POR UMA NOVA ORDEM ASSENTE, NÃO NO PODER, MAS NO AMOR

Novembro 23, 2012

 

1. A «Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei», com esta denominação, foi instituída pelo Papa Pio XI, em 11 de Dezembro de 1925, com a Carta Encíclica Quas Primas. Os tempos apresentavam-se sombrios e turvos e os céus nublados como os de hoje, e Pio XI, homem de acção, que já tinha fundado a Acção Católica em 1922, instituiu então esta Festa com o intuito de promover a militância católica e ajudar a sociedade a revestir-se dos valores cristãos. A Festa de Cristo Rei era então celebrada no último Domingo de Outubro. A reorganização da Liturgia no pós-Concílio passou esta Festa para o último Domingo do Ano Litúrgico, alterando-lhe a denominação para «Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo».

 2. «O Senhor Reina». É assim que abre o Salmo 93(92), que hoje cantamos. Esta locução verbal – «o Senhor reina» – é também a mais usual no Antigo Testamento para dizer Deus na acção de reinar, isto é, de salvar, justificar, perdoar, criar. Na verdade, reinar é salvar, isto é, trazer a prosperidade, o bem-estar e a alegria ao seu Povo. É esta a missão do rei bíblico. Salvar é justificar. Justificar é, no seu sentido mais profundo, transformar um pecador em justo. Justificar é, portanto, perdoar. Neste profundo sentido bíblico, justificar e perdoar são acções que só Deus pode fazer, dado que, transformar um pecador em justo é igual a criar ou recriar. E da acção de criar também só Deus é o sujeito em toda a Escritura. Já se sabe que o Novo Testamento transforma o activo «Deus Reina» no mais abstracto «Reino de Deus».

 3. Tanta e quase indescritível riqueza a de um Deus, que o Livro de Daniel 7,3-12 apresenta solenemente sentado no seu trono de Luz e de Fogo purificador, que inutiliza o poder das quatro bestas enormes saídas do mar com aspecto terrível, e que têm o aspecto de um leão com asas de águia, de um urso com costelas na boca, de um leopardo alado com quatro cabeças, e de um monstro metálico aterrorizador, com enormes dentes de ferro que tudo tritura e espezinha. Tinha ainda dez chifres na cabeça, mas nasceu-lhe entretanto um outro mais pequeno e insolente, com uma boca que proferia palavras arrogantes. Estas bestas representam quatro impérios: babilónio, medo, persa e grego (de Alexandre Magno e seus sucessores). Os dez chifres são os reis da dinastia Selêucida, e o décimo primeiro é Antíoco IV Epifânio (175-163). O tribunal divino toma assento para julgar o arrogante Antíoco, que é morto e destruído. E vê-se então, em contraponto com as bestas que saem do mar, símbolo da desordem e do mal, o Filho do Homem que vem sobre as nuvens, do mundo celeste portanto. A ele é entregue o reino eterno, não assente no poder prepotente da brutalidade, mas no poder manso do Amor (Daniel 7,13-14).

 4. No Livro do Apocalipse 1,5-8, este Filho do Homem tem um nome. Chama-se Jesus Cristo. Aparece igualmente sobre as nuvens do céu e ostenta, entre outros, o belíssimo título de «Aquele que nos ama» (Apocalipse 1,5). E é por este Amor levado ao extremo que vence, sem combater, este combate, amando, abraçando, sofrendo e dissolvendo o poder da brutalidade, como sucede aos poderosos da terra na batalha de Harmagedôn (Apocalipse 16,14 e 16; 17,14; 19,11-21). Também não é assim de admirar que, neste grande Livro do Apocalipse, o mar, que já vimos no Livro de Daniel como fonte da confusão e do mal, deixe de existir (Apocalipse 21,1). Vem assim a toda a luz a soberania nova do Filho do Homem, que é Jesus, «Aquele que nos ama». A sua soberania é o Amor, que é Primeiro e Último (Apocalipse 1,8). É Primeiro, e, por ser Primeiro, é também Último. Se é Primeiro e é também Último, então o Amor é a soberania verdadeira, a única soberania portanto, porque tudo o resto cai e fica pelo caminho. Entre o Primeiro e o Último instala-se o penúltimo, que é o poder velho e podre da violência e da brutalidade das bestas ferozes que nos habitam. O Bem é de sempre e é para sempre. É Primeiro e é Último. O Bem não começou, portanto. O que começou foi o mal, que se foi insinuando nas pregas do nosso coração. Mas o que começa, também acaba. Os impérios da nossa violência, malvadez e estupidez caem, imagine-se, vencidos por um Amor frágil que é desde sempre e para sempre, e que vence, sem combater, a nossa prepotência!

 5. Tem de ser sem combater. Porque, se combatesse, usaria os nossos métodos, e apenas aumentaria a violência. É assim que Jesus atravessa as páginas dos Evangelhos e da nossa história, entregando-se por Amor à nossa violência, abraçando-a e, portanto, sofrendo-a e dissolvendo-a. É assim que o Amor Reina, Salva, Justifica, Perdoa e Recria. Os Judeus e Pilatos representam, no Evangelho de hoje (João 18,33-37), os impérios envelhecidos, podres e caducos da nossa violência e estupidez. Os quatro Evangelhos documentam a pergunta de Pilatos a Jesus: «Tu és o rei dos Judeus?» (Mateus 27,11; Marcos 15,2; Lucas 23,3; João 18,33). Nos sinópticos, Jesus dá uma resposta breve, para logo se remeter ao silêncio (Mateus 27,12; Marcos 15,4; Lucas 23,9), à maneira do Servo de Yahveh (Isaías 53,7). João, ao contrário, apresenta um longo diálogo entre Jesus e Pilatos, em que o ponto mais alto está nas palavras de Jesus: «O meu reino não é deste mundo / O meu reino não é daqui» (João 18,36). E explica bem Jesus a Pilatos e a nós que, se o seu reino fosse deste mundo /daqui, lá estariam certamente, para o defender, as suas forças militares. Em vez dessa quinquilharia, o seu Reino assenta num Amor novo e subversivo, que não pode deixar de amar a nossa violência até ao fim e ao fundo, sorvendo-lhe todo o veneno.

 6. As coisas são de tal ordem, tão novas, que, daqui para a frente, a partir da entrada de um tal amor no mundo, todas as formas de poder se devem considerar superadas. Na verdade, Jesus é Rei na medida em que contrapõe o amor ao poder. A Igreja participa nesta soberania de Cristo, assumindo até ao fim a mais humilde e radical atitude de serviço à humanidade, de acordo com o chamado código da autoridade cristã: «Sabeis que aqueles que se consideram chefes das nações, as dominam, e os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não será assim entre vós; ao contrário, aquele que quiser tornar-se grande entre vós, seja vosso servo, e aquele que queira ser o primeiro entre vós, seja escravo de todos. Na verdade, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos» (Marcos 10,42-45). Compete à Igreja manter bem aberta esta ferida que Cristo infligiu ao poder e ao mal.

 7. Vem, Senhor Jesus! Ilumina com a tua Luz nova as trevas, as pregas e as pedras do nosso coração empedernido. Reina sobre nós, Salva-nos, Justifica-nos, Perdoa-nos, Recria-nos. Faz-nos outra vez à tua Imagem. Dissolve a besta brava que há em nós e que, à imagem de Caim, não fala, mas trucida e come o outro. Hoje é o Dia da celebração de um amor novo e de uma nova ordem assente, não no poder, mas no amor.

 António Couto


UM AMOR NOVO QUE VEM PÔR FIM AO MEU MUNDO

Novembro 16, 2012

 

1. O Livro de Daniel terá sido provavelmente escrito no Outono do ano 164 a.C., com o objectivo de encorajar os judeus piedosos a permanecerem firmes na sua fé em plena perseguição anti-judaica desencadeada três anos antes, em 167 a.C., pelo tirano Antíoco IV Epifânio, e cujos ecos se podem ver, por exemplo, no Segundo Livro dos Macabeus 6 e 7, que registra a fidelidade heróica do velho Eleazar e dos sete jovens irmãos Macabeus. Estes são, no dizer do Livro de Daniel 12,1-3, os mestres sábios (maskkilîm) e justificadores (matsddîqîm), isto é, dadores de vida: ensinam, não teorias, mas a vida verdadeira, dando a sua vida por amor: é assim que vencem os violentos, não opondo-se a eles, mas amando, isto é, dando a vida e dando vida, ensinando a viver. Estes novos sábios e justificadores são, diz o Livro de Daniel, as novas estrelas que brilham para sempre!

 2. Não são, portanto, as estrelas da moda, da música, do cinema ou do futebol, estrelas cadentes, de brilho efémero e passageiro! São as novas e verdadeiras estrelas de brilho permanente, inscritas no Céu ou no Livro da Vida (ver Daniel 12,1; Salmo 139,16; Isaías 4,3; Lucas 10,20; Apocalipse 20,12). As outras pobres estrelas estão, na verdade, inscritas no chão, no pó da terra (Jeremias 17,13), e lá se perdem e disperdem. Deus sabe escrever no coração (Jeremias 17,1; 31,33), na Cruz (Gálatas 3,1), e, como já vimos, no chão, e no Livro, mas também, num gesto de particular ternura, na palma da sua mão (Isaías 49,16).

 3. O cenário do Evangelho deste Domingo XXXIII do Tempo Comum (Marcos 13,24-32) não é de terror, mas de amor! Novos céus e nova terra, saídos das mãos de Deus-Pai, com o Filho-que-Vem, e que está próximo, à porta. É como o noivo do Cântico dos Cânticos 5,2, que bate à porta, descrito pela noiva que dorme, mas escuta com um coração sempre vigilante! Única atitude da Igreja Una e Santa, que Domingo após Domingo, se reúne com emoção e alegria à volta do seu Senhor-que-Vem. Tudo tão suave e tão cheio de maravilha: o nosso Deus revelando ou simplesmente com todo o carinho desvelando, isto é, retirando o véu que encobre a verdadeira realidade, perante os nossos olhos atónitos!

 4. Uma parte da Igreja antiga lia este «discurso escatológico» e outros textos similares do Novo Testamento no sentido da chegada iminente do «fim do mundo» (leitura ainda hoje desgraçadamente doentia nas seitas, com ano, dia e hora marcados!). Sim, é do «fim do mundo» que se trata, mas num sentido novo e inaudito: é a Palavra de Deus que não passa, e que é Amor e é Primeira e Última, sempre nova, portanto, que vem «pôr fim ao nosso mundo» de posse e egoísmo, auto-satisfação e auto-expansão ilimitada. É o Último, que é o Amor gratuito e desinteressado, que põe fim ao penúltimo, que é a nossa vã maneira de viver. Neste sentido novo, é de desejar que o nosso mundo velho e caduco entre em agonia e acabe já, para que comece verdadeiramente em nós e já um mundo novo e belo, cuja matriz é o Amor gratuito e incondicional. Neste sentido intenso e belo, vale a oração «Senhor, vem!» (marana tha’), porque, com sabedoria serena, sabemos que «o Senhor vem!» (maran ’atta’).

 5. O discurso de Jesus no inteiro Capítulo 13 de Marcos não é atravessado por nenhuma angústia nem sugere qualquer corrida desenfreada e frenética. Pelo contrário, por quatro vezes, Jesus interpela os seus discípulos a um comportamento atento: «vede bem», «estai atentos», «prestai atenção», grego blépete (Marcos 13,5.9.23.33), e igualmente por quatro vezes se faz ouvir a vigilância: «estai acordados», «vigiai», grego agrypnéô e grêgoréô (Marcos 13,33.34.35.37). Depois da admirável introdução deste Capítulo (Marcos 13,1-4), com um discípulo a comunicar a Jesus o seu espanto perante as belas pedras das construções herodianas do Templo (Marcos 13,1), Jesus volta-o para outro lado, dizendo: «Vês estas grandes construções? Não ficará pedra sobre pedra que não seja destruída» (Marcos 13,2). E, sentando-se (como quem ensina) no Monte das Oliveiras, voltado para o majestoso Templo, e interrogado por Pedro, Tiago, João e André sobre o «quando» e «qual o sinal» (Marcos 13,3-4), Jesus profere então o inteiro ensinamento deste grande Capítulo 13, que aparece organizado em três Partes: 1) em Marcos 13,5-23, Jesus fala de um tempo de tribulação, em que pulularão enganadores (Marcos 13,5-6), guerras (Marcos 7-8), perseguições (Marcos 13,9-13), e outra vez guerras (Marcos 13,14-20), enganadores (Marcos 13,21-23, e uma chamada de atenção (Marcos 13,23); 2) em Marcos 13,24-27, parte central, Jesus anuncia a vinda do Filho do Homem para reunir os seus eleitos; 3) em Marcos 13,28-37, intercalam-se informações e advertências.

 6. Note-se, colocada no centro da estrutura, que é sempre a Parte mais importante, a vinda do Filho do Homem. Não é informação nem enumeração. É anúncio, que põe fim ao penúltimo, à luz do sol, da lua e das estrelas (Génesis 1,14-19), obra do quarto dia da criação, e faz retornar tudo à luz primeira de Deus (Génesis 1,3), obra do primeiro dia da criação. Note-se ainda a importante instrução sapiencial da parábola da figueira (Marcos 13,28-29), imediatamente colocada após o anúncio da vinda do Filho do Homem: a atenção dos discípulos não deve centrar-se tanto naquilo que se vê (o verde das folhas na primavera), mas naquilo que não se vê (o verão e o Filho do Homem). Não se vêem ainda, mas estão próximos. Note-se este «próximo» (eggýs) do Filho do Homem (Marcos 13,28.29) a fazer inclusão com o anúncio do Reino de Deus, igualmente próximo (eggýs) em Marcos 1,15.

 7. O mundo-que-vem é a luz pura de Deus, obra nova e boa de Deus, e não é construído sobre as cinzas do nosso velho mundo.

António Couto


ORAÇÃO VOCACIONAL COM A MENSAGEM DO SÍNODO EM FUNDO

Novembro 13, 2012

 

Senhor Jesus Cristo,
Único Senhor da minha vida,
Bom Pastor dos meus passos inseguros
E do silêncio inquieto do meu coração,
Cheio de sonhos, anseios, dúvidas, inquietações.
 
Senhor Jesus,
Faz ressoar em mim a tua voz de paz e de ternura.
Eu sei que pronuncias o meu nome com doçura,
E me envias ao encontro daquele meu irmão que Te procura.
 
Fico contigo sentado junto ao poço.
Alumia o meu pobre coração.
Vejo que, de toda a parte, chega gente de cântaro na mão.
Dispõe de mim, Senhor,
Nesta hora de Nova Evangelização.
 
Que eu saiba, Senhor,
Interpretar bem a tua melodia.
Que eu saiba, Senhor,
Dizer sempre SIM como Maria.

 

António Couto


DAR O QUE SOBRA NÃO TEM A MARCA DE DEUS

Novembro 10, 2012

 

1. Um braçado de gravetos, um copo de água, um punhado de farinha, um tudo nada de azeite. Juntando as pontas destes fios, a viúva de Sarepta prepara-se para fazer uma última refeição de despedida da vida juntamente com o seu filho único. É nesta terra quase a terminar, onde já mal se tem pé, nesta vida quase a expirar, que surge Elias, o homem de Deus, conduzido por Deus, que atira à pobre mulher mais um fio de voz e de esperança a que se agarrar: Deus. Não é a quantidade que importa; o que importa é a totalidade. Pelo fio de voz e de esperança de Elias, Deus não reclama alguma coisa; reclama tudo: o coração todo, a alma toda, a confiança toda, as forças todas! E nem a farinha se esgota na amassadeira, nem o fio de azeite deixa de cair da almotolia! Extraordinária lição para a pobre viúva de Sarepta (Primeiro Livro dos Reis 17,10-16) e para nós, que atravessamos a secura da paisagem desta terra de Novembro.

 2. O coração todo, a alma toda, a confiança toda, as forças todas: assim se ouve ou se lê no famoso Shemaʽ Yisraʼel [= «Escuta, Israel], de Deuteronómio 6,4-5, que tivemos a graça de ouvir no Domingo passado. E nesse lugar se diz também a Israel que deve formar com essas palavras um fio de luz e de sentido que deve atar ao coração, às mãos, aos pés, aos filhos (Deuteronómio 6,6-9). Este fio é fundamental para segurar as pontas dos podres, pobres fios da nossa vida.

 3. Bem, neste contexto, o fio ou a linha poética e melódica do Salmo 146(145), que põe Deus tão perto de nós, a fazer justiça aos oprimidos, a dar pão aos que têm fome, a tomar a seu cuidado o órfão e a viúva, e a atirar-me todo para Deus, com aquele grito repetido: «Ó minha alma, louva o Senhor!»

 4. Na verdade, «Deus habita nos louvores de Israel» (Salmo 22(21),4). Habita nos nossos louvores, na nossa dedicação e devotação total a Ele, na nossa vida posta em melodia, fio ou linha melódica que ata o nosso coração ao coração de Deus, a nossa mão à mão de Deus. Foi assim, sacerdotalmente, que Jesus Cristo se ofereceu totalmente ao Pai e a nós e por nós, deixando-nos à espera e a viver dessa espera na esperança da sua Vinda. Um fio tenso de luz e de sentido, a que se chama esperança, nos ata para sempre a esse Senhor-que-Vem. Fio ou linha musical, vital, de cada Domingo, em que cantamos: «Senhor, vem!» (marana tha’), porque sabemos que «o Senhor vem!» (maran ’atta’). O Dia de Domingo deve imprimir em nós o «tique» da esperança, deixando-nos com o pescoço esticado para Deus, situação de quem O espera e vive da sua Vinda a todo o momento. É a Lição de Hebreus 9,24-28.

 5. O Evangelho deste Domingo XXXII do Tempo Comum, Marcos 12,38-44, põe em cena e em claro destaque uma viúva pobre que dá a Deus a sua vida toda, em contraponto com os escribas e muitos outros, que fazem bom teatro religioso (não é o caso do escriba do Domingo passado). Excelente inclusão literária no Evangelho de Marcos: da primeira vez que Jesus aparece a ensinar em público, neste Evangelho, o povo exclama: «Este ensina com autoridade, e não como os escribas!» (Marcos 1,22); a terminar a sua actividade pública neste Evangelho, é Jesus que mostra bem que não é como os escribas (Marcos 12,38-40). A cena central passa-se no átrio das mulheres do Templo de Jerusalém, num lugar chamado «Casa do Tesouro» (bêt ha-gazît) (Marcos 12,41-44). Muita gente deitava aí muito do que lhe sobrava, mas a viúva pobre deu «tudo quanto tinha, a sua vida toda!». Fio de sentido que liga este episódio ao que já encontrámos no Primeiro Livro dos Reis 17,10-16.

 6. O Evangelho refere que a viúva é pobre. Duplamente desfavorecida, portanto. Enquanto viúva e enquanto pobre. Mas a tecla que soa mais forte, é que deu tudo, ainda que tenha dado pouco. O acento não está posto na quantidade, mas na totalidade. É bom que, observando bem esta cena exemplar, aprendamos a passar da mera ajuda para o dom de nós mesmos. Dom total. O discípulo de Jesus, à maneira de Jesus, deve pôr em jogo a própria vida, e não simplesmente os adereços. Tudo, e não apenas o supérfluo. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Efésios 5,2), por mim (Gálatas 2,20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre. A marca deste dom é a totalidade e a definitividade.

 7. Dar a vida toda ou entreter-se com os adereços, eis a verdadeira questão, meu irmão de Domingo.

 António Couto


UM AMOR ENTRELAÇADO

Novembro 3, 2012

 

1. O que se passa no átrio do Templo tem carácter público. Vê-se que a discussão antes havida entre Jesus e os saduceus (Marcos 12,18-27) teve mais audiência além dos directamente envolvidos. A prova é que o escriba que Marcos põe agora em cena (Marcos 12,28-34), neste Domingo XXXI do Tempo Comum, tinha presenciado essa discussão e tinha ficado satisfeito com a resposta dada por Jesus. Nem sempre os escribas andam carregados de malícia. O escriba de hoje é um homem atento, aberto, bem intencionado e bem disposto. A pergunta que faz a Jesus não é uma pergunta armadilhada, como sucede nos paralelos de Mateus 22,35-36 e de Lucas 12,25. A pergunta do escriba de hoje baseia-se precisamente no facto de ele considerar boa a resposta de Jesus aos saduceus. A pergunta que faz: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?» (Marcos 12,28) é, portanto, bem intencionada, não se destina a pôr Jesus à prova, nem a arrastá-lo para o plano inclinado da interminável discussão académica. De facto, os mestres judeus, lendo minuciosamente a Lei, ou seja, os cinco primeiros Livros da Bíblia [= Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio], e reduzindo-a a preceitos, tinham contado lá 613 preceitos, sendo 365 [tantos quantos os dias do ano] negativos e 248 [tantos quantos, assim se pensava então, os membros do corpo] positivos.

 2. A questão que entretinha os mestres e as suas escolas era a de estabelecer uma ordem nesses 613 preceitos ou mandamentos, dizendo qual consideravam ser o primeiro ou o mais importante ou o maior, e assim por diante. Discussão pedante, interminável e natural fonte de conflitos, pois, como sói dizer-se, cada cabeça sua sentença, cada mestre sua sentença. Pelo menos. Pois é conhecido o velho dito acerca dos hebreus: «Onde está um hebreu, há duas opiniões». Qual seria então a posição de Jesus nesta matéria, e como a defenderia?

 3. Porque Jesus percebeu a boa intenção daquele escriba, assim também lhe responde, de forma directa e amigável, com apreço, começando por citar ou rezar o Shemaʽ Yisraʼel [= «Escuta Israel], a mais importante afirmação de fé do povo hebreu: «O primeiro é este: “Escuta, Israel: O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua inteligência e com todas as tuas forças”» (Marcos 12,29-30), oração que todo o hebreu piedoso recitava todos os dias, de manhã e à tardinha, e que é formada pelo texto do Deuteronómio 6,4-5. Mas Jesus não dá por terminada a sua resposta, pois continua assim: «O segundo é este: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”» (Marcos 12,31a), citando o Livro do Levítico 19,18). E agora sim, fecha a sua resposta, dizendo: «Não há outro mandamento maior do que este» (Marcos 12,31b). O escriba perguntou a Jesus pelo primeiro. Na sua resposta, Jesus expõe o primeiro, mas acosta-lhe o segundo, concluindo que os dois são um único mandamento: «Não há outro mandamento maior do que este».

 4. Para Jesus, o primeiro mandamento são dois amores entrelaçados: amar Deus e amar o próximo. O génio cristão consiste na capacidade de manter unidos e bem articulados e equilibrados estes dois amores, pois há quem, para amar a Deus se afaste dos homens, e quem, para lutar ao lado dos homens, se esqueça de Deus. Ora bem, o realismo bíblico ensina-nos que onde e quando estes dois amores se separam, ficamos no terreno da mentira, da falsidade e da idolatria. Na verdade, quando tu dizes que amas a Deus, mas não te importas do próximo, não reages perante as injustiças e não lutas contra a opressão, a que Deus te referes? Não seguramente ao Deus de Jesus Cristo, mas a um deus por ti próprio construído. Do mesmo modo, quando dizes que amas o próximo e o serves, mas recusas entregar-te totalmente a Deus, cairás facilmente nas mãos dos ídolos (a tua ideologia, o teu modelo de libertação, a tua política), e pensando que amas o próximo, nem te apercebes que o estás a instrumentalizar: queres libertá-lo, impondo-lhe as tuas ideias, a tua visão do mundo, a tua justiça. Já para não dizer, e isto é até o mais grave, que enquanto queres ajudar o homem a ser mais homem, o estás a afastar da sua necessidade mais profunda, da sua busca essencial, que é o próprio Deus.

 5. Dois amores entrelaçados e inseparáveis. Cada um leva à verificação do outro. Mas não iguais. Amar a Deus, único Senhor nosso, requer a totalidade de nós: «com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua inteligência e com todas as tuas forças». Este amor não é divisível com nenhum outro. Não se chega a Deus com alguma coisa de nós. Só chegamos a Deus se formos inteiros, com todas as nossas raízes, caule, folhas, flores e frutos. A medida do nosso amor a Deus é a inteireza e a totalidade. A medida do amor ao próximo somos nós («como a ti mesmo»).

 6. O escriba aprova o dizer de Jesus: «Muito bem, Mestre, tens razão…» (Marcos 12,32-33). E Jesus aprova o dizer do escriba: «Não estás longe do Reino de Deus» (Marcos 12,34). Entre Jesus e o escriba existe uma recíproca admiração. Também esta nota é importante, dado que habitualmente, o Evangelho trata os escribas com duras críticas. O texto de hoje diz-nos que, também entre os escribas, há pessoas «não longe». Portanto, para o Evangelho, não há categorias ou classes de pessoas excluídas à partida. E é o amor a Deus e ao próximo a chave que abre a porta do Reino de Deus.

 7. O texto de Deuteronómio 6,2-6 é hoje o chão deste belo Evangelho. Aí ouvimos a fortíssima exortação de Moisés, no último dia da sua vida: escutar, amar, praticar é o caminho para a Terra Prometida e para a Felicidade. E a grande homilia que é a Carta aos Hebreus (hoje 7,23-28) diz-nos que Jesus, o Filho, é o nosso verdadeiro Sumo Sacerdote, que preside, hoje também, ao culto dos nossos lábios, das nossas mãos e do nosso coração.

António Couto