ASSEMBLEIA HOJE POR GRAÇA REUNIDA

Janeiro 26, 2013

 

1. S. Lucas é o Evangelista do corrente Ano Litúrgico. E embora já tenha sido proclamado e já tenhamos escutado diversos episódios do Evangelho de S. Lucas nos quatro Domingos do Advento, Natal (1.ª e 2.ª missas), Festa da Sagrada Família, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, e Festa do Baptismo do Senhor, é só agora que vamos começar a proclamá-lo e a escutá-lo em leitura contínua. Importa, por isso, inserir neste momento um esquema deste Evangelho, para podermos compreender melhor o ritmo da sua leitura:

 1,1-4 = Prólogo histórico (A)
         1,5-2,52 = Ev da Infância (B)
                     3,1-9,50 = Ministério na Galileia (C)
                                 9,51-19,27 = Partida/subida para Jerusalém (D)
                     19,28-21,36 = Ministério em Jerusalém (C’)
         22,1-23,56 = Paixão – Morte – Sepultura (B’)
24,1-53 = Epílogo: Ressurreição – Aparições – Promessa do Espírito (A’)

 2. O Evangelho deste Domingo III faz a acostagem do «prólogo» (1,1-4) ao «discurso programático» de Jesus na sinagoga de Nazaré (4,14-21), saltando a pregação e prisão de João Baptista (3,1-20), o Baptismo de Jesus e genealogia (3,21-38), e a sua tentação no deserto, de que sai vitorioso (4,1-13).

 3. O prólogo (Lucas 1,1-4) é importante para se compreender a solidez de todo o Evangelho. Lucas, da segunda geração cristã, não fez obra por conta própria. Faz questão de dizer que escreveu de forma ordenada e com acribia e controlando desde o começo os factos (prágmata) de Jesus, aqueles que foram cumpridos (passivo divino!) entre nós, e que já foram recebidos com carinho mão na mão (epicheiréô) e postos em narração (diêgêsis) por muitos, conforme nos foram transmitidos (paradídômi) por aqueles que foram testemunhas oculares (autóptai) desde o princípio (ap’ archês). Factos de Jesus, testemunhas oculares, transmissão-recepção mão na mão, narração, controlo desde as fontes. Lucas escreve para que o seu Leitor tenha um conhecimento pofundo e pessoal (epiginôskô) dos factos de Jesus, sobre os quais se faz a instrução da catequese (katêchéô), que forma a nossa consciência cristã.

 4. O episódio de Nazaré (4,14-21) é importante. Antes de mais é dito que Jesus procede na força (dýnamis) do Espírito, inciso próprio de Lucas, que salienta a plena identificação somática de Jesus com o Espírito. Já antes, desde o Baptismo, Jesus é dito plêrês [= cheio] do Espírito (4,1), e plêrês indica, não a passividade de quem está cheio, mas a condição natural, activa, de quem possui a plenitude do Espírito Santo. Sempre na força do Espírito, entrou em dia de sábado na sinagoga, e LEVANTOU-SE (anístêmi) para fazer a leitura litúrgica (anaginôskô) (Lucas 4,16).

 5. Em João 7,15, ao verem Jesus a ensinar no Templo, os judeus ficam admirados e interrogam-se: «Como é que ele entende de letras sem ter estudado?». Lucas 4,16 informa-nos que sabia pelo menos ler! Jesus lê um texto composto de Isaías 61,1-3; 58,1-11; 35,1-3, mas Lucas compendia-o na citação de Is 61,1-2.

 6. Os conteúdos são decisivos, e Jesus aplica-os soberanamente a si mesmo, com a consciência de ser o Realizador da Promessa antiga: o Espírito do Senhor sobre mim porque me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me e eis-me a anunciar (kêrýssô) aos prisioneiros a «remissão» (áphesis) [= amnistia], aos cegos o retorno da vista, a restituir aos oprimidos a liberdade, a anunciar (kêrýssô) o ano da graça [= jubileu] do Senhor (Lucas 4,18-19). Trata-se de funções reais, sacerdotais e proféticas. Actos 10,38 confirmará que Jesus, ungido com o Espírito, passou cumprindo todas estas funções.

 7. Terminada a leitura, Jesus SENTOU-SE para ensinar, para fazer a tradicional homilia (Lucas 4,20a). E o narrador informa-nos, de maneira admirável, que «Os olhos de todos estavam fixos nele!» (Lucas 4,20b), apontando já para o grande ensinamento da Cruz, quando Jesus diz: «Quando Eu for levantado da terra, atrairei todos a mim» (João 12,32), anotando depois o narrador: «Olharão para Aquele que transpassaram» (João 19,37). Em Nazaré, Jesus começou assim a sua homilia: «Hoje foi cumprida (passivo divino!) esta Escritura nos vossos ouvidos» (Lucas 4,21).

 8. O texto, muito denso, bem diferente das débeis versões oficiais, salienta a força da Palavra de Deus quando é objecto de escuta qualificada. Este «Hoje» (sêmeron), que Lucas usa por oito vezes no seu Evangelho (2,11; 4,21; 5,26; 19,5; 19,9; 22,34; 22,61; 23,53), tornou-se clássico nas homilias dos Padres gregos. Neste seu primeiro ensinamento, Jesus como que não diz nada de novo! Na sua boca estão só palavras antigas! Excelente maneira de Jesus se apresentar como «Filho da Escritura», Leitor e conhecedor da Escritura: lê os Profetas (Isaías) e aponta para a Lei (Deuteronómio), o Livro do «Hoje» (70 vezes) e do «Escuta, Israel!».

 9. Em perfeita consonância com o Evangelho (Assembleia reunida, Leitura da Palavra, olhos fixos), aí está o belo texto de Neemias 8,2-10. Grande texto do tardio pós-exílio que mostra a Assembleia, composta por homens, mulheres e crianças desde a idade da razão, reunida, de pé, no 1.º Dia do Ano (Dia de Ano Novo), para escutar com atenção e compreender até às lágrimas a Palavra do Senhor. Esdras, o sacerdote, está também de pé num estrado de madeira feito de propósito, e todos levantam os olhos para ele. A liturgia começa, como é usual, com a «bênção sacerdotal» (Números 6,23-26), a que o povo responde «Amen» com as mãos levantadas, gesto fundamental que indica plena compreensão e total adesão.

 10. O Novo Testamento mostrará o novo Sacerdote, que é Cristo, no novo estrado de madeira, que é a Cruz, novo Livro da Escritura de Deus, onde S. Paulo lê para nós: «Jesus Cristo exposto por escrito (proegráphê), crucificado (estaurôménos» (Gálatas 3,1), que atrai, como já atrás referimos, os olhos de todos (João 19,37).

 11. Acabados de sair, mas sempre dentro, do Oitavário de Oração pela Unidade dos Cristãos, são oportuníssimas as palavras que o Apóstolo Paulo, Apóstolo da Unidade, dirige aos cristãos de Corinto (1 Coríntios 12,12-30) e a nós também. Diz ele que as nossas diferenças não são uma praga, mas uma graça para partilhar com alegria em vista da utilidade comum. Não nos podemos, portanto, habituar à separação! Temos de compreender o escândalo que constitui a separação (também das Igrejas Cristãs): qual de nós aceitaria de bom grado que o seu próprio corpo fosse amputado? Então como podemos aceitar que o seja o Corpo de Cristo?

 12. Neste Domingo, é a Assembleia unida porque reunida pela Palavra, que está no centro das atenções: é a Assembleia de Nazaré, é a Assembleia que nos mostra o Livro de Neemias, é também a nossa Assembleia Dominical, que Hoje se reúne à volta do Senhor Ressuscitado, nossa Alegria e nossa Esperança. «Não abandonemos, então, a nossa Assembleia, como alguns costumam fazer», oportuníssima exortação da Carta aos Hebreus (10,25).

 13. Refere, a propósito, um antigo conto judaico: «Vira e revira a Palavra de Deus, porque nela está tudo. Contempla-a, envelhece e consome-te nela. Não te afastes dela, porque não há coisa melhor do que ela».

António Couto


OS SEGREDOS DAS BODAS DE CANÁ

Janeiro 19, 2013

 

1. A Igreja Una e Santa é hoje de novo convidada e, por isso, se reúne (é reunida) num banquete de espanto e de alegria, para saborear o Vinho Bom (kalós) e Último, cuidadosamente guardado até Agora (héôs árti), mas Agora oferecido pelo Esposo verdadeiro, que é Jesus (João 2,1-11). O segredo deste vinho Bom e Último é conhecido dos que servem (diákonoi) (João 2,9b), mas o chefe-de-mesa (architríklinos) «não sabia ‘DE ONDE’ (póthen) era» (João 2,9a).

 2. E, na verdade, aquele saber ou não ‘DE ONDE’ (póthen) era, aqui anotado pelo narrador, é a questão fundamental que atravessa o IV Evangelho, e aponta permanentemente para Deus. Provocação para uma sociedade indiferente, com saber, mas sem sabor, sem frio e sem calor, morna, à deriva, sem calafrios e sem Deus. E, todavia, já Nietzsche o dizia: «Ao homem que te pede lume para acender o cigarro,/ se o deixares falar,/ dez minutos depois pedir-te-á Deus». Entremos, pois, por esta auto-estrada repleta de sinalizações para Deus, pois ela vem de Deus, e por ela vem Deus, por amor, ao encontro dos seus filhos.

 3. Em João 1,48, é Natanael que, atónito, pergunta a Jesus «‘DE ONDE’ (póthen) me conheces?». Em João 2,9, é o narrador que nos informa que o chefe-de-mesa «não sabia ‘DE ONDE’ (póthen) era» a água feita vinho. Em João 3,8, é Nicodemos que não sabe, acerca do Espírito, «‘DE ONDE’ (póthen) vem nem para onde vai». Em João 4,11, é a mulher da Samaria que não sabe ‘DE ONDE’ (póthen) tira Jesus a água viva. Em João 6,5-7, é Filipe que chumba no teste que lhe faz Jesus, ao confessor que não sabe ‘ONDE’ (póthen) ir comprar pão para dar de comer a umas trinta mil pessoas. Em João 7,27, as autoridades de Jerusalém confirmam que, «quando vier o Cristo, ninguém saberá ‘DE ONDE’ (póthen) Ele é». Em João 8,14, Jesus afirma, em polémica com os fariseus: «Eu sei ‘DE ONDE’ (póthen) venho; vós, porém, não sabeis ‘DE ONDE’ (póthen) venho». Em João 9,29, na cena da cura do cego de nascença, os fariseus afirmam acerca de Jesus: «Esse não sabemos ‘DE ONDE’ (póthen) é», ao que, no versículo seguinte (João 9,30), com viva ironia, o cego curado responde, apontando a cegueira deles: «Isso é espantoso: vós não sabeis ‘DE ONDE’ (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!». Na narrativa do IV Evangelho, tudo isto conflui para a questão posta por Pilatos em João 19,9: «‘DE ONDE’ (póthen) és Tu?».

 4. Demoremo-nos, pois, um pouco com o chefe-de-mesa, uma vez que é a ele que Jesus manda os servos levar o vinho novo (João 2,8). O chefe-de-mesa prova o vinho novo, e confessa a sua ignorância acerca da sua origem: de facto, «não sabia ‘DE ONDE’ era», diz-nos o narrador (João 2,9a). A sua pergunta é, portanto, esta: «‘DE ONDE’ é este vinho»? Estranho é que o seguimento do texto nos mostre que o chefe-de-mesa passe ao lado da sua própria pergunta. Ele, que não sabia, podia ter perguntado aos servos, que sabiam (João 2,9b), porque tinham recebido e executado as ordens de Jesus (João 2,7-8). Em vez de se dirigir a eles, o chefe-de-mesa opta, todavia, por se dirigir ao noivo. E em vez de formular a sua pergunta acerca da origem daquele vinho, acaba simplesmente por manifestar o seu espanto pelo estranho procedimento adoptado, contrário a todos os usos e costumes, de servir primeiro o vinho reles, deixando para o fim o vinho bom! (João 2,10).

 5. É fácil constatar que esta figura do chefe-de-mesa nos é apresentada no papel de pivot no que se refere ao andamento da festa; em relação ao vinho novo e bom que lhe é levado pelos servidores, manifesta desconhecer a sua proveniência; prova-o, como lhe competia, mas não esboça qualquer vontade de querer saber mais acerca dele; limita-se a manifestar a sua estranheza pelo facto de o ritual antigo ter sido alterado. O elenco destes traços figurais leva-nos a concluir que a figura do chefe-de-mesa representa bem as autoridades judaicas tradicionais, mas também todos os senhores do mundo não sensíveis à novidade que é visível em Jesus.

 6. Os servos, que recebem e cumprem as ordens de Jesus, que dão o vinho novo e bom a provar aos judeus tradicionais e a toda a humanidade, são os discípulos de Jesus, que sabem a proveniência de Jesus, e sabem também discernir o «significado» deste primeiro «sinal» (sêmeíon) que Jesus fez» (João 2,11).

 7. «A mãe de Jesus estava lá», diz-nos logo de entrada o narrador (João 2,1). Sintomático que, tendo ela sido apresentada como «mãe de Jesus» por duas vezes (João 2,1 e 3), pouco depois Jesus a trate por «mulher» (João 2,4), e não por «mãe». Este singular tratamento por «mulher» em vez de «mãe» tem sido muitas vezes visto como ríspido, distante e nada afectuoso da parte de Jesus. O mesmo tratamento por «mulher», e não por «mãe», aparece no Calvário nos lábios de Jesus (João 19,26). Na verdade, esconde-se, neste tratamento por «mulher», um verdadeio tesouro. A «mulher» é muitas vezes na Escritura o símbolo do Povo de Deus, e, mais concretamente de Sião-Jerusalém personificada, como Esposa amada, Enlevo e Alegria de Deus, o Esposo (Isaías 54,5-7; 62,1-5), e como mãe embevecida dos filhos de Deus (Isaías 49,21; 60,1-4).

 8. «Não têm vinho!», observa a mãe de Jesus, falando para Jesus (João 2,3). É uma observação de mãe atenta e de serva feliz, que está ali para amar e servir! A resposta de Jesus: «O que há entre mim e ti, mulher? Ainda não chegou a minha hora» (João 2,4), tem sido igualmente vista como uma resposta ríspida de Jesus à sua mãe. Na verdade, é uma daquelas frases que pode assumir duas valências opostas, conforme o tom de voz com que é dita. Tanto pode ser, de facto, uma resposta ríspida e de ruptura, como pode ser, ao contrário, uma resposta de grande deferência e carinho. É óbvio que aqui é uma resposta de grande deferência e terno amor filial de Jesus. É como se Jesus dissesse: «Mulher, grande mulher, mulher messiânica, que atravessa em contra-luz toda Escritura Santa, que trouxeste até aqui nos teus braços a Esperança de um povo, porque precisas de mo pedir? Tu sabes bem que Eu o faço, e é já». E a mãe de Jesus, nunca chamada Maria no IV Evangelho, entendeu bem esta resposta. Sinal disso é que diz para os servos: «Fazei tudo o que Ele vos disser!».

 9. Como Jesus dirá mais tarde – e diz hoje para nós – também no contexto de um banquete, a Eucaristia, em que somos nós os convidados: «Fazei isto em memória de Mim!».

 10. «Estava lá a mãe de Jesus», como «estavam lá seis talhas», grandes e vazias (João 2,6). Mãe e Mulher da esperança, talhas vazias, mas que serão cheias de esperança até ao cimo. Delas jorrará o vinho novo e bom, até agora guardado para nós. Tempo novo e pleno do Amor de Deus. É Ele que servirá o banquete de carnes suculentas e vinhos deliciosos (Isaías 25,6).

 11. O banquete novo, Bom e Último do Reino de Deus, com o Vinho Bom e Último, até agora guardado na esperança, é agora cuidadosamente servido. Que saber e sabor é o nosso? Sabemos e saboreamos a Alegria do Banquete nupcial? Servimos para servir este Amor, esta Alegria? Não esqueçamos que é este o «terceiro Dia!» (João 2,1), que agrafa esta Alegria à Alegria nova da Ressurreição ao «terceiro Dia», «sinal» para a Glória e para a Fé (João 2,11).

António Couto


GUIADOS POR UMA ESTRELA

Janeiro 4, 2013

 

1. «Eu o vejo, mas não agora,/ eu o contemplo, mas não de perto:/ uma estrela desponta (anateleî) de Jacob,/ um ceptro se levanta de Israel» (Números 24,17). Assim fala, com uns olhos muito claros postos no futuro, um profeta de nome Balaão, que o Livro dos Números diz ser oriundo das margens do rio Eufrates (Números 22,5), uma vasta região conhecida pelo nome de «montes do Oriente» (Números 23,7).

 2. Do Oriente são também os Magos, que enchem o Evangelho deste Dia (Mateus 2,1-12), e que representam a humanidade de coração puro e de olhar puro que, agora e de perto, sabe ler os sinais de Deus, sejam eles a estrela que desponta (anatolê) (Mateus 2,2 e 9) ou o sonho (Mateus 2,12), uma e outro indicadores de caminhos novos, insuspeitados. Surpresa das surpresas: até para casa precisamos de aprender o caminho, pois é, na verdade, um caminho novo! (Mateus 2,12). Excelente, inteligente, o grande texto bíblico: Balaão vem do Oriente, e os Magos também. O texto grego diz bem, no plural, «dos Orientes» (ap’anatolôn) (Números 23,7; Mateus 2,1). Só a estrela que desponta (anatolê / anateleî), no singular, pode orientar a nossa humanidade perdida no meio da confusão do plural.

 3. De resto, já sabemos que, na Escritura Santa, a Luz nova que no céu desponta (Lucas 1,78; 2,2 e 9; cf. Números 24,17; Isaías 60,1-2; Malaquias 3,20) e o Rebento tenro que entre nós germina (Jeremias 23,5; 33,15; Zacarias 3,8; 6,12) apontam e são figura do Messias e dizem-se com o mesmo nome grego anatolê (tsemah TM) ou forma verbal anatéllô. Esta estrela (anatolê) que arde nos olhos e no coração dos Magos está, portanto, longe de ser uma história infantil. Orienta os passos dos Magos e, neles, os da inteira humanidade para a verdadeira ESTRELA que desponta e para o REBENTO que germina, que é o MENINO. E os Magos e, com eles, a inteira humanidade de coração puro e de olhar puro orientam para aquele MENINO toda a sua vida, que é o que significa o verbo «ADORAR» (proskynéô). Esta «adoração» pessoal é o verdadeiro presente a oferecer ao MENINO.

 4. Note-se a expressão recorrente «o Menino e sua Mãe» (Mateus 2,11.13.14.20.21) e o contraponto bem vincado com «o rei Herodes perturbado e toda a Jerusalém com ele» (Mateus 2,3), que abre já para a rejeição final de Jesus. Veja-se também a alegria que invade os magos à vista da sua estrela, ainda antes de verem o Menino (Mateus 2,10), que evoca já a alegria das mulheres, ainda antes de verem o Senhor Ressuscitado (Mateus 28,8). Veja-se ainda o inútil controlo das Escrituras por parte de «todos os sacerdotes e escribas do povo», que sabem a verdade acerca do Messias, mas não sabem reconhecer o Messias (Mateus 2,4-6).

 5. Mas, para juntar aqui outra vez os fios de ouro da Escritura Santa, nomeadamente 1 Reis 10,1-10 (Rainha de Sabá), Isaías 60 e o Salmo 72(71), diz o belo texto de Mateus que os Magos ofereceram ao MENINO ouro, incenso e mirra. Já sabemos que, desde Ireneu de Lião (130-203), mas entenda-se bem que isto é secundário, o ouro simboliza a realeza, o incenso a divindade, e a mirra a morte e o sepultamento.

 6. Pode acrescentar-se ainda, mas também isto é claramente secundário, que muitos astrónomos, historiadores e curiosos se têm esforçado por identificar aquela estrela que despontou e guiou os Magos, apresentando como hipóteses mais viáveis: a) o cometa Halley, que se fez ver em 12-11 a. C.; b) a tríplice conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes, ocorrida em 7 a. C.; c) uma nova ou supernova, visível em 5-4 a. C. Esta última está registada nos observatórios astronómicos chineses. A conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes está registada nos observatórios da Babilónia e do Egipto. Johannes Kepler (1571-1630), que estudou este assunto em pormenor, dedica particular atenção aos fenómenos registrados em b) e c). Note-se, porém, que a estrela dos Magos é só vista por eles, estrangeiros como Balaão, que também vê de modo diferente dos outros. Rir-se-iam, certamente, se soubessem que nós indagamos os céus com instrumentos científicos à procura da estrela que alumiava o seu coração. É assim que «muitos virão do oriente e do ocidente, e sentar-se-ão à mesa no Reino dos Céus» (Mateus 8,11). E nós, que também indagamos as Escrituras sem lhes descobrirmos o verdadeiro fio de ouro (Mateus 2,4-6), poderemos ficar tragicamente fora da porta e do sentido (Mateus 8,12).

 7. Ilustra bem o grandioso texto do Evangelho de Mateus o soberbo texto de Isaías 60,1-6, que canta Jerusalém personificada como mãe extremosa que vê chegar dos quatro pontos cardeais os seus filhos e filhas perdidos nos exílios de todos os tempos e lugares. Também não falta a luz que desponta (anateleî) (60,1) e os muitos presentes, os tais fios que se vão juntar no Evangelho de hoje, de Mateus.

 8. Também os versos sublimes do Salmo Real 72(71) cantam a mesma melodia de alegria que se insinua nas pregas do coração da inteira humanidade maravilhada com a presença de Rei tão carinhoso. Também aqui encontramos a hiperbólica «idade do ouro», o grão que cresce mesmo no cimo das colinas, e a felicidade dos pobres, que serão sempre os melhores «clientes» de Deus. Extraordinária condensação da esperança da nossa humanidade à deriva.

 9. E o Apóstolo Paulo (Efésios 3,2-3 e 5-6) faz saber, para espanto, maravilha e alegria nossa, que os pagãos são co-herdeiros e comparticipantes da Promessa de Deus em Jesus Cristo, por meio do Evangelho.

 10. Sim. Falta dizer que, no meio de tanta Luz, Presentes e Alegria para todos, vindos da Epifania, que significa manifestação de Deus entre nós e para nós, não podemos hoje esquecer as crianças e a missão. Hoje celebra-se o dia da «Infância Missionária», que gosto de ver sempre envolta no belo lema: «O Evangelho viaja sem passaporte». Para significar que o Evangelho nos faz verdadeiramente filhos e irmãos. E entre filhos e irmãos não há fronteiras nem barreiras nem muros ou qualquer separação.

 11. Sonho um mundo assim. E parece-me que só as crianças nos podem ensinar esta lição maravilhosa.

 António Couto


SANTA MARIA, MÃE DE DEUS, RAINHA DA PAZ

Janeiro 2, 2013

 

Vem pelo cais uma criança a correr
Traz uma pomba branca pela mão
Uma criança não tem onde morrer
O seu único haver é o coração.

 1. Sobre esta terra térrea e escura há-de haver sempre uma fonte de água pura, uma mulher «no seu ventre concebendo» o céu (Lucas 1,31; 2,21), fruto maduro, acorde seguro, das entranhas misericordiosas do nosso Deus (Lucas 1,78), Luz nova no céu se alevantando (Lucas 1,78; cf. Números 24,17; Isaías 60,1-2; Malaquias 3,20), Rebento tenro na terra germinando (Jeremias 23,5; 33,15; Zacarias 3,8; 6,12), luminosa sinfonia de Deus e de Maria, o céu ao léu, enchendo de luz os nossos corações duros e escuros como o breu.

  2. «Conceber no ventre» é um pleonasmo evidente, mas é dito duas vezes de Maria, e apenas de Maria (Lucas 1,31; 2,21). Certamente para a mostrar dependente das entranhas misericordiosas do nosso Deus omnipotente, causa da Luz que nas alturas se alevanta e visita toda a gente, causa do Rebento que na terra germina, que a terra aquece e alumia, Jesus, filho de Deus e de Maria.

 3. E tem de ser dito agora que, na Escritura Santa, aquela Luz que no céu se alevanta e o Rebento que na nossa terra germina são ditos com o mesmo nome grego: anatolê (forma verbal: anatéllô), que é como quem diz ainda que a Luz germina e o Rebento ilumina, orientando os nossos passos para os braços de Deus e de Maria, causa da nossa alegria.

 4. A nossa terra sombria precisa de Deus e de Maria, e dessa Luz que suavemente Rebenta e Orienta, aquece e alumia o nosso dia-a-dia. Conceber no ventre, «compor no coração as palavras que acontecem e não esquecem» (Lucas 2,19), estender a mão de irmão à inteira criação, olhar com ternura para cada criatura, por cada criatura. É assim que Deus faz a Bênção e a Paz (Números 6,22-27).

 5. Chegou, meu irmão, a hora de acordar do sono, de encher de amor cada buraco de ozono. Põe fim ao fumo e ao consumo. Dia Mundial da Paz. Dia de Paz. Alarga o coração. Saúda a criação. Leva uma criança a passear com uma pomba branca pela mão.

 António Couto