DÁ-NOS, SENHOR, O TEU SOPRO CRIADOR

Março 30, 2010
As flores dos nossos jardins são belas,
mas secam e fenecem.
 
Os nossos sonhos crescem,
esvaziam,
quebram
sob um véu de luto.
 
Mas as árvores que florescem
Anunciam
que ainda vão dar fruto.
 
Toma em tuas mãos, Senhor,                                                   
a nossa terra ardida.
Beija-a.
Sopra nela outra vez o teu alento,
a tua aragem,
e veremos nela outra vez impressa a tua imagem.
 
António Couto

INTIMIDADE E TRAIÇÃO

Março 26, 2010

 

1. Baptizado com o Espírito Santo no Jordão, confirmado com o Espírito Santo no Tabor, Jesus realizou a sua missão filial baptismal anunciando o Evangelho do Reino de Deus e fazendo as suas «obras». A sua «viagem» chega agora ao fim, na Judeia, em Jerusalém, onde o seu Baptismo deve (plano divino) ser consumado (ainda Lc 12,49-50) na sua Morte Gloriosa: única Fonte do Espírito Santo para nós (sempre Act 2,32-33; Jo 19,30 e 34; 7,38-39). A missão filial baptismal do Filho de Deus finalmente consumada! É que fomos, de facto, baptizados na sua Morte (Rm 6,3-4), e, com Ele, fomos «com-sepultados», «com-ressuscitadoss», «com-vivificados» e «com-sentados» na Glória! (Ef 2,5-6; Cl 2,12-13: tudo verbos cunhados por Paulo e postos em aoristo (passado) histórico!). Formamos, por isso, «a Igreja que Ele amou» (Ef 2,25). A este amor de Cristo pela Igreja chama Paulo «o mistério grande» (Ef 5,32). Nós, a Igreja do amor de Cristo, somos, portanto, a Esposa bela, a nova Jerusalém (Ap 19,7-9; 21,2 e 9-10) que, juntamente com o Espírito, diz ao Senhor Jesus: Vem! (Ap 22,17).

 2. É esta Igreja bela, porque incondicionalmente amada, que acolhe hoje, Domingo de Ramos na Paixão do Senhor, com o coração em festa, o seu Senhor (Lucas 19,28-40), gritando jubilosamente: «Bendito o que vem em nome do senhor!»

 3. Acolhe-o jubilosamente, para depois discipularmente o seguir nos seus passos decisivos, de que aqui salientamos apenas alguns momentos. A partir do cenário apresentado no ponto 5., todos os dados são exclusivos do Evangelho de Lucas.

 4. O cenário da Ceia Primeira (não última) mostra, caso único, Jesus na intimidade da mesa com os seus discípulos (Lucas 22,14-38). E é neste cenário de intimidade que o texto nos faz ver melhor as nossas traições: o anúncio da traição de Judas (Lucas 22,21-23, da tripla negação de Pedro (Lucas 22,31-34), a discussão sobre qual de nós é o maior (Lc 22,24-27).

 5. O cenário do Monte das Oliveiras (Lucas 22,39-46) abre e fecha com o importante dizer de Jesus que devemos conservar no coração: «ORAI para que não entreis na tentação» (Lucas 22,39 e 46). No meio do cenário, entre estas duas importantes advertências de Jesus, o texto diz que Jesus ORAVA de joelhos (Lucas 22,41) e que depois ORAVA com mais insistência ainda (Lucas 22,44). Em contraponto, os discípulos dormiam! (Lucas 22,45).

 6. O cenário seguinte mostra-nos a Prisão e o Processo de Jesus (Lucas 22,47-23,25), em que apenas salientamos dois momentos: Judas, que entrega Jesus com um beijo (Lucas 22,47), ouvindo de Jesus estas palavras que ainda hoje ecoam nos nossos ouvidos: «Judas, com um beijo entregas o Filho do Homem?» (Lucas 22,48). É outra vez a traição na intimidade! O segundo momento  é aquele olhar fixo de Jesus em Pedro, que o faz sair dali para chorar amargamente (Lucas 22,60-62).

 7. O caminho do Calvário é o cenário que aparece de seguida (Lucas 23,26-32). Vale a pena destacar dois momentos: o primeiro é para Simão de Cirene, que carrega a cruz «atrás de» Jesus (Lucas 23,26): com a sua cruz, «atrás de» Jesus, é a atitude do discípulo! (ver Lucas 9,23). O segundo é para as mulheres que choram. Merecem que Jesus olhe para elas e fale para elas: «Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai por vós e pelos vossos filhos!» (Lucas 23,27-28).

 8. Segue-se o cenário da Cruz (Lucas 23,33-49). Três notas: primeira: Lucas coloca ao lado de Jesus dois malfeitores. Mas um deles (o chamado «bom ladrão»: só em Lucas!) reconhece o seu erro, e olha para Jesus implorando graça: «Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino» (Lucas 23,42). Jesus responde assim: «Hoje estarás COMIGO no Paraíso» (Lucas 23,43). Evoca, em contraluz, o COMIGO de Jesus com os seus discípulos, e o Reino para eles preparado! (Lucas 22,28-29). Segunda: a oração do Salmo 31,6, posta na boca de Jesus como sua última palavra, oração exclusiva deste Evangelho: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lucas 23,46). Confiança radical sempre. Terceira: a importante anotação de que os seus amigos e as mulheres que o SEGUIAM desde a Galileia permaneciam à distância, VENDO BEM todas estas coisas (Lucas 23,49). Atitude discipular. Como Maria, no início do Evangelho, que conservava e meditava todos aqueles factos no seu coração (Lucas 2,19 e 51). Mas também o povo estava lá olhando a Cruz (Lucas 23,35) e meditando os acontecimentos da Cruz e batendo no peito (Lucas 23,48).

 9. O cenário do sepultamento de Jesus (Lucas 23,50-56). Salta à vista que Jesus é depositado num sepulcro novo, onde ainda ninguém tinha sido sepultado (Lucas 23,53). Mostra-se assim que Jesus é o Rei Messiânico esperado: o Rei é o primeiro em tudo. E continua na primeira linha o OLHAR ATENTO das mulheres (Lucas 23,55) e os perfumes que preparam (Lucas 23,56)  e que abrem já para a página nova da Ressurreição. Primeiro em tudo! Primogénito de muitos irmãos! (Romanos 8,29).

 António Couto


EVANGELIZAÇÃO NUCLEAR

Março 23, 2010

 

1. Afirmou e deixou escrito D. Francesco Lambiasi, bispo de Rimini: «Os leigos são a energia nuclear do cristianismo. A energia atómica obtém-se pela fissura de um átomo bombardeado por um neutrão: é assim que o átomo se divide em dois. Por sua vez, as duas partículas subdividem-se, e, de duas, formam-se quatro, e assim se vão multiplicando de forma exponencial. Um leigo que acredita e que não se envergonha do Evangelho contagiará inevitavelmente outro; e estes dois contagiarão outros dois. É assim que se difunde o Evangelho». E explica esta firme aposta nos leigos: «Na condição secular do nosso tempo, não haverá profecia se não voltar a ser profética a vida do cristão comum. Porque a sociedade secular desconfia das Igrejas e já não compreende a sua linguagem» (in CONGREGAÇÃO PARA OS BISPOS, Duc in Altum. Pellegrinaggio alla Tomba di San  Pietro, Città del Vaticano, Editrice Vaticana, 2008, p. 275).

 2. E continua: «Não podemos dispensar o testemunho dos leigos. Porque a missão não é propaganda e o testemunho não é dar nas vistas, mas fazer mistério. É viver uma vida verdadeira, plena, bela, de tal modo bela, que não é possível explicá-la se Cristo não tivesse sido morto e não tivesse verdadeiramente ressuscitado».

 3. De resto, esta metodologia personalizada e dedicada já tinha sido salientada por Paulo VI, em 1975, quando perguntava: «Haverá outra forma de transmitir o Evangelho do que comunicar a outrem a sua própria experiência de fé?» (Evangelii Nuntiandi, 46).

 4. Porém, para redigir a a Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, Paulo VI teve de recorrer por mais de cem vezes às Cartas de S. Paulo, a quem chama «modelo de cada evangelizador», salientando a sua afeição, não de simples pedagogo, mas de pai e, mais ainda, de mãe, como podemos ver no testemunho da Primeira Carta aos Tessalonicennses 2,7-12 (Evangelii Nuntiandi, 79).

 5. Salta à vista que a comunicação apaixonada e o testemunho pessoal permanecem, também nesta sociedade global dos multimédia, a linguagem basilar e mais eficaz da evangelização.

 António Couto


É SEMPRE TÃO NOVO TUDO O QUE DEUS FAZ!

Março 19, 2010

 

1. A «caminhada« quaresmal aproxima-se da sua meta e do seu verdadeiro ponto de partida: a Cruz Gloriosa onde resplandece para sempre o Rosto do imenso, indizível amor de Deus. Nesta altura do percurso (supõe-se que encetámos uma subida espiritual: entenda-se no Espírito Santo e com o Espírito Santo), baptizados e catecúmenos devem estar já a ser Iluminados por essa luz, a ponto de se desfazerem das «obras das trevas» e de abraçarem as «obras da Luz», como verdadeiros discípulos que seguem o Mestre até ao fim, que é também o princípio, a Fonte da Vida verdadeira donde jorra o Espírito Santo (sempre Act 2,32-33; Jo 19,30 e 34; 7,37-39). Os catecúmenos têm neste Domingo V da Quaresma os seus terceiros «escrutínios»: última «chamada» para a Liberdade antes da Noite Pascal Baptismal.

 2. É desmedido quanto vem de Deus. Brota do excesso de Deus, que supera em muito as nossas necessidades. Aí está, neste Domingo, a imensa lição do Evangelho de João 8,1-11. Jesus SENTA-SE como MESTRE, para ensinar, e SENTADO como MESTRE permanece na cena até ao fim. Apenas se inclina para o chão e se endireita. Portanto, permanecendo SENTADO, está sempre a ensinar. São uma lição os seus gestos; são uma lição as suas palavras.

 3. Entram na cena os «impecáveis» do costume: os escribas e os fariseus. Desta vez não vêm sós. Trazem uma mulher apanhada em flagrante adultério. Eles conhecem a Lei de Moisés, que citam a propósito, para dizer que tais mulheres devem ser apedrejadas. Mas, roídos de malícia, querem saber o que, sobre o assunto, tem a dizer o MESTRE Jesus. Só isto: permanecendo SENTADO como MESTRE, inclinou-se, e, COM O DEDO, escrevia no chão. Os escribas e fariseus tinham compreendido mal a Lei, citando só metade, pois a Lei diz que, em caso de adultério, morrerão os dois: o homem e a mulher (Levítico 20,10; Deuteronómio 22,22). Tão-pouco estavam a compreender a resposta do MESTRE Jesus ao parecer jurídico que lhe pediram. E era clara a lição: na verdade, há apenas outra circunstância na Escritura Santa em que alguém escreve COM O DEDO: as tábuas de pedra escritas pelo DEDO DE DEUS no Sinai (Êxodo 31,18; Deuteronómio 9,10). Claramente: o MESTRE que escrevia COM O DEDO era Deus! Conhecia a Lei e conhecia os homens por dentro (João 2,24-25). Permanecendo SENTADO, endireitou-se e disse-lhes: «Aquele que estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra!». Inclinou-se outra vez e continuava a escrever. Saíram todos, a começar pelos mais velhos. Acusaram a mulher, mas sentiram-se acusados, desvendados no seu pecado! A mulher era um objecto de que falavam. Nunca falaram para ela. É o MESTRE Jesus o primeiro na cena que fala para a mulher, colocando-a no caminho novo da liberdade: «Vai e não tornes a pecar».

 4. O anónimo profeta do exílio, o chamado «Segundo Isaías» (Isaías 40-55) põe hoje Deus a interpelar-nos assim directamente, como Jesus no Evangelho: «Eis que vou fazer uma coisa nova! Ela já desponta: não a compreendeis?» A nós compete entender a obra sempre nova e surpreendente de Deus, que ultrapassa sempre o nosso número de coração e de compreensão! Pode o deserto florir, encher-se de água, e o mar de caminhos. Pode a semente germinar antes do tempo, e a espiga amadurar antes do campo!

 5. Paulo pode bem ser hoje o modelo a seguir (Filipenses 3,8-14): esquecendo o que fica para trás, atira-se todo para a frente, para Cristo.

 

Quando Jesus irrompe na vida de alguém,

interrompe a normalidade de um percurso,

e rompe essa vida em duas partes desiguais:

uma que fica para trás,

outra que se abre agora à nossa frente,

recta como uma seta directa a uma meta,

a um alvo, um objectivo intenso e claro,

tão intenso e claro que na vida de cada um

só pode haver um!

 

António Couto


ENTRAS OU NÃO NA CASA DA ALEGRIA?

Março 12, 2010

 

1. Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que dá a Vida verdadeira, baptizados e catecúmenos continuam a sua «caminhada» quaresmal: MEMÓRIA do baptismo [= execução do programa filial baptismal] para os baptizados, PREPARAÇÃO para o baptismo por parte dos catecúmenos (Sacrosanctum Concilium, 109), que têm neste Domingo IV da Quaresma os seus segundos «escrutínios»: segunda «chamada» para a Liberdade.

 2. O Evangelho (Lc 15,1-32) é uma janela sublime e sempre aberta com vista directa para o coração de Deus, exposto, contado por Jesus. Mas antes de Jesus começar a contar Deus, o narrador prepara cuidadosamente o cenário, dizendo-nos que os PUBLICANOS e PECADORES se aproximavam de Jesus para o escutar, em claro contraponto com os ESCRIBAS e FARISEUS que estavam lá, não para o escutar, mas para criticar o facto de Jesus acolher e comer com os pecadores. Eles achavam que os pecadores eram merecedores de castigo severo e não de misericórdia, pois eram amplamente devedores a Deus, e não credores como os fariseus pensavam que eram.

 3. É por isso que Jesus lhes conta «ESTA PARÁBOLA» (15,3). Sim, o texto diz expressamente «ESTA PARÁBOLA», o que quer dizer que tudo o que Jesus vai contar até ao final do Capítulo é uma só parábola, e não três como vulgarmente se pensa e diz. A parábola é contada para os escribas e fariseus, e é desse lado do auditório que nós nos devemos colocar.

 4. O primeiro quadro mostra-nos a OVELHA PERDIDA lá longe e por amor PROCURADA e ENCONTRADA, e que dá azo à ALEGRIA condividida com os amigos e vizinhos. E Jesus conclui que é assim no céu sempre que um PECADOR se converte. Ao fundo da cena estão noventa e nove JUSTOS que não precisam de conversão. Era o que pensavam os fariseus e nós também!

 5. O segundo quadro mostra-nos a DRACMA PERDIDA em casa e cuidadosamente PROCURADA e ENCONTRADA, e que também dá azo à ALEGRIA condividida com as amigas e vizinhas. E também aqui Jesus conclui que é assim no céu sempre que um PECADOR se converte. Neste segundo quadro não se faz menção dos noventa e nove JUSTOS ao fundo da cena, que não precisam de conversão. Ora bem, quando na Bíblia dois retratos parecem iguais, a chave de compreensão está naquilo que neles é diferente. São, portanto, os noventa e nove JUSTOS, que somos nós, que estamos em causa!

 6. O terceiro quadro mostra-nos um PAI maravilhoso com dois filhos que parecem diferentes. Ora bem, quando na Bíblia dois retratos parecem diferentes, a chave de compreensão reside naquilo em que são iguais.

 7. Vejamos então: o filho mais novo faz ao seu PAI um estranho pedido: pede a parte da herança que lhe toca. Note-se bem que se trata de um pedido fatal. O PAI dá o pão todos os dias, dá roupa nova pelas festas, mas há uma coisa que só dá uma vez na vida, e em circunstâncias fatais, de morte próxima: a herança! Ao pedir a herança, este filho como que mata o PAI e morre como filho. Em boa verdade, ele não quer mais ter PAI e não quer mais ser filho. Por isso, junta tudo, parte para longe e gasta tudo. Desce abaixo de porco, pois nem o que os porcos comem lhe é permitido comer. Decide então voltar para casa, e prepara um discurso com três pontos: 1) PAI, pequei contra o céu e contra ti; 2) não sou digno de ser chamado teu filho; 3) trata-me como um dos teus assalariados. Vê-se bem que não quer voltar mais a ser filho. Também não quer mais ter PAI. Quer ser um assalariado. Quer ter um patrão.

 8. Voltou. O PAI viu-o ao longe, as suas entranhas moveram-se de compaixão, correu ao encontro do filho, abraçou-o e beijou-o. Note-se bem que a iniciativa é do PAI. O filho começa a debitar o discurso preparado em três pontos. Diz o primeiro. Diz o segundo. Não diz o terceiro, que era outra vez fatal, não porque o não quisesse dizer, mas porque o PAI o interrompe, dizendo para os criados: Depressa! Trazei o «primeiro vestido» e vesti-lho! Entenda-se que o «primeiro vestido» é o vestido de antes, o de filho! Manda matar o vitelo gordo e prepara-se para fazer em casa um FESTA de arromba. Note-se que, tal como Jesus, este PAI acaba de acolher um PECADOR e prepara-se para COMER com ele. Há ALEGRIA no céu.

 9. O filho mais velho estava no campo. Era, portanto, um dia de semana, de trabalho. Este PAI não escolhe fins-de-semana para fazer FESTA! E FESTA excessiva. Mandou matar o vitelo gordo! Trouxe uma orquestra musical para animar a FESTA! O filho mais velho, ao aproximar-se de casa, ouviu música e danças. Esta «música» diz-se em grego symphônía. Ora, symphônía é uma orquestra.

 10. O PAI sai ao encontro do filho mais velho, para o instar a entrar para a FESTA, tal como o pastor que encontra a ovelha perdida e a mulher que encontra a dracma perdida convidaram os amigos e os vizinhos para a ALEGRIA. Mas este filho mais velho acusou o PAI de acolher um pecador e de se preparar para comer com ele. Exactamente o que faziam os ESCRIBAS e FARISEUS, que criticavam Jesus por acolher os pecadores e comer com eles. Este filho mostra-se, portanto, um puro FARISEU, que sempre cumpriu as ordens do PAI (patrão), achando-se credor e não devedor!

 11. Quando duas figuras parecem diferentes, é naquilo em que se assemelham que reside a chave de compreensão. O que assemelha estes dois filhos é que ambos se sentem assalariados (e não filhos) e ambos olham para o PAI como para um patrão.

 12. Todavia, o filho mais novo deixou-se mover pela compaixão do PAI. Estava MORTO e VOLTOU a VIVER, estava PERDIDO e FOI ENCONTRADO! Tal como a ovelha PERDIDA e ENCONTRADA, como a dracma PERDIDA e ENCONTRADA.

 13. Afinal «ESTA PARÁBOLA» em três quadros foi contada por Jesus aos ESCRIBAS e FARISEUS, ao FILHO MAIS VELHO, a NÓS. Mas ficamos sem saber, no final, se o FILHO MAIS VELHO entrou ou não entrou em casa, para a FESTA. O narrador não o diz, porque essa decisão de entrar ou não, somos NÓS que a temos de tomar. Afinal foi para NÓS, TU e EU, ecolocados, na estratégia narrativa, do lado dos ESCRIBAS e FARISEUS e do FILHO MAIS VELHO (única posição correcta para sermos interpelados pela parábola), que Jesus contou a parábola.

 António Couto


CHAMA QUE CHAMA E AMA

Março 5, 2010

 

1. No programa de «preparação» para a Noite Pascal Baptismal, início e meta da vida cristã, o Domingo III da Quaresma está marcado pelos primeiros «escrutínios» para os catecúmenos: primeira «chamada» para a Liberdade.

 2. No Evangelho deste Domingo III da Quaresma (Lucas 13,1-9), Jesus atira tudo contra o nosso coração empedernido: atira a crónica e a parábola. Tudo serve para gravar em nós a conversão. A crónica refere a brutalidade de Pilatos que massacrou um grupo de Galileus e a queda da torre de Siloé que matou 18 pessoas. Pois bem, Jesus não se insurge contra o poder romano nem invoca o fatalismo, mas também não desperta sentimentalismos fáceis e de ocasião, nem tão-pouco se refugia em esquemas feitos: pecaram e por isso foram castigados. Jesus não fica a olhar para trás. Vira a inteira crónica para nós e diz que, face à precariedade da vida, só nos resta converter-nos! Lição oportuna para nós que temos ainda os olhos presos à crónica do Haiti, da Madeira, do Chile. Da crónica, Jesus retira sabiamente a conversão, grande tema quaresmal, que nos acompanha desde Quarta-Feira de Cinzas.

 3. Depois pega na parábola da figueira, talvez com muitas folhas, mas sem figos. E põe em cena aquele belo acerto entre o dono do pomar (o Pai) e o cultivador (Jesus, o Filho). Os «três anos» apontam para o ministério de Jesus. Aqueles «três anos» de cuidados parece que não foram suficientes para levar aquela figueira, que somos nós, a dar frutos. É-nos dado «ainda mais um ano» para frutificar. É outra vez vez um fortíssimo apelo à conversão.

 4. Extraordinária a história de Moisés (Êxodo 3,1-8 e 13-15). Moisés é pastor e tem um caminho a seguir: o caminho das suas ovelhas. Mas vê uma Visão grande e nova: uma sarça que arde, mas não se consome. E diz o texto, na versão original, que, para ver melhor, Moisés se «desviou do caminho». Moisés age como uma criança curiosa e deslumbrada! Mas as crianças são louvadas no Evangelho! E Deus, que habitava naquela «chama que chama», contou-se a Moisés: 1) Eu BEM VI o sofrimento do meu povo; 2) e OUVI seus clamores; 3) CONHEÇO a situação; 4) DESCI a fim de o libertar e conduzir para a terra da liberdade. Está aqui, nestes quatro VERBOS, a história de Deus, a santidade de Deus, que SAI DE SI para vir ao nosso encontro. Note-se bem que contando-se nestes verbos, Deus se afasta dos ídolos, que a Escritura Santa diz que não vêem, nem ouvem… E um pouco depois, ao dizer o seu NOME, Deus diz-se outra vez, não com um nome estático, mas com um verbo na forma activa: «Eu Sou». Outra vez diferente dos ídolos inúteis, vazios e inactivos.

 5. A reflexão que Paulo nos oferece neste Domingo III da Quaresma é exemplar e encaixa perfeitamente com o Evangelho. No deserto, o Povo conduzido por Deus e por Moisés foi rodeado de tantas provas de carinho e da presença amorosa de Deus. Todavia, pecaram, entorpeceram os corações, puseram em causa a presença de Deus… Conclusão: caíram mortos no deserto! E Paulo escreve, por duas vezes neste texto, para nossa advertência: «Estas coisas aconteceram para nos servir de exemplo» (1 Coríntios 10,6 e 11), acrescentando logo: «E foram escritas para nossa instrução». (1 Coríntios 10,11).

 António Couto


O SONO QUE DEUS DEU A ABRAÃO, PEDRO, TIAGO E JOÃO

Março 2, 2010

 

1. «Convertei-vos e acreditai no Evangelho!» é um dizer fortíssimo, que, nesta formulação, aparece uma única vez em toda a Escritura Santa (Marcos 1,15). É o dizer que acompanha o rito das cinzas que serenamente depositamos na cabeça em dia de Quarta-Feira de Cinzas, entregando a nossa terra ardida e seca às mãos carinhosas e ao sopro criador de Deus.

 2. Só assim, pelas mãos de Deus acariciada, pelo seu alento bafejada, poderá dar fruto a nossa terra enrugada, a nossa terra de luto (Salmo 85,13). Deus também dá sono e faz sonhar! Há, nas páginas da Escritura Santa, um sono dado por Deus ao homem, um sono que não dormimos porque temos sono, mas um sono milagroso, que só Deus pode e sabe fazer dormir ao homem. A Escritura Santa chama a este sono tardemah. É o sono/sonho de Deus. É o sono que, por amor, Deus deu a Abraão (Génesis 15,12) e a Pedro, Tiago e João (Lucas 9,32), para só citar dois grandes textos lidos no passado Domingo, o II da Quaresma. Deus dá um sono e um sonho. Transfiguração. Transfigura a nossa desfiguração, e, por amor, a si nos configura. Configuração.

 3. Toda a figura está aberta à sua realização. Mas a realização não sucede à figura: enche-a! Cristo não aparece depois do Antigo Testamento: está no meio dele: enche-o!

 4. Vejam-se a esta Luz as vidas caídas nos cenários do Haiti, da Madeira, do Chile. Veja-se Deus a afagar a nossa terra ardida e seca e enlutada. Veja-se Deus a dar um sono/sonho imenso e intenso aos seus filhos queridos, desfigurados. Veja-se Deus em acção boa de Transfiguração, Configuração.

 5. As flores dos nossos jardins são belas,/ mas secam e fenecem.// Os nossos sonhos crescem,/ esvaziam,/ quebram/ sob um véu de luto.// Mas as árvores que florescem/ anunciam/ que ainda vão dar fruto.// Toma em tuas mãos, Senhor,/ a nossa terra ardida./ Beija-a./ Sopra-lhe outra vez o teu alento,/ a tua aragem,/ e veremos nela outra vez impressa a tua imagem.

 António Couto