EDUCAR PARA A PAZ

Dezembro 31, 2008

1. Fecha um ano. Abre um ano. Fazem-se balanços. Traçam-se planos. Quer em termos de balanço quer de planificação, forçoso é reconhecer que o mundo em que vamos atravessa um atoleiro, minado por convulsões e guerras, turbilhões de violência, ódios, incompreensões, pobreza crescente, epidemias, pandemias, terrorismos vários.

 

2. Para ajudar a responder a este estado de conflitualidade, há 41 anos que a Igreja vem propondo que se faça do primeiro dia de cada ano civil um dia devotado à Felicidade, que em termos bíblicos se chama Paz, portanto, «Dia Mundial da Paz».

 

3. Foi o Papa Paulo VI que iniciou esta prática no já distante ano de 1968. De então para cá, ininterruptamente, a Igreja tem procurado despertar o coração humano para os mais nobres e justos anseios da humanidade, lançando no primeiro dia de cada ano uma reflexão oportuna, cujos temas vale a pena hoje aqui enunciar. Para a história, mas também para que cada um de nós – pais, filhos, professores, alunos, patrões, trabalhadores, magistrados, estadistas, militares, cidadãos – se possa debruçar mais intensamente sobre aquilo que constitui o tesouro do bem comum da humanidade.

 

4. Em mensagem datada de 8 de Dezembro de 1967, Paulo VI institui o Dia Mundial da Paz, então chamado «Dia da Paz», a celebrar pela primeira vez em 1 de Janeiro de 1968, com estas palavras: «Seria nosso desejo que em seguida se repetisse anualmente esta celebração como voto e promessa – no início do calendário que mede e expõe o caminho da vida humana no tempo – de que seja a paz com o seu justo e benéfico equilíbrio, a modular a evolução da história futura».

 

5. Aqui deixamos registrados os temas do Dia Mundial da Paz desde o início, em 1968:

-1968 (Paulo VI): O Dia da Paz

-1969 (Paulo VI): A promoção dos direitos do homem, caminho para a paz.

-1970 (Paulo VI): Educar-se para a paz através da reconciliação.

-1971 (Paulo VI): Todo o homem é meu irmão.

-1972 (Paulo VI): Se queres a paz, trabalha pela justiça.

-1973 (Paulo VI): A paz é possível.

-1974 (Paulo VI): A paz também depende de ti.

-1975 (Paulo VI): A reconciliação, caminho para a paz.

-1976 (Paulo VI): As verdadeiras armas da paz.

-1977 (Paulo VI): Se queres a paz, defende a vida.

-1978 (Paulo VI): Não à violência, sim à paz.

-1979 (João Paulo II): Para alcançar a paz, educar para a paz.

-1980 (João Paulo II): A verdade, força da paz.

-1981 (João Paulo II): Para servir a paz, respeita a liberdade.

-1982 (João Paulo II): A paz, dom de Deus confiado aos homens.

-1983 (João Paulo II): O diálogo para a paz, um desafio para o nosso tempo.

-1984 (João Paulo II): De um coração novo nasce a paz.

-1985 (João Paulo II): A paz e os jovens caminham juntos.

-1986 (João Paulo II): A paz é um valor sem fronteiras. Norte-Sul, Leste-Oeste: uma só paz.

-1987 (João Paulo II): Desenvolvimento e solidariedade, chaves da paz.

-1988 (João Paulo II): Liberdade religiosa, condição para a convivência pacífica.

-1989 (João Paulo II): Para construir a paz, respeitar as minorias.

-1990 (João Paulo II): Paz com Deus criador, paz com toda a criação.

-1991 (João Paulo II): Se queres a paz, respeita a consciência de cada homem.

-1992 (João Paulo II): Os crentes unidos na construção da paz.

-1993 (João Paulo II): Se procuras a paz, vai ao encontro dos pobres.

-1994 (João Paulo II): Da família nasce a paz da família humana.

-1995 (João Paulo II): Mulher, educadora de paz.

-1996 (João Paulo II): Dêmos às crianças um futuro de paz.

-1997 (João Paulo II): Oferece o perdão, recebe a paz.

-1998 (João Paulo II): Da justiça de cada um nasce a paz para todos.

-1999 (João Paulo II): No respeito dos direitos humanos está o segredo da verdadeira paz.

-2000 (João Paulo II): «Paz na terra aos homens que Deus ama!»

-2001 (João Paulo II): Diálogo entre as culturas para uma civilização do amor e da paz.

-2002 (João Paulo II): Não há paz sem justiça, não há justiça sem perdão.

-2003 (João Paulo II): «Pacem in terris»: um compromisso permanente.

-2004 (João Paulo II): Um compromisso sempre actual: educar para a paz.

-2005 (João Paulo II): «Não te deixes vencer pelo mal; vence antes o mal com o bem».

-2006 (Bento XVI): Na verdade a paz.

-2007 (Bento XVI): A pessoa humana, coração da paz.

-2008 (Bento XVI): A família humana, comunidade de paz.

-2009 (Bento XVI): Combater a pobreza, construir a paz.

 

6. Meu irmão de Janeiro, aqui te deixo a Paz glosada em muitas claves. É um tesouro que depende de todos. Por isso, também depende de ti. Faz deste ano um ano de Paz, meu irmão de Janeiro.

 

7. Hás-de reparar bem, meu irmão de Janeiro, que o tema da Mensagem do Papa Bento XVI para este Ano de 2009 associa a construção da Paz e a luta contra a pobreza. Então guarda e medita bem no teu coração que os pobres não estão a mais, mas são cada vez mais. Não estão a mais, mas são cada vez mais: talvez para que não seja tão fácil adormecermos no divã dos nossos comodismos!

 

António Couto


SANTA MARIA, MÃE DE DEUS

Dezembro 30, 2008

 

1. Mãe de Deus, Senhora da alegria, Mãe igual ao dia, Maria. A primeira página do ano é toda tua, Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora de Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de Janeiro, do Dia primeiro e do Ano inteiro.

 

2. De ti pouco sabemos, singular mulher! Mas esse «sim» que te saiu dos lábios abriu um grande rombo no silêncio. De Bezetha[1], mas sempre de Bethesda[2]: não é o amor o que fica das colinas, das colinas, das palavras e de nós? Bezetha, Nazareth, Ain Karem[3], Betlehem[4]: estivesses onde estivesses, estavas decerto permanentemente à escuta, e estremecias, inundada de alegria, sob a palavra que sobre ti descia em ondas sucessivas de emoção.

 

3. Uma palavra, depois outra, depois outra: caía sobre ti tanto silêncio, que necessariamente havia de ganhar corpo no teu corpo o corpo que atravessa em contra-luz toda a Escritura. Mulher, grande mulher, mulher messiânica, mulher entre todas única, mulher!, aeì parthénos[5], sempre virgem, ao mesmo tempo esposa, ao mesmo tempo mãe: mulher de estrelas coroada, ou solar rapariguinha na solene procissão saltando à corda, ou moreninha enamorada saltando, soltando pelos montes a enleante melodia do shîr hashîrîm[6].

 

4. Shalôm[7], disseste, shalôm: oh imensa, divina saudação, clarão de Deus nos céus de orini[8], no ventre de Isabel, na dança de João: incontrolável rebentação, indizível lalação. Era de paz a voz dos anjos, era de paz, como sempre foi a voz de Deus.

 

5. Menina de Deus bendita! Sossegada e livre e firme, levas os teus filhos pela mão, salvo-conduto para a esperança, Mulher de todas as esperas. O tempo em que vamos é semelhante ao de Herodes, tu sabe-lo bem, atravessado por tanta tirania e prepotência, batido por tantas vagas de poder e ambição.

 

6. Faz-nos sentir, Mãe, o calor da tua mão no nosso rosto frio, insensível, enrugado. Acaricia-nos. Senta-nos em casa ao redor do amor, do coração. Somos tão modernos e tão cheios de coisas estes teus filhos de hoje! Tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade! Temos tudo. Mas falta-nos, se calhar, o essencial: a tua simplicidade e alegria.

 

7. Abençoa, Mãe, os nossos dias breves. Ensina-nos a vivê-los todos como tu viveste os teus, sempre sob o olhar de Deus e a olhar por Deus. É verdade. A grande verdade da tua vida, o teu segredo de ouro. Tu soubeste sempre que Deus velava por ti, enchendo-te de graça. Mas tu soubeste sempre olhar por Deus, porque tu soubeste que Deus também é pequenino. Acariciada por Deus, viveste acariciando Deus. Por isso, todas as gerações te proclamam «Bem-aventurada»!

 

8. Meu irmão do ano que inicia, não te esqueças de, em cada dia, fazer uma carícia aos teus filhos.

 

António Couto


[1] Lugar tradicional do nascimento de Maria, na colina junto da porta Probática e da piscina gémea do mesmo nome, a norte da esplanada do Templo de Jerusalém.

[2] Significa «casa do amor».

[3] Cidade de Isabel e João Baptista, situada no meio da região montanhosa de Orini, a cerca de 8 km a sudoeste de Jerusalém.

[4] Nome hebraico de Belém [= «casa do pão»].

[5] Expressão grega que significa «sempre virgem».

[6] Expressão hebraica que significa «Cântico dos Cânticos», nome de um livro da Bíblia, poema de amor que canta o amor do noivo e da noiva.

[7] Habitual saudação hebraica, que significa «paz», «felicidade».

[8] Nome geográfico da região montanhosa cujo centro é Ain Karem, cidade de Isabel e João Baptista.


NATAL: DADORES DE VIDA

Dezembro 23, 2008

«Fui Eu, o Senhor, que te chamei

para o serviço da justificação.

Tomei-te pela mão

e modelei-te.

Coloquei-te

como aliança do povo,

como luz das nações» (Isaías 42,6).

 

 

1. É tempo de Natal. Belém outra vez à minha frente. Habituei os meus olhos às alturas. Era uma estrela no céu que eu seguia. Caminho traçado no céu. Mas eis que a estrela dorme agora no coração da terra. Num curral ali ao fundo da casa habitada. Não havia mais nenhum lugar na sala. Os pastores ouviram a alegria. Correram pelos montes, pelos campos, pelas bordas. Também tenho de aprender a traçar caminhos neste chão.

 

2. Do meio do trigo e do pão, do coração, oiço então a voz de Deus, que me dá a mão (Isaías 41,13; 42,6; 45,1; Jeremias 31,32). Agarro-me. Sinto sulcos gravados nessa mão. Sigo-os com o dedo devagar. Percebo que são as letras do meu nome (Isaías 49,16). Foi então por mim que desceste a este chão.

 

3. Meditação. Já sei que sabes escrever no coração (Jeremias 31,33). Também na cruz (Gálatas 3,1). Também no chão (Jeremias 17,13; Jo 8,6 e 8). Também no livro (Salmo 139,16; Isaías 4,3; Daniel 12,1; Lucas 10,20; Apocalipse 20,12). Mas a mim tatuaste-me na palma da tua mão (Isaías 49,16). Recordas-te sempre de mim. Estás sempre a olhar para mim, a olhar por mim (Jeremias 31,20).

 

4. Dás-te a mim (Oseias 11,4). Dás a vida por mim (João 10,10-11.15). Compreendo que seja essa a tua vocação. A mais bela vocação. Tu és verdadeiramente «justificador» (matsddîq) (Isaías 50,8), dador de vida. E compreendo agora também que Tu me chamas para o «serviço da justificação» (Isaías 42,6; 53,11), doação de vida ao meu irmão faminto, nu, doente, abandonado, drogado, instalado, roubado ou ladrão.

 

5. «Os justificadores (matsddîqîm) serão como as estrelas para sempre» (Daniel 12,3). As novas estrelas são os justificadores, dadores de vida. Convocados por ti para sermos como Tu, dadores de vida. Convocadores como Tu, porque não podemos deixar de testemunhar a mais bela vocação que vem de Ti. Convocados e convocadores, dadores de vida, durante o ano inteiro, eu e tu, meu irmão de Dezembro.

 

António Couto


NATAL É O CÉU QUE VEM!

Dezembro 22, 2008

 

 

Como quem na noite escura acende

Um lírio branco

Um rosto de mulher

Banhado pela lua

 

Como quem escreve uma página de sol

Que os anjos suspendem das alturas

 

Ardentemente recito este natal

Pelas páginas arenosas das escrituras:

As minhas mãos menino buscarão as tuas

Imarcescíveis ázimas maduras.

 

 

1. Em carta enviada a Cristina de Lorena, Grã-Duquesa da Toscânia, no dealbar do século XVII, em 1615, o físico e astrónomo Galileu, citando o célebre Cardeal Baronio, deixou escrito que «a intenção do Espírito Santo, ao inspirar a Bíblia, era ensinar-nos como se vai para o céu, e não como vai o céu».

 

2. Baronio e Galileu têm razão quando dizem que a Bíblia não pretende ensinar-nos astronomia («como vai o céu»). Mas os dois estão equivocados quando afirmam que a Bíblia pretende ensinar-nos moral («como se vai para o céu»). E não somente eles. Parece que também nós temos andado a gerir o mesmo equívoco e a servir com bastante água o «vinho da Revelação». Anestesiamos a Bíblia quando reduzimos a sua mensagem a moral: «como se vai para o céu».

 

3. É tempo de tomarmos consciência de que a Bíblia não pretende ensinar-nos «como vai o céu», nem tão-pouco «como se vai para o céu». Nem JESUS é o Filho de Deus e o homem sábio e justo que nos vem ensinar como nos devemos comportar com Deus. Como bem refere Bruno Maggioni, nas suas Parábolas Evangélicas, isso já nós sabíamos e estamos já aptos a saber antes de ouvir ou de ler qualquer Evangelho. Não seria Notícia, portanto. Notícia, e boa, é que JESUS tenha vindo mostrar-nos, não como nós nos devemos comportar com Deus, mas antes disso, sempre antes disso, como é que Deus se comporta connosco. É este o espaço da inaudita Notícia e da surpresa. A Bíblia não ensina «como vai o céu», nem «como se vai para o céu». A Bíblia mostra «como vem o céu!»

 

4. O Natal é a vinda de Deus ao nosso mundo. Não para nos pedir alguma coisa. Mas simplesmente para nos encher de Paz, de Amor e de Alegria.

 

5. Meu irmão de Dezembro, deixa entrar este mundo novo em tua casa. Feliz Natal.

 

                   António Couto


O MILAGRE DO NATAL

Dezembro 21, 2008

1. Lê-se em As portas da floresta, de Elie Wiesel, que quando o grande Rabbi Israel Baal Shem-Tov via a desgraça a ameaçar os judeus, costumava dirigir-se a um determinado lugar na floresta para meditar. Quando lá chegava, acendia uma luz e dizia uma oração apropriada; o milagre realizava-se e a desgraça afastava-se. Mais tarde, quando a desgraça voltava a ameaçar, o seu célebre discípulo, Magid de Mezeritch, dirigia-se para o mesmo lugar, na floresta, e dizia: «Senhor do universo, escuta! Não sei acender a luz, mas ainda sou capaz de dizer a oração». E o milagre realizava-se outra vez. Mais tarde ainda, Rabbi Moshe-Leib de Sassov, para salvar uma vez mais o seu povo, dirigia-se para a floresta e dizia: «Não sei acender a luz, não sei a oração, mas sei o lugar e isto será suficiente». Era suficiente, e o milagre voltava a realizar-se. Aconteceu depois vir a desgraça sobre Rabbi Israel de Rizhin. Este sentou-se na sua cadeira de braços, pôs a cabeça entre as mãos, e falou a Deus: «Já nem sequer sei encontrar o lugar na floresta. Tudo o que posso fazer é contar a história, e isto deve ser suficiente». E era suficiente.

 

2. A história de Elie Wiesel falava da realização fácil de um milagre que tinha a ver apenas com saber um lugar, acender uma luz, dizer uma oração. Mas falava também de como, pouco a pouco, de geração em geração, se foi perdendo sucessivamente a ciência de acender a luz, de dizer a oração, de saber o lugar, tendo ficado apenas a história que se contava. E o certo é que bastava contar a história para que o milagre se repetisse.

 

3. A história de Elie Wiesel pode aplicar-se ao Natal que já bate à nossa porta. Todos fazemos uma festa em nossa casa, montamos um presépio ou colocamos uma árvore iluminada à janela ou no jardim, fazemos muitas compras, gastamos muito dinheiro, oferecemos e recebemos muitas prendas, e por toda a parte há mais música e luz. Mas, se já não sabíamos o lugar, nem acender a luz, nem dizer a oração, parece-me agora que uma parte significativa desta geração também já nem sequer sabe a história ou rapidamente a começa a esquecer.

 

4. Estaremos perante um grande empobrecimento cultural e espiritual se amanhã as crianças começarem a pensar que o Natal é só compras e prendas, e já nada souberem do menino nascido em Belém há 2000 anos e que veio realizar a maior revolução de que há memória no coração da humanidade. Se nós já não sabemos contar a história, haverá com certeza cada vez mais só compras, prendas, doces e sorrisos, e pais-natais nos hipermercados, mas o milagre não acontecerá. E Natal sem milagre, que Natal é?

 

5. Pais e mães, não vos limiteis a comprar, comprar, comprar. Contai a verdadeira história do Natal aos vossos filhos, para que haja milagre em vossas casas. Em vós e neles. Vereis que é tão fácil e muito mais bonito.

 

É outra vez Natal é outra vez a hora 

De salvar o que resta do tesoiro

Que Deus depositou há dois mil anos           

No coração dum menino imorredoiro.

 

Apressa-te menino e cresce devagar

Das tuas mãos pequenas e abertas

O testemunho do amor há-de passar

Às nossas velhas mãos que tu apertas.

 

 

António Couto


ESTA NOITE DE NATAL

Dezembro 19, 2008

 

É noite de Natal. Quem o não sente?

Quem o não sabe?

Nasceu uma criança a oriente

Dos sonhos mais pobres da cidade.

 

É Noite de Natal. Quem o não sente?

Quem o não sabe,

Se são tantas as estrelas que trazemos

Da noite que acendemos na infância?

 

São tantas as estrelas.

Mas onde guardar essa abundância,

Para que esta noite não acabe?

Coração, parece que não temos.

Bolsos, bolsos temos, mas não cabe.

 

 

1. O Natal somos nós ao contrário. Somos nós com os bolsos do avesso. Somos nós outra vez meninos a aprender outra vez a tabuada. Outra vez sentados à lareira. Outra vez deitados em colchões de palha ou de folhelho. Somos nós outra vez rodeados de gente e de carinho. Somos nós outra vez humanos. Somos nós outra vez a fazer presépios de musgo com as nossas mãos cheias de terra e de amor.

 

2. O Natal somos nós ao lume com os olhos poisados nas panelas. As chaminés outra vez a fumegar. Somos nós outra vez descalços a ir buscar água à fonte. Somos nós outra vez deslumbrados connosco, com o sabor dos doces, com o cheiro da canela. Somos nós incendiando a noite com lumieiras de palha e de candelhos a caminho da missa do galo. O Natal somos nós a pé.

 

3. O Natal somos nós em festa. Somos nós outra vez em família. É Deus outra vez à nossa mesa. Somos nós a saborear outra vez o grão do espírito antes de o vermos triturado pela máquina da razão. O Natal é esta água limpa, esta neve branca, este fogo novo, este sonho em brasa. Se isto é loucura? Por mim, penso apenas que devemos começar a tomar as devidas precauções quando dizemos que estamos em perfeito juízo.

 

4. Feliz Natal, meu irmão de Dezembro.

 

António Couto


NESTE NATAL APOSTA NA PAZ

Dezembro 13, 2008

 

Neste Natal aposta na paz

Limpa o teu olhar de traves e de medos

De torpedos

Deita fora as velhas espingardas

Despede os guardas

Sê simples e frontal

Feliz Natal!

 

1. Os Evangelhos afirmam, de maneira inequívoca, o nascimento de Jesus em Belém da Judeia (Mateus 2; Lucas 2). Para tanto, o Evangelho de Lucas mostra-nos José e Maria a partirem de Nazaré, na Galileia, para se irem recensear em Belém, na Judeia, pois o Imperador César Augusto tinha ordenado o recenseamento do inteiro «mundo habitado», a chamada oikouménê, e cada um devia registar-se na sua terra de origem. Nesse sentido, o Evangelho afirma também as origens betlemitas de José (Lucas 2,4). Fica então por explicar o facto de José, natural de Belém, ter fixado residência em Nazaré. E somos levados a presumir que José teria partido de Belém para Nazaré no quadro da política da colonização da Galileia muito estimulada desde a época de Alexandre Janeu (103-76 a.C.). Assim se repovoava e se rejudaizava a Galileia, ao tempo ocupada por uma população de origens etnicamente diversificadas.

 

2. Tendo, pois, partido para Belém, José e Maria, que estava grávida (Lucas 2,5), foram naturalmente procurar abrigo na casa da família de José. O Evangelista, sempre cuidadoso nos pormenores, anota, todavia, que «não havia lugar para eles na sala» (Lucas 2,7b). Na «sala». O texto grego emprega para «sala» o termo katályma. Katályma não é uma «hospedaria», como vulgarmente se diz. Quando quer dizer «hospedaria», o texto grego do mesmo Evangelho emprega o termo pandocheîon (Lucas 10,34). Katályma é uma «sala», a «sala de hóspedes» da casa de família em que José e Maria procuraram abrigo. E foi assim que, não havendo lugar apropriado na «sala de hóspedes» da casa, Maria deu à luz no estábulo anexo à mesma «sala», o lugar onde os ocupantes da «sala de hóspedes» deixavam os animais. É assim também compreensível que Jesus seja deitado na manjedoura (Lucas 2,7a).

 

3. Estamos, portanto, longe do ambiente de uma gruta de montanha, em que habitualmente montamos o cenário do presépio. Estamos no curral anexo à «sala de hóspedes» de uma casa normal de Belém. É esse o cenário do Natal. Esse curral ainda hoje pode ver-se na cripta da Basílica da Natividade, em Belém. É um rectângulo de 12,30 metros de comprimento por 3,50 metros de largura, que as grandiosas construções de Constantino (ano 326) e de Justiniano (ano 540), entretanto surgidas, sempre respeitaram. Esse estreito rectângulo continua a guardar e a mostrar a mais estreme e pura página de amor algum dia escrita sobre a terra.

 

4. Um curral como cenário do nascimento de Jesus. Cenário pobre. Rico de amor e de ternura. Os olhos tranquilamente fchados do Menino que serenamente dorme. Os olhos atentamente carinhosos e cariciosamente vigilantes de Maria e de José. Os olhos sempre meigos e mansos dos animais do curral. Chegam entretanto os pastores, igualmente pobres, igualmente ricos. Chegam os Magos com presentes, como que a dizer que é este o Rei verdadeiro, que leva a cumprimento a figura de Saul, primeiro Rei de Israel, «a quem não foram levados presentes» (1 Samuel 10,27). Parece-me ver que ali mesmo ao lado estamos nós, bem aconchegados nas nossas casas ricas e fechadas. Ali mesmo ao lado estamos nós. Ali mesmo ao lado. Vejo que chega entretanto Herodes. Vem com ar sombrio e olhar carregado. Bate à nossa porta. E entra. É como se nos conhecêssemos desde há muito tempo. Conspiramos. Da cumplicidade dos olhares saem gritos e barulhos. Olhar assim é como terçar armas. Ali ao lado a paz mais estreme. Aqui a guerra. De que lado estás tu, meu irmão de Dezembro?

 

António Couto


VAI ATÉ BELÉM

Dezembro 13, 2008

 

Neste Natal vai até Belém

Vence o mal com o bem

Na tua história

Entrará o Rei da glória

Não deixes ir embora

O único rei que não reina desde fora.

 

1. No Livro de Isaías 42,1-4, perícope conhecida como «Primeiro Canto do Servo», Deus apresenta o seu Servo com um conjunto de notas de singular brandura, de que realço, em 42,2: «Não fará ouvir desde fora a sua voz». Comentando este passo em Difficile liberté. Essais sur le judaïsme, Emmanuel Levinas, com a sua habitual finura, diz do Messias que «é o único rei que não reina desde fora». Entenda-se: não empunha a espada, não impõe a força, não lança impostos, não age por decreto. Traz consigo um domínio novo, que se insinua mansamente e sana a nossa velha e estafada humanidade desde o coração.

 

2. É nesse novo coração iluminado que se acende a música dos anjos nos campos de Belém. Atónitos, os pastores decantam essa luz e trauteiam essa música. É assim, em bicos de pés e cântaros de luz, pássaros de dança e música estelar, que vão até Belém. Encontram o amor que os embalava. Levam-no de volta para os campos. Os pesados guardas, se bem que interpelados, nada entendem (cf. Cântico dos Cânticos 3,3-4; 5,7). Ídolos metalizados. Insensíveis. Nenhuma música inebria as estátuas de alegria.

 

3. O Natal é intransitivo. O mapa desenrola-se por dentro. Alta tensão, toda a atenção no coração. Só o Amor pode dissolver este nevão. Só o Bem pode vencer o mal (cf. Romanos  12,21). O Bem não combate. Se combatesse, já não seria Bem. Seria mal. Mais mal, portanto, adviria. Só o Bem pode vencer, sem combater, este combate. Só o Amor. O Amor ama também o mal. É aí que o vence.

 

4. Entremos por aí. Escreveu recentemente (2004) o Cardeal Karl Lehmann, Arcebispo de Mogúncia (Mainz), em Carta Pastoral à sua Diocese, por ocasião dos 1250 anos da morte de S. Bonifácio, Apóstolo da Alemanha: «Tornámo-nos um mundo velho. Deixámo-nos vencer pelo cansaço […]. É necessário um radical revigoramento missionário da nossa Igreja. Não se trata apenas de reformar as estruturas. É preciso começar por cada um de nós. Se não estivermos entusiasmados pela profundidade e pela beleza da nossa fé, não podemos verdadeiramente transmiti-la nem aos vizinhos nem aos filhos nem às gerações futuras. […] É necessário também ganhar outras pessoas para a nossa fé cristã e arrastar os cristãos que cederam ao cansaço ou que até abandonaram a Igreja […]. Devemos difundir verdadeiramente o Evangelho de casa em casa, de coração a coração».

 

5. Nesta Carta Pastoral, o Cardeal Lehmann traça um quadro realista de uma Igreja que parece envelhecida e cansada, mas aponta também, com mestria e clarividência, as coordenadas que devem moldar o rumo do futuro: não basta reformar por fora estruturas e edifícios; é preciso reformar por dentro, mudar o coração, acendê-lo com a luz nova de Cristo e do seu Evangelho.

 

6. Por isso também, meu irmão de Dezembro, vai até Belém. Estamos mesmo à beirinha do Natal. Tempo de abrir o coração para celebrar o nascimento do único Rei que não reina desde fora.

 

António Couto


A RESPOSTA DE DEUS HOJE SOMOS NÓS

Dezembro 7, 2008

1. «A primeira vez que levei o meu filho mais novo, Danny, a ver gansos e pombas no parque vizinho, ele correu para fora do carro, e gritou: “Papá, olha, olha!” Eu tinha necessidade daquela lição. Nunca tinha parado a contemplar a maravilha daquelas cores e daqueles voos… Como pessoas tragicamente deprimidas, já não somos sequer capazes de nos debruçarmos à janela para ver o que se passa lá fora. “Olha, olha!”, dizem-nos insistentemente Danny e as Escrituras». Isto conta Daniel Marguerat no seu belo livro O coração ético da tradição hebraico-cristã, Assis, Cittadella, 1998.

 

2. História com história. «Esta é a história de (Aarão e) Moisés no dia em que falou YHWH a Moisés no monte Sinai» (Números 3,1).

 

«3,1Moisés estava a apascentar o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madiã. Conduziu o rebanho para além do deserto, e chegou à montanha de Deus, ao Horeb. 2O anjo de YHWH apareceu-lhe numa chama de fogo, do meio da sarça. Ele olhou e viu, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não era devorada. 3Moisés disse: “Vou DESVIAR-ME DO CAMINHO para ver esta visão grande: POR QUE RAZÃO não arde a sarça?” 4YHWH viu que ele se DESVIAVA DO CAMINHO para ver; e Deus chamou-o do meio da sarça, e disse: “Moisés! Moisés!” Ele disse: “Eis-me aqui!”» (Êxodo 3,1-4).

 

A história de Moisés é uma história como as outras, e não é uma história como as outras. Conduzindo o rebanho, VIU uma VISÃO grande, e, com o intuito de VER mais e melhor, saiu do seu caminho, deixou o seu rebanho. Com uns grandes olhos desejosos de VER e habitado por um grande PORQUÊ, Moisés aparece como uma criança à medida do Evangelho (Marcos 10,13-16). Ouviu uma voz que o chamava, e respondeu de pronto: «Eis-me aqui!» A história de Moisés não começa quando nasce, não descreve os seus projectos, não elenca os seus sucessos. A história de Moisés é a história de uma VISÃO que o provoca e da PALAVRA de Deus que o convoca, e que ele ousa VER e a que ousa RESPONDER.

 

3. O Deus bíblico manifesta-se sempre atento e compassivo para com o seu povo e comprometido na libertação de todas as escravidões. É quanto se pode ver neste texto paradigmático do Livro do Êxodo:

 

«3,7YHWH disse: “Eu bem VI a opressão do meu povo que está no Egipto, e OUVI o seu grito diante dos seus opressores; CONHEÇO, na verdade, os seus sofrimentos. 8DESCI a fim de o libertar da mão dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel…” 10E agora VAI; Eu te envio ao Faraó, e FAZ SAIR do Egipto o meu povo, os filhos de Israel» (Êxodo 3,7-8.10).

 

O Deus bíblico revela aqui a sua identidade, não afirmando-se e defendendo-se à volta do seu «eu», do seu «céu», resguardando-se dentro das portas douradas da sua eternidade, mas DESCENDO até à alteridade do outro, de quem «VÊ a opressão», «OUVE o grito», «CONHECE os sofrimentos», tem em vista uma solução ou resposta.

Face ao grito de Israel, qual será a resposta de Deus? A resposta de Deus não será alguma coisa, porque Deus nunca responde alguma coisa. Deus responde sempre ALGUÉM! Será MOISÉS. Quando o seu povo grita, Deus responde sempre da mesma maneira. Responde com MOISÉS, com os PROFETAS, e, finalmente, com JESUS CRISTO.

 

4. Mas também hoje, quando o seu povo grita, Deus continua a responder da mesma maneira, chamando os discípulos de Jesus Cristo e toda a sua Igreja para socorrer e libertar os seus filhos. É neste «ponto de vida» que se situam também os cristãos e os missionários que devem sempre, como Moisés, saber desviar-se do seu caminho, para VER, OUVIR e RESPONDER melhor à Palavra que os convoca e os provoca. Os cristãos e os missionários entraram num desafio assim há muitos anos. Muitos deram a vida por se terem desviado do caminho para VER, OUVIR e RESPONDER melhor. Que o Senhor da messe nos mantenha atentos, compassivos, comprometidos e fiéis.

 

5. «Olha, olha!», dizem-nos a cada passo Danny e as Escrituras.

 

António Couto


O NATAL NA HISTÓRIA

Dezembro 6, 2008

1. Foi no século II, e com intenções sincréticas, que o gnóstico egípcio Basílides e seus discípulos introduzem a celebração da Epifania, em que celebravam o Baptismo de Jesus (para eles, o Verbo veio sobre o homem Jesus no Baptismo e não no nascimento de Jesus), a verdadeira manifestação de Deus no mundo. A festa gnóstica da Epifania foi colocada em 6 de Janeiro, pois nessa data já se celebravam diversas festas pagãs em honra de Adónis, Dionísio e Osíris. Às festas pagãs, os gnósticos contrapõem a manifestação de Cristo nas águas do Jordão.

 

2. Em princípios do século IV, a festa da Epifania de Jesus consta já no calendário da Grande Igreja, que junta, no entanto, à celebração do Baptismo de Jesus também a celebração do seu Nascimento. Assim, a noite de 5 para 6 de Janeiro era particularmente reservada à celebração do Nascimento de Jesus, celebrando-se o Baptismo no dia 6.

 

3. A celebração do Nascimento de Jesus em 25 de Dezembro, dissociada da Epifania em 6 de Janeiro, verifica-se pela primeira vez em Roma, provavelmente entre os anos 325 e 354: a primeira menção regista-se na Cronografia de Philocalus (1.ª ed. em 336?). Para a dissociação do Nascimento de Jesus do âmbito da Epifania, e para a sua celebração como Festa independente, muito contribuiu a necessidade de acentuar, contra gnósticos e docetas, que Deus se fez homem no Nascimento de Jesus. Para que esta Festa do Natal se passasse a realizar em 25 de Dezembro, terá contribuido o facto de os romanos celebrarem em 25 de Dezembro a Festa do Sol (solstício de Inverno), em que o dia começa a ganhar terreno à noite. Ao facto não será também alheia a posição do imperador Constantino, fervoroso adepto do culto do Sol e simpatizante do cristianismo (na verdade, só renegou o paganismo, baptizando-se, no leito de morte), que via com bons olhos os dividendos políticos que lhe poderiam advir de um tal sincretismo religioso. Neste sentido, tinha já Constantino oficializado o descanso dominical, no ano 321, numa altura em que o «Dia do Senhor» era já conhecido por «Dia do Sol».

 

4. Grande impacto no mundo cristão teve o Natal de 1223. O responsável foi S. Francisco de Assis que construiu um presépio numa colina de Greccio (Itália).

 

5. Muitas foram as considerações astronómico-simbólicas arranjadas para situar e explicar o nascimento de Jesus em 25 de Dezembro ou noutras datas. Todas sem fundamento válido.

Os indícios mais seguros de que dispomos continuam a ser os que constam nos Evangelhos da Infância de Mateus (Mt 1-2) e Lucas (Lc 1-2). Os dados sóbrios que aí encontramos, permitem-nos situar com muita probabilidade o Nascimento de Jesus nos anos 7-6 a.C., num estábulo anexo à “sala de hóspedes” superlotada de uma casa de Belém de Judá, certamente pertença da família de José. De notar que Lucas tem em vista mesmo uma “sala de hóspedes” (grego katályma: Lc 2,7), e não uma “hospedaria”, como é vulgar dizer-se. Lucas fala de uma “hospedaria” no contexto da parábola do bom samaritano, mas usa o termo grego pandocheíon (Lc 10,34). A arquelogia mostrou que o traçado das casas da Judeia contemplava muitas vezes uma sala de hóspedes, que apresentava um simples banco rochoso a toda a volta, para facultar o descanso das pessoas em trânsito, abrindo ao fundo para um estábulo, onde se guardavam os animais, que atravessavam, para o efeito, a sala de hóspedes.

O quadro histórico da estrela (tríplice conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes, que teve lugar no ano 7 a.C., fenómeno previsto e registado nos observatórios astronómicos da Babilónia e do Egipto e comprovado pormenorizadamente por Kepler), e a normal curiosidade dos sábios por ocasião desse extraordinário acontecimento astronómico, são aproveitados redaccionalmente por Mateus, o que é coisa perfeitamente verosímil.

Igualmente verosímil é o aproveitamento redaccional por Lucas do quadro histórico do recenseamento do mundo romano, ordenado por César Augusto (27 a.C.-14 d.C.), sendo Pôncio Sulpício Quirino prefeito romano da Síria. É sabido que Quirino ocupa o cargo de prefeito da Síria apenas durante 6 d.C., sendo então que liquida os bens de Arquelau, filho de Herodes o Grande (37 a.C.-4 a.C.), anexando definitivamente a Judeia ao Império Romano. Porém, o recenseamento tinha sido iniciado, qual «descriptio prima» em 7-6 a.C. por Sêncio Saturnino (9-6 a.C.). Se se fala apenas em Quirino, é porque o recenseamento fica normalmente conhecido pelo nome daquele que o levou a cumprimento em 6 d.C., e não daquele que o iniciou em 7-6 a.C..

De quanto fica dito no referente aos caixilhos históricos aproveitados por Mateus e Lucas, podemos adiantar como data provável para o Nascimento de Jesus os anos 7-6 a.C..

 

6. A era cristã actualmente em vigor foi fixada no século VI pelo monge xiita Dionísio o Pequeno com um pequeno erro de cálculo de 6-7 anos. O monge Dionísio não o podia saber então, mas nós sabemos hoje com rigor que a morte de Herodes o Grande ocorreu em Abril do ano 4 a.C. nas suas termas de Jericó. Jesus teria então 2-3 anos, e teria nascido nos anos 6 ou 7 a.C.. Note-se que 6 ou 7 a.C. não significa 6 ou 7 antes do Nascimento de Cristo, mas antes da era cristã fixada pelo monge Dionísio.

 

7. É seguro que Jesus nasceu no nosso mundo, e nele enxertou a mais poderosa carga de amor que se possa imaginar. Tão forte que mudou a história. É esta a verdade lancinante do Natal. O comércio, esse chegou muito depois.

 

António Couto


O AMOR DE CRISTO TOMOU CONTA DELE

Dezembro 3, 2008

S. FRANCISCO XAVIER

07.04.1506 – 03.12.1552

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1. O Evangelho é uma Notícia boa e feliz vinda de Deus

O EVANGELHO (eu-aggélion) é uma Notícia boa e feliz, surpreendente, desconcertante e transformante que, vinda de fora, invade e transforma a nossa vida. Mostram bem essa nova e boa realidade os versos do profeta e místico anónimo do Exílio, que a crítica conhece por Dêutero-Isaías:

 

«52,7Como são belos sobre os montes os pés/ do EVANGELISTA (mebasser),/ que nos põe à escuta (mashmîa‘) da PAZ (shalôm),/ um EVANGELISTA (mebasser) de BONDADE (tôb),/ que nos põe à escuta (mashmîa‘) da SALVAÇÃO (yeshû‘ah),/ que diz a Sião:/ “REINA O TEU DEUS!” (malak ’elohayik)» (Is 52,7).

 

2. Essa Notícia boa e feliz transforma a nossa vida e gera comunhão

Os conteúdos desta Notícia boa e feliz são, como se vê, a PAZ, a BONDADE e a SALVAÇÃO, que brotam do REINADO efectivo de Deus. Mas a vocação de uma tal Notícia é encher a vida da cidade até ao cimo e transvasar, transformando assim a cidade de evangelizada e felicitada em evangelizadora e felicitadora. Diz outra vez o anónimo profeta do Exílio:

 

«52,8A voz das tuas sentinelas,/ elas levantam a voz,/ juntas gritam de ALEGRIA,/ porque olhos nos olhos elas vêem,/ é YHWH que volta (shûb) a Sião./

9ALEGRAI-VOS,/ gritai de ALEGRIA todas juntas,/ ruínas de Jerusalém,/ porque FAZ GRAÇA (niham) YHWH ao seu povo,/ Ele REDIME (ga’el) Jerusalém./

10Descobre YHWH o seu braço santo,/ aos olhos de todas as nações./ Verão todos os confins da terra/ a SALVAÇÃO (yeshû‘ah) do nosso Deus» (Is 52,8-10).

 

«40,9Sobe a uma alta montanha, EVANGELISTA (mebasseret) Sião,/ levanta com força a tua voz, EVANGELISTA (mebasseret) Jerusalém;/ levanta-a, não temas,/ diz às cidades de Judá:/ “Eis o vosso Deus,/ 10eis o Senhor YHWH!/ Com poder Ele vem,/ no seu braço a soberania para Ele,/ eis o Seu salário com Ele,/ e a Sua recompensa diante d’Ele./ 11Como um pastor o seu rebanho apascenta,/ com o Seu braço, reúne-o,/ no Seu colo os cordeiros carrega,/ as ovelhas que amamentam conduz com carinho» (Is 40,9-11).

 

A presença Gratificante, Redentora e Salvadora de DEUS no meio de nós é a verdadeira causa da ALEGRIA que invade a vida da cidade, e que deve ser comunicada a todas as cidades e nações.

 

3. JESUS, o Evangelho em pessoa

É com a proclamação dessa Notícia que abre o EVANGELHO de JESUS, que é JESUS:

 

«1,14Depois de João ter sido preso, VEIO (êlthen) JESUS para a Galileia, proclamando (kêrýssôn) o EVANGELHO de Deus (tò euaggélion toû theoû), 15e dizendo (légôn): “Completou-se (peplêrôtai: perf. pass. de plêróô) o tempo e fez-se próximo (êggiken: perf. de eggízô) o REINO de DEUS (basileía toû Theoû). CONVERTEI-VOS (metanoeîte) e ACREDITAI (pisteúete) no EVANGELHO”» (Mc 1,14-15).

 

A Notícia transvasa agora de JESUS. Ele anuncia que se virou uma página no tempo, com a proximidade agora permanente (perfeito grego) de DEUS que REINA. Esta proximidade excede todas as nossas esperas. Trata-se, de facto, de uma proximidade que não se espera nem se sabe. Não se programa. Não há um movimento de aproximação de nós a ela. É ela que se aproxima de nós. Precede-nos. Surpreende-nos. Graça preveniente. Ciência do não-saber. O Dom verdadeiro não se sabe. Não se produz do nosso lado. Vem ao nosso encontro ultrapassando-nos (Mc 6,48; cf. Ex 33,20-23; 34,5-6; 1 Rs 19,11-13; Jb 9,11) e provocando em nós novas atitudes: «CONVERTEI-VOS e ACREDITAI no EVANGELHO» (Mc 1,15).

 

4. Paulo, encontrado por Cristo, comunicador de Cristo: a outra rede da missão

S. Paulo está em linha com o anónimo profeta do Exílio e com JESUS. Foi encontrado por JESUS CRISTO (Fl 3,12). Está depois desse encontro, vive dele, em plena ALEGRIA (Jo 3,29; 15,11) – «Para mim viver é CRISTO» (Fl 1,21); «Ai de mim se não anunciar o EVANGELHO!» (1 Cor 9,16) – e dá testemunho dos efeitos desse encontro: «O REINO de DEUS (…) é Justiça e Paz e Alegria no Espírito Santo» (Rm 14,17). Vida nova. E o autor do Livro dos Actos dos Apóstolos fecha o Livro deixando Paulo em Roma «A anunciar o REINO de DEUS e a ensinar as coisas acerca do SENHOR JESUS CRISTO» (Act 28,31). Última imagem de Paulo. Imagem de corpo inteiro e a tempo inteiro, que retrata bem este extraordinário EVANGELIZADOR, que serve o EVANGELHO com CORAÇÃO MATERNO e PATERNO, portanto, com tempo e total dedicação e persistência e paciência, como ele próprio testemunha, escrevendo à comunidade cristã, por ele fundada, em Tessalónica:

 

«2,7(…) Tornámo-nos crianças no meio de vós, COMO UMA MÃE que acalenta os próprios filhos. 8Tanto bem vos queríamos, que desejávamos dar-vos, não apenas o EVANGELHO de DEUS, mas também a nossa própria vida, pois tornaste-vos queridos (agapêtoí) para nós. 9Recordais-vos, de facto, irmãos, da nossa fadiga e do nosso esforço, trabalhando de noite e de dia, para não sermos pesados a nenhum de vós. Foi assim que vos pregámos o EVANGELHO de DEUS. 10Vós sois testemunhas, e Deus também o é, de quão puro, justo e irrepreensível tem sido o nosso modo de proceder para convosco, os que acreditais. 11Bem sabeis  como exortámos (parakaléô) a cada um de vós, COMO UM PAI aos seus próprios filhos. 12Exortando-vos (parakaléô) e consolando (paramythéomai) e dando testemunho (martýromai), para que caminheis de modo digno a Deus, que vos está a chamar (kaloûntos) ao seu REINO e à sua glória» (1 Ts 2,7-12).

 

Paulo sabe também rodear-se de MUITOS e BONS COOPERADORES (synergoí), a quem trata com elevada estima e entranhado afecto, como documenta o chamado «Capítulo das Saudações» no final da Carta aos Romanos (Rm 16,1-15), sabendo ainda animá-los e estimulá-los, alegrando-se com a alegria deles, como sucede com Tito (2 Cor 2,12-13; 7,5-16).

 

5. Francisco Xavier, testemunha de outra alegria e de outra confiança

S. Francisco Xavier, proclamado Padroeiro Universal das Missões (Pio X) e apontado como «Apóstolo mundial dos tempos modernos» (João Paulo II), de quem celebrámos há dois anos os quinhentos anos do seu nascimento (07.04.1506 – 07.04.2006), postou-se, na esteira de Paulo, no humilde e fiel seguimento de Cristo, vivendo de Cristo (Fl 1,21), impelido pelo AMOR de Cristo (2 Cor 5,14) e pelo SIM de Cristo – que «não foi SIM e não, mas unicamente SIM» (2 Cor 1,19) –, testemunha da ALEGRIA nova de Cristo (Lc 10,21; 1 Pe 1,8) e cooperador dessa ALEGRIA (2 Cor 1,24). Viveu apenas 46 anos sobre esta terra (07.04.1506 – 03.12.1552). 46 anos anos plenos de CRISTO, de AMOR e de ALEGRIA. Partiu de Lisboa em 07 de Abril de 1541, dia em que completava 35 anos, para uma viagem de 20.000 km, rumo a Goa, onde desembarcou mais de um ano depois, em 06 de Maio de 1542, após paragem de quase meio ano (Setembro de 1541 até Fevereiro de 1542) na Ilha de Moçambique para o restabelecimento dos doentes, enquanto se esperava por ventos favoráveis à navegação. Desde essa data até à sua morte, ocorrida na Ilha de Sanchoão, às portas da China, na madrugada do dia 03 de Dezembro de 1552, vão 10 anos e quase 07 meses de uma desmedida dedicação aos outros, sobretudo aos pobres e doentes, testemunhando com a sua vida humilde e dedicada a BONDADE, a PAZ e a ALEGRIA do EVANGELHO. O CRISTO «de la SONRISA», que muitas vezes contemplou Xavier e que muitas vezes Xavier contemplou, gravou-se no coração e nos lábios de Xavier, tomou conta dele, conformou-se nele, transvasou dele. São, na verdade, muitas as testemunhas que descrevem Xavier «com a boca sempre cheia de riso e da graça de Deus» (Monumenta Xaveriana, tomo 2, Madrid, 1912, p. 291 e 306). É também de salientar a sua ilimitada CONFIANÇA em Deus, como transparece de uma sua carta, datada de 05 de Novembro de 1549, escrita de Kagoshima, no Japão, e dirigida aos seus companheiros de Goa:

 

«Sei de uma pessoa a quem Deus concedeu muitas graças, que se ocupava muitas vezes, tanto nos perigos como fora deles, em pôr toda a sua ESPERANÇA e CONFIANÇA n’Ele, e o proveito que daí lhe adveio levaria muito tempo a descrever».

 

Aquele «Sei de uma pessoa» lembra Paulo (2 Cor 12,2). Pôr toda a sua confiança em Deus é firmar-se em Deus, viver de Deus e desde Deus. A tanto nos desafia também a nós, hoje, o nosso Padroeiro. E aquele SORRISO nos lábios do Crucificado e de Xavier é outro impressionante desafio para nós. Na verdade, que EVANGELHO podemos nós viver e testemunhar sem CONFIANÇA e ALEGRIA?

Obrigado, amigo Francisco. Celebrarei gozosamente a tua Festa.

 

António Couto