SOBRE O FUNDAMENTO DOS APÓSTOLOS

Junho 29, 2015

1. Os Santos Apóstolos Pedro e Paulo são festejados em todas as Igrejas do Oriente e do Ocidente, nos antigos, como nos novos calendários, na mesma data, 29 de Junho. A Igreja do Oriente ainda hoje acomuna os dois Apóstolos com o título de Prôtóthronoi, os «primeiros na cátedra» da doutrina divina e salvífica. A Igreja de Roma já existia antes da chegada de Pedro e Paulo, mas venera-os como verdadeiros «fundadores», pois só com eles se vê como Igreja «Apostólica», coração de Pedro, coração de Paulo. A própria iconografia, em inumeráveis representações, junta os dois Apóstolos e Mártires, já desde os séculos II e III, sinal da veneração que os fiéis de Roma e do mundo inteiro lhes dedicavam. Veneração verificável, de resto, no facto de os túmulos dos dois grandes Apóstolos e Mártires ser a meta da única peregrinação do mundo cristão antigo.

2. Os textos da Escritura Santa hoje abertos diante de nós põem em relevo, naturalmente, as duas grandes figuras de Apóstolos que hoje celebramos. O Evangelho é de Mateus 16,13-19, que é também o Evangelho do Domingo XXI, e põe em destaque a figura de Pedro. Também a passagem do Livro dos Actos 12,1-11 lhe é dedicada. O texto do final da 2 Carta a Timóteo 4,6-8.17-18 põe naturalmente em realce a figura de Paulo.

3. Cesareia de Filipe, actual Banyas, na tetrarquia de Filipe, um dos filhos de Herodes o Grande, é o lugar certo para se pôr a questão da identidade de JESUS, que atravessa o inteiro Evangelho (Mateus 16,13-19). Cesareia de Filipe, onde se encontra uma das nascentes do rio Jordão, respirava o paganismo do deus Pã e também o culto do Imperador. Aí construiu Herodes um templo dedicado ao Imperador César Augusto, e o tetrarca Filipe, filho de Herodes, deu à cidade, antes conhecida por Pânias, em honra do deus Pã, o nome de Cesareia, também em honra de César Augusto. Dela resta hoje a gruta do deus Pã, lugar que os peregrinos da Terra Santa costumam visitar.

4. É aí, em Cesareia de Filipe, cidade marcada pelo paganismo e pelo culto do Imperador, que Jesus põe a questão da sua identidade. Soberanamente Jesus pergunta: «Quem dizem as pessoas que é o Filho do Homem?» (Mateus 16,13), para acrescentar logo de seguida, de forma directa e enfática: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» (Mateus 16,15). A esta pergunta, posta por Jesus aos seus discípulos que de há muito o seguiam, Simão Pedro foi rápido a responder: «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!» (Mateus 16,16). Jesus declara Feliz (makários) Simão, filho de Jonas, não por achar que ele reunia competência humana para expressar aquele dizer, mas por saber que o tinha recebido do Pai (Mateus 16,17). E é sobre este dizer de Simão Pedro, dizer, não seu, mas recebido do Pai, que Jesus declara que construirá a sua Igreja (Mateus 16,18). Note-se a assonância «Pétros» – «pétra». Mas note-se também que quem constrói a Igreja é Jesus, e não Pedro, e a Igreja a construir também é de Jesus, e não de Pedro: «sobre esta pedra (pétra) construirei a minha Igreja», diz Jesus. Em todo o Novo Testamento, só Jesus e Pedro recebem o apelativo de «pedra». «Rocha», «rochedo», «pedra firme» diz-se, em hebraico, tsûr ou sela‘, terminologia usada no Antigo Testamento por 33 vezes para dizer Deus e a solidez do seu amor fiel. Veja-se, por exemplo, na boca e no coração do Salmista: «O Senhor é a minha Rocha (sela‘) e a minha fortaleza (…), nele me abrigo, meu Rochedo (tsûr), meu escudo e meu baluarte, minha torre forte e meu refúgio» (Salmo 18,3).

5. Mas o hebraico conhece também o termo keph, aramaico kêpha’, para designar a rocha, não tanto na sua solidez, mas a rocha escavada, oca, espécie de gruta que serve de lugar de refúgio e acolhimento, onde os pássaros fazem os seus ninhos, os animais guardam as suas crias e os homens se refugiam em caso de guerra: não é sólido, mas dá solidez e protecção a uma vida nova. Este segundo veio de termos, que traduzem a ideia de guardar, proteger, abraçar, envolver, alarga-se num vasto campo onomatopaico: kaph, palma da mão; keph, rochedo esburacado (grutas); kêpha’ (aramaico), rochedo esburacado; kêphãs (grego), rochedo esburacado e acolhedor, nome dado por Jesus a Pedro em João 1,42, única vez nos Evangelhos, mas várias vezes em Paulo (1 Coríntios 1,12; 3,22; 9,5; 15,5; Gálatas 1,18; 2,9.11.14); kipah, folha de palmeira, que serve para proteger do sol, e cobertura que os judeus ortodoxos usam na cabeça para indicar a protecção de Deus; kaphar, cobrir, perdoar; kaporet, cobertura, perdão. Sendo de teor onomatopaico, este som existe na composição de vocábulos em todas as línguas. Esta terminologia abre para um Simão Pedro novo, casa aberta e acolhedora, atento, próximo, cuidadoso e carinhoso, frágil, com a missão pastoral de alimentar e cuidar de todos os filhos de Deus. Mas, entenda-se sempre bem, a casa é Deus, e são de Deus os filhos que nela são gerados, acolhidos e alimentados.

6. Jesus declara de seguida: «Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus» (Mateus 16,19). As chaves representam um saber e um poder. Falamos de chaves de uma casa, de uma cidade, de um tesouro, da leitura de um texto. Quem as possui, possui um poder em sede administrativa, política, jurídica, económica ou científica. É esclarecedor o texto de Isaías 22,19-23, que fala do «rito das chaves» e do poder retirado a Shebna e conferido a Eliaqîm. As chaves do Reino dos Céus são as chaves do amor e do perdão, traves mestras de uma comunidade unida e confiante, com os pés na terra e o olhar fixo em Deus. Diz, na verdade, a Constituição Dogmática Lumen Gentium: «Aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo» (n.º 9).

7. É importante, porque esclarecedora e mobilizadora, esta nota do Concílio Vaticano II. De facto, Pedro é a Pedra e tem as Chaves do Reino dos Céus, e é-lhe ainda dada a autoridade de ligar-desligar, isto é, de perdoar: «Tudo o que ligares (dêsês: conj. aor. de déô) sobre a terra, ficará para sempre ligado (dedeménon: part. perf. pass. de déô) nos Céus, e tudo o que desligares (lýsês: conj. aor. de lýô) sobre a terra, ficará para sempre desligado (lelyménon: part. perf. pass. de lýô) nos Céus» (Mateus 16,19). Todavia, no Evangelho de Mateus, e só no Evangelho de Mateus, esta autoridade de ligar-desligar, isto é, de perdoar, é também confiada à inteira comunidade, exactamente nos mesmos termos em que é confiada a Pedro: «Em verdade vos digo: tudo o que ligardes (dêsête: conj. aor. de déô) sobre a terra, ficará para sempre ligado (dedeména: part. perf. pass. de déô) no céu, e tudo o que desligardes (lýsête: conj. aor. de lýô) na terra, ficará para sempre desligado (lelyména: part. perf. pass. de lýô) no céu» (Mateus 18,18). É belo ver a inteira comunidade assente na Pedra, que é Pedro, como Pedro, com Pedro, não alijando responsabilidades, mas unida, reunida e operante na prática quotidiana do Perdão!

8. Actos 12,1-11 é uma página assombrosa, que sai fora do estilo lucano, e se aproxima mais do estilo do evangelista Marcos. Não admira. É mesmo para casa de Maria, mãe de João Marcos, que Pedro se dirige no episódio seguinte (Actos 12,12-17). Na página de hoje, Pedro é salvo miraculosamente pela intervenção do Anjo de Deus, do próprio Deus, portanto. São significativos os cinco imperativos que o Anjo dirige a Pedro: Levanta-te, cinge-te, calça as sandálias, cobre-te com o teu manto e segue-me! (Actos 12,8). Com o primeiro imperativo, caem das mãos de Pedro as correntes de ferro. Assim começa a liberdade! Passam depois, sem qualquer sobressalto, um após outro, dois postos da guarda, e abre-se automaticamente (automátê) o portão de ferro que dava para fora (Actos 12,10). Quando Pedro cai em si, está numa rua de Jerusalém, e reconhece a mão de Deus nesta espectacular acção de libertação em que é libertado das mãos de Herodes (Actos 12,10-11). Trata-se de Herodes Agripa I, neto de Herodes o Grande. Favorecido, primeiro por Calígula, depois por Cláudio, foi vendo, a partir do ano 37, começar e aumentar o seu reinado de norte para sul: em 37, é libertado das suas cadeias de ferro – estava preso em Roma – por Calígula, que lhe entrega, juntamente com o título de rei, as tetrarquias de Filipe e de Lisânias; em 40, recebe a tetrarquia de Herodes Antipas, acabando de 41 a 44, ano da sua morte, por se tornar rei também sobre a Judeia, de certo modo refazendo o antigo reino de Herodes o Grande. É no decurso destes últimos anos que se situam os acontecimentos relatados ou apenas acenados na lição de hoje, nomeadamente o martírio de Tiago, filho de Zebedeu, e a prisão de Pedro.

9. A cena da libertação de Pedro acontece na noite de Páscoa, em paralelismo com os hebreus que, no Egipto celebraram a Páscoa da libertação. Também aí acontece a intervenção de Deus (Êxodo 12,8.12), também de noite, e os hebreus, como Pedro agora, comem a Páscoa com os rins cingidos e sandálias nos pés (Êxodo 12,11). E, de novo em paralelismo com os hebreus na saída do Egipto, também Pedro deve caminhar pelas ruas da cidade e pelos caminhos do mundo. É aí que Pedro e os Apóstolos devem agora fazer falar a Palavra, e não já no Templo, como sucedeu no relato da libertação dos Apóstolos narrado em Actos 5,18-21.

10. Na verdade, quando Pedro dá por si, encontra-se na rua! Dirige-se então para casa de Maria, mãe de João Marcos, onde era usual os cristãos se reunirem para rezar (Actos 12,12). Pedro bate insistentemente ao portão exterior que dá para o pátio interior da casa, e, apercebendo-se, veio uma criada, de nome Rode [= Rosa] ver quem era (Actos 12,13). Mal reconheceu a voz de Pedro, ficou tão contente que, em vez de abrir o portão, correu para dentro anunciando que Pedro estava lá fora (Actos 12,14). Responderam-lhe que estava maluca (maínê) (Actos 12,15). Quando finalmente abriram o portão, que não se abre automaticamente como o da cadeia, ficaram assombrados, fora de si (exístêmi) (Actos 12,16). É este o assombro maravilhoso que toma conta de Marcos, que enche o seu Evangelho, e esta página de eleição!

11. Chegámos finalmente a Paulo e ao final da sua 2 Carta a Timóteo 4,6-8.17-18, em que Paulo traça, por assim dizer, o seu testamento autobiográfico, recorrendo a três imagens. A primeira provém do culto, do rito de libação (2 Timóteo 4,6), hebraico nesek (Êxodo 29,40; Levítico 23,13), que consiste em derramar um pouco de vinho ou de mosto (cerca de 1,5 litros) sobre o altar, onde será queimado juntamente com a oferenda (minhah), subindo o seu perfume para o alto, para Deus. Do mesmo modo, a inteira vida de Paulo foi uma incessante subida para o seu Senhor, nada retendo para si mesmo, cá em baixo. A segunda provém do mundo militar. É o combate (agôn), que Paulo combateu a vida inteira, e que qualifica de «belo» e «bom» (kalós) (2 Timóteo 4,7). A terceira provém do mundo desportivo, concretamente do atletismo. «Completei a minha corrida (drómos)» (2 Timóteo 4,7). Como o atleta sacrifica tudo para alcançar a vitória, também Paulo despendeu todas as suas energias para alcançar «a coroa da justiça» que o Senhor lhe dará (2 Timóteo 4,8), e que é bem diferente da «coroa corruptível» que os atletas conquistam no estádio (1 Coríntios 9,25). Seja-nos permitido ir buscar ainda uma quarta imagem ao mundo dos marinheiros. «O tempo (ho kairós) começou já a recolher as velas (systéllô)» (1 Cor 7,29). Paulo sabe que está a chegar ao porto, depois de ter atravessado tempestades de toda a ordem, sempre, no entanto, assistido pelo seu Senhor, para que se cumprisse o anúncio (kêrygma) do Evangelho a todas as nações (2 Timóteo 4,17). E termina tudo com uma bela doxologia: «A Ele a glória pelos séculos dos séculos. Ámen» (2 Timóteo 4,18).

António Couto


A IRMÃZINHA E O IRMÃOZINHO

Junho 27, 2015

1. O Evangelho deste Domingo XIII do Tempo Comum (Marcos 5,21-43) oferece-nos dois milagres de Jesus, relatados de forma entrelaçada, um dentro do outro: o relato da cura de uma mulher que há doze anos sofria de uma hemorragia (Marcos 5,25-34), dentro do relato da chamada «ressurreição» da filha, de doze anos de idade, de Jairo, um dos chefes da sinagoga (Marcos 5,22-24.35-43).

2. Aí está Jesus outra vez (pálin), e pela última vez, junto do mar e no meio da multidão, retomando e culminando as situações já anotadas em Marcos 3,7-10 e 4,1. Na multidão anónima, além de Jesus, em quem estão postos todos os olhares, também o do leitor, emerge agora também um dos chefes da sinagoga, de nome Jairo, que rasga a multidão e vem religiosamente prostrar-se aos pés de Jesus e implorar-lhe muito (pollá) que vá impor as mãos à sua filhinha (tygátrion: diminuitivo de tygátêr), que está a morrer. E o narrador diz-nos que Jesus foi com ele (met’ autoû), sempre rodeado pela multidão.

3. Primeira grande verificação: Jesus é aquele que vai sempre connosco. Sobretudo com os que sofrem. Acompanhando-nos, condivide o nosso caminho e as nossas dores. Vai, portanto, Jesus com Jairo e a multidão que os cerca, a caminho da casa de Jairo, quando o narrador nos surpreende e fixa a objectiva nos movimentos e pensamentos de uma mulher anónima que sofria de uma hemorragia havia doze anos, situação física, social e religiosamente dolorosa, que a tornava impura e distante de Deus e das pessoas. Ei-la que, com toda a ousadia e fé e confiança, consegue chegar junto de Jesus e tocar-lhe por detrás, na fímbria do manto, de modo a que nem Jesus se apercebesse. Fá-lo e fica curada.

4. A história do contacto desta mulher anónima com Jesus podia terminar aqui. Aparentemente, ninguém notou nada. É Jesus quem faz a história avançar, trazendo esta mulher do escuro para a luz. Não quer que a situação desta mulher dolorosa fique apenas no domínio físico e, por assim dizer, impessoal. Olha à sua volta e pergunta: «Quem me tocou as vestes?» (Marcos 5,30). E indo além do descuidado, superficial e insensível dizer dos seus discípulos, que se limitam à mais óbvia das reacções: «Então tu vês a multidão que te aperta e dizes: «Quem me tocou?» (Marcos 5,31). Mas Jesus, senhor de toda a situação, «olhava à volta para ver aquela (tên) que lhe tinha tocado» (Marcos 5,32). É assim que a mulher sai do seu esconderijo, e confessa a Jesus toda a verdade (Marcos 5,33). E ouve de Jesus uma palavra única, única vez dita no Evangelho no feminino!, carregada de imensa ternura, proximidade e familiaridade: «Minha filha (tygátêr), a tua fé te salvou!» (Marcos 5,34). Quanto caminho andado! Quanto amor condensado! Esta pobre mulher sofredora e humilhada é agraciada por Jesus e passa a fazer parte da sua família: «Minha filha!».

5. Mas estava uma menina de doze anos, moribunda, à espera da morte… ou de Jesus. O seu pai, Jairo, luta pela vida da sua filhinha, e veio buscar Jesus para ir a sua casa impor as suas mãos de bênção, portanto, de bem e de cura, sobre a sua filhinha. Todavia, enquanto caminham, chegam os seus criados, que trazem a triste notícia de que a morte chegou a casa da menina antes de Jesus. Aquele pai fica certamente destroçado, como o estavam também os demais familiares e os vizinhos, que, em tais circunstâncias, apenas sabiam chorar e entoar lamentações. E Jesus diz para Jairo a primeira palavra audível: «Não tenhas medo; tem apenas fé!» (Marcos 5,36).

6. Jesus nunca chega atrasado. Ele é o Senhor que pelo caminho se demora connosco. À chegada à casa de Jairo, vê prantos e lamentações. Os orientais são excessivos na expressão dos seus sentimentos, quer de alegria, quer de dor. Contra aqueles gritos desarticulados, uma vez mais Jesus diz uma palavra carregada de sentido: «A menina não morreu, mas dorme» (Marcos 5,39). Esta maneira de falar da morte como de um sono é linguagem habitual na Igreja primitiva (1 Tessalonicenses 4,13-15; 1 Coríntios 11,30; 15,6 e 20; Mateus 27,52) e na tradição da Igreja ainda hoje. Notemos que a nossa palavra «cemitério» deriva do grego koimêtêrion, que significa literalmente «dormitório».

7. Entra depois naquela casa e pega terna e soberanamente na mão da menina. Note-se o número pleno de sete pessoas presentes: Jesus, Pedro, Tiago e João, o pai e a mãe da menina, e a menina. A plenitude rasga a nossa planitude! Pegando ternamente na mão da menina, Jesus diz, em aramaico, língua materna de Jesus e da menina: «Talitha, qûm!» [= menina, filha, irmã, levanta-te!] (Marcos 5,41). Não passa despercebido que a palavra de Jesus interpela a própria morte, e trata aquela menina ternamente por irmã, irmãzinha, sua irmã querida. Na verdade, o aramaico Talitha é o feminino de Talyaʼ. E o aramaico Talyaʼ é a mais bela e significativa palavra para dizer Jesus, pois significa ao mesmo tempo «filho», «cordeiro», «servo», «pão». Como se vê, Talyaʼ diz o Jesus todo, sendo Ele a vida verdadeira, ressuscitada, levantada, que ressuscita e que levanta.

8. E a sua voz é mais fina do que o silêncio (1 Reis 19,12), mais afiada e eficaz do que a lâmina do bisturi (Hebreus 4,12), mais íntima e apelativa do que a chama que, da sarça, chama Moisés (Êxodo 3,4) ou queima o coração dos dois de Emaús (Lucas 24,32) ou do que as línguas de fogo daquele ardente Pentecostes (Actos dos Apóstolos 2,3). É uma voz nova que quebra as nossas crostas, e, desde dentro, queima, purifica, limpa, corta, opera, atravessa o coração. Palavra nova, absolutamente nova, que se capta só em alta fidelidade, hi-fi, alta sintonia, alta frequência, que acorda até os que dormem nos sepulcros o sono da morte, e deles os retira (João 5,25 e 28).

9. Desta «ressurreição» da menina, Jesus manda não dizer nada a ninguém (Marcos 5,43). Mas também se vê bem que esta «ressurreição» da menina, da irmãzinha, aponta para a verdadeira «ressurreição» de Jesus. E esta, a de Jesus, não é para ser calada. É para ser anunciada aos quatro ventos, a todas as nações, a todos os corações.

10. Como se vê, trata-se de duas cenas únicas e belíssimas, cheias, plenas de humanidade e divindade. Passa, Senhor Jesus, à nossa porta, entra em nossa casa, veste o nosso dorido coração de festa. Faz-nos sentir que somos teus filhos e irmãos queridos. E que as nossas lágrimas de dor podem sempre transformar-se em lágrimas de amor! Porque o teu olhar carinhoso nos descobre sempre e nos faz sair dos nossos esconderijos, e a tua Palavra rasga inclusive o véu da morte!

11. É-nos hoje dada a graça de ler e de ouvir um pequeno extrato compósito do Livro da Sabedoria (1,13-15; 2,23-24). A Sabedoria exorciza e otimiza o mundo com a luz intensíssima da misericórdia de Deus. Este mundo exorcizado e otimizado por obra da misericórdia de Deus não pode conter em si nem a origem do pecado nem a morte. Por isso, é ao demónio, e não à mulher (cf. Ben-Sirá 25,24), nem sequer à cobra, que o autor do Livro da Sabedoria atribui a entrada do pecado no mundo (Sabedoria 2,24). Se afirma que nenhuma criatura é portadora de veneno, é para ilibar também a cobra (Sabedoria 1,14). Tudo vem de Deus. Tudo caminha para Deus.

12. A lição continuada da Segunda Carta aos Coríntios (8,7-15) abre-nos hoje uma janela para a teia de caridade tecida com delicadeza nas primeiras comunidades cristãs. À imagem e transparência de Jesus Cristo que, «sendo rico se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza» (2 Coríntios 8,9), S. Paulo, que é, no dizer de Bento XVI, «o maior missionário de todos os tempos», e, de acordo com Paulo VI, «modelo de cada evangelizador», regeu a sua missão pela bússola: «Nós só nos devíamos lembrar dos pobres» (Gálatas 2,10). Por isso, porque a atenção para com os pobres constitui o critério de validação da missão, S. Paulo empenhou-se naquela famosa Coleta (logeía), empenhando nela todas as Igrejas da Ásia Menor, da Macedónia e da Acaia. Esta Coleta intereclesial constitui, de facto, um verdadeiro «fenómeno único» (hápax phainómenon) no mundo antigo, e são-lhe atribuídos sobretudo os nomes de koinônía [= comunhão], diakonía [= serviço] e sobretudo cháris [= graça], «a graça (cháris) servida por nós», como refere exemplarmente S. Paulo (2 Coríntios 8,19). Aí está uma imensa provocação para as Igrejas de hoje.

13. O Salmo 30 é uma bela e sentida Ação de Graças a um Deus que liberta o orante da tristeza, da doença, do luto e da morte, e o faz exultar de alegria, saúde, vida, dança e música de festa. O Deus aqui louvado é um Deus que muda as nossas situações difíceis e, por vezes, sem saída, em amplas avenidas floridas. É por isso que, como diz o próprio título «Cântico para a Dedicação do Templo», este Salmo anda ligado à Festa da Hanûkkah ou da Dedicação do Templo, quando Judas Macabeu entrou no Templo de Jerusalém em 167 e o fez purificar depois de um período de ocupação pelos selêucidas.

António Couto


JESUS, À POPA, DORMIA SOBRE UMA ALMOFADA

Junho 20, 2015

1. Vale a pena abrir a página com a serenidade do belíssimo episódio do Evangelho deste Domingo XII do Tempo Comum (Marcos 4,35-41):

«E diz-lhes naquele dia, à tardinha: “Passemos para a outra margem”. E tendo eles deixado a multidão, tomam-NO consigo (paralambánousin autón), assim como estava (hôs ên), na Barca (en tô ploíô), e outras barcas estavam com ELE. E acontece uma grande tempestade de vento, e as ondas atiravam-se para dentro da Barca, de maneira a ficar cheia a Barca.

E ELE estava à popa (prýmna), dormindo (katheúdôn) sobre a almofada (epì tô proskephálaion). E acordam-NO e dizem-LHE: “Mestre, Tu não Te importas que morramos?”. E, tendo acordado, ordenou ao vento e disse ao mar: “Cala-te! Acalma-te!”. E cessou o vento, e aconteceu grande bonança. E disse-lhes: “Por que tendes medo? Ainda não tendes fé?”. 41E foram amedrontados (ephobêthêsan) de um medo grande (phóbos mégas), e diziam uns para os outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”».

2. Um Evangelho de excelência o deste Domingo XII do Tempo Comum. Um luxo. Em pleno mar da Galileia, os discípulos / apóstolos de Jesus lutam, aflitos, contra a tempestade que ameaça desfazer a pequena e frágil embarcação no meio do mar encapelado (Marcos 4,35-41). A arqueologia pôs a descoberto as pequenas embarcações de pesca do tempo de Jesus. Tinham cerca de 8 metros de comprimento por 2,5 metros de largura, tornando-se, portanto, presa fácil das ondas. E em claro e sereno contraponto, narra o Evangelho, «Jesus, à popa, dormia deitado sobre uma almofada» (Marcos 4,38). Não nos esqueçamos que a popa é o lugar de comando da embarcação. Jesus permanece, portanto, no comando da nossa barca, da nossa vida, ainda que muitas vezes nem nos apercebamos da serenidade da sua condução. A presença da almofada na pobre embarcação e do sono sereno de Jesus marcam bem o tom doce e tranquilo deste condutor diferente da nossa vida agitada. Não é a nossa agitação que conta. É o seu sono tranquilo. Ainda que algumas vezes nós caiamos na tentação, como, de resto, sucede com aqueles discípulos, de julgar o sono de Jesus como indiferença (4,38).

3. Canta bem a Liturgia das Horas da Igreja:

«Se me colhe a tempestade,

E Jesus vai a dormir na minha barca,

Nada temo porque a Paz está comigo».

4. Senhor, Tu falas, tu fazes, tu chamas, tu ordenas. Todos os caminhos vêm de ti, vão para ti. És tu o Senhor de todos os chamados, de todos os reunidos, de todos os enviados. Tu és a casa, a mesa, o caminho, o vinho, o pão, o peixe. Velas por todos: pelos pais, pelos filhos, pelos irmãos, pelos desfilhados, pelos órfãos, pelos desirmanados. Vela por nós, Senhor, orienta a nossa barca, deita-te tranquilamente à popa (Marcos 4,38): o teu sono sereno há de certamente serenar as nossas tempestades.

5. Marcos descreve três travessias do mar da Galileia. Além da de hoje (Marcos 4,35-41), veja-se também Marcos 6,45-52 e 8,13-21. Caracteriza-as sempre o facto de a precedê-las estar o afastamento das multidões. Por outro lado, estas travessias do mar na barca deixam Jesus a sós com os seus discípulos, possibilitando-lhes uma experiência pessoal com Ele. A barca (tò ploîon) demarca, de resto, um espaço privilegiado que Jesus condivide unicamente com os seus discípulos. Mais ninguém entra nessa barca, ainda que o solicite (veja-se Marcos 5,18).

6. Na travessia de hoje, levantou-se uma violenta tempestade, que encheu de água a pequena barca e de medo aqueles discípulos. Como Jesus dormia tranquilamente deitado sobre a almofada, os discípulos correram a acordá-lo, deixando no ar um certo tom acusatório por aquilo que julgavam ser o desinteresse de Jesus pela vida dos que seguiam com Ele: «Tu não te importas que pereçamos?» (Marcos 4,38).

7. Jesus levanta-se e mostra um modo novo de fazer bem diferente dos seus discípulos. Dirige-se primeiro ao vento e ao mar, dando duas ordens: «Cala-te! Acalma-te!» (Marcos 4,39). E parou o vento, e fez-se bonança no mar (Marcos 4,39). Só depois disto, Jesus se dirige aos seus discípulos, não com duas ordens, mas com duas perguntas: «Por que tendes medo? Ainda não tendes fé? (Marcos 4,40). Os discípulos não responderam, mas expressam a sua reação perante tudo o que viram Jesus fazer e ouviram Jesus dizer: «Quem é este, que até o vento e o mar lhe obedecem?» (Marcos 4,41).

8. Já lá atrás, em Cafarnaum, Jesus tinha dado ordens a um espírito impuro, e ele obedeceu (Marcos 1,26-27). Fica então claro que os espíritos impuros e as forças da natureza, que não reagem a palavras humanas, seguem à letra as ordens de Jesus. Os discípulos saem então de um temor para outro ainda maior. É o temor que resulta da experiência do poder divino, sobre humano (Êxodo 14,31). Tal como o perigo, também a salvação do perigo é superior ao homem e vence a humana impotência. O novo temor daqueles discípulos mostra o sentido que começam a ver nascer do fazer divino de Jesus. Mas expressa também o seu espanto diante da pergunta de Jesus, que deixa supor uma fé incondicionada. Em relação a um homem, uma tal fé seria impossível e sem sentido. A pergunta que os discípulos se fazem entre si é, portanto, dupla: «Quem é este que faz tais coisas e que pede uma tal fé»? Esta pergunta não exprime dúvida, mas espanto e pesquisa. Acompanhá-los-á daqui para a frente no seu caminho com Jesus.

9. Note-se que, no episódio hoje diante de nós estendido, a iniciativa de entrar na Barca é de Jesus (Marcos 4,35), mas também é dito que os discípulos «tomam Jesus, assim como estava, na Barca» (Marcos 4,36). Serve esta fantástica indicação, para nos apercebermos bem que, na verdade, é Jesus que conduz aqueles discípulos, estes discípulos, assim com são, assim como somos!

10. A lição do Livro de Job, de hoje (Job 38,1.8-11), faz boa companhia à soberba página do Evangelho. Antes de mais, mostra um Deus absolutamente soberano, incontrolável, que não surge na ponta das nossas perguntas ou pedidos. É um Deus absolutamente livre, que irrompe do seio da tempestade, isto é, do seio da liberdade, como nas antigas teofanias. Não vem para responder às muitas perguntas de Job. Vem, antes, para mostrar as maravilhas da criação que nos rodeiam, e fazer-nos perguntas, para as quais não temos resposta nenhuma. Apenas a adoração e o louvor. É assim que Deus faz passar diante de Job as páginas de um álbum repleto de maravilhas impenetráveis. E Job fica maravilhado, atónito, e reconhece que nada sabe, ou que apenas sabe decifrar um ou outro fragmento deste mapa deslumbrante. Uma das páginas deste álbum, a de hoje, é dedicada ao mar, de acordo com o Evangelho. As tintas são excepcionais: o ventre de que irrompe, as faixas em que é envolvido como uma criança quando nasce, as portas e ferrolhos que o seguram… Só pode tudo isto ser afazer de Deus!

11. E aí está S. Paulo na Segunda Carta aos Coríntios (5,14-17), que continuamos a ter a graça de escutar. A chave da vida de Paulo e da nossa é o amor de Cristo por nós, que deve desencadear em nós o nosso amor por Cristo, de modo a vivermos, não já para nós mesmos, em clave egoísta, egocêntrica e autorreferencial, mas para Cristo que por nós morreu e ressuscitou. E aí está uma nova e bela criatura, nascida da graça, chamada a dar graças.

12. Hoje temos a graça de sermos postos a cantar o Salmo 107, que, na sua estrutura, se apresenta como que composto por quatro ex-votos de pessoas libertadas no meio das diferentes dificuldades que as assolavam. O primeiro ex-voto é de um viajante que se perde e é salvo no deserto (vv. 4-9). O segundo vem de um prisioneiro, salvo das cadeias que o oprimiam (vv. 10-16). O terceiro vem de um doente libertado das suas dores e da morte (vv. 17-22). O quarto e o mais original, que será a parte cantada hoje, vem de um marinheiro libertado no meio de uma tempestade. De forma significativa, Santo Agostinho, na sua exegese espiritual e alegórica, aplica esta última parte do Salmo aos timoneiros da barca da Igreja, isto é, aos pastores que, diz ele, «quanto mais honras têm, mais perigos têm». E eu digo: é de ter a peito esta leitura sapiencial e profunda, que perfura a superfície das coisas, e nos deixa ocupados num sério exame de consciência. Diga-se ainda que o Salmo apresenta duas palavras dominantes: uma é a hesed divina, o amor de Deus sempre fiel; a outra é a tôdah humana, a humana gratidão a Deus pelos seus feitos maravilhosos em nosso favor. As duas formam um belo abraço.

António Couto


ACERCA DAS FESTAS DO SOLSTÍCIO DE VERÃO

Junho 17, 2015

1. Com exceção (honrosa) da língua portuguesa, os nomes dos dias da semana das principais línguas vivas europeias estão marcados pelos astros: sol, lua, marte, mercúrio, júpiter, vénus, saturno. Esta maneira de dizer salienta a nossa dependência dos astros, que o mesmo é dizer, das forças da natureza que os astros representam. Excetuam-se, nalguns casos, o sábado e o domingo, que trazem a marca das tradições hebraica e cristã.

2. Mas, mesmo no caso português, é fácil verificar como o nosso paganismo convive amenamente com o nosso cristianismo. Basta um olhar atento a esta época do ano (solstício de verão), e às celebrações que fazemos à volta dos santos populares: Santo António, São João e São Pedro.

3. Embora o fenómeno seja o mesmo, detenhamo-nos na festa de S. João, por ser a mais afeta a esta zona norte do país. A tradição bíblica faz de João Baptista um homem austero, que anda pelo silêncio do deserto para melhor escutar a Palavra de Deus, e que, a quantos o procuram, prega penitência e conversão. Mas nós festejamo-lo com esfuziante folia, no meio de barulho e muita música, abundância de vinho e danças e folguedos…

4. Entre os anos 117 e 135, o imperador Adriano, com o intuito de paganizar a Palestina, deitou por terra todos os lugares de culto cristão que lá havia, entre os quais se contava a «casa-igreja» de Ain Karem [= nascente do jardim], lugar do nascimento de João Baptista, a uns 8 Km a SO de Jerusalém, extinguindo assim o nascente culto cristão a João Baptista, e implantando no seu lugar o culto pagão de Adónis. O culto de Adónis é o culto da natureza. Filho do incesto de Ciniras com Esmirna ou Mirra, a beleza de Adónis seduziu a deusa Afrodite ou Vénus, deusa do amor, da beleza, da vegetação e da fertilidade. Ciúmes de outras deusas, entre as quais Perséfone, deusa da morte, fizeram que Adónis fosse morto por um javali, indo assim parar aos braços de Perséfone (inverno, morte). O facto deu origem a intrigas entre as duas deusas (Afrodite e Perséfone), só sanadas pelo decreto de Júpiter, que decidiu que Adónis ficasse com Perséfone um terço do ano, com Afrodite outro terço, e que ficasse livre no último terço do ano. Mas Adónis ofereceu este último terço também a Afrodite. O tempo que passa com Perséfone é o Inverno, o tempo triste em que a natureza parece que morre. O tempo que passa com Afrodite é o tempo da Primavera e do Verão, o tempo da explosão da vida e da alegria. As festas em honra de Adónis têm assim um tempo de choro e de lágrimas, que equivale à morte de Adónis e ao tempo que passa com Perséfone, e um tempo mais intenso de folia, que equivale como que à «ressurreição» de Adónis e ao tempo que passa com Afrodite. Como se vê, Adónis não é mais do que natureza, e aquilo que nós festejamos no solstício de verão não é mais do que a exuberância da natureza.

5. É esta paganização de João Baptista por Adónis que permanece ainda hoje nas nossas festas populares do solstício de verão.

6. Voltemos aos astros. A língua latina fornece-nos duas palavras para dizer «astro»: aster (plural astra) e sidus (plural sidera). Na sua brilhante L’Écriture du désastre (Gallimard, 1980), Maurice Blanchot (1907-2003)  mostrou magistralmente que se as pessoas vivem ligadas aos astros e se o seu comportamento depende deles sem qualquer possibilidade de liberdade, então a vida é com certeza um «des-astre»! E é esta a compreensão que expressamos do «desastre», quando lemos num acontecimento dramático da nossa vida ou da vida dos outros, não o resultado da nossa vontade, mas a influência perniciosa de qualquer astro, o velho destino. Do mesmo modo, dizemos hoje vulgarmente que alguém está siderado, quando está de tal modo fascinado por um objeto ou por um acontecimento ou pessoa, que já não consegue dar um passo por conta própria.

7. Viver ligado aos astros e ao que eles dizem é, portanto, um desastre: se não nos conseguimos libertar deles, ficamos como que siderados, prisioneiros nas mãos de um destino qualquer. Mas se nos separarmos deles, então ficamos de-siderados, do latim desiderare, que deu o nosso desejar. Ao sabor do nosso desejo. É, portanto, a libertação dos astros, a saída da sideração, que dá acesso ao desejo, que nasce da separação do astral e do regresso à vida e ao movimento, à liberdade e à história, a um tempo que seja nosso.

8. Mas será ainda necessário quebrar este arco desiderativo a que andamos presos e que apenas molda em nós um «eu» identitário, autorreferencial e patronal sempre em expansão (hipertrofia do «eu»), e que apenas sabe rejeitar ou absorver o outro, num processo cego de autorrealização ou autossatisfação. É necessário abrir-se ao extra, ao sentido objetivo, ao éschaton, ao dom que vem de fora, e que ninguém pode produzir por si mesmo. Temos todos de aprender a recebê-lo, abrindo as mãos e o coração. Lições de Junho.

António Couto


UMA SEMENTE PEQUENINA

Junho 13, 2015

1. O Evangelho deste Domingo XI do Tempo Comum (Marcos 4,26-34) põe-nos na mão, nos olhos e no coração duas parábolas. As parábolas são pequenas, porque falam da pequenez. Por maioria de razão, são pequenas as duas que nos são hoje servidas, pois têm a semente por assunto. E a semente é o que há de mais pequeno. A semente é a palavra (Marcos 4,14; Lucas 8,11). Ora, a semente – semente de planta, semente de animal, semente de homem – é a vida. Jesus ensina que é a palavra que semeia a vida, pois é o seu começo. Entenda-se por este prisma o começo da vida nova do Reino de Deus que pode sempre nascer em nós, quando temos a graça de ver chegar até nós a palavra do Evangelho, o próprio Evangelho em pessoa, Jesus Cristo, que nos faz nascer do alto e de novo (ánôthen) (João 3,3).

2. Também pequeninos são os passarinhos que vêm abrigar-se nos ramos das árvores (Marcos 4,32). As coisas pequeninas – plantas, animais, crianças – requerem uma maior atenção. Toda a atenção, portanto, à palavra de Jesus, que nos é magistralmente repartida aos bocadinhos, como migalhas de pão.

3. Bem entendido, o texto das duas pequenas, mas belas parábolas hoje expostas diante de nós, vem depois da chamada «parábola do semeador» ou «da semente», que é narrada em Marcos 4,1-9, e explicada em Marcos 4,13-20, mas que devemos ter bem presente para compreendermos melhor as duas pequenas parábolas de hoje. A parábola do «semeador» ou da «semente» segue o esquema «3 + 1» [caminho, terreno pedregoso, espinhos + terra boa], que é já, de per si, ilustrativo, pois nos obriga a esperar até ao fim para ver o correto e lento percurso desde a sementeira [Novembro/Dezembro] até à colheita [Abril/Maio]. É mesmo dito, na parábola, pedagogicamente, que a semente que germina depressa seca depressa (Marcos 4,5-6).

4. Também é notório que a semente é coisa bem pequenina. É o que há de mais pequeno. Mas contém inscrito no seu ADN um percurso semelhante ao de Jesus. De facto, uma vez caída à terra, dará o grão e o pão. Caída à terra, morre para nascer de outra maneira. É a Paixão. Da semente à Paixão e ao Pão: é todo o processo ou parábola de JESUS a passar diante dos nossos olhos atónitos! Portanto, se não entendemos a semente, o início do processo, pergunta Jesus, como entenderemos o inteiro processo e o seu final? (Marcos 4,13). Como entenderemos a glória sem a humildade?

5. De forma significativa, as duas parábolas de hoje, situadas ainda no cone de luz da parábola da «semente», só reclamam a ação humana em dois momentos distanciados no tempo: quando é lançada a semente à terra (Marcos 4,26) e quando chega o tempo da colheita (Marcos 4,29). Entre estes dois momentos, sucedem-se os dias e as noites, o homem dorme e acorda, e a semente lançada na terra germina, cresce e produz o seu fruto «automaticamente» (automátê), sem que o homem saiba «como» (Marcos 4,27-28). Não o sabia, e não o sabe, o homem simples, do campo, de então e de hoje, embora o saiba hoje a biogenética. Hoje, a ciência sabe o «como», mas também não sabe responder ao «porquê». Temos todos de começar mesmo pela atitude sublime da admiração!

6. E no que ao grão de mostarda diz respeito, a ação humana só é evocada quando o pequeno grão, que é a menor de todas as sementes, é semeado na terra (Marcos 4,31). Depois, só lhe é dado constatar que uma árvore cresce e deita grandes ramos, em que até os pássaros do céu se vêm abrigar (Marcos 4,32).

7. O que é que isto quer dizer? Quer dizer com certeza que o Reino de Deus tem o seu dinamismo próprio, e que é de crescimento. E mais do que querer saber qual é esse dinamismo, porventura para dele se apoderar e controlar e até empenhar-se no seu desenvolvimento, a reação do homem deve ser, antes de mais, de admiração, adoração, louvor e gratidão. Jesus, o Filho de Deus, Deus Ele mesmo, atravessa o nosso mundo na condição humilde da nossa humana natureza, utilizando a cultura hebraica em que nasceu, falando a língua então popular nessa cultura, o aramaico, servindo-se das imagens mais simples e próximas, ao alcance de todos: os campos, a semente, as árvores, as aves… Também passará pelo sofrimento e pela morte. Só depois virá a glória da ressurreição. E o Apóstolo Paulo dirá: o que aconteceu a Ele, também nos acontecerá a nós; como aconteceu a Ele, também nos acontecerá a nós!

8. A parábola do pequeno rebento do cedro, apresentada por Ezequiel (17,22-24), está em perfeita sintonia com as parábolas do Evangelho de hoje. Um pequeno rebento plantado por Deus em Israel crescerá tanto que servirá de abrigo a todas as aves do céu. E além disso servirá ainda de aviso a todas as grandes árvores do campo, pois, na verdade, Deus derruba a árvore grande e exalta a pequena, seca a árvore verde e reverdece a seca. Esta pequena parábola ganha ainda mais relevo se posta em confronto com a parábola da videira luxuriante, que é Sedecias, plantada por Nabucodonosor em 597, e que volta os seus ramos quer para a Babilónia quer para o Egipto, as duas grandes águias, os dois senhores do tempo. Não terá sucesso Sedecias, pois será apanhada nas malhas da rede de Deus, e não vingará (Ezequiel 17,1-21). Na verdade, embora tendo fugido, é alcançado por Nabucodonosor perto de Jericó, em 587. Antes de lhe serem vazados os olhos e de ser levado cego para a Babilónia, terá de ver ainda, com os seus olhos, serem mortos os seus filhos e a sua mulher. Lição: assim caem as árvores grandes! Mas a árvore pequenina, plantada por Deus continuará a crescer sem sobressaltos e servirá de morada aos passarinhos!

9. O Apóstolo Paulo continua, na lição contínua ou semi-contínua da Segunda Carta aos Coríntios (5,6-10), a encorajar-nos a habitar sempre na Casa do Senhor, mesmo quando habitamos ainda neste corpo, aparentemente longe do Senhor. Os verbos a que Paulo mais recorre nestes poucos versículos são os verbos endêméô e ekdêméô (três vezes cada um). O termo chave, que explica as duas formas verbais, é dêmos [= povo], com as duas partículas en [= em] e ek [= fora de]. Endêméô significa então habitar junto do seu povo, sentir-se em casa, enquanto que ekdêméô significa habitar fora do seu povo, distante de casa. A nossa casa verdadeira é estar em Casa com o Senhor. Mas enquanto estamos distantes dele, sabemos, pela fé, que é para a sua Casa que caminhamos.

10. O belo Salmo 92 continua a fazer vibrar em nós a música da semente, das árvores, das aves e dos dias breves e belos, da eternidade. O orante realça a imagem vegetal, fresca e verdejante, da palmeira e do cedro, verdadeiro brasão do justo. Quer a palmeira quer o cedro evocam uma vitalidade contra a qual em vão atenta o deserto. Além disso, o cedro, com a sua altura, simboliza a longevidade: pode durar um milénio. E a palmeira, phoínix no texto grego, com o seu duplo significado de palmeira e fénix, a ave da imortalidade, servirá à tradição cristã para celebrar a vitória da vida nova e eterna. No culto sinagogal, este Salmo é cantado à entrada do Sábado, ao pôr-do-sol de sexta-feira. Lê-se na Mishna: «Ao sábado canta-se o Cântico do dia de sábado (Salmo 92), Cântico para o tempo que há de vir, para o dia que será inteiramente sábado e repouso para a vida eterna. Mas é o Senhor que está por detrás de tudo isto. É por isso que é bom e belo louvá-lo!

Deita com ternura a semente na terra

É o seu berço natural

E adormece suavemente

Tu e a semente

A semente não erra

A semente não mente

Adormece na terra

Aparece depois um fiozinho de erva

Nasce e cresce

Uma flor floresce

Um fruto amadurece

Um pássaro desce

E reza e canta e dança e prova e agradece

Ao Senhor da messe.

Senhor Jesus,

Dá-me um coração puro e transparente

Como uma nascente,

Como uma semente,

E ensina-me a ser simples e leve

Como aquele pássaro que do céu desce,

Reza, canta, come e agradece.

António Couto


POR UM AMOR MAIOR

Junho 6, 2015

1. «Se escutardes bem a minha voz e guardardes a minha aliança (…), sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa» (Êxodo 19,5-6), propõe o próprio Deus, por intermédio de Moisés, ao povo de Israel chegado HOJE e HOJE acampado no sopé do Sinai (Êxodo 19,1-2). Como nos propõe HOJE a nós, acampados em Lamego. A proposta-promessa de Deus de transformar Israel num povo sacerdotal e santo é condicional: se escutardes a minha voz, se guardardes a minha aliança. Considerada atentamente a proposta-promessa de Deus, o povo de Israel responde que «sim», resposta unânime e sem hesitação, afirmando sob palavra de honra: «Tudo o que o Senhor falou, nós o faremos» (Êxodo 19,8). Este «faremos» do povo aparece consolidado mais à frente, no texto do Livro do Êxodo que hoje tivemos a graça de ler e de ouvir, em que o povo afirma por duas vezes: «Faremos todas as Palavras que o Senhor falou» (Êxodo 24,3 e 7).

2. O povo compromete-se a fazer as Palavras do Senhor, e Deus cumpre logo aí a sua proposta-promessa de fazer de Israel um povo todo sacerdotal e santo. O texto bíblico do Livro do Êxodo que nos foi dada a graça de escutar, mostra, de forma admirável, a realização da promessa de Deus, pondo diante dos nossos olhos, primeiro os jovens (Êxodo 24,3), e depois os anciãos (Êxodo 24,9-11), a oficiar e presidir ao culto. Os jovens e os anciãos de Israel, os jovens e os velhos de Israel: aí está uma forma muito bíblica de dizer a totalidade de Israel, um Israel todo sacerdotal. Pouco depois, sempre com um modo de dizer muito bíblico, sela-se a aliança entre Deus e o seu povo. O sangue dos novilhos imolados é recolhido em bacias. Metade desse sangue é destinado a aspergir o altar, que simboliza Deus (Êxodo 24,6); a outra metade é destinada a aspergir o povo de Israel (Êxodo 24,8). É visível que Deus e o povo de Israel participam, então, do mesmo sangue. Participar do mesmo sangue é igual a fazer parte da mesma família. É uma maneira fortíssima de mostrar a fidelidade e a familiaridade que se estabelece entre Deus e o seu povo, entre Deus e nós.

3. Tudo isto, porém, assenta naquele falar primeiro e criador de Deus, e no falar segundo, portanto, responsorial, do povo, que diz que «sim», comprometendo-se assim com a Palavra primeira de Deus. Há, portanto, um falar de Deus e um falar nosso a atravessar o texto, a atravessar Israel e a atravessar-nos nós. Também está aqui a nascer um povo sacerdotal, verdadeiro «sacerdócio comum dos fiéis», assente na escuta qualificada e no consequente fazer a Palavra de Deus: «Faremos todas as Palavras que o Senhor falou».

4. O texto bíblico é admirável, pois nos faz ver Deus a tecer sucessivos cenários de amor e de beleza para o seu povo, para nós. Mas o texto bíblico é ainda admirável, quando nos mostra que Deus, que é Deus, não quer fazer as coisas sozinho, e fica tantas vezes à nossa espera, suspenso da nossa resposta. «A sua Palavra é digna de fé» (1 Timóteo 4,9), porque «Deus é fiel» (1 Coríntios 1,9). É a nossa palavra que não é muito de fiar. É também aqui que o texto bíblico, continuando a ser admirável, se mostra também implacável, fazendo-nos ver em cenas sucessivas como tão depressa escorregamos do «sim» para o «não». E aí está o texto implacável a mostrar-nos como tão depressa dizemos que fazemos todas as Palavras de Deus, como, logo a seguir, nos pomos a fazer um bezerro de ouro (Êxodo 32,1-6), que é mais ou menos por onde andamos ainda hoje, parodiando o verdadeiro fazer, que é sempre fazer todas as Palavras de Deus. Como o texto bíblico nos desvenda. Implacavelmente!

5. Vale-nos, «oh abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus!» (Romanos 11,33), que «Deus permanece fiel, mesmo quando nós lhe somos infiéis» (2 Timóteo 2,13). Aí está, então, o dizer e o fazer novo de Jesus a refazer o nosso dizer e o nosso fazer tão depressa abandonados, aliança rompida: «Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade», declara Jesus, verdadeiro sumo-sacerdote na Carta aos Hebreus 10,7; cf. Salmo 40,8-9). E «Não se faça a minha vontade, mas a tua», reza Jesus no Getsémani (Marcos 14,36).

6. E levando até ao fim o seu amor, ainda nos implica por graça no seu próprio belo fazer. Pegou então numa criança, num pedaço de pão e numa taça. Levantou os olhos e as mãos onde nitidamente pulsava um coração. E ergueu um brinde ao céu. Baixou depois os olhos e as mãos, ungidos já para a dádiva suprema. E ardentemente desejou o vinho novo do reino a chegar. Requisitou, por isso, para isso, o coração, as mãos, a boca, de quantos o estavam a escutar. E antes de partir e de ficar, definitivamente Deus Connosco, abriu ainda à multidão novos caminhos, diurnos, matutinos: «Já sei que não sabeis pedir o pão; tereis de aprender com os meninos».

7. «Tomai, isto é o meu corpo» (Marcos 14,22); «Este é o meu sangue, o sangue da Aliança, por todos derramado» (Marcos 14,24). «Fazei isto em memória de mim» (Lucas 22,19). Vida partida e dada por amor. Eis o inteiro programa de Jesus. Eis tudo o que devemos fazer, imitando-o eucaristicamente.

8. É isto que estamos a fazer aqui, nesta Celebração Eucarística, nesta Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo. Daqui a pouco, o Senhor da nossa vida presidirá e abençoará com a sua Presença, caminhando connosco, no meio de nós, as ruas da nossa cidade. O pálio (pallium) de Deus atravessará a nossa cidade. O pálio de Deus é o manto (pallium) de Deus, os braços carinhosos com que nos abraça e nos envolve, e nos pede para fazermos outro tanto, enchendo de graça e de esperança todos os nossos irmãos. Verdadeiramente, num mundo em crise como este em que vamos, parece que voltamos a viver, como dizia São Paulo aos Efésios, «sem esperança e sem Deus no mundo» (Efésios 2,12). Entenda-se: sem esperança, porque sem Deus no mundo, connosco, no meio de nós.

9. Jesus Cristo é Deus presente no nosso mundo todos os dias. E o pálio é o manto, o abraço, com que nos acarinha e envolve. De pálio (pallium) vêm os cuidados paliativos, que não são apenas os cuidados médicos e de amor que prestamos aos nossos doentes terminais; são sobretudo a expressão de um amor maior, de um manto maior, que nos envolve e nos salva em todas as situações (Gianluigi Peruggia, L’abbraccio del mantello, Saronno, Monti, 2004).

 
Dá-nos, Senhor, um coração novo,
capaz de conjugar em cada dia
os verbos fundamentais da Eucaristia:
RECEBER, BENDIZER e AGRADECER,
PARTILHAR e DAR,
COMEMORAR, ANUNCIAR e ESPERAR.
 
Dá-nos, Senhor, um coração sensível e fraterno,
capaz de escutar
e de recomeçar.
 
Mantém-nos reunidos, Senhor,
à volta do pão e da palavra.
E ajuda-nos a discernir
os rumos a seguir
nos caminhos sinuosos deste tempo,
por Ti semeado e por Ti redimido.
 
Ensina-nos, Senhor,
a saber colher
o Teu amor
semeado e redentor,
única fonte de sentido
que temos para oferecer
a este mundo
de que és o único Salvador
 
António Couto