo eslavo. Quando, em 1493, Constantinopla é tomada pelos turcos, a herança bizantina transfere-se para Moscovo, deslocando-se então as fronteiras da Europa para Norte e para Oriente, até aos Urais. Mas enquanto a Oriente a Europa se expande para a Ásia, a Ocidente expande-se para fora das suas fronteiras geográficas e chega ao Novo Mundo, do outro lado do Atlântico, que então recebe o nome de América. Esta é também a altura em que a própria Europa se divide em duas metades: uma latino-católica, e outra germano-protestante.

7. O espaço Europeu foi, no decurso do século XX, sacudido por duas guerras. Após a devastação da Segunda Guerra Mundial, os pais da União Europeia – Adenauer, Schumann, De Gasperi – veem com clareza que esta nova Europa tem de procurar os seus fundamentos na herança Cristã que a foi moldando ao longo dos séculos. Todavia, com o tempo, foram os aspetos económicos que foram privilegiados, esquecendo-se cada vez mais os fundamentos espirituais. Pouco a pouco eclipsaram-se os valores cristãos, desapareceu o sagrado, a família entrou em declínio, hipotecou-se o futuro por falta de nascimentos.

8. Ensina a demografia que, para a simples manutenção da população de um determinado território, é requerida uma média de nascimentos de 2,1 filhos por mulher. Ora, no começo do século XXI, Portugal decrescia à média de 1,3 filhos por mulher, a Espanha à média de 1,1, a Itália e a Alemanha à média de 1,3, a França à média de 1,7. E é sabido que estes índices, sobretudo na França, Itália e Alemanha ainda se ficam a dever muito à presença árabe e africana. Neste momento, todos estes indicadores estão ainda mais baixos. E os demógrafos vão avisando que, se nada for alterado, no final deste século XXI, já não haverá Europa, mas Eurábia ou Eurásia.

9. Assistimos hoje a uma Europa velha, doente, esquecida e triste, que já não gosta de si mesma nem da sua própria história, que já não luta nem sonha, mas que ainda pensa que se pode voltar a reunir à volta de uma lareira sem lume, de uma mesa sem pão ou de uma Constituição sem conteúdos, inspirada, dizem, em «heranças culturais, religiosas e humanistas» mais ou menos virtuais, de que ninguém diz nem sabe nem quer saber o nome. Mas eu digo que é cada vez mais uma Europa sem Cristo, sem Eneias e sem Iulo. E só com Anquises não vamos longe.

António Couto


NÓS OS DOIS

Dezembro 22, 2022

Desde que sei

Que comecei a morrer,

Que aprendi a suportar o peso

Do milagre.

Hoje tudo é mais claro

Tudo é mais nítido.

Mas no tempo em que os pinheiros

Eram altos

E os meus olhos de um verde cristalino,

No tempo em que o tempo

Era incandescente

E fazia carrancas ao destino,

Aí, oh meu país inocente

E pequenino,

Era eu que era mais divino

Ou era Deus que era mais menino?

1. Sim. Enquanto tu descias a este chão de pó, e afanosamente o modelavas (Génesis 2,7), eu subia em sonhos a escada de Jacob (Génesis 28,12), e, às escondidas, comia o teu céu de pão de ló. Deslumbramento teu no sótão deste chão, quando, no lusco-fusco da vidraça, descobriste o meu pião enrolado na baraça. Deslumbramento meu, quando, distraído, brincava no teu céu, e quase escorregava pelo firmamento.

2. Valeu-me então um anjo que estava de passagem, e me deu a mão. Percebi depois que regressava do jardim do éden (Génesis 2,8), de regar a tua plantação (Isaías 61,3). Contou-me tudo. Falou-me de Abraão, de um rio que abriste no deserto (Isaías 43,19), da avenida florida que atravessa o mar a céu aberto (Sabedoria 19,7), da estrada traçada no deserto onde habitualmente andas a pé (Isaías 35,8), e sobretudo das flores que fizeste florescer em Nazaré (de natsar, florescer).

3. Fomos depois os dois até Jerusalém, e vimos-te a escolher no ribeiro manso as pedras trabalhadas na torrente (1 Samuel 17,40). Olhavas para elas demoradamente em tuas mãos deitadas, e só depois as adornavas com tinta cor de rímel (Isaías 54,11), e as sentavas carinhosamente à tua mesa, onde ardia e não se consumia uma sarça acesa (Êxodo 3,2).

4. Juntaram-se, entretanto, a nós milhares de anjos deslumbrados. Pus-me todo atento e parabólico, e pude ver o vento que o seu bater de asas produzia, e vi ainda que é essa energia que alumia as casas, muito mais do que qualquer rede de alta tensão ou parque eólico. Foi então que o anjo que comigo viajava me indicou um caminho hiperbólico (1 Coríntios 12,31).

5. Entrei nesse caminho. Mas rapidamente vi que não ia sozinho. Ias tu, Senhor, comigo. Chamava-se amor esse caminho aberto no deserto (Atos 8,26). Confesso que nunca tinha estado tão perto da água viva e tão perdido no meio do sentido (Atos 8,36). Tão refém deste Deus nascido em Belém. Foi aí que conheci Francisco, o de Assis, entretanto acabado de chegar da colina de Greccio. Fomos visitar a tua antiga casa. Era um retângulo com doze metros e trinta de comprido por três e meio de largo. O boi e o burro vieram logo conversar contigo. Percebi que tinham de bom grado acedido a partilhar contigo aquele espaço, o seu estábulo (Isaías 1,3). Na sala ali ao lado, não havia lugar para ti. Estava tudo ocupado. Também a mim e ao Francisco, sentados naquele chão de palha e cisco, o boi e o burro contaram muitas coisas acontecidas no seu estábulo. E ficámos longamente ali sentados a contemplar esse retábulo.

António Couto


E FOI NATAL EM BELÉM

Dezembro 21, 2022

Há dois mil anos Deus sonhou

E foi

Natal em Belém.

Sonha também.

Se o jumento corou

E o boi se ajoelhou,

Não deixes tu de orar também.

1. A notícia ecoou nos campos de Belém. Com o celeste recital que ali se deu, o céu ficou ao léu, a terra emudeceu de espanto, e os pastores dançaram tanto, tanto, que até os mansos animais entraram nesse canto.

2. Isaías 1,3 antecipou a cena, e gravou com o fulgor da sua pena o manso boi e o pacífico jumento comendo as flores de açucena da vara de José sentado ao Lume, e bafejando depois suavemente o Menino de perfume. Enquanto os meigos animais vão comer à mão do dono, o meu povo, diz Deus, não me conhece, e perde-se nos buracos de ozono.

3. Nos campos lavrados passeiam cotovias, ondulam os trigais, e vê-se Rute a respigar o trigo ao lado dos pardais. Que estação é esta que reúne as estações e os anais? Abre-se ali num instante um caminho novo. Vê-se que passam Maria e José e o Menino, que salta logo do colo e suja as mãos na terra, tira da sacola estrelas todas de oiro, e semeia-as na terra com carinho.

4. Anda à sua volta um bando de boieiras, leves e ledas companheiras, correndo no mesmo chão de oiro semeado. E nós continuamos a passar ali ao lado daquela sementeira toda de oiro, que o Menino pobre acaricia, e logo se transforma em trigo loiro. Mas ninguém para, ninguém acredita que o Menino pode ser dono de um tal tesoiro.

5. Vem, Menino! E quando vieres para a tua doirada sementeira que logo cresce e se faz messe (João 4,35), quando assobiares às boieiras, chama também por mim, diz bem alto o meu nome, vamos os dois para o campo e para a eira, e enche-me de fome de um amor como o teu, pequenino e enorme.

António Couto


MISSÃO ESPONSAL E PATERNAL DE JOSÉ

Dezembro 16, 2022

Is 7,10-14; Sl 24; Rm 1,1-7; Mt 1,18-24

1. Sempre me encantou esta humaníssima e sensibilíssima figura de José, que o Evangelho de Mateus qualifica como «justo» (Mateus, 1,19). O termo «justiça» enche este Evangelho, fazendo-se nele ouvir por sete vezes (3,15; 5,6.10.20; 6,1.33; 21,32), e traduz o plano divino de salvação, que é a divina surpresa, e a adequação da nossa vontade a esse plano, melhor dito, a essa surpresa. Neste Evangelho, os discípulos de Jesus nunca são ditos «justos», mas são chamados à «justiça», isto é, a andar no «caminho da justiça», auto destituindo-se, isto é, libertando-se dos seus projetos autorreferenciais, e sabendo dizer sempre SIM a Deus de forma concreta. O termo «justos», no plural, ouve-se várias vezes, sobretudo em textos de colorido parabólico, para qualificar os fazedores do bem (Mateus 13,43.49; 25,37.46), sempre em contraponto com os fazedores da iniquidade. «Justo», no singular, neste Evangelho de Mateus, só se aplica a José (Mateus 1,19) e a Jesus (Mateus 27,19, na boca da mulher de Pilatos: «não te metas com esse justo»), o que não deixa de ser uma nota significativa.

2. Fica então diante de nós o sensibilíssimo «justo» José sintonizado em alta fidelidade, em Hi-Fi, com Deus (Mateus 1,18-24). A cena abre com a notícia acerca da origem (génesis) de Jesus Cristo (Mateus 1,18). Origem, e não nascimento. Se fosse nascimento, o texto grego assinalá-lo-ia com génnêsis. A cena remete essa origem para Deus, acrescentando logo que a gravidez de Maria não provinha de José nem de uma possível infidelidade de Maria, mas do Espírito Santo (ek pneúmatos hagíou) (Mateus 1,19b). É assim que, vendo de forma imprevista a sua esposa grávida durante o noivado, a que os hebreus chamam ՚arûsîn, antes da fase propriamente conjugal ou de coabitação, a que os hebreus chamam nîssû՚în, e não sabendo disso a razão, mas desconfiando, dado que o seu casamento com Maria era seguramente, não em ordem à procriação, mas de proteção mútua e de total dedicação a Deus, o «justo» José, lendo os acontecimentos, sempre em bicos de pés e no limiar do silêncio, passa discretamente da possível ideia de expor Maria à difamação pública (deigmatízô) para a ideia de ele próprio sair de cena em segredo (láthra) (Mateus 1,19), entregando assim a cena toda a Deus, imitando desse modo a leitura do seu homónimo José (do Egito)! Fantástico. Até Deus entende e respeita este silêncio, este segredo de José, e é de mansinho, em um sonho (Mateus 1,20), que põe José a par dos seus planos, entenda-se, surpresas, que passam pela maternidade divina de Maria e pela missão esponsal e paternal de José. É o que podemos chamar, neste Evangelho de Mateus 1,18-24, de «Anunciação do Anjo a José», como se pode ver comparando o relato do encontro de Gabriel com Maria (Lucas 1,26-38) e o relato deste encontro de um anjo com José (Mateus 1,18-24).

3. Este homem manso, sossegado e silencioso (quando surge em cena, somando todos os textos em que aparece, não se lhe ouve uma única palavra!) lembra também aqui o outro José, o homem dos sonhos (Génesis 37,19), que surge no Livro do Génesis, e que com sonhos e serena sabedoria se ocupa (Génesis 37; 40; 41). Também este José sabe ler a sua história em dois teclados, distinguindo bem as coisas humanas das divinas (ou entrançando bem as coisas humanas e as divinas). Veja-se a forma sublime como se apresenta, desvendando-se, aos seus irmãos mais do que atónitos: «Eu sou José, vosso irmão, que vós vendestes para o Egito. Mas agora não vos entristeçais nem vos aflijais por me terdes vendido para cá, porque foi para salvar as vossas vidas que Deus me enviou adiante de vós. Deus enviou-me adiante de vós para assegurar a permanência da vossa raça na terra e salvar as vossas vidas para uma grande libertação. Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, mas Deus» (Génesis 45,4-8). Leitura sublime.

4. A missão esponsal de José, declarado «justo» (Mateus 1,19), fica logo clarificada pelo anjo que o incumbe de receber Maria como sua esposa (Mateus 1,20). Mas José, também pelo anjo chamado «filho de David» (Mateus 1,20), expressão fora deste passo só usada acerca de Jesus, mostra bem a importância de José para incorporar Jesus na linhagem davídica, e explica a razão pela qual José é incumbido pelo anjo da sua particular missão paternal em relação ao filho que a sua esposa Maria vai dar à luz. É preciso ter em conta que Mateus toma todos os cuidados, já no v. 16, para precisar que Jesus é filho de Maria, esposa de José, mas que não é filho de José, afirmando depois, nos v. 18 e 20, que a conceção de Maria é obra do Espírito Santo. Esta afirmação, retirando José da conceção de Jesus, tornaria inútil a inteira linha genealógica cuidadosamente traçada por Mateus em 1,1-16 com o intuito de integrar Jesus na descendência de David. Em termos da linha do sangue resulta de facto impossível, dado que Jesus é filho de Maria, mas não de José. Então, o que é impossível pela via do sangue, vai tornar-se possível pela via da adoção. O primeiro ato da missão paternal de José, a quem o anjo se dirige chamando-o propositadamente «filho de David» (v. 20), consistirá então, também por indicação do anjo, na adoção formal do filho que vai nascer de Maria, dando-lhe o nome de Jesus (v. 21). Modo de fazer também de Deus, que diz de Israel: «Chamei-te pelo teu nome; tu és meu» (Isaías 43,1). Ao dar-lhe o nome de Jesus, indicado pelo anjo (v. 21 e 24), José assume o estatuto de pai legal de Jesus, que assim se torna seu filho e herdeiro e fica inserido na linha dinástica de David. O nome «Jesus» surge logo explicado «porque salvará o seu povo dos seus pecados» (v. 21). E aqui se começa a abrir uma grande avenida que atravessa o inteiro Evangelho de Mateus: a avenida do PERDÃO. Esta nota soa vezes sem conta, como obra bela de Deus que nós, seus filhos, devemos imitar, perdoando também. São tantas as vezes que seria fastidioso citá-las todas aqui. Deixo só a pérola do dito de Jesus sobre o cálice na ceia pascal: «Isto é o meu sangue da aliança, pelos muitos derramado, para perdão dos pecados» (26,28). O inciso «para perdão dos pecados» é um exclusivo de Mateus!

5. E é assim, descendo ao nosso nível e assumindo ou abraçando tudo o que é nosso, sem deixar nada nem ninguém esquecido ou de lado, que Jesus é Emanuel, «Deus connosco» (Mateus 1,23), e «connosco fica todos os dias até ao fim do mundo» (Mateus 28,20). Princípio e fim do Evangelho de Mateus. Inclusão literária. Emanuel, Deus connosco. Mateus faz aqui uma citação de Isaías 7,14, que, por graça, também hoje é objeto de leitura para nós. Mas Mateus faz uma alteração literária e teológica fundamental. Isaías dizia: «E ela (a jovem mãe) chamará o nome dele Emanuel». Mateus altera o sujeito e o verbo e escreve assim: «E eles chamarão o nome dele Emanuel» (Mateus 1,23). Com esta mudança de sujeito e verbo do singular para o plural, Mateus faz de Jesus, não apenas o sinal de salvação dado a um povo, mas sinal de salvação para todos os povos! E a dádiva do nome por todos, por nós também, implica-nos a todos com este Jesus, Emanuel, Deus connosco. Sempre.

6. Já se ouve a música de Isaías 7,10-14; 8,10. O cenário é a guerra siro-efraimita, que são dois exércitos, da Síria e de Israel, que põem cerco a Jerusalém, capital do Reino de Judá, no ano 734 a.C., com o intuito de depor Acaz, rei de Judá. Já se vê um Isaías firme e confiante que, enviado por Deus (Isaías 7,3), atravessa sem medo o cenário da guerra siro-efraimita, para levar ao amedrontado e trémulo rei Acaz (Isaías 7,2), que se encontra junto da nascente de Gihôn, a inspecionar as águas, uma palavra de conforto e de esperança. Para significar melhor tudo isto, Isaías leva pela mão o seu filho, que ostenta um nome de esperança She’ar yashûb [= «um resto voltará»] (Isaías 7,3). Um pai, que ousa atravessar um cenário de guerra levando um filho pela mão, é, na verdade, testemunha de outra segurança! A mensagem que Isaías comunica a Acaz consta de quatro pontos: a) tem calma; b) não tenhas medo; c) segura-te em Deus; d) pede um sinal (Isaías 7,11). Já se sabe que o descrente Acaz não pedirá o sinal, diz ele, para não tentar a Deus (Isaías 7,12), isto é, hipocritamente alega uma razão aparentemente religiosa como para-vento para esconder a sua incredulidade. Ora, pedir um «sinal», nestas circunstâncias, era sinal de fé e de humildade de quem reconhece a sua pobreza, como se depreende do comportamento de Abraão (Génesis 15,8), de Gedeão (Juízes 6,36-40) e de Ezequias (2 Reis 20,8-11). Marcada pela incredulidade era antes a recusa de pedir esse «sinal», como sucede com Acaz, que julga Deus incapaz de se interessar pelos nossos problemas.

7. Pouco importa. Eis que Deus dá, de igual maneira, o seu sinal: «A jovem» (‘almah TM; parthénos LXX) concebeu e dará à luz um filho a quem porá o nome de ‘immanû ’el [= «Connosco Deus»]» (Isaías 7,14). A jovem, aqui mencionada, é, em primeira leitura, certamente Abia, filha de Zacarias, esposa de Acaz, mãe de Ezequias (2 Crónicas 29,1). O filho, cujo nascimento é anunciado é certamente, em primeira leitura, Ezequias, filho de Acaz e de Abia, que ainda não tinha dado a Acaz um herdeiro. O nascimento de Ezequias parece ter ocorrido em 733, depois da guerra siro-efraimita. Todavia, como ele não é nomeado, a promessa não se esgota na pessoa de Ezequias. Abre-se ao herdeiro dinástico de qualquer tempo, portador das promessas de Deus para o seu povo. Este «filho» dado fica assim no campo dos «sinais», de resto como Isaías e os seus filhos (Isaías 8,18), e Mateus procede de forma correta ao ver a promessa realizar-se em Jesus, como, por graça, nos é dado ouvir no Evangelho de hoje (Mateus 1,18-24). Em primeira leitura, o «sinal» dado a Acaz é que a dinastia davídica, que corria perigo em 734, se salvará. Virá mesmo um tempo de prosperidade e de paz que marcará a infância daquele menino, que se alimentará de leite coalhado e mel (Isaías 7,15), alimentos que simbolizam abundância porque são dom de Deus (Deuteronómio 6,3; 11,9; 32,13-14; Êxodo 3,8 e 17).

8. Por outro lado, antes que o menino atinja a idade da razão, portanto, dentro em breve, os reinos de Israel e da Síria, agora agressores, serão reduzidos a escombros (Isaías 7,16; cf. 8,3-4). O que acontece, de facto, sendo a Síria anexada pela Assíria ainda em 734, o mesmo acontecendo a grande parte do território de Israel, em 733. A paz e a felicidade dos dias de David e Salomão, ou mesmo do tempo dos Juízes, serão recordadas e vividas em Judá. É o que pretende dizer o oráculo: «O Senhor fará vir sobre ti […] dias tais como não existiram desde o dia em que Efraim se separou de Judá» (Isaías 7,17), ou seja, desde 926, data da morte de Salomão e da separação do Reino de Israel (Norte) da Corte de Jerusalém.

9. Logo a seguir, Isaías introduz um oráculo de desgraça sobre Judá: as águas impetuosas da Assíria virão sobre Judá e submergi-lo-ão (Isaías 8,6-8). Mas é neste novo contexto que o profeta deixa sair, por duas vezes, o desabafo: «‘immanû ’el»! (8,8 e 10). Acostagem extraordinária da salvação à desgraça! Com este suspiro, num novo contexto, a profecia do Emanuel tornou-se tradição já para o próprio Isaías. Esta tradição tem a sua história. Já não temos apenas um sentido histórico único e determinado, mas começa a história da tradição do oráculo do Emanuel que, passando por Is 9,5 e 11,1-9, chegará ao Novo Testamento (Mateus 1,23). Deus connosco sempre.

10. Temos também hoje a graça de receber o início da Carta de S. Paulo aos Romanos (1,1-7), em que podemos identificar a apresentação ou titulatio [«Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado apóstolo, separado para o Evangelho de Deus»] (v.1), seguida de um longo parêntesis cristológico (v. 2-6), o endereço ou adscriptio [«a todos os que estão em Roma, amados de Deus, aos chamados santos»] (v. 7a), e a saudação ou salutatio [«Graça a vós e Paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo»] (v. 7b). Notemos que a locução «Graça e Paz» abre todas as Cartas de S. Paulo, e «A Graça» está em todas as saudações finais, fechando todas as Cartas. Mas é ainda grandemente sintomático que, depois deste início, a Carta aos Romanos prossiga assim: «Primeiro, dou Graças ao meu Deus, por intermédio de Jesus Cristo, por todos vós…» (Romanos 1,8). Aqui está o mesmo olhar de bondade e de beleza, ícone de Paulo em oração sem fim. Na verdade, depois daquele «primeiro», ficamos à espera de encontrar um «segundo» ou um «depois», que, todavia, nunca mais aparecerá. A Graça e a Ação da Graça estão antes de tudo e preenchem tudo. Nesse sentido, é bom e justo que tomemos consciência de que não é mais suficiente um cristianismo convencional, marcado pela ação social. É hoje igualmente insuficiente a espiritualidade da militância, que persegue a causa nobre de uma Igreja viva e participada e da construção de um mundo melhor. Um serviço pastoral que se reduza a «coisas que fazer» está gasto. Passou o tempo dos cristãos meramente «praticantes». Hoje são necessários cristãos enamorados, à maneira de Paulo.

11. Vem, Senhor Jesus. Só um amor como o teu transformará este mundo e salvará o nosso engessado coração! O «justo» José pode ensinar-nos como te ensinou a andar, menino, a dar os primeiros passos, e também como tu, menino, lhe ensinaste a ele a andar no «caminho da justiça».

12. Por isso, cantemos e aclamemos, com o Salmo 24, o Senhor do Universo e nosso Salvador que vem na nossa frágil humanidade, que Ele glorifica. No primeiro andamento deste Salmo (v. 1-6), justamente a parte Hoje cantada, somos convidados a acolher este Senhor com as mãos limpas e o coração purificado. Gerhard Ebeling (1912-2001) comenta assim este Salmo arcaico: «São três os pressupostos fundamentais do texto. O primeiro é que Deus criou o mundo, e é o seu Senhor. O segundo é que devemos comparecer junto de Deus e ser interrogados sobre o que fizemos. O terceiro é que Deus vem para o que é seu, e deseja ter livre acesso. Estas são três formas elementares da experiência de Deus e da relação com Deus: nós vivemos por obra de Deus, diante de Deus, e podemos viver com Deus». E o poeta francês Paul Claudel (1868-1955), recolhendo o último tema, o da vida com Deus, exclamava: «Aqui, Deus! Aqui, o nosso Deus, o Senhor dos Exércitos, que está empenhado, através dos séculos, em transferir-nos para a sua eternidade».

…..

Se o Senhor não construir a casa,

Em vão trabalham os que a constroem.

Se o Senhor não guardar a cidade,

Em vão vigiam as sentinelas.

…..

Não se pode esconder uma cidade situada no cimo de um monte,

Ou sobre a linha do horizonte,

Porque alumia, alumia, alumia,

Irradia, irradia, irradia,

De noite e de dia.

Cidade de alto-a-baixo erguida,

Como um manto de orvalho caída,

Como uma ermida,

Uma jazida de luz

E de Jesus.

…..

Tudo ao contrário do que vem nos manuais ou nos jornais,

Lançai os fundamentos no céu,

Construí desde o cume,

Sobre o gume da Palavra

Que de Deus vem

Nascer em Belém

E aqui também.

…..

Vem, Senhor Jesus!

Vem, vem, que Te esperamos!

…..

António Couto


SANTA LUZIA

Dezembro 13, 2022

Hoje é Dia de Santa Luzia, Virgem e Mártir. Ainda muito jovem, com pouco mais de vinte anos, deu a sua vida por Cristo nos primeiros anos do século IV, durante a perseguição de Diocleciano.

Diz-nos o Evangelho de São João que, após a crucifixão de Jesus, quatro soldados dividiram entre si as coisas de Jesus. Mas não dividiram a túnica, porque era tecida de Alto-a-baixo como um todo (19,23-24).

Quem costura assim senão as mãos de Deus, aquelas mãos que com terra e saliva fazem lodo, que cura a nossa vista e o nosso corpo todo (João 9,6), as mesmas mãos que, com ternura, no cenário da criação, do pó da terra modelaram o nosso humano coração! (Génesis 2,7).

São João diz-nos ainda que, depois dos quatro soldados, vieram quatro mulheres que se abraçaram à Cruz de Jesus (19,25). Das mulheres diz-nos quem são: A sua Mãe,/ a irmã de sua mãe,/ Maria de Cléofas/ e Maria Madalena.

Os quatro soldados preferem as coisas de Jesus. As quatro mulheres preferem Jesus, ficam abraçadas a Jesus.

Juntemos hoje uma quinta mulher, a Senhora deste dia 13 de dezembro: Santa Luzia.

Santa Luzia, Virgem e Mártir, Padroeira dos olhos e da visão do coração, roga por nós ao Senhor da Luz e da Alegria!

António Couto


DIVINA ENGENHARIA

Dezembro 10, 2022

Is 35,1-6a.10; Sl 146; Tg 5,7-10; Mt 11,2-11

1. «Tendo João ouvido na prisão as obras de Cristo, por meio dos seus discípulos, mandou dizer-lhe: “És TU Aquele-que-vem, ou esperamos outro?” E respondendo, Jesus disse-lhes: “INDO (poreuthéntes), ANUNCIAI (apaggeílate) a João o que ouvis e vedes: os cegos veem e os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem e os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados”» (Mateus 11,2-5).

2. João Batista não tem dúvidas de que Jesus é o Cristo, o Messias esperado. Se não tem dúvidas, então por que é que pergunta: «És TU Aquele-que-vem, ou não»? Pergunta ou manda perguntar, não porque ignore ou duvide que Jesus é o Messias-que-vem, mas porque Jesus vem revestido de um messianismo que não corresponde às ideias messiânicas de João Batista e do judaísmo em geral. E porque, nestas condições, embora reconhecendo e indicando em Jesus o Messias, João Batista não está apto a compreender e dizer este messianismo novo, é com exemplar clarividência que João manda os seus discípulos pôr aquela pergunta a Jesus, dando assim a Jesus a oportunidade de se dizer, de se autoapresentar. João Batista representa o velho: «Todos os profetas e a Lei profetizaram até João» (Mateus 11,13). E Lucas acrescenta: «Daí para a frente é evangelizar o Reino de Deus» (Lucas 16,16). João Batista chegou ao limiar do Novo Testamento, e indicou em Jesus o Messias sem hesitação. Indica-o, mas não o sabe dizer, porque Jesus, o Messias que João vê vir ao seu encontro, não vem ao seu encontro segundo os moldes previstos pelo judaísmo. Na verdade, vem por outros caminhos e de outra maneira. Assume outra postura, e João, que representa o velho, não está apto a dizer o Novo. Equivoca-se até quando se adianta e começa a dizer alguma coisa antes do tempo, como vimos no Domingo passado, quando começou a dizer que Ele vinha com o machado e com a pá de joeirar (Mateus 3,10 e 12): tudo somado, vinha para cortar as árvores estéreis, que não dão fruto, e para separar o cereal da palha, para operar uma separação nítida entre as pessoas, entre justos e pecadores, portanto. Mas rapidamente se apercebeu do seu equívoco. O velho não sabe dizer o novo. Falta-lhe vocabulário e conceitos adequados, não reúne competência para poder dizer o Novo, que é Jesus, o Cristo, o Messias-que-vem. E, porque não o sabe dizer, opta então por dar a Jesus a oportunidade de ser Ele próprio a fazer a sua apresentação. A pergunta de João é, portanto, um sinal de sabedoria e de exemplar clarividência.

3. E a resposta de Jesus, acima transcrita, é clara, mas mais performativa do que informativa. De acordo com este belo e transformante dizer de Jesus, é o caudal da evangelização que chega até João. Que o mesmo é dizer: João é evangelizado! Ele é o primeiro «pobre», perseguido pelos poderosos, e, por esse motivo, metido na prisão de Maqueronte por Herodes Antipas, filho de Herodes o Grande, e tetrarca da Galileia (4 a.C-39 d.C.), responsável pela prisão e decapitação de João Batista (Lucas 3,20; 9,9). João denunciou abertamente os erros de Herodes Antipas, e este meteu-o na prisão. João não era um «cão mudo, que já nem ladra» (cf. Isaías 56,10), «embriagado à beira da estrada» (cf. Isaías 56,12). No escuro das paredes da prisão de Maqueronte, João recebe a «boa notícia» que abre os seus olhos. Permanecendo embora no escuro cárcere, João Batista recebe a vista de Jesus através da boa notícia que os seus discípulos lhe transmitem: ele é o primeiro «cego» que recebe a vista, o primeiro «preso» que é libertado, o primeiro «pobre» que é evangelizado!

4. Mas a resposta de Jesus vai ainda mais longe, e envolve desde já os mensageiros enviados por João em verdadeiros mensageiros do Evangelho, que requer de todos nós uma nova, exigente e envolvente metodologia. Ao empregar o verbo «anunciar» ou «narrar» (grego apaggélô, hebraico higgîd) na missão que lhes confia: «INDO (poreuthéntes), ANUNCIAI (apaggeílate) a João o que ouvis e vedes: os cegos veem e os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem e os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados», tudo no presente, Jesus está a dizer àqueles mensageiros que o Evangelho não se enuncia no passado, não é acerca de algo que já aconteceu, de alguém que já por cá passou. Não é coisa velha ou requentada e já de cor sabida. O Evangelho é Jesus, que está no meio de nós, e nunca se anuncia ou enuncia no passado. Com este procedimento, Jesus está a dizer-nos que não podemos anunciar o Evangelho com os verbos no passado, sem nos comprometermos a fazê-lo acontecer Hoje, a apresentar Jesus Hoje. O Evangelho, que é Jesus, conta-se, anuncia-se e enuncia-se no presente. Envolve-nos e implica-nos em fazer acontecer Aquele que vamos anunciar, narrar e apresentar. Só assim é verdadeiro o testemunho do mensageiro, que se envolve em fazer acontecer o Evangelho, que é Jesus, o Cristo, o Messias-que-vem; só assim o destinatário pode ser igualmente envolvido na mensagem que o atinge, com Jesus a bater já à porta do seu coração.

5. Depois de os mensageiros de João Batista terem encetado a viagem de regresso, Jesus fala de João às multidões, mostrando a verdadeira identidade de João. Diz Jesus: «Este é aquele de quem está escrito: “Eis que Eu envio o meu mensageiro diante de ti, o qual preparará o teu caminho diante de ti”» (Mateus 11,10). A ninguém passará despercebido que se trata de uma citação do profeta Malaquias 3,1. Malaquias põe Deus a falar em primeira pessoa desta maneira (salientamos os pronomes, pondo-os em itálico): «Eis que Eu envio o meu mensageiro, e ele preparará o meu caminho diante de mim…». O próprio Malaquias dirá mais à frente (3,23) que este mensageiro que vem adiante de Deus, preparando-lhe o caminho, é Elias, e Jesus acrescenta e atualiza que João «é o Elias que estava para vir» (Mateus 11,14). Voltemos então às palavras de Jesus, citando Malaquias, para falar de João Batista às multidões (reparemos nos pronomes agora também colocados em itálico): «Eis que Eu envio o meu mensageiro diante de ti, o qual preparará o teu caminho diante de ti». Vê-se bem que continua a ser o mensageiro de Deus (meu) que é enviado; é enviado, porém, não diante de Deus, mas diante de Jesus (ti), para preparar o caminho de Jesus (teu), adiante de Jesus (ti). É fácil perceber que o mensageiro é agora João Batista (que aparece no lugar de Elias). Mas também salta à vista que Jesus é Deus, pois, na citação atualizada de Malaquias, aparece no lugar de Deus. Aí está então em plenitude a resposta de Jesus para João Batista e para todos.

6. «Orvalho de luz» (Isaías 26,19) ou de lume, palha incendiada, vida nova a rebentar dos quatro cantos do nosso mundo inerte, em que os vivos quase já não chegam para sepultar os mortos (Sabedoria 18,12). Luzes e vozes de alegria que abrem olhos engessados, rompem ouvidos rombos, entupidos por mato e por silvas, levantam paralíticos que saltam como filhotes de gazela (Isaías 35,6), desatam línguas de mudos e nós cegos que asfixiam corações! Tantos caminhos que se abrem para os deserdados que não têm caminhos, nem luz, nem uma mão ou voz amiga, nem música de dança para ouvir. Mais do que caminhos, são passadeiras floridas, jardins e avenidas (Sabedoria 19,3), tanto sonho, tanta água, tanta luz a irromper pelo deserto, oh Isaías 35,1-6!

7. A avenida florida é no deserto, engenharia divina, que transporta os seus filhos queridos da escuridão da Babilónia para a luz em flor de Jerusalém. «Ele mesmo, Deus, andará por essa estrada» (Isaías 35,8), esse caminho, essa avenida. Estrada santa, passadeira de luz e de sentido, engenharia divina!

8. Arrisca um passo nessa estrada divina, nessa estrada de luz e de graça, meu irmão do Advento. Encontrarás com certeza alguém que te levará até Belém. É importante que essa estrada de Amor, Perdão, Bondade, Justiça e Paz chegue à tua porta, à tua casa, ao teu coração. Do coração de Deus ao teu coração. Do teu coração ao coração do teu irmão.

9. Com paciência, persistência, humildade e amor. Sê como o camponês, que acaricia a semente, lavra a terra, visita o campo para ver crescer devagarinho a plantação. Vela também sobre o teu coração, para que não se torne duro e pesado. Vigia com amor, como quem está sempre à espera de alguém que ama, à espera do Senhor que vem. E pode vir na pessoa de um irmão. Não digais mal uns dos outros. Grande lição de Tiago 5,7-10.

10. Vê-se bem que o melhor e mais belo que anda por aí não é obra nossa. É engenharia de Deus a inundar de Luz este Domingo da Alegria! A nós compete-nos deixar entrar em nós esta torrente de Evangelho, e começar então a ver, sentir e dizer bem, belo e bom. Ajustar a esquadria do nosso coração por essa divina engenharia.

11. É assim que o Salmo 146, que é uma espécie de carrilhão musical, nos convida a cantar os «doze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os doze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (ʼemet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos, defensor dos últimos (3), que dá pão aos famintos (4), que liberta os prisioneiros (5), que abre os olhos aos cegos (6), que levanta os abatidos (7), que ama os justos (8), que protege os estrangeiros (9), que sustenta o órfão e a viúva (10), que entrava o caminho dos ímpios (11), o Deus que reina eternamente (12). Este maravilhoso Salmo ajuda-nos saborear musicalmente toda a liturgia de hoje.

…..

São estes os caminhos do Advento,

Cheiinhos do vento do Espírito,

Que derruba as folhas secas das árvores,

E nos faz ver

Que somos todos como a erva,

E a nossa glória não é mais do que a flor da erva.

Mas seca a erva e murcha a flor,

E nós passamos.

…..

Sim, estamos de passagem.

Mas sentimos no rosto,

Ou talvez no coração,

A tua aragem mansa,

Que nos enche de paz e confiança.

…..

O Advento é uma escola de esperança

E de oração,

De coragem e de alento.

O Advento é uma viagem

Até ao nascimento

Do menino de Belém,

Lá,

E dentro de nós também.

…..

António Couto


IMACULADA CONCEIÇÃO DA VIRGEM SANTA MARIA

Dezembro 7, 2022

Gn 3,9-15.20; Sl 98; Rm 15,4-9; Lc 1,26-38

1. «Fazendo memória da Toda Santa, imaculada, sobre bendita, gloriosa Senhora nossa, Mãe de Deus e Sempre Virgem Maria, juntamente com todos os Santos, consagramo-nos nós e toda a nossa vida a Cristo Deus». Assim se conclui, no rito bizantino, a oração que abre a celebração deste Dia, à qual a assembleia responde: «a Ti, Senhor!». É o «fiat», o «faça-se» dito por Maria (Lucas 1,38), a Serva do Senhor, a ecoar também no nosso coração e a brotar dos nossos lábios. É o eco daquele «faça-se» de Deus na primeira página da Escritura Santa a ecoar no coração de Maria e no nosso também. É aquele «Sim» imenso que atravessa as primeiras 452 palavras da Escritura Santa (Génesis 1,1-2,4a), onde não se lê um único «Não». «Tudo, na verdade, foi feito pelo Verbo» (João 1,3), «n’Ele foram criadas todas as coisas» (Colossenses 1,16), e o Verbo incarnado, Jesus Cristo, no dizer do Apóstolo, «foi sempre Sim, e nunca não» (2 Coríntios 1,19). Aí está a filigrana que faz vibrar a melodia e mostra a verdadeira harmonia da Escritura. Imensa sintonia a ecoar hoje em tantos corações! As partituras desta música divina vêm hoje de Lucas 1,26-38, Génesis 3,9-15.20, Romanos 15,4-9 e do Salmo 98.

2. É bom sabermos e sentirmos que as Igrejas do Oriente e do Ocidente, embora divididas entre si, nos dias 8 e 9 de Dezembro (8 no Ocidente e 9 no Oriente), nove meses antes da Festa da sua Natividade (8 de Setembro), juntam as suas vozes em maravilhosa harmonia para celebrar a Mãe de Deus no singular privilégio da Conceição Imaculada da sua humanidade.

3. Bem sabemos, além disso, que os Coptos dedicam a Maria o inteiro mês de Kiahq, que coincide mais ou menos com o nosso mês de Dezembro, e os Caldeus, os Antioquenos e os Maronitas celebram, também nesta altura do ano, e durante pelo menos quatro Domingos, o tempo do chamado Sûbbarâ ou «Anunciação» ou «Evangelização», Vinda de Deus ao nosso mundo, notícia após notícia, para abrir as nossas trincheiras e fazer nascer em nós um mundo novo, um cântico novo.

4. «Onde estás?», pergunta o Deus-Que-Vem por amor ao encontro da sua criatura dileta (Génesis 3,9). «Tive medo e escondi-me», respondemos nós, amedrontados (Génesis 3,10). A narrativa exemplar de Génesis 3, que hoje lemos, desvenda todas as nossas inúteis estratégias de defesa, e faz-nos ver como nós nos escondemos de nós mesmos e de Deus, e como alijamos facilmente as nossas culpas sobre os outros. Correto, limpo, terapêutico, salvador, era assumirmos e confessarmos humildemente as nossas culpas. Mas não. Fugimos, escondemo-nos de nós e de Deus, e respondemos: «Foi a mulher», «foi aquele», «foi aquela», e, em última análise, «foste Tu, foste Tu, Deus» (Génesis 3,12), porque foste Tu que me deste a maravilha de um irmão, de uma irmã, e foi esse irmão dado por Ti, essa irmã dada por Ti, que me deu a comer aquele fruto, fruto de um furto! És Tu, portanto, e em última análise, o culpado. Aí estamos nós a fugir de nós mesmos, e a acusar os outros! E se não assumimos as nossas culpas, como podemos corrigir os nossos erros, e como podemos chegar a descobrir a realidade humana e divina do perdão? Sim, porque quando nos escondemos de Deus, estamos também a esconder Deus e os seus dons, a Alegria, o Amor, o Perdão.

5. Sim, esta história tem a ver connosco. Estando o Rabi Shneur Zalman (1745-1812) preso em S. Petersburgo, entrou na sua cela o comandante da guarda, e pôs-se a conversar com ele sobre assuntos diversos. No final, perguntou: «Como se deve interpretar que Deus Omnisciente pergunte a Adam: “Onde estás?”». «Você acredita, respondeu o Rabi, que a Escritura é eterna e que diz respeito a todos os tempos, a todas as gerações e a todas as pessoas?». «Sim, acredito», disse o comandante da guarda. «Então, respondeu o Rabi, em cada tempo Deus pergunta a cada homem: “Onde estás no teu mundo? Dos dias e dos anos que te foram atribuídos, já passaram muitos: entretanto, até onde é que tu chegaste no teu mundo?”. Deus disse, por exemplo: “Vê, já há 46 anos que andas aqui. Onde te encontras?”». Ao ouvir o número exato dos seus anos, o comandante sentiu dificuldade em controlar-se, pôs a mão no ombro do Rabi, e exclamou: «Bravo!». Mas o seu coração tremia.

6. É usual dizer-se que esta conhecida página do Livro do Génesis narra a entrada do mal no coração do homem e no mundo. Mas do que se trata mesmo é da importância da relação do homem com Deus, e diz-nos que o mal entra no mundo quando o homem quebra esta relação e se desliga de Deus. Por isso também, daí para a frente, a Escritura Santa ocupa-se em mostrar que a resposta a dar ao mal não é apenas o bem, mas o santo. Entenda-se: não o homem fechado sobre si, autossuficiente e autorreferencial, mas completamente aberto e voltado para Deus, de quem por amor tudo recebe e se recebe. E completamente voltado para os outros, a quem tudo entrega por amor. Como Maria, a figura deste luminoso Dia.

7. Em perfeita sintonia, aí está o Apóstolo a dizer o fundamental: «que Deus nos escolheu para sermos santos» (Efésios 1,4) e para nos dar, através de Jesus Cristo, a nossa verdadeira identidade, a filiação divina (hyiothesía) (Efésios 1,5). Entrando assim, por graça, na casa de Deus (Efésios 4,19), andaremos sempre na sua presença. Ele é o Deus Santo que nos santifica. Escutemos também a melodia admirável em que o Apóstolo nos faz entrar na Carta aos Romanos 15,4-9. Como seria belo um mundo pautado por uma verdadeira fraternidade em que todos vivêssemos sob o impulso e o alento carinhoso e criador de Deus. Na verdade, todos respiramos o mesmo alento, que o texto grego diz com o belo termo composto homothymadón (Romanos 15,6), que junta homós [= mesma] e thymós [= alma], sendo que thymós deriva de thýô [= soprar]. E que mundo maravilhoso surgiria, rompendo a crosta do egoísmo e da dureza de coração, se «nos acolhêssemos uns aos outros, como Cristo nos acolheu a nós» (Romanos 15,7). Aí está então a comunidade humana irmanada e reunida, porque todos recebemos de Deus o mesmo alento, o mesmo sopro criador (Génesis 2,7), e com uma só boca (en henì stómati) e a uma só voz cantamos os louvores do nosso Deus (Romanos 15,6), autor de tantas maravilhas (Êxodo 15,11)! Esta linguagem e esta harmonia enchem por inteiro a comunidade primitiva (Atos 1,14; 2,46; 5,12).

8. O ícone desta santidade, neste mundo, é Maria, no grande texto da Anunciação (Lucas 1,26-38). Vale a pena contemplá-la demoradamente, como fazem as Igrejas do Oriente e do Ocidente. Ao contrário de nós, Maria, visitada por Deus, não foge, não se esconde de si mesma, não se esconde de Deus, não esconde Deus na sua vida. Tinha consagrado a Deus toda a sua vida e a sua virgindade. Não sendo usual no mundo judaico do seu tempo, esta maneira de viver em matrimónio está, porém solidamente documentada, e impõe-se mesmo que assim a compreendamos no texto da Anunciação. Cada vez mais me convenço, não querendo, no entanto, convencer ninguém, que o matrimónio de Maria e de José, como se pode entrever em contraluz nos interstícios dos textos de Mateus 1-2 e Lucas 1-2, não será tanto o quadro habitual do matrimónio em ordem à procriação, mas será mais o quadro de um matrimónio em ordem à proteção mútua (civil, religiosa, jurídica, social, económica…), e cuja finalidade não é a procriação, mas a dedicação total de duas pessoas às coisas de Deus. Neste quadro religioso, jurídico, social, não é de estranhar que Maria seja apresentada como «virgem casada» (parthénos emnêsteuménê) (Lucas 1,27; 2,5) que, perante o anúncio do Anjo Gabriel de que há de conceber e dar à luz um filho (Lucas 1,31), avança a objeção concreta: «Como pode ser isso, pois não conheço homem?» (Lc 1,34). Eu entendo e entenda quem puder que, no quadro de um matrimónio habitual, esta objeção não faria sentido, pois se se tratasse de um matrimónio habitual, mais dia, menos dia, sempre Maria haveria de ter um filho. Claramente, não estava no pensamento de Maria (e de José) vir a ter um filho. Faço notar que este estatuto é conhecido no judaísmo [(tratado Niddah, da Mishnah judaica, e ver também as anotações precisas de Ireneu de Lião (130-202) e de Tertuliano de Cartago (160-220)]. Tudo ao contrário, por exemplo, de Isabel e Zacarias que muito tinham rezado para que Deus lhes desse um filho, e foram atendidos, no dizer de Gabriel (Lucas 1,13).

9. Não sendo usual no mundo judaico do seu tempo, esta maneira de viver o matrimónio, além de estar documentada no judaísmo, é a que melhor explica a objeção de Maria ao anjo (de outro modo, no contexto de um matrimónio habitual, mais dia, menos dia, sempre Maria haveria de ter um filho). Ao contrário do homem do Génesis e desta sociedade em que vivemos, Maria não se esconde de Deus nem esconde Deus. Expõe-se, na sua verdade e simplicidade, ao imenso clarão de Deus. É assim que se expõe a Deus e que expõe Deus, recebendo e aceitando com amor intenso a sua nova Vocação que lhe vem de Deus. Maria vai ser a Mãe, não de um filho, mas do Filho há muito ansiado, esperado e anunciado nas páginas da Escritura Santa Antiga. É o Filho de Deus, totalmente consubstancial a Deus, e é o Filho de Maria, totalmente consubstancial à sua Mãe. Santa Maria, Mãe de Deus.

10. Por isso, «Alegra-te, Maria» [= «Chaîre Maria»; «Ave Maria»], «não tenhas medo», «o Senhor está contigo» (Lucas 1, 28 e 30). Não se trata de uma simples saudação, de um «Olá», como deixa supor a tradução latina, mas de uma verdadeira enxurrada de Evangelho. Com razão, os nossos irmãos do Oriente chamam a este episódio «Evangelização». Alguns anos mais tarde, as mulheres que vão ao túmulo de Jesus ouvirão também a mesma música divina: «Alegrai-vos», «não tenhais medo» (Mateus 28,5 e 9). E nós, Assembleia Santa que hoje se reúne para celebrar os mistérios do seu Senhor e também de Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, estamos também permanentemente a ouvir esta divina melodia. Portanto, irmãos amados em Cristo, Alegrai-vos, não tenhais medo, o Senhor está no meio de nós!

11. «Eis a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua Palavra» (Lucas 1,38). Em toda a Escritura Santa, nenhuma mulher, exceto Maria, aparece chamada «a serva do Senhor». Deus chama, mas não impõe. A Maria, e a cada um de nós. Podemos sempre aceitar Deus ou esconder-nos de Deus. Deixar Deus entrar, ou fechar-lhe a porta. Maria aceitou, e, por isso, todas as gerações a proclamarão Bem-aventurada (Lucas 1,48). É o que estamos hoje e aqui a fazer: Feliz és tu, Maria, pioneira de um mundo novo, porque acreditaste em tudo quanto te foi dito da parte do Senhor (Lucas 1,45)! Feliz também aquele que ouve a Palavra de Deus e a põe em prática (Lucas 11,28)!

12. Memorial desta beleza incandescente é a Basílica da Anunciação, em Nazaré. Esta grandiosa Basílica, em três planos, foi inaugurada em 25 de Março de 1969, e foi visitada, ainda as obras estavam em curso, em 1964, pelo Papa Paulo VI. Escavações feitas antes desta grandiosa construção puseram a descoberto, e podem ver-se ainda hoje, os majestosos pilares de uma Catedral levantada em 1099, pelo príncipe cruzado Tancredo, bem como o pavimento em mosaico de uma igreja bizantina, que pode ser datada do ano 450. Mas, descendo mais fundo, até às entranhas da atual Basílica, acede-se à Gruta da Anunciação, sob cujo altar se lê a inscrição Verbum caro hic factum est [«Aqui o Verbo se fez carne»], e a outros lugares de culto antigos, talvez já do século II. Numa grafite antiga foi encontrada a gravação XE MAPIA, abreviação de Chaîre Maria, a primeira Ave-Maria da história.

13. Foi o Concílio de Basileia (1439) que sugeriu a definição do dogma da Imaculada Conceição, proclamado depois por Pio IX em 08 de Dezembro de 1854, através da bula Ineffabilis Deus. Note-se que o termo «conceção», na linguagem bíblica, indica a totalidade da existência. O velho orante do Salmo 71, olhando retrospetivamente para a sua vida de fidelidade e de amor, exclama extasiado: «Sobre ti me apoiei desde o ventre, desde as entranhas de minha mãe» (Salmo 71,6). Assim também, a existência de Maria está, desde o seu início, sob a proteção de Deus, marcada com o selo de Deus, não estando nunca sob o selo do pecado original, que mostra a existência humana marcada por um projeto alternativo ao de Deus, em que cada existência humana, eu, o meu pai, os filhos que aparecerão sobre a face da terra, queremos ser por nossas próprias forças «como deus, conhecedores do bem e mal» (Génesis 3,5).

14. Esta celebração da Mãe de Deus e nossa Mãe e Padroeira Principal de Portugal é um desafio imenso para o homem «em fuga» deste tempo, que se esconde de si mesmo, que continua a esconder-se de Deus, e que pretende esconder Deus, retirando-o da via pública e da vida pública. Atravessamos verdadeiramente a «noite do mundo» (Weltnacht), diz Martin Heidegger, onde «Cada um está sozinho no coração da terra/ atravessado por um raio de sol:/ e é logo noite», como bem escreve o escritor italiano Salvatore Quasimodo. Homem deste tempo às escuras, engessado, triste, exilado, escondido, anestesiado, medicado, volta para a Luz, reentra em tua casa, no teu coração despedaçado. Há de seguramente por lá haver ainda, caída no fundo da alma, uma lágrima dorida e uma mão de Mãe à tua espera!

…..

Senhora de dezembro,

Maria, minha Mãe,

Passa hoje o dia

Da tua Imaculada Conceição.

…..

Senhora de dezembro,

Dos dias frios e frágeis,

Dos passos firmes e ágeis,

Do coração que velava

À espera de quem te amava.

…..

Assim te entregaste a Deus,

De coração inteiro,

Como um tinteiro

Todo derramado numa página.

…..

Tu és a mais bela página de Deus,

A Deus doada, apresentada, dedicada,

Mãe da vida consagrada,

Imaculada,

Ensina-me a tua tabuada,

A tua nova alegria,

A luz do Evangelho que te aquece e alumia.

…..

Eu te saúdo, Maria,

Neste dia da tua Imaculada Conceição.

Ave-Maria.

…..

António Couto


PREPARAI O CAMINHO DO SENHOR

Dezembro 2, 2022

Is 11,1-10; Sl 72; Rm 15,4-9; Mt 3,1-12

1. O texto do Evangelho deste Domingo II do Advento (Mateus 3,1-12) apresenta algumas notas salientes que reclamam a nossa atenção. 1) É notória a sintonia de João com Jesus, dado que ambos abrem o seu ministério, dizendo as mesmas palavras: «Convertei-vos, porque se fez próximo o Reino dos Céus» (Mateus 3,2; cf. Mateus 4,17). 2) O ministério de ambos é colocado com referência a belas e indicativas paisagens textuais de Isaías: «Uma voz clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas”», é o lema do ministério de João Batista, como se pode ver em Mateus 3,3, citando Isaías 40,3. Por sua vez, «Terra de Zabulão e terra de Neftali, caminho do mar, região de além do Jordão, Galileia dos gentios: o povo que jazia nas trevas viu uma grande luz…», é o lema do ministério de Jesus, como se pode ver em Mateus 4,14-16, cumprindo Isaías 8,23-9,1. 3) Ambos abrem no deserto a sua missão, evocando o Êxodo do Egito, o novo Êxodo da Babilónia (Ezequiel 20,33-38) e o Êxodo do noivado de Deus com Israel (Oseias 2,16-23), mas também a febre messiânica que situava no deserto o princípio da renovação escatológica (cf. Mateus 24,26): em todos os casos, o deserto evoca a proximidade com Deus, o povo «a céu aberto» com Deus. 4) A indumentária de João Batista (Mateus 3,4) evoca a de Elias (2 Reis 1,8). Em toda a Escritura, só os dois se vestem de pêlos de camelo com um cinturão de couro. De resto, também Jesus identifica João Batista com Elias (Mateus 11,14; 17,12-13). De notar ainda que, na interpretação de Malaquias 3,23, o ministério de Elias não tem a ver com a vinda de outro profeta, mas com a Vinda do próprio Deus. Sem equívocos então: em Jesus não se trata da vinda de outro profeta, mas da Vinda do próprio Deus!

2. É para esta Vinda de Deus em Jesus que todos se devem preparar. E é porque esta Vinda é vista como importante e decisiva, que é requerida uma preparação. A Vinda d’Aquele-que-Vem é tão importante, que não basta ficar tranquilamente à espera d’Ele. É preciso preparar-se para essa Vinda. Fazer com que todas as pessoas se preparem para esta Vinda, eis a missão de João Batista, que assume traços específicos. De modo estranhamente diferente dos outros profetas, João Batista não vai pregar para as cidades e aldeias ao encontro das pessoas, mas vai para o deserto, e são as pessoas que têm de ir ter com ele. E não são apenas algumas. São todas. O texto diz expressamente «toda a Judeia» e «toda a região à volta do Jordão» (v. 5). É ainda de salientar que, para se deslocarem ao deserto, as pessoas têm de deixar os seus afazeres habituais. Deixar tudo para trás e ir para o deserto, lugar que evoca, de muitos modos, a proximidade de Deus, como já mostrámos atrás em 1.3). É esta realidade que exige adequada preparação. Para ter acesso à Presença de Deus e ao seu serviço, impõe-se que se tenha um coração puro (Salmo 24,3-5), pelo que é necessário fazer as necessárias imersões ou abluções com água pura. Não é que a água lave o coração, mas é disso um indicador. Estas purificações rituais com água pura, banhos e outras abluções, eram feitas pelas próprias pessoas. Mas agora estamos perante um facto novo. Não são as pessoas que se purificam na água. É João Batista que as introduz na água. E para significar e implicar a necessária purificação, não apenas exterior, mas sobretudo interior, João exige das pessoas a confissão dos pecados e a conversão, bem como a imersão ou batismo nas águas do Jordão, que traz à memória a travessia operada pelo povo de Israel, vindo do deserto, antes de entrar na Terra Prometida (Josué 3). E é também o rio que Elias atravessa antes de ser arrebatado para o céu (2 Reis 2,1-18). Ao rio Jordão anda, pois, associada a aproximação a Deus, à sua Vida, e aos seus dons.

3. E que significado atribuir à anotação da incompetência (ikanós) de João para «retirar» ou descalçar as sandálias d’Aquele-que-Vem (v. 11)? Será simplesmente uma confissão de humildade por parte de João face a Alguém que lhe é incomparavelmente superior? Esta tonalidade está certamente presente, mas não esgota a metáfora das sandálias. Trata-se, desde logo, de um dizer importante, pois encontramo-lo por cinco vezes no Novo Testamento: Mateus 3,11; Marcos 1,7; Lucas 3,16; João 1,27; Atos dos Apóstolos 13,25. Num célebre artigo, intitulado «As sandálias do Messias Noivo», Luís Alonso-Schökel levou este dizer e esta metáfora para o domínio da esponsalidade do Messias. De acordo com o referido nos Salmos 60,10 e 108,9, «pôr a sandália sobre» significa «tomar posse»; é, portanto, linguagem jurídica de posse. No Livro do Deuteronómio 25,5-9, o não-cumprimento da lei do levirato implica que seja «retirada» a sandália ao cunhado não cumpridor da lei, gesto que garante a sua perda de posse no domínio matrimonial. Aqui já se trata de direito matrimonial. Em Rute 4,7-10, temos um caso jurídico concreto em que o que tem o direito de resgatar o património e de desposar Rute prescinde desse direito. Para o dizer juridicamente, em reunião pública realizada à porta da cidade (Rute 4,1), o homem em causa «retira» a sandália e entrega-a a Booz, que fica assim com o direito de resgatar o património e de desposar Rute. A metáfora da sandália em Mateus 4,11 e nos demais dizeres do Novo Testamento que anotámos significa que é Jesus o noivo, a quem assiste o direito de desposar Israel, e que a João não assiste esse direito ou competência.

4. Se é evocada a continuidade dos ministérios de João e de Jesus, não deixa também de ser bem acentuado, por outro lado, o confronto entre os dois, pois têm esquemas messiânicos diferentes. 1) Vê-se bem que João Batista anuncia um Messias-Juiz, que traz na mão o machado e a pá de joeirar (3,10-12), ao passo que Jesus assume a figura de Servo-do-Senhor manso e humilde (12,17-21). 2) O apelo à conversão que João faz não é dirigido apenas aos pagãos e aos pecadores, mas também aos israelitas piedosos (3,7-10): portanto, face ao Messias-Juiz-que-Vem, também os justos se devem converter; não é a raça de Abraão que conta, mas a fé. 3) A conversão manifesta-se em fazer fruto, uma ideia recorrente em Mateus (cf. 7,16-20; 12,33; 13,8; 21,41 e 43; 25,40 e 45…). 4) A conversão, aqui expressa pelo verbo grego metanoéô, não deve ser vista apenas pelo seu significado etimológico: mudar de mentalidade. Seria uma maneira de ver muito intimista, mostraria o homem debruçado sobre si mesmo, sobre os seus pecados. Ora, a raiz hebraica shûb, sobretudo depois de Jeremias (Isaías 31,6; 45,22; 55,7; Jeremias 3,7.10.14.22; 4,1; 8,5; 18,11; 24,7; 25,5; 26,3; 35,15; 36,7; 44,5; Lamentações 3,40; Ezequiel 13,22; 14,6; 18,23 e 30; 33,9 e 11; Oseias 11,5; 12,6; 14,1-2; Joel 2,12-13; Zacarias 1,3-4; Malaquias 3,7), não implica o dobrar-se do homem sobre si mesmo, mas endireitar-se e orientar-se para ALGUÉM, para Deus, com quem o ser humano cortou relações, distanciando-se e quebrando a aliança. Esta ideia de conversão como caminho de regresso a Deus estava muito disseminada no judaísmo primitivo, mas era desconhecida no mundo grego. 5) À vista de Jesus-que-Vem no meio da multidão, como verdadeiro Servo-do-Senhor (3,13-14), que assume as faltas da multidão, João fica confuso. Na verdade, esperava um Juiz, e não um Servo solidário com o povo no pecado, como indica o facto de Jesus vir no meio do povo a este batismo de penitência. 6) Além disso, e contra todas as expetativas de João, Jesus não vem para batizar, mas para ser batizado (3,11.13-14). 7) O diálogo travado neste lugar entre João Batista e Jesus (3,14-15), que nenhum outro Evangelho descreve, e em que João mostra o seu desacordo com o facto de ter de ser ele a batizar Jesus e não o contrário, é ultrapassado por Jesus que profere aqui as suas primeiras palavras neste Evangelho: «é bom que seja cumprida toda a justiça» (v. 15). A justiça, termo muito em uso neste Evangelho em que se faz ouvir por sete vezes (Mateus 3,15; 5,6.10.20; 6,1.33; 21,32), traduz o plano divino de salvação, que é a divina surpresa, e requer a adequação da nossa vontade a esse plano, melhor dito, a essa surpresa. Sendo as primeiras palavras de Jesus, e por isso importantes e analépticas, rasgam uma avenida de sentido que Jesus seguirá até à Cruz: obediência ao Pai e solidariedade com o povo pecador. Rutura clara com a esperança messiânica de João e do mundo judaico desse tempo, mas sintonia com o significado verdadeiro das Escrituras. A conversão a que João e o judaísmo e cada um de nós somos convidados é um regresso à sintonia com a Palavra de Deus. Pelo que o verdadeiro judeu e o verdadeiro homem é aquele que se faz cristão. Torna-se então notório o sonho de um Deus que desce ao nosso mundo, não para nos condenar ou derrubar, mas para se tornar solidário connosco e caminhar no meio de nós.

5. Isaías 11,1-10, que serve hoje de ressonância ao Evangelho de hoje, mostra muito mais o tom manso e suave do Servo-do-Senhor que Jesus incarna do que o martelo do Juiz que João Batista prenuncia. Isaías abre diante de nós um mundo novo, tenro e terno, que, visto desde este nosso mundo escuro e tantas vezes desumano, soa a sonho. Ei-lo desenhado nestes versos imensos: «Então o lobo habitará com o cordeiro,/ o leopardo deitar-se-á com o cabrito,/ o bezerro e o leãozinho andarão juntos,/ e um menino pequeno os conduzirá.// A vaca e o urso pastarão juntos,/ juntas se deitarão as suas crias,/ o leão comerá feno com o boi,/ e a criança de peito brincará com a víbora» (Isaías 11,6-8).

6. Avista-se daqui o Menino de Belém. Uma paz a perder de vista, sem princípio e sem fim. Um mundo novo governado por um menino pequeno. Vê-se bem que este mundo belo e manso não se parece nada com o nosso, cheio de raivas e de ódios, invejas, mentiras, manhas, astúcias, violências e guerras. Nenhum menino poderia governar um mundo assim. E o problema que nos assalta não está no menino; está neste nosso mundo mentiroso, fraudulento e violento.

7. Contra este mundo empedernido e embrutecido embate a ternura do Menino de Belém. Entenda-se bem outra vez: não é o menino que está errado; somos nós que estamos completamente errados e equivocados. É por isso que somos convidados à conversão.

8. O mundo novo e saboroso que emerge dos textos de hoje é também sublinhado por S. Paulo nas exortações que nos dirige na Carta endereçada aos Romanos 15,4-9. Como seria belo um mundo pautado por uma verdadeira fraternidade em que todos vivêssemos sob o impulso e o alento carinhoso e criador de Deus. Na verdade, todos respiramos o mesmo alento, que o texto grego diz com o belo termo composto homothymadón (Romanos 15,6), que junta homós [= mesma] e thymós [= alma], sendo que thymós deriva de thýô [= soprar]. E que mundo maravilhoso surgiria, rompendo a crosta do egoísmo e da dureza de coração, se «nos acolhêssemos uns aos outros, como Cristo nos acolheu a nós» (Romanos 15,7). Aí está então a comunidade humana irmanada e reunida, porque todos recebemos de Deus o mesmo alento, o mesmo sopro criador (Génesis 2,7), e com uma só boca (en henì stómati) e a uma só voz cantamos os louvores do nosso Deus (Romanos 15,6). Esta linguagem e esta harmonia enchem por inteiro a comunidade primitiva (Atos 1,14; 2,46; 5,12).

9. Também os versos sublimes do Salmo Real 72 cantam a mesma melodia de alegria que se insinua nas pregas do coração da inteira humanidade maravilhada com a presença de Rei tão carinhoso. Também aqui encontramos a hiperbólica «idade do ouro», o grão que cresce mesmo no cimo das colinas, e a felicidade dos pobres, que serão sempre os melhores «clientes» de Deus. Extraordinária condensação da esperança da nossa humanidade à deriva, e a que só Deus pode responder.

António Couto