AMAR OU NÃO AMAR, EIS A QUESTÃO!

Agosto 25, 2018

1. Neste Domingo XXI do Tempo Comum, escutaremos a sexta e última Parte do Capítulo VI do Quarto Evangelho, que contempla os últimos versículos (João 6,60-69), e estende a discussão antes havida da multidão (João 6,25-40) e dos judeus (João 6,41-58) com Jesus, também aos discípulos em geral, que entram agora em cena em João 6,60, para saírem de cena, para fora da ação de Jesus, em João 6,66, sendo então a vez dos Doze e de Pedro entrarem em cena (João 6,67-69).

2. Veja-se a gradação: multidão, judeus, discípulos, Doze e Pedro. Curiosamente, os discípulos, numa espécie de imbricação, retomam a atitude dos judeus, que os precederam em cena: murmuram (goggýzô) como eles contra o escândalo da incarnação e das origens divinas de Jesus (João 6,61), e classificam como duro (sklêrós), incompreensível, intragável (João 6,60), o discurso de Jesus sobre a sua carne-vida dada em alimento para a vida verdadeira.

3. Além de «murmurar» como os judeus de Cafarnaum e do deserto (Êxodo 15,24; 16,2 e 7-8; 17,3; Números 14,2.27.29.36), muitos dos discípulos abandonam Jesus e «voltam para trás» (João 6,66), configurando-se como anti discípulos e anti povo de Deus, que, no deserto, também pretende voltar para trás, para o Egito (Êxodo 14,12; 16,3; 17,3; Números 14,3-4). Ora, o discípulo verdadeiro é aquele que vai atrás de Jesus, seguindo-o, e não o que volta para trás, abandonando-o.

4. De notar ainda que, no caso dos discípulos, e de forma diferente da multidão e dos judeus, é Jesus que faz a pergunta e dá a resposta. Os discípulos apenas murmuram, não ouvem, não respondem e vão-se embora. No caso dos Doze, é Jesus que faz a pergunta, e é Pedro que, em nome dos Doze e em contraponto com todos os grupos anteriores, não se limita apenas a responder, mas profere uma verdadeira profissão de fé (João 6,68-69).

5. Vendo bem, neste Capítulo VI do Evangelho de João, que hoje atinge o seu ápice, as diversas reações aos acontecimentos de Jesus, a que a exegese chama «crise galilaica», antecipam e leem já as crises sucessivas na Igreja. Trata-se sempre da grande decisão de fé pró ou contra a humildade da Incarnação, da Cruz e da Eucaristia. A Palavra de Jesus que se ouve aqui e também agora será sempre como um bisturi que divide, julga e purifica.

6. A mesma grande decisão ou incisão está patente no grande texto de Josué 24,1-18. Josué diz diante de todo o povo reunido um dos mais belos e completos «módulos narrativos» de toda a Escritura, mostrando ao povo que foi Deus que conduziu a inteira história de Israel, com amor poderoso, desde o outro lado do Rio Eufrates, chamando e conduzindo os passos de Abraão, libertando depois o povo da opressão do Egito, guiando-o pelo deserto, libertando-o dos inimigos poderosos que o ameaçavam por todos os lados, e fazendo-o entrar na Terra de Canaã (Josué 24,2-14). Depois desta descrição maravilhosa que tem Deus por sujeito, Josué abre o tempo das decisões, em que «servir» é a palavra-chave, que se ouve por 14 vezes. Servir ou não servir, eis a questão posta por Josué ao povo: «Se não vos agrada servir o Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir» (Josué 24,15a). Josué avança a sua escolha: «Eu e a minha família serviremos o Senhor!» (Josué 24,15b). Então, o povo repassa outra vez na memória do coração todos os benefícios que lhe fez o Senhor, desde a libertação do Egito, aos sinais e prodígios realizados em seu favor, à proteção assegurada pelo Senhor ao longo do caminho percorrido e perante os adversários (Josué 24,16-18a), para afirmar logo convictamente: «Nós também serviremos o Senhor» (Josué 24,18b).

7. E na Carta aos Efésios 5,21-32, o «serviço» chama-se amor. O texto hoje lido constitui um extrato de um dos «Códigos familiares», que se encontram nas chamadas Cartas editadas de S. Paulo. Estas Cartas que remontam a Paulo, mas que são editadas depois da sua morte, já não traduzem o esforço evangelizador patente nas Cartas autênticas, mas procuram levar o Evangelho a situações concretas da vida, como sejam a família e o trabalho. O texto de hoje realça sobretudo a relação marido-esposa, que deve retratar a relação sublime e salutar Cristo-Igreja. Mas, se a leitura continuasse, também veríamos o Evangelho a renovar as relações pais-filhos e patrões-empregados.

8. Voltamos, pelo terceiro Domingo consecutivo, à música do Salmo 34. Desta vez para nos apercebermos melhor que Deus atende sempre com solicitude os gritos de socorro do justo perseguido (vv. 16.18), ao mesmo tempo que apaga da terra a memória dos malfeitores (v. 17.22). Esta certeza é muitas vezes a única e a última defesa do justo que sofre às mãos dos ímpios. Os Salmos de imprecação, ou as suas partes mais violentas, foram abolidos da oração oficial, como se não fossem, na verdade, Palavra inspirada. Pecado nosso, que assim mostramos não compreender o realismo e a eficácia da oração bíblica, e dificultamos aos aflitos o poder extravasar diante de Deus as suas amarguras, e deixamos os violentos a maquinar tranquilamente as suas crueldades, como se Deus não visse nem ouvisse nem lhes pedisse contas.

António Couto


UMA NOVA POSSIBILIDADE NA HISTÓRIA HUMANA

Agosto 18, 2018

1. Neste Domingo XX do Tempo Comum, temos a graça de escutar o texto que compõe a quinta secção (João 6,52-59) [ver Domingo XIX] da quinta Parte (João 6,25-59) do Capítulo 6.º do Quarto Evangelho [ver Domingo XVII]. Na verdade, o Evangelho deste Domingo XX começa no v. 51 e termina no v. 58, estendendo-se assim por João 6,51-58. Portanto, o v. 51, que abre o Evangelho deste Domingo XX fecha a quarta secção (João 6,41-51), e já foi lido no passado Domingo XIX. Mas, no v. 51, Jesus não está a responder à «multidão», como nos faz ler a versão oficial do texto que vai ser proclamado, mas aos «judeus», que entram em cena em João 6,41. Curiosamente, a versão do Domingo XIX está correta!

2. Já tivemos oportunidade de referir que cada uma das secções que compõem a quinta Parte deste Capítulo VI do Quarto Evangelho (João 6,25-59) estão ritmadas segundo o modelo «pergunta-resposta», sendo a pergunta sempre formulada pela «multidão» ou pelos «judeus», e a resposta sempre oferecida por Jesus. A pergunta dos judeus: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu?”» (João 6,42), que abria a quarta secção (João 6,41-51), despoletou a resposta de Jesus sobre a sua verdadeira identidade: «Eu sou o pão vivo que desceu do céu […], pão que é a minha carne, que dá a vida» (João 6,51). A pergunta que abre a quinta secção (João 6,52-59) e que sai também da boca dos judeus, e que vem na continuidade da resposta acima referida por Jesus, soa assim: «Como pode este dar-nos a sua carne (sárx) a comer?» (João 6,52).

3. Esclarecedor é que o verbo «comer» apareça conjugado com «carne» (sárx) (João 6,52.53.54.56), com «pão» (ártos) (João 6,51.58) e «comigo» (me) [«o que me come»] (João 6,57). Fica claro que «comer o pão descido do céu» é «comer a carne do Filho do Homem», e que as duas expressões são equivalentes de «comer a pessoa» de Jesus, a sua identidade, o seu modo de viver. Só assim a vida verdadeira, a vida eterna, entra em nós e transforma a nossa vida, configurando-a com a de Jesus. Uma nova possibilidade entra na história humana. Tudo o que fica para trás, resume-se assim: «No deserto, os vossos pais comeram o maná, e morreram» (João 6,49). Que a vida eterna, que é Jesus, entre em nós e transforme, transfigure e configure a nossa vida à maneira de viver de Jesus, eis a temática da transparência e da mútua imanência e pertença entre nós e Jesus: «Permanece em Mim e Eu nele» (João 6,56). É a melhor e mais realista tradução da nossa comunhão eucarística. Até o verbo «comer» ganha nesta secção particular sabor e realismo. De facto, para dizer «comer», o grego do Novo Testamento usa habitualmente o verbo esthíô. Todavia, em João 6,54.56.57.58, é usado um verbo «comer» muito mais forte, o verbo trôgô [= trincar, mastigar]. De forma significativa, este verbo só é usado nas passagens atrás assinaladas e em João 13,18, no contexto da ceia da Páscoa.

4. A lição do Livro dos Provérbios, que hoje escutamos (Provérbios 9,1-6), mostra-nos a Sabedoria personificada, que edifica a sua casa, prepara o banquete, escolhe o vinho, põe a mesa, e convida todas as pessoas [= toda a humanidade] para o seu banquete. Para significar que o convite para uma nova maneira de viver é feito a todos, sem exceção, é dito que é feito dos pontos mais altos da cidade (Provérbios 9,3).

5. E a Carta de São Paulo aos Efésios 5,15-20 reclama também de nós uma vida nova, assente num coração inteligente que saiba ler o tempo em que estamos, discernir a vontade de Deus, decantar quotidianamente em música a Palavra de Deus e levantar a Deus permanente ação de graças. A não ser assim, teremos de nos haver com a crítica certeira de Nietzsche, que refere: «Se a Boa Nova da vossa Bíblia estivesse também escrita no vosso rosto, não teríeis necessidade de insistir tanto para que as pessoas acreditem. As vossas obras e ações deviam tornar quase supérflua a Bíblia, porque vós mesmos seríeis Bíblia nova e Boa Nova».

6. A música do Salmo 34, a que já nos referimos no Domingo passado (XIX), continua hoje a acompanhar-nos, realçando-se sobretudo o sabor sapiencial dos conselhos da Sabedoria personificada: «Vinde, meus filhos, escutai-me: ensinar-vos-ei o temor do Senhor» (v. 12); «afasta-te do mal e faz o bem: procura a paz e segue-a sempre» (v. 15). E continuamos hoje a cantar repetidamente o refrão: «Saboreai e vede que Bom é o Senhor». Versão grega dos LXX: «Geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós ho Kýrios», ou, na pronúncia viva: «Geúsasthe kaì ídete hóti christós ho Kýrios», o que dá lugar a um jogo de palavras (chrêstós/christós) com resultados à vista na tradição patrística, que lê o texto em clave cristológica e eucarística, cujos primeiros resultados se podem ver já na Primeira Carta de S. Pedro: «Como crianças recém-nascidas, desejai o puro leite espiritual, para crescerdes com ele para a salvação, se é que já saboreastes que bom é o Senhor» (hóti chrêstòs ho kýrios) (1 Pedro 2,2-3). Em pronúncia viva: «que Cristo é o Senhor». Sim, vê-se daqui melhor a Bondade e o Amor fiel e comprometido, com Rosto e com Nome, que nos acompanha sempre.

António Couto


SENHORA DA ASSUNÇÃO OU DA DORMIÇÃO

Agosto 14, 2018

1. Ainda que com títulos diferentes, mas com temas e conteúdos idênticos, as Igrejas do Oriente e do Ocidente, portanto a Igreja inteira, a Una e Santa, celebra no dia 15 de Agosto a maior e mais antiga festa da Mãe de Deus, a Virgem Santa Maria. No Oriente, é a festa da «Dormição» (koímêsis), enquanto, no Ocidente, prevalece a tonalidade da «Assunção» (análêmpsis).

2. O Evangelho deste grande Dia relata o belíssimo episódio da «Visitação» (Lucas 1,39-45) seguido do cântico da «Exultação» ou «Magnificat» (Lucas 1,46-56). Note-se outra vez uma pequena diferença de tonalidade: o episódio evangélico que o Ocidente conhece por «Visitação», recebe no Oriente o nome de «Saudação» (aspasmós). E o episódio que precede e motiva esta «Visitação» ou «Saudação» recebe no Ocidente o nome de «Anunciação» e no Oriente o nome de «Evangelização» (euangelismós) (Lucas 1,26-38). Verdadeiramente é a Leveza e a Alegria em trânsito, a caminho, ao ritmo do vento do Espírito, música nova, inefável e bendita. Vinda de Deus até Maria, até Isabel, até João Baptista, outra vez até Deus. Lembra uma pequena parábola rabínica que, quando David andava fugido de Saul, buscando refúgio nas montanhas (1 Samuel 22 e seguintes), um dia dependurou a sua harpa numa árvore, e adormeceu. Mas o vento, passando, fez as cordas da harpa exalar uma suave melodia. Verdadeira música do Espírito.

3. É igualmente sugestiva a intuição dos Mestres judaicos, registrada por Martin Buber nos seus «Contos dos Justos». Citando o Salmo 147,1, em que se lê: «É bom cantar ao nosso Deus», Buber apresenta logo a bela interpretação que Rabbí Elimelek dava deste versículo: «É bom se o homem faz cantar Deus nele». Música divina. Assim Maria correndo sobre os montes e saudando Isabel, em casa de quem permanece cerca de três meses, e cantando as maravilhas de Deus no Magnificat, assim Isabel bendizendo Maria e bendizendo Deus, assim João Baptista, dançando ao som dessa nova música inefável, no ventre de Isabel.

4. Maria correndo sobre os montes: feliz evocação do mensageiro de boas notícias de Isaías 52,7: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia boas novas a Sião…». Feliz evocação também do amado do Cântico dos Cânticos 2,8, assim cantado pela amada: «A voz do meu amado: ei-lo que vem correndo sobre os montes». Assim, com este simples acorde montanhoso, o narrador e grande retratista do terceiro Evangelho traça o perfil de Maria movida, não por uma pressa qualquer, mas por uma grande notícia e pelo amor. A aclamação de Isabel: «Bendita tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre» [= «Bendita tu e bendito Deus»], lembra o duplo «Bendito» na aclamação de Judite (13,18). A locução maravilhada de Isabel: «E de onde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?» (Lucas 1,43), remete para o atónito dizer de David: «E de onde me é dado que venha ao meu encontro a Arca do Senhor?» (2 Samuel 6,9). E a «dança de João» reclama a dança de David na presença da Arca do Senhor (2 Samuel 6,5.14.16.21). E os «cerca de três meses» de permanência de Maria em casa de Isabel, regressando então a sua casa (Lucas 1,56), não são, como vulgarmente se pensa, para indicar que Maria está presente no nascimento de João Baptista, pois este apenas é narrado no versículo seguinte (Lucas 1,57). É, antes, outra vez o acerto com a Arca do Senhor, que permanece cerca de três meses na casa de Obed-Edom (2 Samuel 6,11). Os acordes textuais evidentes mostram Maria como a Arca da Aliança, como, de resto, é aclamada pelo Povo de Deus, quando recita a ladainha de Nossa Senhora.

5. O que verdadeiramente me extasia e inebria é esta música outra, ventilando as cordas do nosso humano, e quase sempre orgulhoso, coração. Vem outra vez a propósito a velha sabedoria judaica, que nos legou esta bela pequena história: «Conta-se que, quando David terminou o Livro dos Salmos, se sentiu muito orgulhoso. Então disse para Deus: “Senhor do mundo, quem de entre todos os seres que criaste, canta melhor do que eu a tua glória?”. Naquele momento, apareceu uma rã que lhe disse: “David, não te envaideças. Eu canto melhor do que tu a glória de Deus”» (Sefer ha-Haggadah, 89b).

6. Aí está, a descoberto, na lição do Livro do Apocalipse (11,19; 12,1-6.10), a Arca da Aliança, a Mulher messiânica, a Igreja, Maria, grávida de um Filho que nasceu, «sinal» para sempre aceso e legível da presença viva e ativa de Deus no meio de nós, como a luz de uma vela, para a celebração festiva dos filhos de Deus reunidos. Avista-se, porém, outro «sinal» de sinal contrário, que serve para nos manter unidos e atentos no meio das dificuldades e perseguições desta vida, que, todavia, não devem toldar-nos a vista da salvação e da vitória, claramente a descoberto no horizonte onde brilha a esperança: «Agora cumpriu-se a salvação, a força e o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo» (Apocalipse 12,10).

7. O final da Primeira Carta aos Coríntios (15,20-27) põe um imenso selo de luz e de esperança na celebração luminosa deste Dia. Com a Ressurreição de Cristo salta à vista a poeira de toda a iniquidade e falsidade e morte, e já se vê a «assunção» da nossa frágil humanidade em Cristo e por Cristo até Deus Pai.

8. O belíssimo Canto de Amor, que é o Salmo 45, serve hoje para celebrar a Igreja Esposa e Mãe, e Maria Esposa e Mãe. Este belo hino, como o Cântico dos Cânticos, canta o Amor, que é sempre divino e humano. Na verdade, no amor humano pode ler-se o amor revelado por Deus, pelo que, se existe o amor, existe Deus. Não admira, por isso, que este Salmo tenha sido interpretado em clave messiânica quer no judaísmo quer no cristianismo.

9. Pela Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de 1 de Novembro de 1950, o Papa Pio XII proclamava a Assunção da Virgem Maria como dogma de fé. Mas é desde os primeiros séculos do Cristianismo que o Povo de Deus aclama, proclama e vive com amor intenso esta realidade. Quantas igrejas, paróquias e dioceses a têm como Padroeira! E, neste particular, este recanto Peninsular, terra de Santa Maria, não podia ser exceção. O Povo de Deus desde muito cedo aclamou a Assunção de Maria, Mãe de Deus e esperança da nossa frágil humanidade.

10. Um lugar guarda esta memória em Jerusalém. É preciso descer ao vale que corre a Oriente da cidade, o famoso vale do Cédron. Deixando à direita o Getsémani com as suas oliveiras seculares e a Basílica da Agonia de Jesus, muito próximo da Gruta dos Apóstolos ou da Prisão de Jesus, chega-se a um pátio pavimentado que dá para uma monumental fachada, que é o que resta de uma grande Igreja aí construída pelos Cruzados. Por detrás dessa fachada, estende-se uma escadaria que nos leva a uma cripta situada nas entranhas do vale do Cédron. É esta cripta que guarda um túmulo do século I, que a tradição cristã identifica com o túmulo de Maria, em forma de banco escavado na rocha, e que se apresenta bastante degradado devido à tentação dos peregrinos que, ao longo dos tempos, não resistiram a levar consigo um pedacinho da rocha que esteve em contacto com o corpo da «Bendita».

11. No dia da Solenidade da Assunção, é comovente ver aquela escadaria escura iluminada como um tapete de luz, devido às velas que os fiéis colocam em cada degrau. Conduzindo embora para um túmulo, a sensação que se cria é que aquela escadaria descendente, feita tapete de luz, abre para uma ianua coeli, «porta do céu», como também cantamos na litania de Maria.

12. No seguimento lógico da Assunção de Maria, a Igreja celebra oito dias depois, em 22 de Agosto, a Memória da Virgem Santa Maria, Rainha, proclamação também devida a Pio XII, através da Carta Encíclica Ad Coeli Reginam, de 11 de Outubro de 1954. Mãe Elevada aos Céus, mas Mãe que vela carinhosamente pelos seus filhos. O Rei e a Rainha não são, na Bíblia, títulos de nobreza, mas traduzem a dupla função de quem deve estar particularmente próximo de Deus e particularmente próximo dos homens. Para acolher de perto toda a Palavra que vem do coração de Deus, e para trazer à humanidade a prosperidade, o bem-estar e a felicidade. Tal é a função do Rei e da Rainha.

 

Nossa Senhora da Assunção,

Santa Maria do verão,

Ao céu elevada,

À minha beira sentada,

Com tua roca de linho

E um novelo inteiro de carinho.

 

Olha por mim,

Fica sempre assim,

No campo e na eira,

À minha cabeceira.

É bom ter uma mãe

Como companheira.

 

Senhora da Assunção

Ou da Dormição,

Envolve-me no teu manto,

Adormece-me com o teu canto,

A tua lalação,

Pertinho do coração.

 

Vão os teus filhos

Em procissão de amor,

Atrás do teu andor,

Na mão uma flor.

Recebe-a, mãe,

E acolhe-nos sob a tua proteção,

Hoje e em cada dia,

Ave-Maria.

 

António Couto


O PÃO QUE É JESUS, E NOS LEVA A IMITAR JESUS

Agosto 11, 2018

1. Continuamos, neste Domingo XIX do Tempo Comum, a revisitar o chão textual e a saborear o pão espiritual do grande Evangelho de João 6. Hoje temos a graça de escutar a secção de João 6,41-51. Importa, desde já, lembrar o leitor que esta secção se enquadra na quinta Parte deste grande Capítulo, que se estende pelos versículos 25-59 (ver atrás, Domingo XVII). Podemos agora mostrar, para efeitos de clareza e melhor compreensão, como se apresenta estruturada esta quinta Parte (João 6,25-59), para nos ocuparmos depois, mais de perto, do texto deste Domingo (João 6,41-51).

2. João 6,25-59 apresenta-se ritmado pelo esquema «pergunta-resposta». As perguntas saem da boca de uma «multidão» não identificada ou dos «judeus», a que se seguem as respostas de Jesus. Seguindo este ritmo, o texto de João 6,25-59 mostra-se organizado em cinco secções: João 6,25-29 (a), João 6,30-33 (b), João 6,34-40 (c), João 6,41-51 (d) e João 6,52-59 (e).

3. O texto que nos ocupa neste Domingo forma, portanto, a quarta secção (João 6,41-51). O leitor atento começa logo por verificar que «a multidão» (ho óchlos) não identificada que até aqui seguia Jesus (João 6,2.5.22.24) se transforma subitamente, e sem qualquer explicação, em «os judeus» (hoi ioudaîoi) (João 6,41). É visível também que, com esta súbita transformação, cresce a hostilidade e a agressividade contra Jesus, aqui traduzida pela presença do verbo «murmurar» (goggýzô), que lembra o comportamento dos Israelitas no deserto (Êxodo 15,24; 16,2 e 7-8; 17,3; Números 14,2.27.29.36). A «murmuração» (goggysmós) é uma espécie de rebelião interior, assente na insatisfação, desconfiança, inveja, ciúme e azedume contra as pessoas e contra Deus, neste caso, contra Jesus.

4. E qual é a razão desta «murmuração» dos judeus contra Jesus? Radica no facto de estes judeus conhecerem bem o «histórico» de Jesus, o seu pai e a sua mãe, as suas raízes humanas bem humildes, e de não poderem conciliar estes dados muito humanos com a sua origem divina (João 6,42-43). Note-se também que a «murmuração» consiste em falar mal de alguém, não diretamente, tu a tu, mas indiretamente, em 3.ª pessoa: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu?”» (João 6,42).

5. Os judeus dizem conhecer o pai de Jesus. Mas Jesus responde, apelando ao fim da murmuração: «Não murmureis entre vós» (João 6,43), e apontando o seu verdadeiro Pai, que os judeus não conhecem (ironia joanina): «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (João 6,44). Jesus põe, portanto, fim à murmuração, isto é, ao falar mal de alguém, em 3.ª pessoa, abrindo um discurso novo, direto, pessoal, tu a tu: «Vir a Mim» subverte completamente o «falar de Mim». Mas este «Vir a Mim» é obra, não dos homens, que não o sabem nem podem fazer por conta própria, mas de Deus: «Todos serão ensinados por Deus» (cf. Isaías 54,13), e conclui: «Todo aquele que escutou do Pai, e aprendeu, vem a Mim» (João 6,45). Os judeus falam do pai de Jesus, José. Mas Jesus fala do seu verdadeiro Pai, Deus. De pai para Pai. Jesus aponta o verdadeiro Pai, o único que nos leva a Jesus, o pão vivo descido do céu, que é a sua «carne», isto é, a sua forma de viver, a sua identidade. Claramente: só identificando-nos com Jesus, aderindo à sua forma de viver, fazendo nossa a sua vida, deixamos entrar em nós a vida eterna. Notável interligação: o IV Evangelho já nos tinha ensinado que é Jesus que explica o Pai (João 1,18) e que conduz ao Pai (João 14,6). Nesta passagem, é o Pai que explica Jesus e que conduz a Jesus.

6. Notar-se-á por debaixo do falar de Jesus o teclado do Antigo Testamento. Em dois momentos. Um deles é aquele: «Todos serão ensinados por Deus» (João 6,45), que é uma citação de Isaías 54,13. Todavia, a música é diferente: o texto de Isaías é restritivo, pois fala de «Todos os teus filhos» (de Jerusalém). Jesus alarga a perspetiva, falando de todos em geral. O outro é aquele: «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (João 6,44), que tem por debaixo Jeremias 31,3 [38,3 LXX], que refere: «Com um amor eterno, Eu te amei; por isso te arrastei (mashak TM; élkô LXX) com carinho». É demasiado pobre não reparar nisto. É demasiado belo reparar nisto. Há neste amor de Deus por nós uma paixão declarada, força ou coação que o verbo (hebraico e grego) traduz bem. Entenda-se: Deus não desiste de nós, já não pode passar sem nós!

7. Como os judeus cortam laços e cavam fossos, murmurando, também Elias (1 Reis 19,4-8) se afasta de Deus e do mundo e de si mesmo. Murmurando. De acordo com a murmuração de Elias, Deus não age como devia agir, o mundo está todo pervertido, de pernas para o ar, já não faz sentido continuar a viver. Porque Deus não age como ele quer, porque o mundo não é como ele quer, Elias, desgostoso e desanimado, corre para a morte, que ele vê como a única saída para a sua vida sem Deus e sem sentido. Tudo somado, Elias não é mesmo melhor do que os seus pais (1 Reis 19,4), os do tempo do Êxodo e da travessia do deserto, e, tal como eles, também murmura, falando mal de Deus, dos outros e do mundo.

8. Mas Deus, o verdadeiro Deus, não fala mal de Elias, mas ama Elias, e vai conduzi-lo ao caminho certo. Não deixa morrer Elias, e vai dar-lhe lições de vida verdadeira. Manda o seu anjo, que lhe toca (como toca em nós um anjo?), fala-lhe, alimenta-o, e abre-lhe um caminho imenso para uma nova nascente. Também não fala mal de nós, mas ama-nos.

9. Na linha do que bem faz hoje o Apóstolo Paulo para nós na Carta aos Efésios (4,30-5,2): «Nada de azedumes, irritação, cólera, insultos, maledicências, maldade» (Efésios 4,31). Em vez disso, bons (chrêstoí) uns para com os outros, misericordiosos, perdoadores (Efésios 4,32), «imitadores (mimêtês) de Deus, como filhos amados» (Efésios 5,1). Outra vez: Deus não fala mal de nós, mas ama-nos! E vistas as coisas do nosso lado: «o amor não faz mal ao próximo» (Romanos 13,10).

10. O Salmo 34 põe nos lábios dos pobres a bênção (berakah), que os une a Deus para sempre, e o louvor jubiloso e intenso (tehillah), que é a sua verdadeira razão de viver (vv. 2-3). O pobre enche o olhar de Deus e fica radiante, luminoso (v. 6), sabe que Deus o escuta e o salva, e convida a saborear a bondade de Deus (v. 9). Deus segue sempre o pobre de perto, cerca-o de amor (v. 8), protege até os seus ossos para não serem quebrados (v. 21), tal como é dito do cordeiro pascal, o mais alto símbolo de libertação. No seu Caminho de perfeição, Santa Teresa de Ávila deixa-nos, talvez, um dos mais belos e e incisivos discursos sobre a pobreza: «A pobreza é um bem que contém em si todos os bens do mundo; ela confere um império imenso, torna-nos verdadeiramente donos de todos os bens cá de baixo desde o momento em que os faz cair aos pés».

António Couto

 


SENHOR, DÁ-NOS SEMPRE DESSE PÃO!

Agosto 4, 2018

1. Continuamos, neste Domingo XVIII do Tempo Comum, a revisitar a página Evangélica de João 6, no caso de hoje, 6,24-35. Depois do episódio do CONDIVISÃO dos pães, Jesus afastou-se sozinho para o monte (João 6,15), e os seus discípulos entraram na Barca e atravessaram o Mar da Galileia, na direção de Cafarnaum (João 6,16-17). Em pleno Mar, foram apanhados pelo escuro, por um vento grande e pelo medo (João 6,17-20). Na verdade, iam sós, pois Jesus ainda não tinha vindo ter com eles. Mas vem, e com ele vem a calma e a serenidade, e logo encontram rumo seguro para terra (João 6,21). Definitivamente: os discípulos de Jesus não podem andar sozinhos, sem Jesus: quando o fazem, invade-os a noite, a tormenta, o medo.

2. Com o afastamento de Jesus para o monte, também a multidão ficou sozinha, mas leva mais tempo até se aperceber da sua solidão e da ausência de Jesus. O escuro não os preocupa. Passam a noite a dormir descansadamente. Só no dia seguinte se apercebem da falta de Jesus, da falta que Jesus lhes faz, e vão à procura d’Ele (João 6,22-24). Encontram-no, e manifestam a confusão neles instalada, perguntando: «Rabbî, quando vieste para aqui?» (João 6,25).

3. Sem contemplações e com palavras duríssimas, Jesus desvenda logo, de forma clara e solene, a sonolência e incompreensão que os habita: «Em verdade, em verdade, vos digo: “Vós procurais-me, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e enchestes a barriga como animais (chortázô)”» (João 6,26). A comparação é forte e de denso sabor profético. O verbo usado é chortázô, derivado de chórtos, que significa «erva seca», «feno», «palha», «feno». No dizer de Jesus, aquela multidão comeu como também os animais comem. E, no fim, deitam-se a dormir. Até ao dia seguinte. A comida dos animais também é dom de Deus, mas eles não se apercebem, nem agradecem. Do mesmo modo, a multidão come e dorme. Não vê nem lê «sinais». O alimento recebido não dá que pensar e que rezar. Não se apercebe que o alimento é dom de Deus, e que remete, portanto, para Deus.

4. E tão-pouco entendem que está ali o verdadeiro pão da vida (João 6,35). Não veem nem ouvem Jesus, e o sentido novo que traz para a vida das pessoas. Limitam-se a contar a história antiga do maná antigo que os seus pais comeram no deserto. Como quem diz (e nós repetimos muitas vezes o mesmo refrão viciado): «antigamente é que era!».

5. E esse maná antigo era, afinal, bem pouca coisa. Mas foi «visto» como sinal da providência de Deus em pleno deserto, como ensina a lição de hoje do Livro do Êxodo 16. Trata-se do maná chamado lecanora, que se encontra desde o Irão até ao Norte de África, portanto também no norte da Península sinaítica, que é granuloso e aguado, de dimensões bem reduzidas, minúsculas, do tamanho da semente do coentro [= cerca de 5 milímetros de diâmetro], de cor branca, e tem sabor a mel (Êxodo 16,31). Trata-se, na verdade, da secreção produzida pelo tamarisco, chamado tamarix gallica ou tamarix-mannifera, após a picada de um inseto, o coccus manniparus, ou de dois, a trabutina-mannipara e o naiacoccus serpentinus.

6. Afinal, é bem pouca coisa o maná. Tal como os cinco pães e os dois peixinhos. Mas, quando se vê como um dom de Deus, essa pouca coisa é tanto! Eis como admiravelmente escreve o Livro da Sabedoria, quando fala do maná: «nutriste o teu povo com um alimento de anjos, DESTE-lhe o PÃO do CÉU, com mil sabores: ele manifestava a tua DOÇURA (glykýtês, glicose). Assim os teus FILHOS QUERIDOS aprenderam, Senhor, que NÃO É A PRODUÇÃO DE FRUTOS que alimenta os homens, mas a tua Palavra que a todos sustenta» (Sabedoria 16,20-21.26). Aí está, claro, claríssimo, o indicador correto da compreensão da chamada «multiplicação» dos pães por Jesus. Não, Jesus não faz o papel de um qualquer produtor ou empresário que faz uma operação de multiplicação de bens, para satisfazer os desejos das pessoas, em termos de consumo e de mercado. Ele distribui, reparte, partilha a Palavra de Deus, fazendo nascer desta operação um mundo novo. O povo, que guarda sempre uma inteligência grata e penetrante, diz bem que «o pouco com Deus é muito; o muito sem Deus é nada!». Admirável sabedoria e sintonia com Jesus.

7. Jesus é a Palavra Viva, o Pão da Vida, que, no meio de nós, manifesta a Doçura ou a Glicose de Deus. É sempre tendo este Jesus como referência e fonte de vida nova, que devemos abandonar a antiga vida oca e vã (mátaios), a inteligência obscurecida (skótos), a alienação (apallotrióô) e a ignorância (agnôsía) de Deus, o coração endurecido (pôrôsis), que geram insensibilidade, dissolução, impureza e avidez, e, em Jesus, renovar a nossa inteligência, compreensão e sentido da vida, revestindo-nos (endýô) de hábitos novos, que não se vendem ou compram no pronto-a-vestir (Efésios 4,17-24).

8. Sim, Ele está no meio de nós, mas não é nosso. Não é um sistema de produção ou de abastecimento. Ele é o Amor, a Alegria, Ele é o Céu e o Pão descido do Céu à nossa terra, para nos fazer viver felizes e elevar à sua condição de Filho, filhos no Filho. Está no meio de nós, mas não o podemos reter ou possuir. Ensina-nos bem Abraham Joshua Heschel que um dom é como um vaso cheio de afeto, que se quebra logo que o recebedor o comece a considerar como seu. Senhor Jesus, dá-nos sempre desse pão!

9. O Salmo 78 ensina-nos que a Bíblia é a longa história de uma salvação sempre oferecida, acolhida e, por vezes, rejeitada. Lembra-nos que as maravilhas de Deus não são para guardar no cofre da família, mas para passar, de mão em mão, de coração a coração, de pais para filhos, de geração a geração. A catequese é o anúncio de um acontecimento em carne viva que nos deve comprometer, e não de uma série de frias, enlatadas ou requentadas teses teológicas.

António Couto