AUMENTA, SENHOR, A NOSSA FÉ

Setembro 30, 2022

Hab 1,2-3; 2,2-4; Sl 95; 2 Tm 1,6-8.13-14; Lc 17,5-10

1. Falo do umbral do outono, de uma praça carregada de metáforas. Moro aqui debaixo deste céu. Claro que durmo ao relento. Sou pobre e puro. Pedinte apenas à porta do espírito. Como os plátanos no púlpito das praças, abrigo os pássaros. Atiram-me pedras os meninos. O meu lugar é aqui, de bruços nas palavras, pedra a pedra construindo o pátio do poema. É assim que hoje enfrento, em estilo diferente, mas de frente, os dizeres deste Domingo XXVII do Tempo Comum.

2. Oiço bater à porta. Serás tu ainda? Que fruto trazes nas tuas mãos despidas? Um balde? O mar? O mar num balde? As rochas a estalar? O lume a arder em febre? Uma estrela cadente envolta em neblina?

3. Trazes a história de uma semente pequenina, microscópica. Dizes, para espanto meu, que, lançada à terra, dela nascerá uma árvore grande, em cujos ramos vêm abrigar-se os pássaros do céu, fazendo dela uma lareira carregada de alegria. E dizes, outra vez para espanto meu, que a FÉ tem o tamanho e o virtuosismo dessa semente pequenina, que semeada no meu coração e no coração do mundo pode desenraizar o que nos parece seguro, sólido, assegurado, empedrado, empecadado, fazer ruir os nossos cálculos mais estudados, fazer florir o alcatrão das nossas estradas, fazer sorrir a nossa história desgraçada, arrancar embondeiros, plantar no mar aquilo que parece só poder viver na terra.

4. Acrescentas logo, sempre para espanto meu, que uma vida de serviço e da máxima simplicidade é a melhor. E que é também a melhor pregação, uma vez que, como nos ensinou o Papa São Paulo VI, na sua Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, n.º 41, «O homem con­temporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas». Servir por amor. Sem tempo nem contrato. Sem cláusulas. Doação total. Dar a vida como tu, Senhor e Servo. Não se trata de dizer que sou um servo inútil (achreîos), se o serviço que prestei ao meu Senhor foi útil. Trata-se simplesmente de dizer que sou apenas um servo, e que tudo recebo da liberalidade do meu Senhor. Servo apenas servo (Lucas 17,10), que não passa de servo, não sobe na carreira, não tem carreira, servo que se cumpre e esgota como servo, portanto, servo servido pelo seu Senhor, como ensina a parábola de Lucas (12,37). A fé é esse vínculo firme e fiel ao meu Senhor e ao meu irmão.

5. Para me dizeres tanto, foste buscar metáforas ao campo: a semente, as árvores e o servo (Lucas 17,5-10). E, uma vez no campo, levas-me a visitar o jardim de Habacuc (1,2-3, 2,2-4), que aparece hoje também no mapa da liturgia. Poucos saberão, mas Habacuc é o nome de uma planta de jardim. Está de passagem, portanto. De manhã viceja, à tarde seca. É preciso ir depressa. Até porque Habacuc ainda tem de ir à cidade e escrever num grande painel publicitário que «o não-reto perecerá, mas o justo viverá pela FÉ» (2,4).

6. A FÉ é a tal sementinha de nada, do tamanho do grão de mostarda, que pode virar do avesso a nossa vida, a nossa casa, a nossa rua, a nossa cidade, a nossa história. Um dito rabínico do tempo de Jesus afirmava que vale mais um grão de mostarda que um cesto de melancias. Vale também aqui o verso belíssimo da Primeira Carta de São João que a liturgia nos faz cantar hoje ao Aleluia: «Esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé» (5,4).

7. Corre e demora-te a ver esse painel, metáfora erguida na cidade, e aprende a FÉ, isto é, a FIDELIDADE. São Paulo demorou-se longamente a contemplar esse painel, de tal maneira que gravou os seus dizeres na alma e em Romanos 1,17 e Gálatas 3,11.

8. Sim, Timóteo (2 Timóteo 1,6-8.13-14), escuta bem, reacende o dom de Deus que arde em ti, não tenhas vergonha do Evangelho, dá testemunho de Jesus Cristo, guarda a FÉ!

9. Sim, não nos é permitido adormecer ou entorpecer, de modo a ficarmos inativos, infecundos, insensíveis, tipo «tanto faz!». O Salmo 95, que hoje cantamos, e que é, para os judeus fiéis, a oração de ingresso ou de entrada no sábado (reza-se sexta-feira ao pôr-do-sol), e para nós, cristãos, é o Salmo invitatório recitado todas as manhãs, é o mais quotidiano dos Salmos. E deve ser um permanente despertador para não nos deixarmos andar ao sabor de qualquer música, mas apenas e sempre ao sabor da música de Deus. Sim, não é tempo de nos instalarmos aqui, em qualquer «aqui». É necessário levar a todos os lugares e a todas as pessoas este vendaval manso de graça e de bondade e de fé que um dia Jesus ensinou e todos os dias mostrou aos seus discípulos.

…..

Aumenta, Senhor, a nossa fé,

Mas não a aumentes tanto,

Que possamos pensar que a fé é como um banco

De alto rendimento,

E que, portanto,

Já não precisamos mais da tua mão,

Para nos guiar para fora do barranco.

…..

Aumenta, Senhor, a nossa fé,

Mas aumenta-a só um bocadinho,

De mansinho,

Como a semente da mostarda,

Que guarda

O canto de um passarinho.

…..

Aumenta, Senhor, a nossa fé,

Mas aumenta-a devagarinho,

Pé ante pé,

Para não perdermos o pé,

Pois perder o pé é perder a fé,

E ficar perdido no caminho.

…..

Aumenta, Senhor, a nossa fé,

E assiste-nos sempre,

Na alegria e na tristeza,

Na saúde e na doença,

E na nossa pequenez imensa.

…..

António Couto


LÁZARO TEM DE SAIR OUTRA VEZ DA PARÁBOLA!

Setembro 23, 2022

Am 6,1.4-7; Sl 146; 1 Tm 6,11-16; Lc 16,19-31

1. A parábola que nos é dado escutar neste Domingo XXVI do Tempo Comum, conhecida por «O rico avarento e o pobre Lázaro», narrada em Lucas 16,19-31, tem duas coisas únicas: a primeira reside no facto de ser a única parábola de Jesus em que uma personagem ostenta nome próprio, Lázaro, nome emblemático que significa «Deus ajuda»; a segunda tem a ver com o facto de que Jesus não dá qualquer explicação da parábola, nenhuma chave de interpretação nos é dada por Ele.

2. A parábola mostra, em comparação (sýnkrisis) e em claríssimo contraponto, um RICO e um POBRE, de nome LÁZARO. Do RICO é dito que se vestia luxuosamente de púrpura e linho fino, sempre em comparação e em contraponto com o POBRE LÁZARO que se apresentava coberto ou vestido de chagas. A púrpura era considerada na antiguidade o tecido mais raro e precioso, e a tradição rabínica reservava-o aos reis. Do RICO é dito que se banqueteava sumptuosamente, outra vez em comparação e contraponto com o POBRE LÁZARO, esfomeado, que bem desejava comer os restos do miolo do pão com que o RICO limpava a gordura das suas mãos, de que resultavam pequenas bolas, que atirava depois aos cães!

3. O RICO é absolutamente insensível, apresentado em contraponto até com os próprios cães, que lambiam as chagas do POBRE LÁZARO! A questão de fundo nem está em que o RICO hostilize o POBRE. Está em que nem sequer o vê! E a presença e o gesto simpático dos cães não tem o significado que hoje lhes atribuiríamos, mas exatamente o contrário, pois o cão era um animal impuro, e ser abandonado aos cães era uma desonra (cf. 1 Reis 21,19).

4. Enfim, morre o POBRE LÁZARO e morre também o RICO, e o nevoeiro começa a dissipar-se. LÁZARO é acolhido no seio luminoso de Abraão. O RICO cai nos braços de um lume inextinguível que o aperta e atormenta.

5. É então que o RICO levanta os olhos, e começa a ver alguma coisa para além de si mesmo. Mas o que vê, ou quem vê, é ainda para tentar pôr ao serviço do seu «eu» muito autorreferencial. É assim que vê finalmente, só agora, o pai Abraão e LÁZARO. A Abraão vê-o como pai (Lucas 16,24). Mas ao POBRE LÁZARO ainda não o consegue ver como um irmão, mas apenas como um servo que agora lhe pode ser útil. O RICO já não pode fazer mais nada. É irreversível a sua situação. Recorre então ao pobre para duas coisas, agora também impossíveis: Primeiro, para refrescar a língua do RICO (Lucas 16,24). Segundo, para avisar os cinco irmãos do RICO, vivos, ricos, insensíveis e insensatos como ele (Lucas 16,27-28). O RICO continua afinal a pensar nos RICOS, e ainda se quer servir, para esse efeito, dos pobres… No entanto, o facto de a parábola trazer os vivos para a cena constitui um elemento importante, pois é a situação do leitor e do ouvinte da parábola. E ficamos então todos a saber que também a nós toca a conversão. E que é este o tempo da conversão. Para isso, basta escutar a Palavra de Deus e agir em consequência.

6. A resposta de Abraão é esclarecedora e decisiva. Há um abismo entre nós e vós. Claro que o abismo que AGORA não é possível transpor é o abismo cavado em vida pelo RICO separando-se do POBRE. É, portanto, HOJE que o RICO deve ouvir a voz do POBRE. É, portanto, HOJE que o RICO deve escutar Moisés e os Profetas.

7. A parábola é imensa. É como uma faca apontada ao coração dos RICOS de hoje, que continuarão a fazer as suas reuniões faustosas e vistosas, mas continuarão a não cumprir sequer os «Objetivos de Desenvolvimento do Milénio», estabelecidos em 2000 para erradicar doenças e reduzir para menos de metade a pobreza extrema. A pobreza afinal é dos outros, que nós não conhecemos de lado nenhum, ainda que estejam doentes e esfomeados ali mesmo à nossa porta! Pensam como o RICO da parábola.

8. Lembremo-nos que, no imaginário da Idade Média, o POBRE LÁZARO, que significa «Deus ajuda», saiu para fora da parábola e se transformou numa personagem histórica, padroeiro dos leprosos e mendigos. É assim que nascem os «Lazaretos», edifícios destinados a albergar e tratar os deserdados e doentes. E, no século XVII, S. VICENTE DE PAULO, cuja memória a Igreja celebra em 27 de Setembro, que dedicou toda a sua vida aos pobres, fundou os Padres LAZARISTAS (sempre sobre a memória do POBRE LÁZARO), para continuar essa bela missão de tratar os pobres com carinho. E, no século XIX, o beato FRÉDÉRIC OZANAM fundou as CONFERÊNCIAS VICENTINAS, que alicerçou sobre uma frase de S. VICENTE DE PAULO: «A caridade é inventiva até ao infinito».

9. Está à vista, irmãos, que o POBRE LÁZARO tem de voltar a sair da parábola para nos incomodar e nos colocar todos os dias no caminho da criatividade da Caridade!

10. E aí temos outra vez Amós (6,1-7) a bater à nossa porta, a desassossegar o nosso sossego, a desmoronar os nossos belos palácios de marfim, a surpreender-nos enfartados e bêbados, deitados por aí em qualquer divã. O retrato feito nos v. 4-6 é considerado como a melhor e mais ampla descrição da vida luxuosa dos ricos em todo o Antigo Testamento. Estendidos, isto é, reclinados (ver também Amós 2,8), para comer e beber, não o pão e o vinho da bênção de Deus e da partilha com os necessitados, mas o pão do crime e o vinho da violência (Provérbios 4,17). Mas também semelhantes à palha, deitada, e não de pé, como a árvore plantada, de acordo com as imagens vegetais utilizadas no Salmo 1 para retratar o insensato em confronto com o justo. A árvore plantada, portanto, de pé, está viva, respira o vento, dá fruto. A palha, essa, está deitada, é levada pelo vento, não dá fruto, mas é a casca do fruto. Ricos, orgulhosos, altivos, atulhados de excessos, de luxos e de lixos, mas completamente indiferentes aos pobres – «não se afligem com a ruína de José» (6,6) –, o retrato traçado desta confraria dos «estendidos» só é comparável, porventura, com a parábola lucana do rico e do pobre Lázaro, que hoje também tivemos a graça de ouvir nos nossos ouvidos. Mas aí estão também já os Assírios para pôr fim àquilo que tantas vezes julgamos seguríssimo, senão eterno. Sim, os habitantes da Samaria irão nus e descalços para o exílio na Assíria. E um dia hão-de chegar os arqueólogos, que descobrirão debaixo das ruínas os restos deste mundo podre e dissoluto!

11. E a solene exortação de São Paulo a Timóteo, seu discípulo dileto, que hoje nos visita outra vez (1 Timóteo 6,11-16). Começa o v. 11a, com uma forte advertência a Timóteo a fugir destas coisas. Quais coisas? É preciso visitar atrás os v. 4-6, onde se encontra um elenco de vícios, como o orgulho, controvérsias, conflitos de palavras, inveja, contendas, blasfémias, más suposições, lutas infindáveis, a piedade como fonte de lucro. No v. 7, encontramos esta verdade: «Nada trouxemos para o mundo, nem dele coisa alguma podemos levar». E ainda a grande sabedoria condensada no v. 10: «A raiz de todos os males é o dinheiro». Ora bem, é disto tudo que Timóteo deve fugir, para perseguir um elenco de virtudes, como a justiça, a piedade, a fé, o amor, a paciência, a mansidão (v. 11b). Paulo exorta depois Timóteo a combater (agônízô) o bom e belo combate (agôn) da fé, para conquistar a vida eterna (v. 12a), e a fazer uma boa e bela profissão de fé (homología), como Jesus Cristo fez diante de Pilatos (v. 12b-13).

12. É assim que o Salmo 146, que é uma espécie de carrilhão musical, nos convida a cantar os «doze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os doze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (ʼemet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos, defensor dos últimos (3), que dá pão aos famintos (4), que liberta os prisioneiros (5), que abre os olhos aos cegos (6), que levanta os abatidos (7), que ama os justos (8), que protege os estrangeiros (9), que sustenta o órfão e a viúva (10), que entrava o caminho dos ímpios (11), o Deus que reina eternamente (12). Este maravilhoso Salmo ajuda-nos a saborear musicalmente toda a liturgia de hoje.

António Couto


ESBANJADORES DOS BENS DE DEUS!

Setembro 16, 2022

Am 8,4-7; Sl 113; 1 Tm 2,1-8; Lc 16,1-13

1. O uso cristão da riqueza preenche quase por completo o Capítulo 16 do Evangelho de Lucas. Digo «quase», porque temos de excluir apenas uma breve palavra sobre a Lei (Lucas 16,16-17) e outra, brevíssima, sobre o divórcio (Lucas 16,18). Dividindo o Capítulo em duas grandes partes, ficamos então com duas belas parábolas de Jesus: a primeira (Lucas 16,1-13), conhecida como «O administrador desonesto», será proclamada neste Domingo XXV do Tempo Comum, e a segunda (Lucas 16,19-31), conhecida como parábola do «Rico avarento e do pobre Lázaro», será proclamada no Domingo seguinte, XXVI do Tempo Comum.

2. A parábola do Administrador desonesto, que escutaremos neste Domingo XXV, tem sempre desorientado quer os leitores e ouvintes que a leem ou ouvem com simplicidade e bom senso, quer os exegetas que pretendem captar os seus segredos e penetrar nos seus veios mais profundos. E o problema reside nisto: é possível que o Evangelho proponha como modelo a imitar um homem desonesto?

3. O leitor ou ouvinte simples e de boa fé diz naturalmente que não, e compreende que deve afinar pela honestidade a sua vida. Os exegetas enveredam habitualmente, para atenuar o desconforto sentido pela incompreensão do texto, por indagar os costumes então em uso na Palestina, e descobrem que as terras eram muitas vezes propriedade de grandes senhores, em muitos casos estrangeiros, que se ausentavam para os seus negócios, deixando no terreno administradores locais, a quem davam grande margem de manobra, desde que, no final do ano, entregassem ao senhor o montante que tinham acordado. Neste sentido, é facilmente compreensível que o administrador ou feitor, de acordo com os negócios feitos, podia também obter licitamente os seus lucros ou benefícios, e que tenha sido com a sua parte dos lucros que o administrador, em nada prejudicando o seu senhor, tenha levado a efeito aqueles descontos que vemos nesta parábola.

4. Explicação aparentemente fácil e sensata, mas que não pode ser levada em conta. É demasiado equilíbrio para tão pouca explicação! Em boa verdade, a parábola não chama a atenção para a desonestidade do administrador, nem para os meios a que recorreu para fazer amigos. Claramente, a sua desonestidade não interessa a Jesus: não a condena, e tão pouco recomenda que a imitemos. Em vez disso, Jesus chama a nossa atenção para a prontidão, inteligência, clarividência e largueza de vistas com que o administrador procede, sem permitir que o assalte, nem por um momento, a hesitação ou a fuga.

5. É verdade que o administrador da parábola e o discípulo de Jesus que a escuta pertencem a duas maneiras diferentes de estar na vida e de proceder: o primeiro obedece à lógica do mundo; o segundo à do Reino. Trata-se evidentemente de duas maneiras diferentes de encarar a vida. Não obstante, o discípulo de Jesus, de acordo com o andamento da parábola, deve aprender do administrador, não a ser desonesto, mas a capacidade de decidir com prontidão, inteligência e largueza de vistas. Todavia, se a parábola só ensinasse isto, tratava-se de coisas óbvias que a vida sensata nos vai ensinando todos os dias. Para aprender apenas isto, não é preciso ler ou ouvir nenhum Evangelho. O Evangelho tem de nos levar para além do habitual, tem de desequilibrar completamente as nossas habituais maneiras de fazer e proceder.

6. Prossigamos então este caminho. Na sua literalidade (nem precisamos de ser muito rebuscados), este pedaço do Evangelho deve revolver completamente os nossos procedimentos. E aquilo que salta à nossa vista, quer queiramos quer não, é a figura de um administrador que esbanja completamente os bens de que dispõe, e que não são dele. São do seu senhor. Inequívoco. O texto diz expressamente que o administrador «convocou os devedores do seu senhor, e disse ao primeiro: “Quanto deves ao meu senhor?”» (v. 5). Fica claro quem é o proprietário daqueles bens: é o senhor do administrador e dos devedores. À pergunta formulada pelo administrador: «Quanto deves ao meu senhor?», o devedor respondeu: «Cem talhas de azeite». Resposta do administrador, que traz, agora sim, não o usual, mas o Evangelho: «Senta-te depressa, e escreve cinquenta» (v. 6). Sem equívocos: este administrador é um esbanjador dos bens do seu senhor! Olhemos então de frente, e perguntemo-nos: «E Jesus não veio esbanjar os bens do Pai?». Não esbanjou e continua a esbanjar o amor, o perdão, a vida, a misericórdia, a alegria, a paz? Portanto, o administrador da parábola não faz mais do que Jesus fez e faz. Por estranho que pareça, distribuir sem medida, «esbanjar», é a palavra-chave da parábola. E então, o leitor e o ouvinte desta parábola do Evangelho já sabe até que ponto este bocadinho de Evangelho pode e deve mexer com a sua vida.

7. Mas, há ainda, no v. 6, outro belo apontador do Evangelho, que não podemos descurar. É aquele: «Senta-te depressa…». Mas que pressa é esta? É a pressa e o mapa da Páscoa do Egito, porta aberta para a viagem transitiva e intransitiva da liberdade: «Comereis a toda a pressa com os rins cingidos, as sandálias nos pés, o cajado na mão; é a Páscoa do Senhor» (Êxodo 12,11). É a pressa do mensageiro de Isaías 52,7, que corre sobre os montes porque tem para anunciar boas novas a Sião, exultação logo replicada pelas sentinelas de Sião, e que chega a revolver e a envolver mesmo as próprias ruínas de Jerusalém (Isaías 52,8-9). É a pressa do amado do Cântico dos Cânticos 2,8, que o amor faz correr sobre os montes. É a pressa de Maria que se levanta e se põe a caminho apressadamente (Lucas 1,39), Arca da Nova Aliança portadora do Evangelho em pessoa. É a pressa dos pastores dos campos de Belém, que correm a Belém (Lucas 2,15-16), para ver e saudar o Salvador acabado de nascer. É a pressa dos setenta e dois discípulos de Jesus (Lucas 10,4), enviados por Jesus, sem paragens no caminho, procedimento inconcebível no mundo do Médio Oriente Antigo (onde as pessoas se entretinham longamente a conversar), e que lembra a pressa imposta pelo profeta Eliseu ao seu servo Guiezi para ir, sem paragem no caminho, ao encontro do filho morto da Sunamita (2 Reis 4,29), a qual também tinha partido a toda a pressa para casa de Eliseu (2 Reis 4,22). É a pressa do Pai do filho pródigo, quando interrompe o discurso do filho, e diz para os criados: «Depressa, trazei o primeiro vestido, e vesti-lho» (Lucas 15,22). É a pressa do administrador esbanjador dos bens do seu senhor, que diz para um dos devedores: «Cem talhas de azeite? Senta-te depressa, e escreve cinquenta» (Lucas 16,6). É a pressa de Jesus, quando diz para Zaqueu: «Desce depressa, porque é preciso para mim ficar hoje em tua casa» (Lucas 19,5). É a pressa de Zaqueu a descer do sicómoro e a receber Jesus em sua casa, para virar a sua vida toda do avesso (Lucas 19,6). É a pressa das mulheres e dos homens da Páscoa, que até hoje não param de correr (João 20,2.4). É a pressa de Pedro pelo anjo atirado da prisão para a rua (Atos 12,7). É a pressa de Paulo em anunciar aos judeus de Damasco que Jesus é o Filho de Deus (Atos 9,20). Não nos resta senão acelerar a nossa vida para nos pormos ao ritmo do Evangelho.

8. A parábola contada por Jesus permite ainda uma correta compreensão sobre a função do dinheiro. O dinheiro é para servir o homem, mas torna-se muitas vezes o seu dono, diante do qual nós nos prostramos, segurança enganadora, falso sucedâneo de Deus, ídolo, a que o Evangelho chama MAMONA (mamônã) (Lucas 16,13; cf. Mateus 6,24). De notar que o termo grego mamônãs [= dinheiro, riqueza] deriva, através do aramaico mamôn, da raiz hebraica ’mn, que serve também para dizer a fé e a confiança em Deus. É como quem diz que podemos equivocar-nos radicalmente, deixando de pôr a nossa fé e confiança no Deus vivo, para nos agarrarmos aos ídolos mortos e vazios, uma espécie de «espantalhos num campo de pepinos!» (Jeremias 10,5). No nosso caso e nesta sociedade moderna, pode tratar-se de belos edifícios plantados no meio das cidades. É aí que estão os bancos! O historiador das religiões, David Flüsser, atravessava um dia a cidade de Atenas enquanto refletia sobre a fé, grego pístis, no Novo Testamento. E quando levantou os olhos, deparou-se com grandes letras no frontal de um edifício. Leu: trápeza tês písteôs, à letra, banco de fé, em termos modernos, banco de crédito! Veja-se, hoje, com olhar lúcido, o logro ou o lodaçal das nossas arquitetadas seguranças!

9. Daí a muito bíblica e oriental advertência de Jesus: «Ninguém pode servir a dois senhores», donde: «Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Lucas 16,13). De notar que o Livro de Ben Sira já advertia com sabedoria: «Muitos pecam por amor ao dinheiro. Aquele que procura enriquecer faz todas as falcatruas». E ainda: «Como se introduz um pau entre as junturas das pedras, assim se intromete o pecado entre a venda e a compra» (Ben Sira 27,1-3).

10. O livro de Amós, de que hoje ouvimos também uma pequena perícope (8,4-7), caustica severamente a exploração dos pobres, a corrupção e o lucro fácil. O mundo de Amós é de oito séculos antes de Cristo. Mas o seu Livro parece ter sido escrito hoje, dada a sua tremenda atualidade. A lição de hoje abre com a chamada «fórmula de atenção» [= «Ouvi»], que introduz habitualmente oráculos de desgraça, e dirige-se aos ricos e latifundiários, que vendem o trigo aos necessitados, enganando-os e roubando-os sorrateiramente, usando balanças, medidas e pesos falseados, comprando o trabalho dos pobres por um par de sandálias! Como se vê, sendo embora o texto do séc. VIII a.C., parece que estamos a ler um compêndio moderno de economia e comércio, que tem em vista apenas o lucro fácil a custo seja do que for. O oráculo termina referindo que para um tal comportamento de roubo, para cúmulo disfarçado de seriedade, não há amnistia: «nunca o esquecerei», diz Deus (v. 7). O efá, de que se fala no texto (v. 5), usado para medir cereais, equivalia a 45 litros. O sheqel ou siclo, de que também se fala no v. 5, pesava 11,4 gramas. A moeda propriamente dita aparece no séc. VIII na Anatólia, e pouco depois na Grécia. O sheqel é o nome atualmente usado para designar a moeda israelita.

11. Chega-nos hoje mais uma extraordinária lição de São Paulo na sua 1 Carta a Timóteo 2,1-8. Primeiro que tudo (prôton pántôn), rezar por todos os homens, usando todas as modalidades da oração: súplicas (deêseis), orações intensas (proseuchaí), pedidos (enteúxeis), ações de graças (eucharistíai) (v. 1). Depois, a afirmação da vontade salvadora universal de Deus, nosso Salvador, que quer que todos os homens sejam salvos, e ao conhecimento da verdade venham (v. 4). Dois movimentos: um da parte de Deus, nunca anulável; outro da nossa parte, indicando que nos devemos pôr em movimento em ordem ao conhecimento profundo, pessoal, íntimo, experimental (epígnôsis) da verdade, que é o amor fiel e fiável de Deus por nós. Em continuidade, o único mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, que se entregou a si mesmo por nós (v. 5-6). A seguir, a razão de ser do próprio Paulo e da sua missão de anunciador (kêryx) e apóstolo (apóstolos) (v.7). Por último, como ao princípio, a vontade de Paulo de que todos rezem em toda a parte (v. 8).

12. E ficamos com a música inebriante do Salmo 113, o Salmo que abre o fascículo dos Salmos 113-118, catalogados como o «pequeno Hallel da Páscoa» ou «Hallel egípcio», Salmos cantados no decurso da Ceia da Páscoa hebraica, de que o Talmude registra uma imagem sugestiva, deixando supor que, no decurso da Ceia da Páscoa, se levantava das casas dos hebreus um suspiro de louvor que perfurava os tetos e chegava ao céu: «A Páscoa é saborosa como a azeitona, e o Hallel deve atravessar os tetos das casas para chegar ao trono de Deus». O Salmo 113, sessenta palavras hebraicas, apresenta três belos andamentos: o primeiro, v. 1-3, convida os orantes a encher de louvor o espaço todo visto na sua linha horizontal (do nascer ao pôr do sol: oriente-ocidente) e o tempo todo (agora e sempre). Este louvor intenso dirige-se à pessoa do Senhor, expressa pelo Nome do Senhor (três vezes). O segundo andamento, v. 4-6, desenha uma linha vertical no sentido descendente (céu-terra), e mostra a transcendência, a glória e a incomparabilidade de Deus, sentado no alto, nos céus, mas amorosamente debruçado sobre a terra. Portanto, o nosso Deus não é um Deus impassível e abstrato, fechado nas paredes douradas da sua eternidade, mas é um Deus que se interessa por nós. O terceiro andamento, v. 7-9, desenha agora uma linha vertical no sentido ascendente (terra-céu), e mostra Deus em ação no nosso mundo, levantando do pó e do esterco os indigentes, e fazendo da estéril, por todos desprezada, mãe honrada e feliz, habitante digna na casa do Senhor. Grande Hino de Louvor, que faz comunhão na vertical e na horizontal, e que nos junta a todos na bênção (v. 2), hebraico berakah, grego eulogía, que desenha um mundo de bondade e de bem, de pensar bem, dizer bem, querer bem, fazer bem. Bendizer ou dizer bem une, como sabemos. Une-nos uns com os outros e todos com Deus. É a Eucaristia. Ao contrário, maldizer ou dizer mal separa, como também sabemos.

13. Mas nunca nos esqueçamos que não pode ser o dinheiro a comandar a nossa vida. Nunca nos devemos esquecer da história daquele fulano que era tão pobre, tão pobre, tão pobre…, que só tinha dinheiro!

António Couto


PARA QUE O NOSSO CORAÇÃO NÃO SEJA UM NINHO DE VÍBORAS

Setembro 13, 2022

Nm 21,4-9 (ou Fl 2,6-11); Sl 78; Jo 3,13-17

1. A Igreja celebra no dia 14 de setembro a Festa da Exaltação da Santa Cruz. É sabido que a Igreja Mãe de Jerusalém rapidamente fez do Santo Sepulcro o seu primeiro e mais venerado lugar de culto. Na sua luta implacável contra o culto cristão, o Imperador Adriano (117-138), sobretudo nos últimos anos do seu reinado, transformou Jerusalém, em termos de edifícios e de moral, numa cidade de estilo romano, a Aelia Capitolina. Para tanto, soterrou o Santo Sepulcro e paganizou-o, estabelecendo ali cultos pagãos com a clara intenção de dissuadir os cristãos de continuar a frequentar esses lugares pelo temor da communicatio in sacris. Assim, no lugar do Santo Sepulcro, pôs a estátua de Júpiter, e, no Calvário, pôs uma estátua de Vénus em mármore. O mesmo fez, de resto, em todos os lugares santos da Palestina. O projeto de Adriano não atingiu os seus fins, pois os judeo-cristãos continuaram a frequentar aqueles lugares, confundindo-se com os pagãos, que ali faziam ritos semelhantes, ainda que antitéticos. Neste sentido, conclui S. Jerónimo, que o imperador não conseguiu, como pretendia, apagar nas almas dos cristãos a fé na Ressurreição e na Cruz de Cristo. Não é de admirar, portanto, que, quando em 13 de Setembro de 326, por indicação de um habitante de Jerusalém, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, descobriu a Cruz do Senhor, tenham sido logo demolidas as construções pagãs. Foi assim que vieram à luz outra vez os primitivos e venerados lugares cristãos, que foram então englobados num magnífico edifício Constantiniano, consagrado no dia 13 de Setembro do ano 335, e que era formado pela basílica da Anástasis, que guardava no centro o Santo Sepulcro, o Triplo Pórtico, que abrigava o rochedo do Gólgota e o Martyrium, que guardava o lugar da crucifixão e morte do Senhor. No dia imediatamente a seguir à dedicação da Basílica, 14 de Setembro desse ano 335, teve lugar e origem a adoração da Cruz de Cristo, hoje, Festa da Exaltação da Santa Cruz. A peregrina Egéria, da Galiza, que, em finais do século IV, visitou demoradamente os Lugares Santos, diz-nos que a Santa Cruz era então exposta à adoração dos fiéis duas vezes no ano: em 14 de Setembro e em Sexta-Feira Santa. Egéria descreve assim a adoração de Sexta-Feira Santa: «desde as 08h00 da manhã até ao meio-dia», «todos passavam, um por um: inclinam-se, tocam a Cruz com a fronte, e depois com os olhos a Cruz e a inscrição, a seguir beijam a Cruz e saem, sem que ninguém toque com a mão na Cruz» (Itinerarium, 36,5; 37,3).

2. E as coisas assim continuaram até ao ano 614, quando o rei persa Cosroé II conquistou Jerusalém e levou consigo a Santa Cruz. Neste dia, rezam as diferentes crónicas que documentam o sucedido no dia 20 de maio de 614, que «a Jerusalém do Alto chorava sobre a Jerusalém de baixo», tal era o grau de destruição, fúria, ódio, violência, sangue. Mas, em 630, a Santa Cruz regressa a Jerusalém por obra do imperador bizantino Eráclio que, em 628, tinha derrotado o louco Cosroé II.

3. São estes dois episódios históricos, dos séculos IV e VII, que fornecem o chão histórico para a Festa da Exaltação da Santa Cruz, que hoje celebramos. Anotamos, porém, que, mesmo sem estes episódios, e antes deles, a Cruz do único Senhor da nossa vida, Jesus Cristo, foi, segundo o Evangelho, exaltada para sempre diante dos nossos olhos.

4. É, nesse sentido luminoso, que temos hoje a graça de ouvir o Evangelho de João 3,13-17, que expõe a toda a luz o «Filho do Homem, que deve (deî) ser levantado (hypsôthênai: aor. inf. passivo de hypsóô), para que todo o que acredita nele tenha a vida eterna» (João 3,14b). Vê-se perfeitamente que Jesus está a expor diante dos olhos de Nicodemos e dos nossos, a Cruz Santa e Gloriosa em que Ele próprio, o Senhor da Vida, será crucificado, que o mesmo é dizer, na linguagem Joanina, exaltado e glorificado. Note-se a presença da mão de Deus, quer na necessidade teológica, expressa naquele deî, que reclama o plano divino, quer na forma passiva utilizada na ação deste levantamento. Também é importante a comparação explícita que o próprio Jesus faz do seu levantamento com a ação de Moisés: «Assim como Moisés levantou (hýpsôsen: aor. de hypsóô) a cobra no deserto» (João 3,14a). E não podemos também perder de vista que, com este dizer, Jesus se assume como o verda­deiro Servo de YHWH, que «será exaltado» (hypsóô) por Deus (Isaías 52,13), e se apresenta a si mesmo como transparência de Deus: «Quando tiverdes levantado (hypsóô) o Filho do Homem, então sabereis que “Eu Sou” (egô eimi), e que por mim mesmo nada faço, mas como me ensinou o Pai estas coisas falo (laléô)» (João 8,28). Paulo também dirá, na Carta aos Filipenses, acerca deste Jesus, que Deus o «sobreexaltou» (hyperhypsóô) (Filipenses 2,9).

5. Notemos, antes de mais, que o levantamento de Jesus na Cruz é em ordem a dar a vida eterna (zôê aiônios) a todos os que creem (João 3,15-16). É por isso que Jesus diz: «Quando eu for levantado (hypsóô) da terra, atrairei todos a mim» (João 12,32). E ainda: «Hão de olhar para aquele que trespassaram» (João 19,37). Na verdade, para ter a Vida verdadeira, eterna, divina, vivente, que não morre, é necessário ver [= acre­ditar] o Filho (João 3,36; 6,40), Luz da Luz, que brilha sobre a Cruz, novo e último candelabro do amor de Deus (Atos 2,36). Ver o Filho é obra do Espírito Santo em nós (1 Coríntios 12,3). Para O ver é necessário ter nascido da água e do Espírito (João 3,5), isto é, do alto e de outra maneira (ánôthen) (João 3,3).

6. Ver o Filho do Homem levantado na Cruz é ver passar dois filmes: 1) o da nossa violência e malvadez, postas a descoberto naquele rosto desfigurado, naquelas chagas abertas, naquele sangue a escorrer ou já coalhado: está ali, bem diante de nós, a imagem do pecado que está escondido em nós; 2) passa ali também o filme do imenso amor de Deus, que não faz frente à minha violência, mas a abraça. Sendo Deus amor, então a única maneira que Ele tem de curar o meu pecado não é decretar, lá do alto e de dentro das paredes douradas da sua eternidade, uma qualquer amnistia. A única maneira que Deus tem de me curar é descer ao meu mundo, viver no meu mundo, caminhar comigo, sujeitar-se às minhas maldades e tropelias, sofrê-las e absorvê-las. É só assim, desarmado e só amando, que pode dissolver e absolver o pecado que há em mim. «Deus amou tanto o mundo» (João 3,16). A cura não é mágica. Levantada e exibida bem diante dos nossos olhos, naquele rosto desfigurado e naquele sangue a escorrer, a imagem da violência, mentira, ódios, dentro de nós escondida, mas agora declarada, conhecemos agora a doença de que padecemos. Podemos, portanto, começar a tratar-nos. E o remédio também está ali exposto bem diante dos nossos olhos: é aquele amor e perdão subversivos!

7. Era então necessário que Jesus sofresse na Cruz, daquela maneira, por nós? Sim, porque, para nos salvar, Deus não podia senão amar-nos. E, para nos amar, tinha sempre de vir viver connosco, no meio de nós, e sujeitar-se naturalmente às maldades e violências daqueles que Ele amava. Se nós fôssemos todos bons, seguramente que Jesus não teria sofrido e morrido naquela Cruz. Porquê? Porque não era necessário? Penso que a maioria de nós responderia que sim, que não era necessário. Mas a resposta verdadeira e objetiva nem sequer passa pelos terrenos da necessidade, e está toda aqui: Jesus não teria morrido naquela Cruz simplesmente porque, sendo nós todos bons, quem de nós ia fazer uma coisa daquelas?!

8. Atenção, portanto: a Cruz não é o nosso pecado. É a imagem do nosso pecado! O pecado, que está em nós, produziu aquela imagem. Sim, está ali a imagem da nossa violência e estupidez. Vendo a imagem, podemos ver o pecado, o mal que há em nós, habitualmente escondido e dissimulado. A Cruz também não é o amor de Deus. É a imagem do Amor de Deus!

9. Se olharmos agora para o texto do Livro dos Números 21,4-9, tudo fica claro. O pecado camuflava-se nos interstícios do coração do povo de Israel no deserto. O resultado era a murmuração contra Deus e contra Moisés, o não reconhecimento da ação libertadora de Deus no Êxodo e o desprezo do alimento dado por Deus, causa de fastio, e não de maravilha (Números 21,5). Como corrigir, com boa pedagogia, esta situação? Aí estão as cobras (nehashîm) venenosas, que mordem e matam (Números 21,6). A cobra é, por excelência, imagem do pecado. Esconde-se e dissimula-se como o pecado. E o veneno que transporta, igualmente dissimulado, conduz à morte, como o pecado. A cobra, como o pecado, anda dentro de nós, dissimulada nas pregas do nosso coração empedernido. É sintomático que o Livro do Génesis 3,14 refira que a cobra se alimenta de pó (ʽaphar). De pó (ʽaphar) foi modelado o homem (Génesis 2,7). Salta então à vista que a cobra se alimenta de nós. É um parasita perigoso que se alimenta de nós e nos vai corroendo. Como o pecado.

10. Moisés expõe num poste uma cobra de bronze. Quem olhar para ela, fica curado (Números 21,8-9). Não se trata de magia, mas, outra vez, do realismo bíblico. Note-se também, antes de mais, que não era uma cobra que Moisés fixava no poste, mas a imagem de uma cobra. Olhar bem para a imagem da cobra leva-nos a descobrir a cobra verdadeira que anda dentro de nós, o veneno que transportamos, que nos mata e mata os nossos irmãos. Feito o diagnóstico, reconhecido o mal de que padecemos, podemos então iniciar o processo da cura. É neste ponto preciso que a boa pedagogia de Jesus em João 3,14 nos leva a ver bem o Filho do Homem levantado como Moisés levantou a cobra no deserto.

11. O chamado «hino cristológico», que encontramos na Carta aos Filipenses 2,6-11, volta a pôr diante de nós o Filho de Deus, humilhado e exaltado, Jesus, que recebeu, na sua Humanidade, o Nome divino (ver também Hebreus 1,1-4), Nome incomparável (Filipenses 2,9). Por isso, agora, todos os seres criados adoram o Nome-Jesus (Filipenses 2,10), e «toda a língua», isto é, todo o ser humano racional, professa: «Senhor é Jesus Cristo!» (Kýrios Iêsoûs Christós). Notar a ordem dos três termos, errada nas versões modernas: Senhor, isto é, Deus eterno, é o Homem-Jesus Cristo. Segundo as boas indicações gramaticais, o sujeito é o que não se conhece; o predicado é o que se conhece. O acento cai, pois, sobre Senhor. O fim em vista: a Glória do Pai com o Espírito (Filipenses 2,11). É quanto Deus operou na Cruz e semeou no nosso coração.

12. O Salmo 78 ensina-nos que a Bíblia é a longa história de uma salvação sempre oferecida, acolhida e, por vezes, rejeitada. Lembra-nos que que as maravilhas de Deus não são para guardar no cofre da família, mas para passar, de mão em mão, de coração a coração, de pais para filhos, de geração a geração. A catequese é o anúncio de um acontecimento em carne viva que nos deve comprometer, e não de uma série de frias ou requentadas teses teológicas.

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Irei também, Senhor,

Em procissão de amor,

Beijar a tua Cruz.

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E quando eu olhar para ti,

Para o teu rosto ferido e desfigurado,

Para as tuas muitas chagas a sangrar,

Dá-me a graça de aí ver bem o meu pecado.

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E quando Tu, Senhor, olhares para mim,

Com esse meigo olhar de serena compaixão,

Dá-me a graça de aí ver o teu perdão nunca poupado,

E de sair com o coração transfigurado.

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António Couto


ESTA PARÁBOLA DA MISERICÓRDIA

Setembro 9, 2022

Ex 32,7-11.13-14; Sl 51; 1 Tm 1,12-17; Lc 15,1-32

1. Este Domingo XXIV do Tempo Comum oferece-nos a proclamação e audição integral, assim vivamente o espero, da grande parábola guardada em Lucas 15,1-32. A página lucana tem lugar garantido em qualquer antologia dos mais belos textos de todos os tempos.

2. É a história dos pecadores e dos publicanos, dos escribas e dos fariseus, não esquecendo nunca o Teófilo, a quem Lucas endereça o seu Evangelho (Lucas 1,3), que está sempre no fundo da cena, de todas as cenas, e que sabe que tem um irmão mais velho. De uns, de outros e do outro, todos temos um pouco. Todos se aproximam de Jesus: os primeiros para o escutar com alegria; os segundos para o recriminar com azedume pelo facto de ele receber os primeiros e comer com eles. O terceiro, porque sabe que a mão de Deus está sobre ele e se sente entusiasmado com Jesus e com o Evangelho. Há, portanto, aqui um comportamento novo, misericordioso, inclusivo e acolhedor por parte de Jesus. Os pecadores compreendem que Jesus traz um Evangelho, uma Notícia Boa e Feliz. Os escribas e os fariseus, porém, não consideram a Notícia suficientemente Boa. O Teófilo sente que Deus o chama e o ama. Por isso, de Jesus se aproximam os pecadores, até então marginalizados e hostilizados pela tradição religiosa vigente; por isso, o recriminam os fariseus e os escribas, os garantes da velha tradição religiosa, rigorista, classista e exclusivista. Por isso, e sem preconceitos, anda por ali também Teófilo.

3. Aos fariseus e escribas conta Jesus uma parábola. Note-se bem: uma parábola, «esta parábola» (taútên parabolên) (v. 3), no singular, e não três parábolas, como é usual dizer-se. Note-se também que, para escutarmos corretamente «esta parábola» de Jesus, é do lado dos fariseus e dos escribas que nos devemos postar, dado que é para eles que Jesus conta diretamente a parábola. O Teófilo, esse, está sempre atento a tudo. «Esta parábola» é, portanto, em primeiro lugar, para eles e para o nosso lado orgulhoso, farisaico, classista e exclusivista, para «o nosso como eles». É notório que, dado o desenrolar da história contada por Jesus, gostemos mais de nos rever na ovelha perdida e encontrada do que nos noventa e nove fariseus cumpridores de ordens e que, por isso, se julgam piedosos e justos com direitos e créditos sobre Deus, como também nos revemos habitualmente naquele filho que sai de casa e que acaba por voltar mais tarde, sendo recebido por um Pai carinhoso que o espera de braços abertos. Mas, para que a história contada por Jesus nos caia em cima, como um relâmpago, é mesmo do outro lado de nós que nos devemos colocar. Sem esquecer que Teófilo está lá sempre.

4. A eles e a nós mostra Jesus a atenção extremosa do pastor que corre, ainda que tenha de ser a vida inteira, à procura da sua ovelha perdida. E mostra depois a alegria incontida que sente quando a encontra, e em que quer fazer participar os seus amigos e vizinhos. A mesma cuidadosa atenção e alegria toma conta da mulher que procura e encontra a moedinha que perdeu no chão de terra e basalto negro da sua humilde casa da Galileia.

5. Mas já Jesus traz para a cena, sem deixar a audiência respirar, um Pai excecionalmente maravilhoso e bom, em quem pulsa um imenso coração e vibram entranhas de misericórdia. Tem dois filhos, que nos representam a todos: um claramente pecador, que opta por sair de casa, depois de ter pedido ao pai a sua parte da herança. E Teófilo ali a ouvir. Note-se que todo o pai dá três coisas aos seus filhos: o pão, todos os dias; roupas novas, nos tempos festivos; a herança, uma única vez na vida, pouco antes de morrer. O Livro de Ben Sira tira-nos todas as dúvidas, ao deixar escrito: «No último dia dos dias da tua vida, na hora da tua morte, distribui a tua herança» (33,24). O pedido deste filho de receber a herança assume, portanto, um imenso dramatismo. Fazendo o pedido que faz, este filho como que mata o pai, ao mesmo tempo que morre como filho! Não quer mesmo mais ser filho nem depender de nenhum pai.

6. Parte para longe, gasta tudo, torna-se um assalariado desamparado, guarda porcos, vive abaixo de porco (nem sequer lhe é sequer permitido comer com os porcos, como os porcos!). É o seu ponto mais baixo. Pensa então em voltar para casa, mas como assalariado, não como filho. Prestemos atenção ao discurso em três pontos que prepara: 1) «Pai, pequei contra o céu e contra ti; 2) não sou mais digno de ser chamado teu filho; 3) trata-me como um dos teus assalariados» (Lucas 15,18-19).

7. Ei-lo, portanto, que regressa. Mas já o Pai está à espera dele com um imenso abraço de alma a alma. Mas o filho tinha preparado o seu discurso em três pontos, e ei-lo que começa a debitá-lo: 1) «Pai, pequei contra o céu e contra ti; 2) não sou mais digno de ser chamado teu filho» (Lucas 15,21). Como se compreende, o terceiro ponto do discurso que tinha preparado era fatal, e o filho já não o diz. Não porque não quisesse, mas porque o Pai energicamente o interrompe, dizendo aos criados: «Depressa…» (Lucas 15,22).

8. É então que a surpresa enche outra vez a cena. Quando nós regressamos a casa, a Deus, nunca encontraremos um Pai distraído, ou que mudou de residência, ou que responde de forma brusca, distante e fria. Está lá sempre à nossa espera, na soleira da porta ou à janela, verdadeiramente comovido, a transbordar de misericórdia desde as entranhas (splagchnízomai) (Lucas 15,20), de braços abertos, precede-nos, recebe-nos, reabilita-nos como filhos fazendo-nos vestir «o primeiro vestido» (stolê tê prôtê) (Lucas 15,22), isto é, o que vestíamos antes e abandonámos, portanto, o de filhos, quando nós queremos é ser apenas assalariados. Depois, faz uma festa, mata o vitelo gordo, prepara um banquete de arromba (euphraínô), vai mesmo até ao ponto de chamar uma orquestra (symphônía)! Alegria excessiva deste Pai pródigo de amor e misericórdia! E Teófilo sempre por ali.

9. É aqui que surge em cena o outro filho, que estava no campo (Lucas 15,25). Esta nota do «campo» serve só para nos dizer que é um dia de semana, e que o Pai desta história faz festa em qualquer dia, sem ficar à espera pelo fim-de-semana! Este filho mais velho é retratado como um bom cumpridor de ordens, um «justo» e zeloso fariseu, igualzinho aos fariseus «justos» e zelosos que tinham aparecido no início da história. Tal como estes, também este filho se acha com direitos e créditos sobre Deus. Em Deus não vê um Pai, mas um patrão que tem de lhe pagar, pois «nunca transgrediu uma ordem dele» (Lucas 15,29). Sempre igualzinho aos fariseus que no início da história recriminavam Jesus porque acolhia e comia com os pecadores, também este filho recrimina o seu pai por acolher e ter tudo preparado para comer com um pecador! O Pai implora-lhe que entre para o banquete da alegria. Mas a história termina sem nos dizer se este filho, que somos também nós, entra ou não entra na sala do banquete. Final estratégico. Afinal a história de Jesus foi contada para os fariseus, e nós devemos ter compreendido que devemos tomar lugar ao lado deles, pois também nós temos uma boa parte de fariseus, para sermos atingidos em cheio pela história contada por Jesus. A história termina sem nos dizer se aquele filho, fariseu, entrou ou não entrou na sala da alegria. História deixada propositadamente em aberto pelo narrador. Esta tão vincada reticência narrativa não está privada de efeitos: obriga-nos a pensar! Não nos esqueçamos que a história foi contada para nós. É então a nós que cabe tomar a decisão! Entramos ou não entramos na sala do banquete? Como vemos Deus? Como um Pai ou como um patrão? E os nossos irmãos são para nos alegrarmos com eles ou para os insultarmos e denegrirmos?

10. É também interessante notar que os dois filhos desta história falam ao Pai, ao seu Pai comum, como fazem os cristãos. Como fazemos nós. Mas em nenhum momento da história se falam um ao outro. Se calhar, também como nós. Só sabemos falar por trás, entre raivas acumuladas, insultos e desprezo. Parece que também neste aspeto a história de Jesus põe a nossa vida a descoberto!

11. Por último, a história que ouvimos mostra-nos e adverte-nos que tanto nos podemos perder lá longe, no deserto, como a ovelha e o filho mais novo, como nos podemos perder em casa, como a moeda e o segundo filho. Atenção, portanto: podemos andar perdidos em casa, numa casa fria, sem Pai e sem irmãos, sem lareira, sem mesa e sem alegria! Só com patrão e assalariados! E, ainda por cima, podemos pensar que somos zelosos e até beatos (!), muito melhores do que os outros. Todos os cuidados, portanto!

12. Faz sintonia com o quadro impressionante do Evangelho de hoje a página igualmente fascinante do Livro do Êxodo 32,7-14. É sabido que o texto assinalado segue imediatamente o episódio do bezerro de ouro, que encontramos em Êxodo 32,1-6, e que constitui como que uma paródia, rutura e perversão do assentimento do povo em Êxodo 19,8 e 24,3.7, em que o povo afirmou: «Faremos todas as palavras que o Senhor falou». Êxodo 32,1-6 mostra que o povo faz, não a Palavra de Deus, mas um bezerro! A página de hoje recupera o episódio do bezerro, pondo o povo a adorá-lo, a oferecer-lhe sacrifícios, e a confessar diante dele: «Este é o teu deus, ó Israel, que te fez subir da terra do Egito» (v. 8). Posto isto, o caudal do texto de hoje atinge-nos em duas vagas: a primeira, expressa nos v. 7-10, mostra-nos Deus a falar com Moisés acerca de um Israel desviado de Deus e obstinado, e que Deus pretende destruir, para começar tudo de novo só com Moisés; a segunda, expressa nos v. 11-13, mostra-nos Moisés no papel de intercessor, como que dizendo a Deus: «Não faças isso!», terminando, no v. 14, com Deus a atender a súplica de Moisés e a desistir do seu projeto de destruição do povo.

13. A primeira vaga abre com Deus a dizer para Moisés: «Vai, desce, que o teu povo, que tu fizeste subir da terra do Egito, corrompeu-se» (v. 7), e a repeti-lo em Êxodo 33,1. Convenhamos que um tal dizer de Deus é estranho e traduz bem a corrupção do povo e a consequente rutura da Aliança. Dizendo o que diz e como o diz, Deus como que está, de certa maneira, a fazer recair sobre Moisés a responsabilidade da condução e do comportamento do povo («o teu povo, que tu fizeste subir da terra do Egito»); por outro lado, ao dizer o que diz e como o diz, Deus está a abrir a Moisés a porta para repor a verdade dos factos e assumir o papel de mediador-intercessor, em ordem a poder transformar em perdão o seu projeto destruidor. Este convite à intercessão de Moisés parece mesmo impor-se a partir da afirmação do v. 10, em que Deus avança a disjunção entre Moisés e o povo, e se propõe destruir o povo e começar tudo de novo só com Moisés: «E agora deixa-me a sós comigo mesmo, e arderá a minha cólera contra eles e os devorará, e de ti farei um grande povo». Eis como a porta fica entreaberta: se Deus decidiu mesmo destruir Israel, por que razão diz que o vai fazer antes de o fazer?

14. Na verdade, dizendo o que diz, quando o diz, a quem o diz, como o diz, Deus como que força Moisés a «ficar de pé, sobre a fresta (baperets), diante d’Ele», extraordinária expressão do Salmo 106,23, posição incómoda e difícil de quem deve assumir a vigilância e intercessão, paradoxalmente não sobre o povo, mas sobre Deus, «para fazer voltar atrás a sua cólera de destruição». Percebe-se aqui alguma coisa do mistério deste Deus que não se comporta em relação aos homens como um homem ou como um princípio abstrato. De facto, no v. 11, início da segunda vaga, o narrador põe logo Moisés no papel de mediador-intercessor, apelando a Deus, e repondo a verdade do credo: «Mas Moisés implorou face ao Senhor, seu Deus, e disse: “Porquê, Senhor, arderá a tua cólera contra o Teu povo, que Tu fizeste sair da terra do Egito?”». Como se vê, a pronominalidade (tu, teu) muda de Deus para Moisés (v. 7), e de novo de Moisés para Deus (v. 11). É o povo pecador a passar de mão em mão, para ficar finalmente em boas mãos, nas mãos de Deus. Valeu a intercessão vigilante de Moisés, que «permaneceu de pé, sobre a fresta, diante dele, para fazer regredir a sua cólera de destruição».

15. Na lição da 1 Carta a Timóteo 1,12-17, hoje também lida, vemos São Paulo em ação de graças a Jesus Cristo, Senhor Nosso, porque sendo blasfemo, perseguidor e insolente, foi objeto da graça e da misericórdia superabundantes que há em Cristo Jesus. E afirma com fé esclarecida e verificada que Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores, de que ele é o primeiro. Assim, pode Paulo apresentar-se como exemplo para aqueles que hão de acreditar. Fecha a perícope uma extraordinária doxologia: «Ao Rei dos séculos, ao Deus incorruptível, invisível e único, honra e glória, pelos séculos dos séculos. Ámen» (v. 17).

16. Cantamos hoje, em perfeita consonância com toda a liturgia deste Domingo, alguns acordes do Salmo 51, a súplica penitencial por excelência, que constitui a ossatura espiritual de Agostinho, de Charles de Foucauld, de Joana D’Arc, que inspirou a pena de muitíssimos Padres da Igreja, e ecoa na música de Bach, Lulli, Donizetti, Honegger… Hoje é a nossa vez de nos sentarmos um pouco a trautear a música que nos atravessa e nos põe de pé. Está aqui a letra e a música do homem, de qualquer homem, seja ele quem for, de que raça for, de que religião for. Enxerto aqui, em tradução segura e literal, as palavras preciosas que constituem a introdução: «Faz-me graça (hannenî), ó Deus, segundo o Teu amor (hesed)! Segundo a multidão das Tuas misericórdias (rahamîm), apaga as minhas transgressões (peshaʽîm)! Lava-me e relava-me da minha iniquidade (ʽawah), e do meu pecado (hathaʼ) purifica-me!» (v. 3-4). Quem é Deus? Graça, amor, misericórdias. Quem sou eu? Transgressões, iniquidade, pecado. Será Deus o vencedor ou serei eu? Claro que é Deus. Deixo aqui, a fechar, as palavras altíssimas da grande mística muçulmana do século VIII, Rabiʽa, de seu nome: «Um homem disse a Rabiʽa: “Cometi muitos pecados e muitas transgressões; se eu me arrepender, Deus perdoar-me-á?”. Disse Rabiʽa: “Não. Tu arrepender-te-ás, se Ele te perdoar”» (I detti di Rabiʽa, XII, 2).

…..

Ainda agora abri a página em branco do deve-e-haver

Deste tempo que me é dado viver.

Não sei ainda os registos que nela se farão,

Mas já sei que, ao terminar o dia,

A página agora aberta transbordará de perdão e de alegria.

…..

É essa a lição que se recebe do grande Salmo deste dia:

«Faz-me graça, ó Deus, segundo o teu amor,

Segundo a multidão das tuas misericórdias!

Apaga as minhas transgressões,

Lava-me e relava-me da minha iniquidade,

E do meu pecado purifica-me!».

…..

Graça, amor, misericórdias:

É a tua bondade aqui três vezes dita.

Transgressões, iniquidade, pecado:

É a minha maldade aqui também três vezes repetida.

…..

Tu e eu sempre frente-a-frente,

Sempre lado-a-lado:

Teu é o amor, meu é o pecado.

Mas vê-se bem que esta luta tem um vencedor antecipado:

Sim, o teu amor acaba sempre por vencer o meu pecado!

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António Couto


OPERAÇÃO DE CORAÇÃO ABERTO

Setembro 2, 2022

Sb 9,13-19; Sl 90; Flm 9-10.12-17; Lc 14,25-33

1. Desde Lucas 9,51 que Jesus está decididamente A CAMINHO de Jerusalém. E assim continuará até Lucas 19,28. Com este belo recurso à tipologia do CAMINHO (hodós) e do verbo CAMINHAR (poreúomai), Lucas exemplifica e clarifica o modo cristão de viver. Porque todo o CAMINHO abre o mundo ao meio, ao mesmo tempo que vai desenhando e atualizando a nossa vida em duas partes: «para a frente» e «para trás». Note-se que Lucas é, de longe, o Autor do Novo Testamento que mais vezes usa estes vocábulos, sensivelmente 40 em 100 vezes «caminho» (hodós) e 88 em 150 vezes «caminhar» (poreúomai). Num mundo plano como o nosso, o Evangelho de Lucas rasga CAMINHOS e procede a verdadeiras operações de CORAÇÃO aberto. CAMINHO que abre CAMINHOS novos, novas maneiras de viver, com Jesus, que é o CAMINHO, sabe o CAMINHO, mostra o CAMINHO e faz o CAMINHO, a enxertar a plenitude nesta nossa imensa e chata planitude.

2. E aí está o Evangelho deste Domingo XXIII do Tempo Comum (Lucas 14,25-33) a abrir com a indicação de que «CAMINHAVAM com Ele multidões numerosas» (Lucas 14,25). E Jesus, sempre com tempo, a voltar-se para nos dizer palavras cortantes como bisturis: «Se alguém vem ter comigo e não odeia (miséô) o próprio pai e a mãe e a mulher e os filhos e os irmãos e as irmãs, e até a própria vida, não pode ser meu discípulo» (Lucas 14,26-27). O que se diz aqui da família mais direta e da própria vida, dir-se-á um pouco mais à frente dos «próprios bens» (Lucas 14,33).

3. Compreenda-se, antes de mais, o sentido daquele «odiar» (miséô). É óbvio que não se trata de ódio em sentido próprio. Colidiria, por exemplo, com Lucas 18,20, em que Jesus, citando os mandamentos ao homem rico, refere a «honra devida ao pai e à mãe». E contradiria também o mandamento do amor ao próximo. O «odiar» acima referido é, na verdade, a tradução do modo de dizer aramaico, hebraico e semítico em geral, línguas que não têm outro verbo para dizer «preferir». Vê-se melhor com exemplos: em Génesis 29,31, lê-se literalmente: «O Senhor viu que Lia era odiada», e em Génesis 29,33, após ter concebido Simeão, lê-se literalmente: «O Senhor viu que eu era odiada». Em Deuteronómio 21,15-17, lê-se literalmente: «Se forem para um homem duas mulheres, e ele amar uma e odiar a outra, e gerarem para ele filhos, a que é amada e a que é odiada, e se for o filho primogénito da odiada…». Nos dois textos do Génesis, a locução era odiada aparece sempre traduzida por não era amada. No texto do Deuteronómio, que apresenta o contraponto entre a mulher amada e a mulher odiada, a mulher odiada é a não amada ou de que não gosta. Portanto, é facilmente compreensível que o sentido do texto acima não passa por «odiar» a família ou a própria vida, mas por alguém «preferir» ou «pôr antes», «à frente», do seguimento de Jesus a família, a própria vida ou os bens.

4. Posto isto, entenda-se bem que o CAMINHO de Jesus é um CAMINHO de decisões fortes. Sendo que «decisão» deriva de «decidere», cuja etimologia remete para «cortar». Aí estamos outra vez então no domínio do bisturi e da operação de CORAÇÃO aberto que tem de fazer todo o discípulo de Jesus. A ligação do discípulo a Jesus deve estar antes e ser a chave de leitura de todas as outras ligações: consigo próprio, com a família, com os amigos, com os bens. «Despedir-se» (apotássomai) de todos os seus bens não significa deitá-los fora, fugir deles. Significa, antes, dar-lhes o uso correto. Verificação: as mulheres que seguiam Jesus e os seus discípulos desde a Galileia serviam-nos (diakonéô) com os seus bens (Lucas 8,3).

5. Sendo um CAMINHO de decisões fortes, de cortes, é também um CAMINHO de ponderação e deliberação atenta e serena. Por isso, por duas vezes, o dizer de Jesus convida a «sentar-se primeiro» (Lucas 14,28 e 31). Sim, seguir Jesus no seu CAMINHO implica ser fiel a Jesus da mesma maneira que Jesus é fiel ao Pai. Não se pode compor uma espécie de cristianismo à medida, selecionando de Jesus os aspetos que nos agradam, deixando outros de lado.

6. A Assembleia Dominical é um tempo extraordinariamente denso e intenso, em que os discípulos de Jesus e as multidões se sentam para ouvir a Palavra de Deus, e para tomar as decisões consentâneas com a força da Palavra que escutamos. Decisões são cortes. São incisões. Todos os discípulos de Jesus se devem sujeitar urgentemente a esta operação de CORAÇÃO aberto.

7. Sim, os nossos passos e pensamentos são falíveis, e andamos muitas vezes cansados com o peso das preocupações do dia-a-dia. Tudo, sobre a terra, requer trabalho e sacrifício. Até o pão que comemos requer trabalho duro. Mas Deus dá-o aos seus amigos até durante o sono (Salmo 127,2). E dá também a Sabedoria, para nos guiar, e sem a qual nada vale. Peçamo-la ao Senhor, enquanto estamos sentados a ponderar e discernir. Sem ela, nada do céu conseguimos saber. E é urgente conhecer a vontade de Deus, para nos vincularmos a ela. A lição é do Livro da Sabedoria 9,13-18.

8. Não é necessário «odiar» ninguém. Mas é preciso, é decisivo e incisivo «amar mais», para sermos e termos «mais» irmãos. Ainda há muitos «Onésimos» à espera de um amor novo que os liberte, que nos liberte. Vai nesse sentido o bilhete postal que Paulo envia a Filémon 9-17, para que receba Onésimo como filho, e não como escravo. Esta pequena Carta, quase um bilhete postal (tem apenas 25 versículos), já foi definida como uma «pequena obra prima de fino trato e de coração». Em dia de Domingo, é hoje a única oportunidade que a liturgia nos oferece para a conhecermos melhor por dentro e por fora. É sintomático que tenhamos encontrado um bilhete postal semelhante do escritor latino Plínio, o Jovem (61-112), quase contemporâneo de S. Paulo, endereçado a um certo Sabiniano em favor de um escravo fugido. E a única razão que Plínio invoca para mudar em suavidade a cólera do patrão é a da superioridade da mansidão sobre a ira e da generosidade sobre a violência. «Envio-to, ele que é as minhas entranhas (splágchna)» (v. 12), isto é, a ternura que há em mim. «Recebe-o como se fosse a mim próprio» (v. 17), como «irmão amado»… «no Senhor» (v. 16). Deixamos aqui algumas palavras de uma pequena, mas bela homilia que fez Lutero num Domingo de setembro de 1522, exatamente sobre este pequeno escrito paulino que traduz «de modo magistral um delicioso exemplo de amor cristão». (…) «Cristo representa-nos a todos junto do Pai e ama-nos tanto. E nós somos todos seus Onésimos».

9. O Salmo 90 põe em cena a eternidade e a solidez de Deus em confronto com a fragilidade e o sabor efémero da vida humana, sempre vista no microscópio de Deus. Este confronto é cantado na elegia sapiencial dos v. 1-10, sendo de súplica os v. 11-17. O primeiro movimento pode resumir-se na afirmação do v. 4: «Mil anos aos teus olhos são o dia de ontem que passou, como uma vigília da noite». E o segundo movimento tem o seu ponto alto no v. 12: «Ensina-nos a bem contar os nossos anos, para chegarmos à sabedoria do coração». Estar de passagem e sermos tão frágeis como a flor da erva (v. 5-6) não nos leva para o pessimismo, mas para viver intensamente a vida que Deus nos dá, Ele que é e permanece o nosso refúgio de geração em geração (v. 1). Um dos clássicos estudiosos dos Salmos, Artur Weiser (1893-1978), alemão, de tradição Evangélica, expressa bem esta realidade: «Na luz da graça de Deus, um reflexo de eternidade cai também sobre a vida e sobre a obra do homem. Da parte de Deus, a fragilidade recebe subsistência, a miséria torna-se glória, aquilo que parecia sem sentido, alcança significado… É como se a estrela de outro mundo viesse fazer luz sobre o fluir dos nossos dias».

António Couto