MEU IRMÃO SENTADO ÀS PORTAS DE NOVEMBRO

Outubro 29, 2009

1. Não resisto a deixar aqui registrada, às portas de Novembro, mais esta saborosa história rabínica.

 2. Conta o sábio que um homem tinha três amigos. Dizendo isto, acrescentaearth-globe logo que os tinha classificados: o amigo n.º 1, o amigo n.º 2 e o amigo n.º 3. E explica logo a seguir o que pode parecer óbvio: o amigo n.º 1 era o amigo inseparável daquele homem: andavam sempre juntos; o amigo n. º 2 aparecia lá por casa do nosso homem de vez em quando, bebiam uns copos, punham a conversa em dia; o amigo n.º 3 muito raramente aparecia, talvez uma ou duas vezes por ano, e o encontro era ainda assim mais devido ao acaso do que à amizade.

 3. Diz a história que um dia o nosso homem foi surpreendido por uma intimação do Rei que o instava a comparecer no Palácio Real.

 4. O nosso homem sentiu-se tomado por uma grande angústia e preocupação. Na verdade, nunca tinha entrado num Palácio, não sabia mesmo o que era um Palácio, não imaginava como se devia comportar dentro de um Palácio.

 5. É nestas alturas de aflição que nos lembramos dos amigos. Foi assim que238318075_775453 o nosso homem foi ter com o seu amigo n.º 1, e disse-lhe: «Amigo, nós andamos sempre juntos, preciso da tua ajuda, não me digas que não». «Fala, homem», disse o amigo n.º 1. Então, o nosso homem contou ao seu melhor amigo que tinha de comparecer no Palácio do Rei, que nunca tinha entrado num Palácio, que não sabia como proceder, que se sentia muito preocupado. E adiantou: «Peço-te que me acompanhes nesta viagem». A este pedido, o amigo n. 1 respondeu: «Amigo, de facto somos amigos inseparáveis. Podes contar sempre comigo, mas nesta viagem não posso acompanhar-te».

 6. Então, o nosso homem foi ter com o seu amigo n.º 2, aquele que encontrava de vez em quando para beber uns copos e pôr a conversa em dia. Expôs-lhe o mesmo problema. E o amigo n.º 2 respondeu assim: «Sim, senhor, estou disposto a acompanhar-te, mas com uma condição». «Qual é então a condição?», perguntou com ânsia e curiosidade o nosso homem. «Vou contigo, mas só até à porta do Palácio», disse o amigo n. º 2. E acrescentou: «Da porta para dentro terás de te desenrascar sozinho». Ouvindo isto, o nosso homem insistiu: «Até à porta, também eu consigo ir; o meu problema é dentro do Palácio, pois não percebo nada de Palácios». Rematou o amigo n.º 2: «É como te digo; posso ir contigo só até à porta».

 7. Restava ao nosso homem o amigo n.º 3, aquele que via por mero acaso apenas uma ou duas vezes no ano. Foi ter com ele, e expôs-lhe igualmente o problema, para ele difícil, de ter de comparecer no Palácio do Rei. E pediu-lhe igualmente, ainda que sem grande esperança de ser atendido, que o acompanhasse naquela viagem difícil. Ouvindo atentamente, o amigo n.º 3 respondeu assim: «É claro que te acompanho. Confesso-te mesmo que até ficaria muito triste se viesse a saber dessa tua viagem difícil, e tu não me tivesses dito nada!».

 8. A história termina assim, aparentemente no ar, à boa maneira rabínica. Mas para que tu, meu irmão sentado às portas de Novembro, possas entender melhor, passo a descodificar o essencial: A) o Rei desta história é Deus; B) o nosso homem, o que foi intimado a apresentar-se no Palácio do Rei, é cada um de nós: posso ser eu; podes ser tu; C) o amigo n.º 1 é a nossa própria vida, a minha própria vida; eu e a minha vida, os meus afazeres, os meus negócios, os meus projectos, andamos sempre juntos: somos amigos inseparáveis; mas, quando eu morrer, de facto, nada disso me pode acompanhar!; D) o amigo n.º 2 são os nossos próprios amigos: podem acompanhar-nos só até à porta… do cemitério!; E) o amigo n.º 3, aquele que raramente vemos, é o bem que fazemos ao longo da nossa vida; é o amor que pomos naquilo que humildemente fazemos.

 9. Ainda estás a tempo, meu irmão sentado às portas de Novembro, deflydove pegar na tua lista de amigos, e de a virar do avesso. Verifica bem, e, pelo menos, trata de trazer para primeiro lugar o amigo que tens na lista em 3.º lugar e que tão poucas vezes vês. Afinal, é o único que te acompanhará sempre!

 António Couto


O CEGO DE JERICÓ

Outubro 24, 2009

 

1. Jeremias 31,7-9 põe diante de nós uma grande procissão de alegria e de esperança, vinda do Norte, da Babilónia, em que participam todos os filhos de Deus. Note-se a presença dos cegos, dos aleijados, das grávidas, das parturientes. Procissão maravilhosa em que ninguém fica de fora ou para trás: pura graça e salvação de Deus bem à vista! Verdadeiramente, Deus SALVA (hôshîa‛) o seu Povo (Jeremias 31,7). Não nos esqueçamos Hoje de valorizar o nosso canto do HOSSANA, que é um grito levantado para Deus, e que significa, à letra, “SALVA, POR FAVOR” (hôshîa‛ na’).

 2. O Canto ritmado do Salmo 126(125) serve para nos abrir bem os olhos do coração para vermos bem as inumeráveis maravilhas com que Deus enche os nossos caminhos todos os dias. Entre a sementeira e a ceifa, entre a dor e a alegria, o inverno e a primavera, a semente não erra e não mente. Segue o seu percurso natural. Suavemente. Aí está, portanto, outra vez a jubilosa procissão dos exilados! E nós extasiados como quem sonha, a boca cheia de riso e os lábios de canções.

 3. Aí está, em pleno ano sacerdotal, o texto da Carta (ou pregação) aos Hebreus 5,1-6, que nos apresenta uma excelente figuração do sacerdote: chamado por Deus, postado a meio caminho entre o coração de Deus e o coração dos homens, para encher este mundo de graça serena e fecunda. Ao jeito da vara sacerdotal de Aarão e por acumulado excesso, de onde brotam ao mesmo tempo folhas verdes, flores em botão, flores abertas e frutos maduros! (Números 17,16-26). Vara de amendoeira. Já ninguém estranhará agora que o candelabro (menôrah) que, noite e dia,/ ardia/ na presença de Deus, estivesse ornamentado com flores de amendoeira (Ex 25,31-35; 37,20-22). E também já ninguém estranhará que a tradição judaica tardia refira que a vara do Messias havia de ser de amendoeira. O excesso divino da primavera e da esperança em pleno inverno humano de dor e de pecado.

 4. E lá está outra vez um Cego no CAMINHO de Jesus. É do grande texto deJesus1 Marcos 10,46-52 que falamos, e que é conhecido como o episódio do Cego de Jericó. Na verdade, está em cena muito mais do que cegueira e geografia. Atente-se em como o narrador nos passa sobre o Cego informação exaustiva, distribuída em seis anotações: é o filho de Timeu (1), chama-se Bartimeu (2), é cego (3), pede esmola (4), está sentado (5) à beira do Caminho (6).

 5. Se revisitarmos com atenção as páginas dos Evangelhos, nomeadamente de Marcos, só encontramos tanta informação pessoal nos relatos de vocação. Veja-se, a propósito, o chamamento de Simão e André (Marcos 1,16-18), de Tiago e João (Marcos 1,19-20) e de Levi (Marcos 2,14). Estes indicadores são importantes, pois é bem provável que, no episódio do Cego de Jericó, estejamos mais perante um relato de vocação do que de cura.

 6. O Cego, excluído, GRITA por duas vezes. Quem grita é porque está longe e se quer fazer ouvir. A distância pode ser física, psicológica, cultural, religiosa… Um Cego sente-se longe de Deus e da comunidade. Dizia assim a tradição religiosa e cultural daquele tempo e daquele espaço. Por isso, o Cego GRITA e volta a GRITAR. O conteúdo do seu GRITO é belo: «Filho de David, Jesus,mother_mary_holding_baby_jesus_md_clr FAZ-ME GRAÇA (eléêsón me). É quanto nós cantamos ainda Hoje, e Hoje devemos valorizar também este dizer: Kýrie eléêson! Significa, na sua letra, pedir ao Senhor que pegue maternalmente em nós ao colo, que maternalmente nos embale, que maternalmente nos olhe e maternalmente sorria para nós!

 7. Ouvindo estes GRITOS, Jesus PÁRA. Parando, fica ao nível do Cego, que estava parado, e parado ia ali ficar. Jesus PÁRA e CHAMA. Um versículo (49) em que o verbo CHAMAR se ouve três vezes. Jesus não exclui, mas inclui e faz que aqueles que antes o mandavam calar, querendo mantê-lo na exclusão, entrem agora neste novo movimento de inclusão. Note-se o agrafo à grande procissão de Jeremias 31,7-9, que incluía cegos, aleijados, grávidas e parturientes. Também Jesus não quer deixar ninguém de fora ou para trás.

 8. Ao sentir-se chamado e incluído, o Cego deixa tudo (atira fora o seu manto, onde recolhia as esmolas), e, num salto (sem qualquer hesitação), fica junto de Jesus. Jesus pergunta-lhe, tal como atrás tinha perguntado aos dois filhos de Zebedeu: «Que queres que Eu te faça?» Naturalmente, o Cego responde: «Que eu veja!» Mas Jesus diz-lhe: «VAI!» Note-se bem o desajuste entre o pedido do Cego (ver) e a resposta de Jesus (ir). E já se vê aqui claramente o teor vocacional do relato.

 9. Lindo ver na conclusão do relato que o Cego viu, ficou iluminado, eD55CAWQA4QJCAQF4315CAW0EKKRCAIHVIZ7CAA4D7QNCA1GH3MTCAZLH18ZCAS4PMLCCADRNV3VCAQBAPD6CAGLNA3XCAPBVBVWCA2H9MDOCAC1RDLNCA54SKM0CAECQMAWCAS0DNSNCA2MWOAY SEGUIA Jesus no CAMINHO. Aí está outra vez a figura bela do verdadeiro discípulo de Jesus. Chamado e iluminado pela Luz que é Jesus, segue Jesus no CAMINHO. Tem de O seguir, temos de O seguir. Ele é a Luz, e a nossa Luz é reflexa.

 10. Senhor Jesus, chama por nós, inclui-nos no teu amor, faz-nos graça,animated_candle ilumina a nossa vida, torna-nos fiéis seguidores teus, sempre atrás de Ti, no teu CAMINHO de LUZ.

 António Couto


HESITAÇÕES E DECISÕES NO CAMINHO

Outubro 17, 2009

 

1. O justo, meu Servo, diz Deus, justificará muitos, diz Deus. Profeta «profetizado»: eis a verdade do profeta-servo. Não fala, mas é falado: fala Deus dele (Isaías 52,13-15; 53,11-12); falamos nós dele (53,1-10). Nós, batendo no peito, reconhecendo que as suas chagas não são o seu castigo merecido, mas cura para a nossa malvadez. De facto, vendo bem aquelas chagas, temos mesmo de reconhecer que foi a nossa violência e malvadez que as produziu. Diagnosticada a doença, podemos lançar mão do remédio. Deus apresenta-o como aquele que, entregando a sua vida à nossa violência, atravessa a nossa violência, sofrendo-a e dissolvendo-a por amor: é assim que nos justifica, isto é, nos transforma de pecadores em justos: milagre do perdão e da recriação do nosso Deus.

 2. Faz-nos bem a seguir cantar demoradamente com o Salmo 33(32): «Desça sobre nós a vossa misericórdia», e contemplar com encanto e emoção o rosto do novo sumo-sacerdote, Jesus, Filho de Deus, posto por escrito diante dos nossos olhos no trono da Cruz (Gálatas 3,1), para o vermos bem e para nos vermos bem: outra vez um rosto desfigurado pela nossa violência e malvadez, e a ternura e daquele olhar de graça, que nos redime e salva. É a extraordinária lição de Hebreus 4,14-16.

 3. E voltamos ao CAMINHO com Marcos 10,35-45. É a vez de Tiago e João,zebedeu os filhos de Zebedeu, que vão no CAMINHO desde o princípio, agora que o CAMINHO se aproxima do seu termo, se aproximarem de Jesus com um estranho pedido. Vão de pé no CAMINHO, mas querem SENTAR-SE em lugares de destaque. O narrador diz-nos que os outros Dez ficaram indignados. Entenda-se: não tanto pelo pedido em si, mas porque também pensavam a mesma coisa, e se viram antecipados.

 4. Jesus chama-os todos para si, para lhes dizer ao coração que há os CHEFES deste mundo que mandam e tiranizam e tiram a vida, e há os SERVOS que servem e dão a vida por amor, isto é, justificam.

 5. E aí está Jesus a apresentar-se de novo como verdadeiro Mestre pró-activo, que sabe o CAMINHO, ensina o CAMINHO e faz o CAMINHO: veio para SERVIR e DAR A VIDA por amor.

 6. Mas tudo ficará mais claro, quando, no próximo próximo Domingo (XXX)bartimeu se vir bem o confronto produzido pelo episódio do Cego de Jericó (Marcos 10,46-52), paradigmaticamente colocado no termo do CAMINHO.

 7. O Cego está sentado (a posição ansiada por João e Tiago e pelos outros Dez) à beira do caminho. Grita porque, sendo cego, é um excluído. Mas aí está o Mestre pró-activo: PÁRA (descendo ao nível do cego) e CHAMA (incluindo o excluído). Sem hesitação, o cego atira logo fora o manto (a sua subsistência, a sua vida), e, com um salto, de forma decidida e enérgica, fica no lugar certo (junto de Jesus). Jesus faz-lhe a mesma pergunta que fez a João e a Tiago: «Que queres que Eu te faça?» Resposta óbvia do cego: «Que eu veja!» Ordem de Jesus: «VAI!»

 8. Poucos se apercebem. Mas «VAI!» não é a resposta adequada ao pedido do cego: «Que eu veja!» A resposta adequada seria: «Vê!», como está, de resto, no episódio paralelo de Lucas 18,42.

 9. Mas, de facto, o cego obedeceu à ordem nova de Jesus. Diz-nos o narrador que SEGUIA JESUS NO CAMINHO! Note-se o SEGUIA (imperfeito de duração). Modelo do discípulo de Jesus.

 10. Vejam-se atentamente os confrontos: 1) o cego está SENTADO, mas põe-se de pé; de pé vão os discípulos de Jesus, mas querem SENTAR-SE; 2) o cego deixa tudo (atira fora o manto), mas os discípulos querem saber o que ganham; 3) o cego está à beira do CAMINHO, mas entra no CAMINHO para seguir Jesus no CAMINHO; o homem rico de Marcos 10,17-22, que encontrámos no Domingo XXVIII, entra no CAMINHO, mas sai logo do CAMINHO…

 11. Tantos desafios e provocações, modelos e contra-modelos, para nós, discípulos que hoje seguimos Jesus no CAMINHO!

 12. Não nos esqueçamos ainda que passa hoje (18 de Outubro) o 83.º Diaglobeanim5b Missionário Mundial. Dia indicado para «CAMINHARMOS à sua LUZ» (tema da Mensagem do Papa), para compreendermos, com o Papa, que «A missão ad gentes deve ser a prioridade dos nossos planos pastorais», «que toda a Igreja se deve empenhar na missão ad gentes» e que «a tarefa de evangelizar todos os homens constitui a missão essencial da Igreja».

 13. Se vejo bem, para cumprirmos estes desideratos que o Papa lança à Igreja e a cada um de nós, temos mesmo de virar quase tudo do avesso! Exactamente como aqueles discípulos de Jesus no CAMINHO!

 António Couto


O HOMEM RICO, EDUCADO E DE BOA PRÁTICA RELIGIOSA

Outubro 10, 2009

 

1. Um punhado de terra, eis quanto é toda a riqueza do mundo comparada com a sabedoria que vem de Deus (Sabedoria 7,9). Pedimos depois, cantando, no Salmo 90(89),12, que Deus nos dê a Sabedoria do coração: entenda-se o bom senso, a sensibilidade e a bondade, e que elas sejam o metro para acertarmos diariamente a medida canónica (cânon, cana de medida) da nossa vida.

 2. Vem depois aquele homem rico, sincero, educado e de boa práticacalma religiosa, que entra subitamente NO CAMINHO de Jesus, pedindo-lhe que lhe aponte o caminho para a vida eterna. Ele não sabia que tinha acabado de entrar nesse CAMINHO e nessa VIDA, e que bastava seguir tranquilamente Jesus até ao fim. Jesus é o Mestre novo, verdadeiro líder pró-activo, que não ensina como os escribas. Ele sabe o caminho, mostra o caminho, faz o caminho. Por isso, passa e chama, dizendo: «Vinde atrás de Mim!»

 3. O homem rico, educado e de boa prática religiosa entra no CAMINHO, e Jesus entra nele, pois olha dentro dele (verbo emblépô) com amor divino. Único verdadeiro olhar de Deus, que vê sempre dentro, vê sempre o coração, sempre com coração.

 4. E aquela imensa, inesquecível rajada de verbos: Vai, vende, dá, vem e segue-me!, que atravessou o coração do homem rico, e ainda hoje nos atravessa a nós. Queira Deus que atravesse verdadeiramente o nosso coração. É, estou convicto, ainda hoje, a «uma coisa» (hén) que nos falta!

 5. E aquele homem rico, educado e de boa prática religiosa, em quem facilmente nos poderemos rever, saiu do CAMINHO, sem caminho e sem horizontes, triste e agarrado ao seu punhado de terra.

 6. Jesus olha agora o coração e com o coração os seus discípulos, a quem trata por «filhos» (única vez no Evangelho de Marcos!), contrapondo a riqueza ao Reino de Deus. Sim, não há maneira de nos salvarmos; há apenas maneira de sermos salvos! A metáfora do camelo e do buraco da agulha é bem expressiva e impressiva, sendo o camelo o animal de maiores dimensões conhecido no mundo de Jesus e dos seus discípulos!

 7. E aquele elenco fantástico apresentado por Jesus: casas, irmãos, irmãs,rosa14 mãe, pai, filhos e terras. Quase ninguém repara nisto, e somos quase sempre levados a pensar que Jesus fornece dois elencos: um das coisas que há que deixar e outro das coisas que há que encontrar! Aí está a velha lógica das coisas materiais versus coisas espirituais! Mas Jesus apresenta apenas um elenco repetido. É a maneira de ver que deve mudar: do ter para o receber! Temos de aprender a ver o coração e com o coração, como Jesus. Podemos admirar a beleza de uma flor, mesmo quando está no jardim do meu vizinho!

 8. Pois, argumenta Pedro, também ele homem educado e de boa prática religiosa: «Se é assim, quem é que se salva?» E Jesus: «Aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível!» É, portanto, para Deus que nos devemos voltar completamente. E aí está a lição inultrapassável do Mestre pró-activo, que sabe o caminho, mostra o caminho e faz o caminho. Escreve S. Paulo: «Jesus Cristo, sendo rico, fez-se pobre por causa de nós, para nos enriquecer com a sua pobreza» (2 Coríntios 8,9).

 9. Entretanto, não esqueçamos o bisturi da Palavra de Deus, que opera a esclerose do nosso coração (Hebreus 4,12).

 António Couto


UMA EUROPA ANESTESIADA E DORMENTE

Outubro 4, 2009

 

1. «A liberdade é o poder de fazer tudo aquilo que não prejudique os outros». É esta a formulação exemplar que encontramos na famosa «Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão» (Art.º 4), saída da Revolução Francesa (1789), depois muitas vezes traduzida no aforismo: «A minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro».

 2. É em nome deste princípio, que se diz habitualmente que a Europa é asamaritan1 terra natal dos direitos do homem. Porém, se não formos míopes, teremos de acrescentar logo que esse nascimento foi muito ambíguo e esses direitos muito restritivos, pois não afectam por igual todos os homens. Por exemplo, aquele «um homem (e todos aqueles que ele representa) que descia de Jerusalém para Jericó, e caiu nas mãos dos assaltantes que, depois de o roubarem e espancarem, se foram embora deixando-o meio morto», da conhecida parábola do bom samaritano (Lucas 10,30-37), ficaria excluído desses direitos.

 3. De facto, roubado e em estado de coma, aquele homem não é sujeito de nenhum poder nem de nenhum fazer. Ora, a fórmula exemplar da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, atrás referida, assenta, como vimos, no «poder fazer» aquilo que não prejudique os outros. Visto por este prisma, o homem da referida parábola fica duplamente excluído: primeiro, porque não é sujeito de nenhum poder e de nenhum fazer: nada «pode fazer», portanto; segundo, porque, ainda que porventura tivesse o «poder de pedir» auxílio – o que parece que nem é o caso –, é preciso ver que um tal gesto não teria, de facto, qualquer força de direito, pois se dirigiria a liberdades cuja essência consiste, como vimos, em «não prejudicar». Mas se o exercício da liberdade consiste em «não prejudicar», então basta abster-se de fazer o que quer que seja para se cumprir o articulado. É o que fazem, na parábola narrada, o sacerdote e o levita, que, tendo visto o homem em causa, passam simplesmente pelo outro lado da estrada, não se incomodando nem o incomodando.

 4. Ironia da história: a sociedade laica nasce imitando, inconscientemente com certeza, o comportamento das duas figuras clericais (o sacerdote e o levita) da parábola. Nasce assim como novo culto o culto do «eu» como «poder fazer», o culto do «eu» como senhor mais ou menos civilizado, engravatado, que não prejudica directamente os outros por palavras ou por obras, dado que passa simplesmente ao lado deles.

 5. É fácil de ver que este culto laico do «eu» é hoje uma religião com muitos praticantes, todos de bem com a sua consciência. A única obrigação que este culto impõe aos seus crentes é não fazer mal aos outros. É fácil de praticar: basta não se importar com eles. Mas hoje temos todos os dias à nossa porta e à beira das nossas estradas pessoas caídas, doentes, fragilizadas, abandonadas. Será que podemos passar por elas com a consciência tranquila, cientes de que passamos por elas sem as prejudicar?

 6. Entramos em Outubro. Tempo de voltar à escola. Tempo de aprender e de ensinar humanidade e cidadania. Tempo de descobrir que é urgente substituir o velho aforismo burguês e anestesiante, segundo o qual «a minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro», pelo implicativo e sempre inquietante «a minha liberdade começa onde começa a liberdade do outro».

 7. Em vez de continuares a passar tranquilamente e de boa consciência ao lado do outro, experimenta aproximar-te dele. Deixa-te incomodar por ele, meu irmão de Outubro.

 António Couto