É DO VOSSO INTERESSE QUE EU VÁ

Maio 27, 2022

Quando a Palavra de Deus,

Como uma enchente,

Encheu o tempo,

Dando ao homem a necessária oportunidade de ter de responder

E de não poder não responder,

O Filho de Deus,

Sem deixar de ser Deus,

Fez-se também filho de Maria,

Jesus,

Assumindo assim também a nossa frágil natureza humana.

…..

Com a sua Ressurreição e Ascensão aos Céus,

É glorificada a humanidade do Filho de Deus e de Maria,

Jesus,

E é desta humanidade glorificada,

À direita de Deus sentada,

Que vem o Espírito Santo para nós.

…..

É, portanto, do vosso interesse, diz Jesus, que Eu vá,

Pois se Eu não for,

O Espírito Santo não virá para vós.

…..

Com a Ressurreição, a Ascensão e o Pentecostes,

Celebramos, pois, a humanidade glorificada de Jesus,

Da qual,

Por contágio sacramental,

Recebemos o Dom de Deus, o Espírito Santo.

…..

Senhor Jesus,

Enche a nossa frágil humanidade da riqueza da tua divindade,

E derrama no nosso humano coração

O Espírito da consolação,

Da paz e da alegria.

….

António Couto


UM OLHAR CHEIO DE JESUS

Maio 27, 2022

At 1,1-11; Sl 47; Ef 1,17-23; Lc 24,46-53

1. Lucas 24,46-53: estupendo texto que encerra o Evangelho de Lucas e que hoje, Solenidade da Ascensão do Senhor, é solenemente proclamado para nós.

2. É a terceira vez que, neste Capítulo 24 do Evangelho de Lucas, o Evangelista volta à temática da necessidade do sofrimento de Jesus em ordem à Sua Ressurreição dos mortos (Lucas 24,7.26.46-47). Todavia, nesta terceira vez (Lucas 24,46-47), é acrescentado um dado novo de extrema importância, sendo que os acontecimentos incluídos na necessidade divina são agora três, e não dois: a Paixão (1), a Ressurreição (2) e a Pregação (kêrygma) a todas as nações (3). Portanto, também a MISSÃO surge incluída na necessidade divina. Não está à margem dos acontecimentos de Jesus, nem constitui em relação a eles um acrescento, mas está completamente vinculada a eles e a Ele. É, por isso, «no Seu Nome» (Lucas 24,47), isto é, assente na Sua autoridade, e não em qualquer outra, que esta Pregação deve ser feita, e o seu conteúdo é a Conversão e o Perdão. Conversão teológica, isto é, mentalidade nova por graça recebida e assente no facto de que o Crucificado é Revelação gloriosa de Deus, e não ignomínia e derrota! Perdão: significa que o Amor de Deus é maior que o nosso pecado! Este Anúncio é para ser feito a «todas as nações», a todos os corações: âmbito mais amplo e intenso possível!

3. Mas esta MISSÃO é para levar por diante com a humildade e persistência do testemunho quotidiano e com a roupa nova (endýô) e a dinâmica nova (dýnamis) do Espírito (Lucas 24,49), belíssima e fortíssima expressão que o Evangelho de hoje transporta até nós. Nas novas coordenadas do Espírito, os Acontecimentos de Jesus, de per si circunscritos no espaço e no tempo, alargam-se a todos os tempos e lugares, e insinuam-se no subtilíssimo segredo de cada coração humano.

4. Imensa fraternidade em ascendente movimento filial, como uma seara nova e verdejante a ondular ao vento suavíssimo do Espírito, elevando-se da nossa terra do Alto visitada e semeada, ternamente por Deus olhada, agraciada, abençoada. Bênção desde o início do Evangelho de Lucas até agora diferida, porque a mudez do sacerdote Zacarias não lha permitiu então pronunciar (Lucas 1,22). Jesus, novo, terno e eterno sacerdote, elevando-se para o céu, mas ficando mais presente do que nunca em cada coração, abençoa agora os seus discípulos (Lucas 24,50-51), isto é, une-se a eles e a nós e une-nos a Ele, união forte e inseparável, tal é o significado da bênção bíblica. Nova e mais intensa forma de presença. Não é um passo atrás, mas em frente. Por isso, uma nova e «grande Alegria» (só aqui e em Lucas 2,10), inclusão literária, nos impele, deixando-nos no tempo novo e jovem da MISSÃO!

5. O Livro dos Atos dos Apóstolos retoma hoje esta lição. «E estas coisas tendo dito, vendo (blépô) eles, ELE foi Elevado (epêrthê: aor. pass. de epaírô), e uma nuvem O subtraiu (hypolambáno) dos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). E como tinham o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde ELE ia, eis (idoú) dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, e DISSERAM: “Homens Galileus, por que estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu”» (Atos 1,9-11).

6. Tanto VER. Da panóplia de verbos registrados (blépô, atenízô, horáô, emblépô, theáomai), os mais fortes e intensos são, com certeza, atenízô [= «olhar fixamente»] e emblépô [= «perscrutar», «ver dentro»]. Ambos exprimem a observação profunda e prolongada, para além das aparências: VER o invisível (cf. Hebreus 11,27), VER o céu, VER a glória de Deus. Mas mais ainda do que «o que» se vê, estes verbos acentuam «o modo como» se vê. É para aí que apontam os dois homens vestidos de branco, de rompante surgidos na cena, para entregar um importante DIZER que interpreta e orienta tanto VER. Já os tínhamos encontrado no túmulo reorientando os olhos entristecidos das mulheres: «Por que () procurais entre os mortos Aquele que está Vivo? Não está aqui. Ressuscitou!» (Lucas 24,5-6). Dizem agora: «Por que () estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu» (Atos 1,11). Como bem se pode verificar, ao Arrebatamento de JESUS para o céu, os dois homens vestidos de branco agrafam a Vinda de JESUS. Importante colagem da Ascensão com a Vinda. E importante passo em frente para quem estava ali simplesmente especado. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Sim, Ver. Porque ELE Virá do mesmo modo que O Vistes IR. Importante guardar este Ver, viver este Ver, Ver com este Ver. Porque é Vendo assim que o SENHOR Virá. Vinda que não tem de ser relegada para uma Parusia distante e espetacular, mas que começa, hic et nunc, neste Olhar novo e significativo de quem Vê o SENHOR JESUS. Vinda que não é tanto um regresso, mas o desvelamento de uma presença permanente. Vinda já em curso, portanto, ainda que não plenamente realizada.

7. Guardemos este Olhar e prossigamos. Eis-nos no primeiro ATO propriamente dito dos Atos dos Apóstolos depois do Pentecostes: a cura de um coxo de nascença descrita em Atos 3,1-10: «Então Pedro e João subiam ao Templo para a oração da hora nona [= 15h00]. E um certo homem, que era coxo (chôlós) desde o ventre da sua mãe, era trazido e posto todos os dias diante da Porta do Templo, dita a Bela, para pedir esmola àqueles que entravam no Templo. Vendo (idôn) Pedro e João, que estavam a entrar no Templo, pedia esmola para receber. Então, fixando o olhar (atenísas) nele, Pedro, com João, disse: “Olha para nós” (blépson eis hemâs). Então ele observava-os (epeîchen), esperando receber deles alguma coisa. Disse então Pedro: “Prata e ouro não tenho, mas o que tenho, isso te dou: no nome de JESUS CRISTO, o Nazareno, [levanta-te e] caminha”. E, tomando-o pela mão direita, levantou-o. Imediatamente se firmaram os seus pés e os calcanhares. Com um salto, pôs-se em pé, e caminhava, e entrou com eles no Templo caminhando e saltando e louvando a Deus. E todo o povo o viu (eîden) a caminhar e a louvar a Deus. E reconheciam que era aquele que, sentado, pedia esmola à Porta Bela do Templo, e ficaram cheios de admiração e de assombro por aquilo que lhe aconteceu» (Atos 3,1-10).

8. Outro impressionante condensado de olhares marca este primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos. Soam no texto cinco notas visuais, servidas por quatro verbos: horáô, atenízô, blépô, epéchô. Atenízô desenha o Olhar de Pedro e João fixado no coxo de nascença. Blépô retrata o Ver com que o coxo é mandado olhar o Olhar dos Apóstolos. Significativo agrafo: estes dois Olhares, com atenízô e blépô, só tinham sido usados antes, no Livro dos Atos dos Apóstolos, uma única vez, precisamente no relato da Ascensão (Atos 1,9-10). De resto, blépô conhecerá apenas mais quatro menções no Livro dos Atos dos Apóstolos: duas no relato da vocação de Paulo (Atos 9,8-9), a terceira no discurso de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia (Atos 13,41; cit. de Habacuc 1,5), e a quarta e última no decurso da viagem marítima de Paulo para Roma (Atos 27,12). Atenízô, por sua vez, far-se-á notar em lugares de relevo, sempre para expressar um Ver novo e significativo, um Ver sem haver: os membros do Sinédrio fixam os olhos (atenízô) em Estêvão, e veem-no semelhante a um anjo (Atos 6,15); Estêvão, por sua vez, fixa os olhos (atenízô) no céu, e vê a glória de Deus e JESUS, de pé, à direita de Deus (Atos 7,55); Cornélio fixa os olhos (atenízô) no anjo do Senhor, que o interpela (Atos 10,4); Pedro fixa os olhos (atenízô) na visão, vinda do céu, dos animais impuros (Atos 11,6); Paulo fixa os olhos (atenízô) no mago Elimas, de Chipre, para o fulminar pela sua falsidade e malícia (Atos 13,9), e o mesmo faz no Sinédrio, dando testemunho de JESUS (Atos 23,1).

9. É este Ver JESUS, Ver sem haver, sem poder, sem ouro nem prata (Atos 3,6), que se fixa sobre o coxo de nascença, mandado, por sua vez, olhar para este Olhar, Ver desta maneira. Como Abraão e Moisés, convidados a Ver para receber, e não para haver, a Terra Prometida: «a terra que Eu te farei Ver» (Génesis 12,1), «que YHWH lhe fez Ver» (Deuteronómio 34,1), «Eu a fiz Ver aos teus olhos» (Deuteronómio 34,4). O narrador anota mais à frente que o coxo de nascença, agora curado, tinha mais de 40 anos (Atos 4,22), tipologia do povo perdido no deserto antes de entrar na Terra Prometida. Como o homem doente havia 38 anos, que Jesus encontra junto da piscina de Bezetha, e que será curado (João 5,1-9).

10. É sintomático que o Ver da Ascensão e da Vinda do SENHOR JESUS seja o Ver que preenche por inteiro o primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos, com realce para Pedro. Mas é ainda grandemente sintomático que o primeiro ATO de Paulo, descrito em Atos 14,8-10, que é também o primeiro passo da missão perante o paganismo popular, em Listra, quase copie o primeiro ATO dos Apóstolos e de Pedro, certamente com o intuito de pôr em paralelo os dois grandes Apóstolos e os dois tempos da missão. Eis o texto referido de Atos 14,8-10: «E em Listra um homem estava sentado, sem força nos pés, coxo desde o ventre da sua mãe, e que nunca tinha andado. Este ouviu falar Paulo, o qual, tendo fixado os olhos (atenísas) nele, e tendo visto que tinha fé para ser salvo, diz com voz forte: “Levanta-te direito sobre os teus pés!”. E ele deu um salto e caminhava» (Atos 14,8-10). Aqui temos o mesmo coxo de nascença, o mesmo Olhar significativo e diaconal, sem poder, sem ouro nem prata, Ver JESUS, o mesmo levantamento do coxo. E também aqui, na sequência do texto, temos o aceno à multidão que disperdia o olhar, vendo em Paulo e Barnabé deuses em forma humana, e a mesma correção, feita por Paulo, apontando JESUS (Atos 14,11-18).

11. Importante agrafo da Ascensão com a Vinda do Senhor. Tanto Ver. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Guardemos este Olhar cheio de Jesus e olhemos agora para esta terra árida e cinzenta, para tantos corações tristes e perdidos. Nascerá um mundo muito mais belo, novos corações pulsarão nas pessoas. Os olhos do coração iluminados, como diz o Apóstolo à comunidade mãe da Ásia Menor, Éfeso (Efésios 1,18). Um Olhar cheio de Jesus faz Ver Jesus, faz Vir Jesus!

12. Ponhamos tudo isto em imagem, como convém neste Domingo em que a Igreja celebra o Dia das Comunicações Sociais, instituição que tem as suas raízes no Concílio Vaticano II (Decreto Inter Mirifica, n.º 18), e que foi celebrado pela primeira vez, com mensagem de Paulo VI, em 7 de Maio de 1967. Eis então diante de nós, no cume do Monte das Oliveiras, um pequeno Templo, arredondado, chamado Imbomon [«sobre o cume»], grecização do hebraico bamah [«lugar alto»], a 818 metros de altitude, um pouco acima da Ecclesia in Eleona [«no Olival»] – que remonta a Santa Helena, hoje Pater Noster – e a curta distância de Jerusalém, a distância do caminho de um sábado (Atos 1,12), que é de 1892 metros. As construções cristãs do Imbomon remontam ao longínquo ano de 376, com reconstrução dos Cruzados em 1152, ocupadas depois, em 1187, pelos muçulmanos. A construção dos Cruzados, que respeitava a primitiva construção, tinha no centro um tambor encimado por uma cúpula aberta no centro, justamente para servir de suporte à imagem da Ascensão patente em Atos 1,9-11. Em 1200, os muçulmanos fecharam esse ponto de luz com uma cúpula de estilo árabe, escondendo assim a visão de Atos 1,11: «Porque estais aí a olhar para o céu?».

13. O texto de hoje da Carta aos Efésios 1,17-23 completa maravilhosamente as passagens da Escritura que já vimos. Depois do grande hino (v. 3-14), em que se bendiz o Pai, mediante o Filho, no Espírito Santo a nós dado, cantamos agora, guiados sempre por São Paulo, o primado da Humanidade do Senhor, obra admirável do Pai, para proveito nosso. E começamos com a epiclese ao Pai para que nos dê o dom do Espírito, que é a Sabedoria divina, o «conhecimento profundo» (epígnôsis) das Realidades divinas (v. 17). Tudo provém do único e omnipotente Acontecimento divino: Jesus Cristo Ressuscitado e Sentado à direita nos Céus (v. 19-20). É assim que, da sua Humanidade glorificada, vem para nós, por graça, o Espírito Santo, a verdadeira plenitude (v. 23).

14. O Salmo 47 é um Salmo da realeza de YHWH, que canta, com grande energia, a soberania de Deus sobre todos os povos (v. 1-3.7-10), sem deixar também de particularizar Israel (v. 4-5), «a mais bela entre todas as nações» (Ezequiel 20,6). Ajusta-se também perfeitamente, no mundo católico, à Festa da Ascensão de Cristo, sobretudo por causa do v. 6, em que lemos que «Deus se eleva por entre aclamações». Devido ao seu tom geral, Israel canta este Salmo sete vezes antes de soar o toque do shôphar para assinalar a entrada do Ano Novo.

António Couto


AS DUAS MÃOS DO PAI

Maio 20, 2022

O Filho e o Espírito Santo são,

No dizer de Santo Ireneu de Lião,

As duas mãos do Pai,

Enviadas em missão

Para junto dos seus filhos de adoção.

…..

À semelhança, claro,

Daquelas mãos de amor,

Que, no alvor da Criação,

Modelaram da terra pura o nosso coração,

E de misericórdia o vestiram.

…..

Filhos no Filho, divina hyiothesía,

Hemorragia de graça e de alegria:

Jesus, o Filho, assume a nossa humana condição,

E dá-nos em herança a sua divina filiação.

…..

E o Espírito, que une e distingue o Pai e o Filho,

Divina comunhão, sem confusão,

Toma conta do nosso coração de filhos recém-nascidos,

E faz circular em nós, já hoje, já esta manhã,

A mais bela lalação que há, o nome novo Ab-ba!

…..

António Couto


A PAZ QUE SÓ DEUS DÁ

Maio 20, 2022

1. O texto que o Evangelho deste Domingo VI da Páscoa (João 14,23-29) nos oferece enquadra-se naquele monumental Testamento que, no IV Evangelho, Jesus pronuncia, em ondas sucessivas, após a Ceia com os seus Discípulos (João 13,12-17,26). Neste imenso arco textual, cujas linhas temáticas ou de construção vêm e refluem e voltam a vir, à maneira das ondas do mar que vêm sobre a praia, refluem e voltam, assistimos hoje ao segundo dos cinco dizeres de Jesus relativos à Vinda do Espírito Santo, Paráclito (paráklêtos), isto é, Defensor [Advogado de defesa], Consolador e Intérprete. Este último significado deriva do aramaico paráklita, dos rabinos, que não tem o significado usual do grego (Defensor e Consolador), mas Intérprete, aquele que traduz Deus para nós e nós para Deus, fonte e ponte permanente de comunicação, compreensão e comunhão. O Espírito Paráclito é assim o grande construtor de pontes entre nós uns com os outros e com Deus. É, por isso, que Ele é o Amor, que destrói todos os muros, preconceitos, ódios, divisões, incompreensões. Eis os cinco mencionados dizeres de Jesus sobre a Vinda do Espírito Santo, sempre dita no futuro: João 14,16; 14,26; 15,26; 16,7; 16,13-15.

2. O primeiro enviado do Pai é o Filho Jesus, que cumpre e revela o conteúdo da própria missão. O segundo enviado é o Paráclito. O Pai é, em relação aos dois, o enviante; o Filho e o Espírito são, em relação ao Pai, ambos enviados, «as duas mãos do Pai», no belo dizer de Ireneu de Lião. Confrontando os textos, vemos que há semelhança da relação entre o Pai e o Paráclito com a relação entre o Pai e o Filho no que ao envio diz respeito: ambas são expressas pelo mesmo verbo «enviar» (pémpô). Mas, juntamente com a semelhança, deparamos também com diferenças. A primeira diferença está no facto de que, em relação ao Filho, o verbo enviar está no passado, encontrando-se no futuro em relação ao Paráclito. O envio de Jesus pelo Pai já se realizou [«o Pai que me enviou»: João 5,23.37; 6,44; 8,16.18; 12,49; 14,24; «Aquele que me enviou»: João 4,34; 5,24.30; 6,38.39.40; 7,16.28.33; 8,26.29; 9,4; 12,44-45; 13,20; 15,21; 16,5], enquanto que o envio do Paráclito é anunciado, mas deve ainda realizar-se [«o Pai enviá-lo-á no meu nome»: João 14,26], do mesmo modo que a sua tarefa de ensinar e de recordar aparece igualmente enunciada no futuro. A segunda diferença reside no facto de o envio de Jesus ser feito diretamente pelo Pai, sem intermediários, enquanto que o envio do Paráclito é feito pelo Pai mediante a intervenção de Jesus, traduzida pela expressão «no meu nome». O que se passa com o verbo «enviar» em termos de semelhança e diferenças, passa-se também com o verbo «dar» (dídômi): «Deus (…) deu o seu Filho unigénito» (João 3,16), e «dará a vós outro Paráclito» a pedido de Jesus (João 14,16). Mas, voltando ao verbo «enviar», em relação ao Paráclito, o próprio Jesus é por duas vezes sujeito do verbo «enviar»: «Eu enviá-lo-ei de junto do Pai» (João 15,26); «Quando eu for, enviá-lo-ei para junto de vós» (João 16,7).

3. Mas o texto de hoje põe Jesus a dizer que o Pai enviará o Paráclito, o Espírito Santo, em seu nome (João 14,26), isto é, mediante a sua intervenção. Jesus afirma também que não diz senão a Palavra do Pai (João 14,24), e que o Espírito Santo também não falará de si mesmo, mas apenas o que tiver ouvido (João 16,13). Assim, o Espírito Santo, que será enviado, ensinará todas as coisas e recordará tudo o que disse Jesus (João 14,26). Por outras palavras: receberá do que é meu e vos anunciará (João 16,14).

4.  No Evangelho de hoje, Jesus fala ainda do amor, da escuta qualificada da sua Palavra, da habitação de Deus em nós, no meio de nós, da paz por Ele dada, que é diferente da paz que o mundo dá e como o mundo a dá. Ele pode dar a paz, porque «Ele é a paz» (Efésios 2,14). Ele não tem a paz. Ele é a paz. Portanto, a Paz bíblica é pessoal, tem um rosto e um nome: Jesus! A Paz bíblica é, portanto, o estilo pessoal de viver de Jesus, que podemos e devemos aprender, seguindo-o e imitando-o. Não, a Paz bíblica não é a paz romana, assente no poder das armas, nem a paz do judaísmo palestinense, assente nos acordos entre as partes. A Paz bíblica é um Dom de Deus! Portanto, mais do que conquistá-la, é preciso recebê-la, vivê-la e partilhá-la.

5. A lição do Livro dos Atos dos Apóstolos (15,1-2.22-29) leva-nos ao Concílio de Jerusalém, em que os Apóstolos Pedro e Paulo e Tiago se deram as mãos em sinal de comunhão, para que o Evangelho fosse levado a todos os corações. O que importa é o Evangelho, e não as nossas diferentes maneiras de pensar.

6. O Apocalipse (21,10-14.22-23) traz-nos outra vez a Igreja bela, vestida por Deus, alumiada por Deus, tu a tu com Deus, sem a mediação de um templo material.

7. O Salmo 67 é uma oração de bênção em forma de petição. Em termos técnicos, equivale a uma epiclese: não «eu te bendigo», mas «Deus nos bendiga». O nosso Salmo recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o singular, por assim dizer, «democratizando» a bênção, agora dirigida a todos, onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel.

8. Diz, de forma absolutamente maravilhosa, o velho comentário rabínico aos Salmos, dito Midrash Tehillîm, que, quando Israel estava no Sinai para fazer aliança com Deus, «o ventre das mulheres grávidas se tornou transparente como vidro, para que os embriões pudessem ver Deus e conversar com Ele». Oh admirável mundo novo!

9. O Espírito Santo faz nascer em nós esta transparência luminosa e maravilhosa. Luz que alumia, e não engana, Amor, só Amor, nada mais que Amor. Vem, Espírito de Luz, construtor e Senhor das mais belas transparências e vivências. Precisamos tanto de Ti nesta calçada enlameada e escura e escorregadia em que andamos.

António Couto


A QUESTÃO DO AMOR

Maio 13, 2022

A grande questão que se levanta do chão

E do “eu”

Não é de ordem gnoseológica e científica,

Acerca do que se pode conhecer

E da constituição de qualquer ser.

…..

A grande questão que se levanta do chão

É da ordem do amor,

Acerca do que é o amor,

Se eu amo

E se sou amado.

…..

Se colocares no Google a pergunta: “o que é o amor?”,

Obténs para cima de trezentos milhões de respostas.

Mas, na Bíblia, as respostas reduzem-se a uma só: dar a vida.

…..

Por isso, na Bíblia, amar é amar o estrangeiro,

Que é o outro diferente de mim,

E amar o inimigo,

Que é o outro contra mim.

…..

Em suma, amar é amar o próximo,

Que é aquele que está agora a passar por mim,

Aquele que agora está mais perto de mim,

Que é o significado do superlativo latino proximus.

…..

Salta à vista que este amor não brota de nós,

Não está em nós a fonte deste amor.

A fonte e o modelo de um amor assim é Deus,

É Jesus que se debruça sobre o estrangeiro e o inimigo que eu sou.

…..

Senhor Jesus, ensina-nos a amar sem medida, como Tu.

…..

António Couto


COMO EU VOS AMEI

Maio 13, 2022

At 14,21-27; Sl 145; Ap 21,1-5; Jo 13,31-33.34-35

1. No tempo de Jesus, o panorama do judaísmo palestinense era dominado por duas escolas bem conhecidas: a escola conservadora e rigorista de Shammai e a escola liberal de Hillel.

2. Conta-se que, um dia, um homem se terá apresentado na escola de Shammai, e fez ao mestre um estranho pedido: «quero que, enquanto eu me mantiver apenas com um pé no chão, tu me expliques toda a Lei». Diz-se que Shammai se limitou a pegar na sua vara de mestre e a correr o homem pela porta fora, pois era óbvio que o homem fazia um pedido impossível de cumprir, tal era a vastidão da Lei. Mas o homem não desanimou e dirigiu-se à escola de Hillel, a quem formulou o mesmo pedido. E Hillel terá respondido de pronto: «Nada mais fácil: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti!”».

3. A esta sentença de Hillel, na sua formulação negativa, deu-se o nome de «regra de ouro». Em boa verdade, ela já aparece no Livro de Tobias 4,15. É, todavia, fácil de verificar, que esta sentença é de fácil cumprimento. Dado que o seu teor é negativo, para a cumprir, basta a alguém cruzar os braços e nada fazer. Procedendo assim, nada fará de inconveniente a ninguém, cumprindo assim escrupulosamente a sentença.

4. Tentando talvez evitar a inação acoitada na formulação negativa anterior, os Evangelhos apresentam desta máxima uma formulação positiva: «Faz aos outros o que queres que te façam ti!» (Mateus 7,12; Lucas 6,31). Levando a sério esta formulação, já não é suficiente jogar à defesa e nada fazer, mas é requerido o fazer. Seja como for, as duas formulações apresentadas, quer a negativa quer a positiva, padecem do mesmo vício: sou eu o centro, é à minha volta que tudo roda, e o que eu faço ou deixo de fazer é com o objetivo claro de que me seja retribuído outro tanto!

5. O tom positivo da referida «regra de ouro» recebe ainda outra bem conhecida formulação: «Ama o teu próximo como a ti mesmo!», que atravessa de lés-a-lés a inteira Escritura: Levítico 19,18; Mateus 22,39; Romanos 13,9; Gálatas 5,14; Tiago 2,8. Mas também esta formulação é perigosa: primeiro, porque eu continuo o ser o centro, a medida do amor aos outros; segundo, porque, se alguém não se ama a si mesmo (e são, infelizmente, cada vez mais os casos!), como poderá cumprir devidamente esta máxima?

6. É aqui que cai, como uma lâmina, a força do Evangelho de Jesus, proclamado, por graça, neste Domingo V da Páscoa (João 13,31-34): «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei!» (João 13,34), precedido por aquele precioso e carinhoso diminutivo «filhinhos» (teknía) (João 13,33), só aqui, esta única vez, colocado nos lábios de Jesus. Aqui, a medida não sou eu. Aqui, a medida é Jesus. Aqui, a medida é sem medida! Aqui, o amor não é interesseiro. Aqui, o amor é puro, radical, incondicional, assimétrico, sem retorno. Aqui, o amor é até ao fim, e obriga-nos a ter sempre como referência o Senhor Jesus e o seu modo de viver, dando a vida por amor, para sempre e para todos!

7. Este mandamento recebido (João 10,18) e dado (João 13,34; 15,12) impõe aos discípulos de Jesus de todos os tempos um estilo novo, uma nova maneira de viver e de fazer: «Como Eu vos fiz, fazei vós também» (João 13,15). Nesta formulação, o que é mais importante não é o que fazer, mas o como fazer. Neste sentido, alerta bem a Conferência Episcopal Argentina na sua Carta Pastoral Misión Continental (2009), n.º 17: «Importa considerar em primeiro lugar o que é preliminar a qualquer programa de ação. Antes da organização de tarefas, importa considerar como as vou executar, o modo, a atitude, o estilo. Desta maneira, as tarefas serão ferramentas de um estilo de comunhão, cordial, discipular, que transmite o fundamental: a bondade de Deus».

8. A lição de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos (14,21-27) põe outra vez diante de nós a viagem transitiva e intransitiva que a graça de Deus nos faz fazer (Atos 14,26), e de que resulta a narrativa de tudo o que Deus fez connosco (Atos 14,27) e com os pagãos, abrindo-lhes a porta da fé (Atos 14,27). É esta expressão que dá o título à Carta Apostólica Porta Fidei [«A Porta da Fé»] com que Bento XVI quis marcar o Ano da Fé, aberto em 11 de outubro de 2012, comemoração da data de abertura do Concílio II do Vaticano (11 de outubro de 1962), e encerrado (o Ano da Fé) em 24 de novembro de 2013, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.

9. Notável a lição do Livro do Apocalipse (21,1-5). Mundo novo, com Deus, Ele mesmo, a habitar no meio de nós, verdadeiro Emanuel, que acariciará o nosso rosto e enxugará as nossas lágrimas. Com o Emanuel a habitar connosco, desaparecerão a morte, o luto, a lamentação, a dor, e também o mar que, no mundo bíblico, aparece como símbolo do caos e do mal.

10. Fica bem hoje cantar com alegria renovada o grande hino alfabético que é o Salmo 145, até que vibrem as cordas do nosso coração. Orígenes classificava este Salmo como «o supremo cântico de ação de graças», e Agostinho viu-o como «a oração perfeita de Cristo, uma oração para todas as circunstâncias e acontecimentos da vida». E enquanto saboreamos as imensas riquezas que nos vêm de Deus: a sua graça, misericórdia, amor e bondade (Salmo 145,8-9), usando, para o efeito, toda a gama de sabores e todas as letras do alfabeto, continuemos a cantar: «Abris, Senhor, a vossa mão, e saciais a nossa fome!» (Salmo 145,16).

António Couto


O BOM PASTOR CHAMA POR MIM

Maio 6, 2022

Senhor Jesus Cristo,

Único Senhor da minha vida,

Bom Pastor dos meus passos inseguros

E do silêncio inquieto do meu coração,

Cheio de sonhos, anseios, dúvidas, inquietações.

…..

Senhor Jesus,

Faz ressoar em mim a tua voz de paz e de ternura.

Eu sei que pronuncias o meu nome com doçura,

E me envias ao encontro daquele meu irmão que Te procura.

…..

Fico contigo sentado junto ao poço.

Alumia o meu pobre coração.

Vejo que, de toda a parte, chega gente de cântaro na mão.

Dispõe de mim, Senhor,

Nesta hora de Nova Evangelização.

…..

Que eu saiba, Senhor,

Interpretar bem a tua melodia.

Que eu saiba, Senhor,

Dizer sempre SIM como Maria.

…..

António Couto


BOM PASTOR

Maio 6, 2022

1. No ano 167 a.C., o selêucida Antíoco IV Epifânio tinha profanado o Templo de Jerusalém, introduzindo lá cultos pagãos. Contra esta helenização e paganização do judaísmo lutaram os Macabeus, e, três anos volvidos, em 164 a.C., Judas Macabeu conquistou Jerusalém e procedeu à purificação do Templo e à sua Dedicação solene ao Deus Vivo no dia 25 do mês de Kisleu. Este acontecimento deve ser celebrado todos os anos, durante oito dias, com a Festa da Dedicação, a partir de 25 do mês de Kisleu, que, no ano em curso de 2022, corresponde ao nosso dia 19 de dezembro, nas proximidades da nossa festa de Natal.

2. É no ambiente desta Festa anual da Dedicação do Templo, em pleno inverno, que se situa a perícope do Evangelho de João 10,27-30 (veja-se 10,22), proclamada neste Domingo IV da Páscoa, também Domingo do Bom Pastor e Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Este Dia de Oração remonta à radiomensagem de Paulo VI, de 11 de Abril de 1964, que deu início a este Dia Mundial de Oração pelas Vocações, que são um indicador seguro da vitalidade da fé e do amor de cada comunidade paroquial e diocesana, bem como o testemunho da saúde moral e espiritual das famílias cristãs, num mundo carente de mãos e corações sacerdotais.

3. A Festa da Dedicação, em hebraico hanûkkah, celebra-se durante oito dias, e tem como símbolo o candelabro de oito braços. Relata o Talmude que, quando os judeus fiéis entraram no Templo profanado pelos pagãos helenistas, encontraram uma única âmbula de azeite puro (kasher) de oliveira para reacender o candelabro de sete braços, em hebraico menôrah, que é um dos símbolos de Israel, e que deve arder permanentemente diante do Deus Vivo. Todavia, uma âmbula de azeite duraria apenas um dia, e eram precisos oito dias para preparar novo azeite puro. Pois bem, o azeite daquela única âmbula durou milagrosamente oito dias! Daí que, na Festa da Dedicação, se acenda um candelabro de oito braços, chamado hanûkkiah. Mas acende-se apenas uma luz por dia, depois do pôr-do-sol, aumentando progressivamente uma por dia até estarem acesas as oito luzes. Além disso, e ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, que alumiam o interior do Santuário e da casa de família respetivamente, as Luzes do candelabro da Dedicação, refere o ritual, devem ser vistas cá fora: devem alumiar o ambiente social, político, comercial e cultural. E também ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, não se acendem todas de uma vez, mas progressivamente, uma por dia, porque, quando as condições são adversas (paganismo helenista e escuro), não basta acender uma luz e mantê-la; é preciso aumentar constantemente a luz… Mais luz! Mais luz! Mais luz!

4. Como este simbolismo é importante para os dias de hoje! Está escuro cá dentro e lá fora, o mundo parece desconstruir-se, o paganismo é galopante! Mais do que nunca, é preciso, portanto, não apenas manter a luz, mas aumentá-la progressivamente. E está em maravilhosa sintonia com o Dia Mundial de Oração pelas Vocações, que salienta sempre a importância da fé e da esperança.

5. O resto é a força e a beleza da imagem do Bom e Belo Pastor, que dá a Vida Eterna às suas ovelhas, que as segura pela mão, que as conhece, enquanto elas escutam a voz do Bom Pastor e o seguem (João 10,27-29). Maravilhosa Comunhão.

6. Maravilhosa Comunhão também entre este Bom e Belo Pastor, que é o Filho, e o Pai. Texto imenso e intenso, de grande alcance trinitário: «Eu e o Pai uma Realidade somos» (João 10,30). Deixem-me pôr aqui o texto grego: egò kaì ho patêr hén esmen. O verbo está no plural: somos. Junta «Eu» e «o Pai», duas Pessoas. O predicativo, porém, não está na forma masculina, mas na forma neutra: uma Realidade (hén). Donde: o Filho e o Pai não são uma só Pessoa (da ordem da hypóstasis), mas são uma única Realidade (não coisa!, como se vê em algumas pobres traduções), uma única Substância (da ordem da ousía), como diziam bem os Padres gregos. Ó música insondável do Amor de Deus, ó admirável comunhão de três Pessoas iguais, mas distintas, ó Vida Plena e Verdadeira, Vida Vivente, Divina, a nós acessível por graça! Basta, para tanto, conhecer, escutar e seguir o Bom e Belo Pastor.

7. A lição de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos (13,14.43-52) mostra-nos Paulo e Barnabé em Antioquia da Pisídia, antiga cidade situada no coração da Ásia Menor, atual Turquia, hoje reduzida a algumas ruínas junto da aldeia de Jalvaz. Entrando na sinagoga em dia de sábado, Paulo e Barnabé anunciaram aí, na longa perícope hoje não lida (v. 16-41), o kêrigma tripartido da fé: a Promessa feita aos Pais, Cristo Ressuscitado, o Dom do Espírito Santo. O anúncio suscitou a fé em numerosos hebreus que, no final, se unem aos dois apóstolos (v. 42-43). O círculo de ouvintes e crentes aumentou no sábado seguinte (v. 44), o que provocou a inveja dos judeus fiéis à sinagoga (v. 45). Vendo então que a Palavra de Deus era rejeitada pelos judeus da sinagoga, Paulo e Barnabé voltaram-se para os pagãos, que muito se alegravam e glorificavam a Deus, e abraçaram a fé (v. 48). Os dois apóstolos leem esta recusa dos judeus e a consequente oferta da salvação aos pagãos como fazendo parte do Desígnio divino, e citam a propósito Isaías 49,6: «Eu te estabeleci como luz das nações pagãs, para que leves a salvação até aos confins da terra» (v. 47). E Isaías outra vez a confirmar esta oferta da salvação a todos os povos, pondo-os todos sob a Bênção de Deus, inclusive os inimigos de Israel: «Bendito o Egito, meu povo, a Assíria, obra das minhas mãos, e Israel, minha herança» (Isaías 19,25). É o Evangelho sem peias nem fronteiras. Paulo e Barnabé acabaram naturalmente expulsos da cidade devido às perseguições dos judeus (v. 50). Mas o Espírito Santo ia enchendo de alegria os novos discípulos (v. 52).

8. A mesma realidade pode ver-se na lição de hoje do Livro do Apocalipse 7,9.14-17, onde a Jerusalém celeste congrega «uma multidão imensa de todas as nações, raças, povos e línguas» (v. 9). A lição é clara: os eleitos de Deus não pertencem a uma só raça ou cultura ou língua ou nacionalidade. Mas, neste povo «pentecostal», podemos logo identificar outra caraterística, uma espécie de verso e reverso, viver em dois teclados, dois cenários sobrepostos: os fiéis experimentam a aflição, mas vivem na alegria, a perseguição, mas vivem na glória, são atormentados, mas vivem na serenidade. Outra vez o episódio de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos como paradigma: em Antioquia da Pisídia levantou-se uma perseguição contra Paulo Barnabé e os primeiros crentes, e, não obstante, «os discípulos estavam cheios de alegria» (Atos 13,52) e «os pagãos alegravam-se e glorificavam a Deus» (Atos 13,48). Os eleitos do Apocalipse imitaram Cristo também no martírio, «lavando as suas vestes no sangue do Cordeiro» (Apocalipse 7,14). Experimentaram a fome e a sede, o sol e o calor ardente. Agora, porém, seguindo o ritual da Festa das Tendas (cf. Levítico 23,40), levam palmas (phoínix) na mão (Apocalipse 7,9), símbolo de vitória e de festa e de vida nova e eterna (phoínix tem o duplo significado de palmeira e fénix, a ave da imortalidade), e serão apascentados e conduzidos pelo Cordeiro às fontes de água viva (Apocalipse 7,16), e o próprio Deus enxugará com carinho as lágrimas dos seus olhos (Apocalipse 7,17; cf. Isaías 25,8).

9. Na tradição judaica, o Salmo 100 constitui uma velha, pequena oração que ressoa no nosso coração como louvor ao Deus bom, cujo amor é eterno. Intitula-se «Um cântico para a tôdah» (mizmôr letôdah), isto é, para a ação de graças ao Senhor. Este pequeno hino articula gritos de alegria, louvor, conhecimento, súplica, bênção. Agostinho comenta assim: «Deixa que a oração se transforme no teu alimento. Rezando, adquires novas energias, e Aquele a quem rezas torna-se mais doce para contigo». No centro do pequeno hino está uma profissão de fé no Senhor: o Senhor é Deus, nosso criador, que estabeleceu a aliança com Israel («nós somos o seu povo»), o amor do Senhor é para sempre, a sua fidelidade para todas as gerações (v. 3 e 5).

António Couto