1. Neste Domingo IV do Tempo Comum, Jesus sobe à MONTANHA para dizer a rapsódia mais bela e encantatória e revolucionária das «FELICITAÇÕES» ou «BEM-AVENTURANÇAS». É verdade. Há certas maravilhas que só se podem dizer nas alturas e compreender nas alturas, perto do céu, como que à altura e velocidade de cruzeiro. Destas FELICITAÇÕES envolve-nos, de facto, a sua cadência encantatória ainda antes dos seus conteúdos. Para entrar no coração destas fragrâncias, é preciso levantar o coração (sursum corda), e ir
com os pássaros que Deus alimenta em pleno voo.
2. Só um Deus belo e bom pode e sabe felicitar os pobres. Com um tom carregado de felicidade, não restritivo, mas alargado a toda a humanidade, as «Felicitações» do Rei novo atingem todas as pessoas, chegando às franjas da sociedade, onde estão os pobres de verdade. No meio destas «Felicitações» – é por nove vezes que soa o termo «FELIZES –, note-se a centralidade da MISERICÓRDIA (5.ª felicitação) (5,7). Atente-se ainda na diferente formulação desta felicitação. Salta à vista que todas as outras se abrem a uma recompensa imediata ou futura. A MISERICÓRDIA, porém, roda sobre si mesma, retornando, por obra de Deus (passivo divino ou teológico) sobre os MISERICORDIOSOS. Notem-se igualmente as inclusões assentes na repetição da locução «reino dos céus» (1.ª e 8.ª) (5,3 e 10) e do termo «justiça» (4.ª e 8.ª) (5,6 e 10). Estas inclusões convidam-nos também ao reconhecimento de duas tábuas de felicitações, a primeira à volta da POBREZA EVANGÉLICA (5,3-6), e a segunda à volta da BONDADE DO CORAÇÃO (5,7-10).
«5,1Vendo as multidões, subiu à montanha.

7FELIZES os misericordiosos (eleêmones), porque lhes será feita misericórdia (eleêthêsontai); |

3. Os «pobres de espírito», aqui referidos, não são pobres de Espírito Santo nem de inteligência, mas pessoas humildes, no sentido em que uma pessoa humilde é «baixa de rûah» (shephal rûah) (Provérbios 16,19; 29,23), isto é, sem espaço físico, económico, social ou psicológico. Não precisam de se afirmar. São claramente os últimos da sociedade, mas que, na sua humildade e pobreza, desafiam a sociedade, pois os ptochoí são pobres ao lado de gente rica, acomodada, que estendem a mão para nós, apontando o dedo ao nosso egoísmo, afirmação, instalação e comodidade. Situação que, seguramente, não nos deixa de boa consciência, encarregando-se a Constituição Dogmática Lumen Gentium, n.º 9, de nos lembrar que «Apouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo». O Povo de Deus, a Igreja de Deus, não são alguns tranquilamente instalados entre paredes douradas, num círculo restrito, mas uma imensa comunhão de irmãos sem paredes nem barreiras de qualquer espécie.
4. Note-se ainda que, na mentalidade e na língua hebraica, «FELIZES» ou «BEM-AVENTURADOS» diz-se ’ashrê, termo que qualifica os pioneiros, aqueles que abrem caminhos novos e bons e belos e de vida nova e boa e bela para o mundo. E é verdade, por paradoxal que pareça. Foram e continuam a ser os Santos e os Pobres os que verdadeiramente abrem caminhos novos e belos neste mundo enlatado, saciado, enjoado, dormente e anestesiado em que vivemos.
5. Aos misericordiosos será feita (por Deus) misericórdia. Belíssimo círculo bem no centro das Bem-Aventuranças.
6. A profecia de Sofonias (2,3; 3,12-13) faz ressonância desta nova e bela maneira de viver, trazendo para primeiro plano aqueles que dão lugar a Deus, que estão abertos à acção de Deus, os pobres e os humildes, que tudo recebem de Deus, e em Deus encontram refúgio, sossego e felicidade, entrando assim na rota de cruzeiro das FELICITAÇÕES!
7. E S. Paulo faz-nos voltar completamente para Deus, para sabermos quem somos: «Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que fostes chamados por Deus» (1 Coríntios 1,26). Se não ouvirmos Deus a chamar por nós, se não ouvirmos Deus a dizer o nosso nome, isto é, a criar-nos e a cuidar de nós, não sabemos quem somos!
António Couto