PRESTA ATENÇÃO AO CORAÇÃO

Fevereiro 25, 2022

1. Neste Domingo VIII do Tempo Comum continuamos a escutar e a digerir, no Evangelho, o «Discurso da planície», hoje na sua terceira e última parte (Lucas 6,39-45), toda dominada pelo amor e pela misericórdia. A arquitetura desta terceira parte do «Discurso da planície» assenta em três comparações, destinadas a afinar os critérios da nossa vida de discípulos de Jesus. A primeira comparação surge em Lucas 6,39-40, e põe em cena um cego a guiar outro cego. E a pergunta certeira de Jesus: «Não cairão os dois nalgum abismo? (Lucas 6,39). Mateus canalizou a comparação de Jesus para os fariseus: «Ai de vós, guias cegos…» (Mateus 23,16-17). Lucas usou-a, antes, para advertir diretamente os discípulos de Jesus de todos os tempos, fazendo ver que nenhum discípulo é mais do que o mestre, mas que todo o discípulo deve ser como o mestre (Lucas 6,40). Outra vez, de forma clara e sem equívocos: o discípulo não tem senão que repetir o que Jesus disse, sendo que a verdade da palavra do discípulo não está, portanto, na sua habilidade pessoal, mas na sua fidelidade ao Mestre.

2. A segunda comparação põe em cena o argueiro e a trave (Lucas 6,41-42), e denuncia de imediato os nossos juízos quotidianos, levianos e rápidos acerca dos outros. Estamos sempre a ver o argueiro que está nos olhos do nosso irmão, e não vemos a trave que se atravessa nos nossos olhos e nos impede de ver bem seja o que for. O filósofo romano Séneca (4 a.C.-65 d.C.), contemporâneo de Jesus, já se exprimia assim: «Temos diante dos olhos os defeitos dos outros, enquanto os nossos ficam atrás». Estar sempre pronto a criticar os defeitos dos outros, sem sequer nos apercebermos dos nossos, porque já estamos habituados e acomodados, protegidos por uma crosta opaca, é um tipo de comportamento denunciado por Jesus como «hipocrisia» (v. 42). A «hipocrisia» é um termo de origem grega e designa aquele que, no teatro, representa um papel que não corresponde à sua vida. Por exemplo, veste-se de santo…, e é um delinquente! A lição de Jesus é pertinente: «Tira primeiro (prôton) a trave do teu olho, e depois verás bem…» (v. 42). Portanto, fica claro para todos nós o que há que fazer sempre em primeiro lugar: proceder à limpeza da nossa vida, adequando-a ao Evangelho. Ao comentar o Salmo 30, Santo Agostinho faz esta observação aguda e penetrante: «Não penses mal do teu irmão. Sê tu com humildade o que queres que ele seja, e não pensarás que ele é o que tu não és» (Enarrationes in psalmos, 30,2,7). E Lucas dirá mais à frente que «A lâmpada do corpo é o teu olho. Se o teu olho estiver são, todo o teu corpo ficará iluminado; mas se ele for mau, o teu corpo também ficará às escuras. Portanto, vê bem se a luz que há em ti não são trevas» (Lucas 11,34-35).

3. A terceira comparação põe lado a lado a árvore boa e a árvore má (Lucas 6,43-45). À primeira vista, parece que Jesus coloca o acento nas obras, no que se faz, e não nas palavras, no que se diz. A pequena parábola aponta, porém, ainda outra direção: é de dentro, do interior, do coração, que provêm as obras, boas ou más. Pelo que o verdadeiro problema consiste em mudar o interior, o coração, a nascente. Na verdade, na cultura semítica e bíblica, o coração é comparado a um depósito, de onde se retiram os pensamentos, as palavras e as ações. Por isso, conclui Jesus no v. 45, o homem bom, do seu bom coração tira coisas boas; o mau, do seu mau coração tira coisas más; e a boca fala da abundância do coração. É, portanto, necessário manter o coração puro e limpo de mato e de silvas, para o encher de bondade, pois só um coração bom pode e sabe amar os inimigos, perdoar os irmãos, indicar aos errantes o caminho certo. O teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), pastor luterano, morto nos campos de concentração nazis, escrevia na sua Ética que «a bondade não é uma qualidade da vida, mas a própria vida, e que ser bom significa viver». Não admira, pois, que Jesus tenha definido os hipócritas como «sepulcros caiados», cadáveres ambulantes, que se iludem pensando que estão vivos; na verdade, como têm o coração impuro, estão mortos e deambulam às escuras. As pessoas como as árvores: não se conhecem as pessoas pela sua folhagem, isto é, pelas aparências; conhecem-se, antes, pelos seus frutos, isto é, pela sua generosidade e pelo seu amor. E ainda: uma pessoa egoísta, egocêntrica, egolátrica e autorreferencial apega-se ao tesouro ilusório e falso do seu orgulho, e mal abre o tesouro do seu coração, vem logo fora a malvadez, os juízos cruéis, o ódio.

4. A lição do Livro de Ben-Sira 27,5-8 que hoje nos atinge é bela, pedagógica e incisiva, e procede por constatações paralelas. Assim, em cada versículo, o sábio coloca diante de nós um dado retirado da experiência quotidiana, assentando logo sobre ele uma luminosa aplicação ao homem. Aproximemos a objetiva: no v. 5, o dado da experiência quotidiana é a peneira, que retém o lixo, do mesmo modo que o homem, no ato de falar, expõe os seus defeitos; no v. 6, o dado da experiência é o forno, que põe à prova a qualidade das vasilhas de barro nele introduzidas, do mesmo modo que, no ato de falar, também é posta à prova a qualidade do homem; no v. 7, o dado da experiência é o fruto, que mostra a qualidade da árvore, do mesmo modo que as palavras proferidas pelo homem mostram o bom ou mau estado do seu coração. O fecho destes paralelismos surge no v. 8, em que somos advertidos a não julgar ninguém antes de ele falar. Convenhamos que se trata de uma instrução cheia de sabedoria, que ataca a permanente tentação que nos sobrevém de antecipar os juízos, que não passam, portanto, de pré-juízos, tantas vezes errados, e, por isso, danosos para nós e para os outros. Esta bela e incisiva instrução, direitinha ao coração, deixa-nos, em termos de conteúdo e de linguagem, longe da folhagem, na estrada do Evangelho de hoje.

5. É-nos dada a graça de escutar hoje o final do Capítulo XV da Primeira Carta aos Coríntios (15,54-58), em que o Apóstolo fala aos fiéis de Corinto de então, mas também de todas as proveniências e tempos, do «mistério» da Ressurreição da carne, que Paulo anuncia «que é», mas não «como é» (v. 51), sendo sempre, porém, consequência direta, e a mais alta, da Ressurreição do Senhor. A discrição de Paulo faz o necessário contraponto com as infinitas fantasias e especulações que, acerca da ressurreição da carne, circulavam no ambiente de então. Basta dizer, na sua essência e sobriedade, que o nosso corpo será transformado, transfigurado (allagêsómetha), o que se deve, não à nossa capacidade, mas unicamente à ação do Espírito Santo (v. 45 e 49), que vem para nós unicamente através da Humanidade Glorificada de Jesus (João 7,39; 19,34; Atos 2,33). Por isso, recomenda o Apóstolo: «Graças sejam dadas a Deus, que nos dá a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo» (v. 57).

6. O belo Salmo 92 continua a fazer vibrar em nós a música da semente, das árvores, das aves e dos dias breves e belos, da eternidade. O orante realça a imagem vegetal, fresca e verdejante, da palmeira e do cedro, verdadeiro brasão do justo. Quer a palmeira quer o cedro evocam uma vitalidade contra a qual em vão atenta o deserto. Além disso, o cedro, com a sua altura, simboliza a longevidade: pode durar um milénio. E a palmeira, phoínix no texto grego, com o seu duplo significado de palmeira e fénix, a ave da imortalidade, servirá à tradição cristã para celebrar a vitória da vida nova e eterna. No culto sinagogal, este Salmo é cantado à entrada do Sábado, ao pôr-do-sol de sexta-feira. Lê-se na Mishna: «Ao sábado canta-se o cântico do dia de sábado (Salmo 92), cântico para o tempo que há de vir, para o dia que será inteiramente sábado e repouso para a vida eterna. Mas é o Senhor que está por detrás de tudo isto. É por isso que é bom e belo louvá-lo!

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As coisas do mundo

Não podem alimentar-te

Nem encher de perfume a tua vida.

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A tua alegria não está entre as coisas passageiras.

Relâmpagos, tempestades, terramotos,

Sons e vozes da terra são estrangeiros para ti.

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Tu, meu irmão a tempo inteiro,

Não deixes de sentir os pés no chão do terreiro,

Mas mantém também a cabeça no céu,

Ao léu,

Para poderes ouvir sempre bem a voz de Deus,

E ver bem, belo e bom,

Para tirar o argueiro

Da vista do teu irmão e companheiro.

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Que o ódio e a violência nunca tomem conta do teu coração.

Que o teu coração seja habitação de paz.

Que nunca te seduza o som das espingardas.

Debulha o teu grão,

Reparte o teu pão,

Olha para Deus com gratidão.

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Tens um ano inteiro

Para encher de amor o teu celeiro.

Não tenhas medo do nevoeiro.

Que todos os dias haja misericórdia

No teu coração e nas tuas mãos.

Que o Senhor seja sempre a tua Luz,

Meu irmão e irmão de Jesus.

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António Couto


AMAI OS VOSSOS INIMIGOS

Fevereiro 18, 2022

1. Continuamos, neste Domingo VII do Tempo Comum, a saborear o imenso Discurso da planície de Jesus (Lucas 6,27-38), em que o amor, a dádiva, a bondade, elevados até ao absurdo, constituem o fio condutor do inteiro Discurso, e também o verdadeiro cartão de identidade do discípulo de Jesus. Também aqui vale a pena atravessar o texto, deixando-nos, todavia, atravessar também pelo texto:

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«A vós que estais a escutar, eu digo: “Amai os vossos inimigos, fazei bem àqueles que vos odeiam, bendizei (eulogéô) os que vos amaldiçoam (kataráomai = katá + ará [= maldição]), rezai por aqueles que vos caluniam. Àquele que te bater numa face, oferece também a outra, e àquele que te tirar o manto, deixa-o levar também a túnica. A todo aquele que te pede, dá, e àquele que levar o que é teu, não lho reclames. Como quereis que vos façam as pessoas, fazei-lhes vós do mesmo modo.

E se amais os que vos amam, que graça (cháris) vos é devida? Na verdade, também os pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis bem aos que vos fazem bem, que graça (cháris) vos é devida? Também os pecadores fazem o mesmo. E se emprestais àqueles de quem esperais receber, que graça (cháris) vos é devida? Também os pecadores emprestam aos pecadores para receberem outro tanto. Em vez disso, amai os vossos inimigos e fazei bem e emprestai sem esperar receber nada em troca, e será grande a vossa recompensa (misthós), e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é amável (chrêstós) para com os ingratos (acháristoi) e os maus (ponêroí).

Tornai-vos misericordiosos (oiktírmones) como também o vosso Pai é misericordioso (oiktírmôn). E não julgueis, e não sereis julgados; e não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados; dai, e ser-vos-á dado: uma medida boa, calcada, sacudida, a transbordar, será dada no vosso regaço; na verdade, com a medida com que medirdes, sereis medidos também”» (Lucas 6,27-38).

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2. Convenhamos que se trata de um texto espantoso, Evangelho puro, sem glosas ou outras qualificações, que desvenda e desfaz a nossa velha lógica retributiva e respetivos comportamentos pautados pela paridade, reciprocidade e simetria, e desenha novos critérios assimétricos e gratuitos, desconcertantes para a nossa mentalidade assente nos nossos sacrossantos direitos. Se o Antigo Testamento insistia, por mais de trinta vezes, na necessidade de amar o estrangeiro, que é o outro diferente de mim, nesta página sublime do Evangelho, Jesus manda-nos amar o nosso inimigo (Lucas 6,27 e 35), que é o outro, não apenas o outro diferente de mim, mas o outro contra mim.

3. A avalanche da página evangélica cai sobre nós em três vagas sucessivas. A primeira levanta-se dos v. 27-31. Depois do amor aos nossos inimigos (note-se bem o realismo aportado pelo adjetivo vossos, nossos, teus, meus, que não nos deixa no plano dos inimigos em geral ou virtual!), as coisas continuam, loucas e impensáveis, de acordo com a loucura de Deus (cf. 1 Coríntios 1,25), pelo caminho do paradoxo: fazei bem àqueles que vos odeiam; bendizei os que vos amaldiçoam; rezai por aqueles que vos caluniam; àquele que te tirar o manto, deixa-o levar também a túnica. Esta última maneira de fazer implica a redução à nudez, pois habitualmente, na Palestina, usavam-se apenas aquelas duas peças de roupa. Termina a primeira vaga da avalanche com a chamada «regra de ouro»: «Como quereis que vos façam as pessoas, fazei-lhes vós do mesmo modo» (v. 31). Para mais informação acerca da «regra de ouro», veja-se a análise ao Domingo V da Páscoa.

4. Se não estamos ainda submersos por esta primeira, imensa vaga, exponhamo-nos à segunda, que se levanta dos v. 32-35, e que arrasa as nossas pretensas boas doutrinas e hábitos assentes na reciprocidade e boas maneiras, e não na graça (v. 32-34). São referidas três situações emblemáticas: amar aqueles que nos amam, fazer bem a quem nos faz bem, emprestar para receber outro tanto ou mais. Note-se que, por exemplo, na Mesopotâmia, as taxas de juro oscilavam entre os 17 e os 50%! Só teremos direito a recompensa, que é a graça, se a nossa maneira de fazer saltar fora desta engrenagem da reciprocidade, e nos tornarmos imitadores de Deus, que também distribui a sua graça aos ingratos e maus (v. 35). Aí fica então exposta e clara a nossa recompensa, que não será expressa em outro tanto dinheiro destinado a ser abandonado com a morte, tão-pouco será expressa no bem-estar prometido aos justos no Antigo Testamento, mas na extraordinária possibilidade de nos tornarmos filhos de Deus, membros da família deste Deus que ama, ama, ama (v. 35).

5. A terceira vaga levanta-se dos v. 36-38, e traz para a cena outra vez a «imitação de Deus» logo naquele dito de abertura: «Tornai-vos misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso» (v. 36), logo traduzido em comportamentos e estilos de vida: não julgar, não condenar, perdoar, dar (v. 37-38).

6. Os nossos bons (pensamos nós) hábitos, não nos deixam levar esta loucura a sério. Pensamos que estes ensinamentos de Jesus são utópicos e irrealizáveis, que não são para se fazer, e assim vamos tranquilizando a nossa consciência. Sim, estamos docemente habituados e suavemente embalados pelas nossas boas maneiras ao longo de tanto tempo adquiridas. Mas chegou o tempo de renovarmos o nosso coração e o respetivo cartão de identidade! O que consta nesta altíssima carta do Evangelho não é utópico, isto é, sem lugar. É, antes, eutópico, isto é, um lugar feliz, com outros mapas, outras estradas e outras tabuadas! É possível vencer o mal com o bem (Romanos 12,14-21). Vencer sem combater, claro. Como Jesus, que desce ao nosso mundo para abraçar, absorver e absolver as nossas raivas e os nossos ódios. Como o Deus da Sabedoria, que é «o que domina a força», no belo dizer do Livro da Sabedoria 12,18.

7. Para fazer luz e receber luz deste imenso texto do Evangelho, chega hoje também aos nossos ouvidos a figura magnânima de David que, no deserto de Zif, não usou a força contra Saul, mas lhe poupou a vida, como narra a bela história do Primeiro Livro de Samuel 26,2.7-9.12-13.22-23. De facto, Saul não era apenas, como diz a bela narrativa, o «ungido do Senhor» (v. 9 e 23), mas também dormia um sono ritual (tardemah), enviado pelo Senhor (v. 12).

8. São Paulo faz, na Primeira Carta aos Coríntios 15,45-49, um extraordinário módulo narrativo, em que põe em cena, na mesma página, lado a lado, o primeiro Adam e o último Adam e ainda nós, que levamos as marcas do primeiro, mas também as do último. E é a imagem do último que prevalecerá em nós, por obra e graça de Deus.

9. O Salmo 103 é uma das joias do Antigo Testamento e constitui um grande canto ao amor de Deus, uma espécie de prelúdio ao «Deus é amor» (1 João 4,8). Desenrola-se em dois movimentos. O primeiro (v. 1-9) trata o amor e o perdão de Deus com sucessivos particípios hínicos, que mostram um Deus que perdoa, cura, redime, coroa de amor e misericórdia, sacia de bem, e uma série de nomes (justiça, dá a conhecer, obras, misericordioso, gracioso). O segundo movimento (v. 10-18) põe lado a lado o amor permanente de Deus e a nossa humana fraqueza. A linha vertical (céu-terra) serve para mostrar a imensidão do amor de Deus (v. 11), escrevendo-se na linha horizontal (oriente-ocidente) a grandeza sem medida do seu perdão (v. 12). O belíssimo v. 13 passa a imagem inultrapassável de Deus como um pai com ventre maternal (rehem). A fragilidade humana aparece traduzida nas imagens do pó (v. 14) e da erva (v. 15-16), em contraponto com a estabilidade do amor de Deus (v. 17). Sem este amor, sem esta música, seríamos talvez levados melancolicamente a pensar que é o mesmo o destino das folhas outonais e dos homens! Deixemos ecoar em nós as belas notas deste grande Salmo 103, que alguns autores já chamaram o Te Deum do Antigo Testamento.

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Ousar pôr o coração à escuta do Evangelho

É deixar-se atravessar por uma avalanche de graça

Que nos arrastará até ao coração de Deus,

E nos obrigará a mudar quase tudo

Na nossa vida e na nossa agenda,

Na nossa cómoda maneira

De nos sentarmos à lareira

Simplesmente a ver passar os dias

E a deitar contas à vida e à carteira.

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Amar os inimigos

Não é coisa que eu pudesse sequer imaginar,

Quanto mais fazer ou praticar.

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Oferecer a outra face a quem me bate,

Dar, dar tudo, dar o manto e a túnica,

Deixar-se roubar e não reclamar,

Amar os maus, os maldizentes, os delinquentes,

Os repugnantes, os incompetentes,

Amar, enfim, até ao absurdo,

Eis o que Jesus me vem dizer que Deus faz,

Que Deus faz por mim,

E que é por isso que eu também devo fazer assim,

Deixando o Evangelho ganhar corpo em mim.

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António Couto


E JESUS DESCEU PARA O MEIO DE NÓS

Fevereiro 11, 2022

1. Conta-nos São Lucas que Jesus saiu (exérchomai) para a MONTANHA para ORAR, e estava (ên: imperf. de eimí) a passar (dianyktereúôn: part. presente de dianyktereúô) a noite inteira em ORAÇÃO (Lucas 6,12). Note-se que Jesus se separa para rezar. E a expressão usada (imperfeito do verbo «ser» seguido de particípio presente) indica que Jesus rezou, sem parar, a noite inteira. O Evangelho de Lucas recorda-nos que Jesus reza sempre nos momentos importantes da sua missão. Quando amanheceu, continua São Lucas, Jesus chamou os discípulos e escolheu «Doze» a quem chamou Apóstolos, seguindo-se logo a lista dos seus nomes (Lucas 6,13-16). De notar que também Mateus 10,2 e Marcos 6,30 sabem que os Doze são Apóstolos, mas apenas Lucas refere que foi o próprio Jesus a dar-lhes este nome (Lucas 6,13). Notemos ainda que o Apóstolo é o enviado autorizado, que fala em nome de quem o envia. Não está autorizado a dizer palavras suas ou a expressar a sua opinião. Fica totalmente vinculado àquele que o envia. A primeira nota que o caracteriza é a fidelidade.

2. Depois desta introdução, parece-me oportuno, pela sua importância, inserir o texto do Evangelho que hoje será proclamado (Lucas 6,17.20-26), sem o corte dos v. 18-19:

«Tendo descido com eles, ficou de pé num lugar plano, e um grupo numeroso dos seus discípulos e uma multidão numerosa do povo (laós) de toda a Judeia e de Jerusalém e do litoral de Tiro e de Sídon, que tinham vindo para o escutar e fazer-se curar das suas doenças. E aqueles que eram atormentados por espíritos impuros eram curados, e toda a multidão procurava tocá-lo, porque uma força saía dele e curava todos. E tendo levantado os seus olhos para os seus discípulos, dizia:

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Felizes vós, os pobres,

porque vosso é o reino de Deus;

Felizes vós que tendes fome agora,

porque sereis saciados;

Felizes vós que chorais agora,

porque rireis;

Felizes sois vós, quando os homens vos odiarem, e quando vos expulsarem e insultarem e rejeitarem o vosso nome como mau por causa do Filho do Homem.

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Mas ai de vós os ricos,

porque tendes a vossa consolação;

Ai de vós, que estais saciados agora,

porque tereis fome;

Ai de vós, que rides agora,

porque andareis aflitos e chorareis;

Ai de vós, quando todos os homens disserem bem de vós:

era assim que os seus pais tratavam os falsos profetas» (Lucas 6,17-26).

3. O Evangelho deste Domingo VI do Tempo Comum começa com esta descida para um lugar plano, que não tem de ser necessariamente a planície ao nível do mar da Galileia; pode muito bem tratar-se de um planalto acessível a uma grande multidão, doentes incluídos. Vê-se e compreende-se bem que o Discurso de Jesus é, em Lucas, mais breve e apresentado num cenário plano (Lucas 6,17-7,1), bem diferente do Sermão da Montanha de Mateus, mais longo e encenado nas alturas (Mateus 5,1-7,19). Se Lucas quer pôr Jesus em contacto com toda a gente, inclusive com os doentes, é fácil compreender que Jesus tem de descer ao nível deles, e não os pode obrigar a subir à Montanha.

4. É significativo que o evangelista descreva esta grande multidão como POVO (laós) oriundo de toda a Judeia, Jerusalém, Tiro e Sídon (Lucas 6,17), que veio para escutar Jesus e ser por Ele curado (Lucas 6,18). Ao contrário dos outros evangelistas que praticamente o ignoram, Lucas introduz este POVO (laós) profusamente no seu Evangelho. Este POVO (laós) tem conotação religiosa: é o Povo de Deus que o II Concílio do Vaticano consagrará. O que faz e define este POVO (laós) não é nenhum elemento étnico, nacionalista ou histórico, mas a eleição e a graça de Deus. Qualquer pessoa, de qualquer língua, nação, raça, cultura, que oiça a Palavra de Deus e lhe responda passa a fazer parte deste Povo. Neste sentido, esta multidão pode ter no seu seio elementos estrangeiros (Tiro e Sídon), mas não deixa, por isso, de ser um POVO (laós), o Povo de Deus. É igualmente significativo que todos tenham vindo ouvir Jesus! Aos olhos dos Apóstolos, que Jesus acabara de escolher, está ali indicado proleticamente o caminho da futura evangelização.

5. Então, Jesus, de pé, e «tendo levantado os olhos» como um profeta (em Mateus «sentou-se» como um mestre), declarou de forma direta e incisiva, em 2.ª pessoa, como fazem os profetas (Mateus usa a 3.ª pessoa, estilo sapiencial, sereno e pedagógico), bem-aventurados por Deus os POBRES, os FAMINTOS de agora, os que CHORAM agora, os REJEITADOS ou DESCARTADOS de agora. Lucas é mais radical e direto do que Mateus. Às quatro bem-aventuranças junta, em contraponto, quatro mal-aventuranças, declarando malditos por Deus os RICOS de agora, os FARTOS de agora, os que RIEM agora, os que RECEBEM APLAUSOS agora. As mal-aventuranças são introduzidas por um «Ai», fórmula técnica para introduzir anúncios de desgraça no discurso profético.

6. Lucas esclarecerá mais à frente, quando for contada a história do RICO FARTO e do POBRE LÁZARO (16,19-31), que os FARTOS não são demovidos pelos profetas nem tão-pouco por um morto que ressuscite! E esta parábola do homem Rico e do pobre Lázaro, que escutaremos no Domingo XXVI, é também o melhor comentário ao texto das bem-aventuranças e mal-aventuranças de hoje.

7. Jeremias 17,5-8 faz boa companhia ao Evangelho de hoje. O profeta expõe em discurso profético, abrindo com a clássica fórmula do mensageiro que soa: «Assim disse o Senhor»,  um refrão de tipo sapiencial que percorre toda a Escritura de lés a lés: «MALDITO o homem que confia no homem, afastando-se do Senhor;/ BENDITO o homem que confia no Senhor, pondo nele toda a sua confiança». O primeiro assemelha-se ao tamarisco do deserto, mirrado e amargo, que mora numa terra salitrada e estéril; o segundo é como uma árvore viçosa plantada junto da água boa.

8. A mesma temática e até as mesmas imagens vegetais enchem o Salmo Responsorial de hoje (Salmo 1): o homem que recita a instrução do Senhor dia e noite é como a ÁRVORE plantada e que dá fruto; o malvado é como a PALHA que o vento dispersa. A ÁRVORE plantada está de pé, respira o vento, como o homem, e dá fruto; a PALHA não respira o vento, mas é levada pelo vento; e não dá fruto, mas é a casca do fruto. É também fácil entender que é a mesma lição que encontramos na antítese das «bem-aventuranças / mal-aventuranças» do Evangelho de hoje.

9. A leitura semi-contínua do Apóstolo (1 Coríntios 15,12.16-20) prossegue hoje com a temática fundamental da ressurreição, tratada de forma notável em 1 Coríntios 15, cuja primeira parte foi lida no Domingo passado. Aí, Paulo expunha o acontecimento da Ressurreição de Jesus Cristo como centro da pregação apostólica e da fé das comunidades cristãs.

10. Hoje, Paulo começa por constatar que alguns membros da comunidade de Corinto não dão ouvidos aos conteúdos da pregação apostólica e negam simplesmente a ressurreição. E fazem-no em nome da mentalidade platónica, que considera a «carne» como elemento mau e desprezível, condenado à destruição, sendo a «alma» um elemento divino que, libertado da «carne», voltará a formar uma espécie de deus cósmico. Vê-se bem que segundo esta concepção errónea, a criação é má, ao contrário da declaração de Deus, que lhe apõe, por sete vezes, o carimbo de «boa» (Génesis 1). Paulo reage vigorosamente contra esta mentalidade instalada na comunidade, e prega aquilo que os Padres chamarão a «Economia da carne». «Cristo ressuscitou, primícias dos que adormeceram». Ele é, portanto, o primeiro Homem a ser ressuscitado. E se é o primeiro, então constitui certeza para os «outros» depois dele, que abre a série. Nele a morte foi vencida para todos. A esperança fundamenta-se na certeza deste Acontecimento principal da Vida do Senhor, que dá significado a todos os outros acontecimentos da sua Vida, ao inteiro Antigo Testamento, à Igreja e à vida dos homens.

11. É este acontecimento fundante que a Igreja Una e Santa, Esposa do Senhor, celebra jubilosamente Domingo após Domingo. Também hoje, portanto.

…..

Há dois mil anos Jesus subiu ao monte,

e lá passou a noite em oração.

Quando se fez dia,

escolheu os Doze,

e com eles desceu para o meio do povo,

que de toda a parte tinha vindo

à procura da Palavra,

que sabiam carregada de Luz e de Esperança.

…..

Jesus desceu,

ficou no meio deles,

pertinho deles,

ao alcance de muitas mãos que o tocavam.

Havia lá muitos doentes:

claro que não podiam subir ao monte.

…..

Desceu Jesus,

como sempre desce Deus

ao encontro dos seus filhos,

e declarou felizes

os pobres,

os famintos,

os que tinham lágrimas nos olhos e na voz,

os descartados.

…..

Mas advertiu os ricos,

os fartos,

os que riam,

os que iam de sucesso em sucesso,

sem que os seus olhos vissem

e os seus ouvidos ouvissem

as lágrimas dos pobres e doridos.

…..

Os Apóstolos estavam lá

e viram tudo

e ouviram tudo,

e nós também hoje com eles

e Jesus no nosso meio.

…..

Ficamos todos a saber

como fazer acontecer o Evangelho.

…..

António Couto


NAQUELA MANHÃ DE HÁ DOIS MIL ANOS

Fevereiro 4, 2022

1. Naquela manhã de há dois mil anos algo de extraordinário aconteceu para que alguns pescadores do lago da Galileia – o Evangelho de Lucas 5,1-11 destaca os nomes de Pedro, Tiago e João – tenham abandonado as barcas, as redes, os peixes acabados de pescar em grande quantidade, enfim, tudo, para seguirem mais de perto Jesus.

2. Pedro, sempre ele, diz-nos o porquê da revolução operada na sua vida: «Por causa da tua Palavra, Mestre, lançarei as redes» (Lucas 5,5). Por causa da tua Palavra. Naquela manhã, Jesus ensinava (edídasken) as multidões, sentado (kathísas) na barca de Pedro, que Jesus tinha pedido a Pedro para afastar um pouco da praia para a água. Bela forma encontrada por Jesus de obrigar Pedro a ter de escutar todo o seu ensinamento! E ensinava de forma continuada: assim o indica o imperfeito do verbo grego. Sentado: é a posição do Mestre que ensina na cátedra. É ainda sentado como Mestre na barca que Jesus ordena agora a Pedro: «Afasta (a barca) para o mar profundo, e lançai as vossas redes para a pesca!» (Lucas 5,4). Pedro mostrou a sua estupefação de pescador experimentado: tinham trabalhado toda a noite e nada tinham pescado! Quanto mais agora, de dia, seria inútil fazê-lo! Lançou, porém, as redes, e pouco depois caiu de joelhos aos pés de Jesus, sempre sentado como Mestre na barca, e avançou um pedido: «Distancia-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador» (Lucas 5,8). Mas Jesus diz para Pedro: «Não tenhas medo! Doravante serás pescador de homens» (Lucas 5,10). E o narrador anota a fechar o episódio que «Tendo conduzido as barcas para terra, tendo deixado tudo, seguiram-no» (Lucas 5,11).

3. Entenda-se bem que Pedro lançou as redes para a pesca, não baseado nas suas capacidades de pescador experimentado, mas por causa da Palavra de Jesus ou sobre a Palavra de Jesus (epì dè tô rhêmatí sou). Palavra aqui diz-se rhêma, que tem o significado fortíssimo de «Palavra que acontece» ou de «Acontecimento que fala». Entenda-se também então que a nova missão de pescador de homens que Jesus lhe confia terá de ser também somente assente nesta Palavra de Jesus. A missão de Pedro e a nossa!

4. Notem-se os sucessivos «afastamentos» que são, na verdade, «aproximações». Primeiro é Jesus que pede a Pedro que afaste (epanágô) a sua barca um pouco da terra (Lucas 5,3), para poder, dessa cátedra improvisada, ensinar melhor as multidões. Note-se, todavia, que, com este recurso, Jesus põe Pedro bem junto dele! Quando Jesus pronuncia, pela segunda vez, o verbo afastar, fá-lo em imperativo dirigido ainda a Pedro (Lucas 5,4), e é para aquela pesca milagrosa que aproximará ainda mais Pedro de Jesus! A terceira vez é a vez de Pedro. E é para fazer uma profissão de fé, reconhecendo em Jesus o Senhor, isto é, Deus. E decorre deste reconhecimento que Pedro se reconheça como pecador, que não pode estar na presença do Deus Santo. Daí, o grito: «Distancia-te  (exérchomai) de mim, Senhor… (Lucas 5,8). A última palavra é, como tinha de ser, de Jesus, que dá uma nova identidade a Pedro: «pescador de homens» (Lucas 5,10). E o episódio termina com o narrador a vincular radicalmente Pedro e os companheiros a Jesus com aquele dizer: «tendo deixado tudo, seguiram-no (akolouthéô)» (Lucas 5,11).

5. Entenda-se ainda bem que este seguimento de Jesus a que Pedro e nós somos convidados, não se destina a aprender uma doutrina ou a compreender uma ideia, mas a seguir de perto uma Pessoa, Jesus de Nazaré, e a sua maneira concreta de viver. É a adesão a uma Pessoa que está em causa para Pedro e para nós.

6. De Pedro e dos seus companheiros é dito que deixaram barcas, redes, peixes, tudo, para seguirem Jesus (Lucas 5,11), decisão radical que o Evangelho de Lucas continuará a salientar noutras passagens: «Se alguém quiser seguir-me, diga não a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias, e siga-me» (Lucas 9,23); «Vendei tudo o que tendes e dai-o em esmola» (Lucas 12,33); «Aquele de vós que não renunciar a todos os seus bens não pode ser meu discípulo» (Lucas 14,33); «Vende tudo o que tens e distribui-o aos pobres» (Lucas 18,21). Seguir Jesus implica a vida toda, e implica tudo na vida.

7. É assim que Pedro se faz pescador de homens, lançando as redes da Palavra criadora de Deus até à sua morte, com o sangue, na cidade de Roma. Como memória eterna deste «pescador», que se confessa «pecador» (Lucas 5,8), ainda hoje, em todos os dias 28 de Junho, véspera da Solenidade de São Pedro e São Paulo, se coloca simbolicamente sobre a porta da Basílica de São Pedro, em Roma, uma rede de ramos de buxo. Não uma coroa de louros, mas uma rede de louros!

8. Em perfeita consonância com a cena do Evangelho, relatando-nos o verdadeiro encontro de Pedro com o Deus Santo, o Antigo Testamento oferece-nos, neste Domingo V do Tempo Comum, o majestoso texto da vocação e missão de Isaías (6,1-8). No decurso de uma liturgia no Templo de Jerusalém, Isaías é investido como Profeta. Estamos por volta de 736 a.C., época provável da morte do rei Ozias, referida em Isaías 6,1. Perante a manifestação do Deus três vezes Santo, sentado no trono da graça que é o propiciatório da Arca da Aliança que ocupa o centro do Santo dos Santos do Templo, Isaías não tinha evasivas. Quando o Deus Santo se manifesta ao homem, provoca nele o mais intenso movimento de relação, movimento mortal, fulminante (Êxodo 33,20; Jeremias 30,21). Assim, Isaías, que tinha sido arrastado para um tão intenso movimento relacional, constata que devia estar morto, e, todavia, está vivo, bem vivo, vivificado! Milagre! E Isaías soube receber-se como dado, como filho da Palavra criadora de Deus e não já apenas dos seus pais ou da sua pátria, e doar-se, por sua vez, a Deus de acordo com a sua nova identidade, vocação e missão de Profeta. Como Pedro no Evangelho de hoje.

9. A grande aclamação do «Santo, Santo, Santo» faz parte substancial e central da celebração de todas as Igrejas cristãs. Se virmos bem, também nós hoje e aqui estamos perante o «Santo, Santo, Santo». Exatamente no lugar de Isaías e de Pedro…

10. A leitura semi-contínua do Apóstolo Paulo prossegue hoje com um texto de fundamental importância (1 Coríntios 15,1-11), um «credo» cujo conteúdo é o Evangelho (euaggélion) fielmente evangelizado (euaggelízomai) pelo Apóstolo e fielmente recebido (paralambánô) e guardado (katéchô) pela comunidade cristã de Corinto. O Apóstolo enuncia os dois grandes elos da genuína cadeia da Tradição: «Transmiti-vos (paradídômi) o que eu recebi (paralambánô)». Transmitir e receber e de novo transmitir sem interrupção. Os conteúdos da Tradição (parádosis) do Evangelho são: a) Cristo morreu pelos nossos pecados «segundo as Escrituras»; b) foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia «segundo as Escrituras»; c) o Senhor Ressuscitado fez-se ver a Cefas e aos Doze, depois a mais de quinhentos irmãos (a maioria dos quais ainda estavam vivos quando Paulo escrevia, podendo, por isso, testemunhar), depois a Tiago, depois a todos os discípulos, e, por último, ao próprio Apóstolo Paulo que escreve e no qual opera a graça de Deus. Todos, o Apóstolo e os Apóstolos, anunciam (kêrýssô) este Evangelho, e todos, o Apóstolo, os Apóstolos e os fiéis, nós também, acreditámos (pisteúô) neste Evangelho e vivemos deste Evangelho, que é a nossa vida verdadeira (Gálatas 2,20; Filipenses 3,21).

11. O Salmo 138, que hoje cantamos, é «o canto do chamamento universal», como o define S.to Atanásio (séc. IV). O orante, voltado para o Templo (v. 2), como era usual fazer-se no judaísmo tardio (o islamismo fá-lo-á mais tarde em relação a Meca), sente e sabe que a sua oração não esbarra contra um céu cerrado, surdo e mudo, mas é registada e repercute-se no coração de Deus, que em caso algum abandona a obra das suas mãos (v. 8). Grande Ação de Graças deste orante (v. 1) e dos reis de toda a terra (v. 4). Nossa também.

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Naquela manhã de há dois mil anos,

Algo de extraordinário aconteceu,

Para que aqueles pescadores experimentados,

Que pela manhã regressavam da faina desanimados,

Sem nada terem pescado,

Agora que o sol já se levantava,

A uma palavra de Jesus a eles dirigida,

Tenham lançado outra vez as redes ao mar,

E tenham visto os peixes inundá-las.

…..

Naquela manhã de há dois mil anos,

Algo de extraordinário aconteceu,

Tudo por causa de uma palavra de Jesus.

…..

O que ali aconteceu foi tudo de tal monta,

Que Simão Pedro

E os outros que estavam com ele,

Se puseram a fazer contas à vida,

E decidiram deixar logo ali,

Abandonados junto à praia,

Os barcos, as redes e os muitos peixes.

…..

Naquela manhã de há dois mil anos,

E sem poder sair do refluxo daquela palavra nova de Jesus,

Aqueles pescadores tiveram que decidir

Ficar com os barcos, as redes, os peixes e o mar,

Ou seguir no encalço de Jesus.

…..

Claro que escolheram seguir Jesus:

Não se pode abandonar a nascente de tantas maravilhas!

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Ensina-nos, Senhor,

Nesta manhã em que o sol nasce como há dois mil anos,

A saber ouvir e escolher a tua Palavra de amor,

E a deixar para trás tudo o que nos impedir

De ir contigo.

…..

António Couto


APRESENTAÇÃO DO SENHOR

Fevereiro 1, 2022

1. A Igreja Una e Santa celebra no dia 2 de Fevereiro, quarenta dias depois do Natal, a Festa da Apresentação do Senhor, que as Igrejas do Oriente conhecem por Festa do Encontro (Hypapantê) e dos Encontros: Encontro de Deus com o seu Povo agradecido, mas também de Maria, de José e de Jesus com Simeão e Ana. Também connosco.

2. Quarenta dias depois do seu nascimento, sujeito à Lei (Gálatas 4,4), Jesus, como filho varão primogénito, é apresentado a Deus, a quem, sempre segundo a Lei de Deus, pertence. De facto, o Livro do Êxodo prescreve que todo o filho primogénito, macho, quer dos homens quer dos animais, é pertença de Deus (Êxodo 13,11-13), bem como os primeiros frutos dos campos (Deuteronómio 26,1-10).

3. É assim que, para cumprir a Lei de Deus, quarenta dias depois do seu nascimento, Jesus é levado pela primeira vez ao Templo, onde, também pela primeira vez, se deixa ver como a Luz do mundo e a nossa esperança.

4. O Evangelho a escutar, amar e admirar é Lucas 2,22-40. Compõe a cena um velhinho chamado Simeão, nome que significa «Escutador», que vive atentamente à escuta, em Hi-Fi, alta-fidelidade, alta frequência, alta definição, amor novo, e que o Evangelho apresenta como um homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel. Ora, esse velhinho que vivia à espera e à escuta, com extremosa atenção e coração vigilante, veio ao Templo sob o impulso do Espírito (en tô pneúmati). Fica aqui declarada a qualidade da energia e da alegria que move o velho e querido Simeão: não é movido a carvão, nem a água, nem a vento, nem a petróleo e seus derivados, nem a eletricidade, nem sequer a energia nuclear. Simeão é movido pelo Espírito Santo. Maneira novíssima de viver, pausa e bemol na nossa impetuosidade, na nossa vontade de aparecer e de fazer, pausa e bemol nos nossos protagonismos e vontade de poder. Falamos quase sempre antes do tempo, e não chegamos a dar lugar à suave voz do Espírito. Na verdade, adverte-nos Jesus: «Não sois vós que falais, mas o Espírito Santo» (Marcos 13,11; cf. Mateus 10,20; Lucas 12,12). Portanto, é urgente esperar! Regressemos, pois, à beleza de Simeão. Ao ver aquele Menino, recebeu-o carinhosamente nos braços. Por isso, os Padres gregos dão a Simeão o título belo de Theodóchos [= «recebedor de Deus»]. É então que Simeão entoa o canto feliz do entardecer da sua vida, um dos mais belos cantos que a Bíblia regista: «Agora, Senhor, podes deixar o teu servo partir em paz, porque os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos, Luz que vem iluminar as nações e glória do teu povo, Israel!» (Lucas 2,29-32).

5. E, na circunstância, também uma velhinha chegou carregada de Graça e de Esperança. Chamava-se Ana, que significa «Graça». É dita «Profetisa», isto é, que anda, também ela, sintonizada em Hi-Fi, alta-fidelidade, com a Palavra de Deus, escutada, vivida e anunciada. Diz ainda o texto que era filha de Fanuel, nome que significa «Rosto de Deus», e que era da tribo de Aser, que quer dizer «Felicidade». Tanta intimidade com Deus! Também esta velhinha, serena e feliz, com 84 anos, número perfeito de números perfeitos (7 x 12), teve a Graça de ver aquele Menino. E diz bem o texto do Evangelho que Ana «falava daquele Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém» (Lucas 2,38). Outra vez a beleza inteira do díptico do Evangelho de Lucas: Simeão e Ana. Simeão esperava e Ana anunciava. Eis aqui presente, nestes dois maravilhosos velhinhos, a inteira Escritura dos dois Testamentos, e o retrato a corpo inteiro do Consagrado, que, na Bíblia hebraica, se diz Nazîr, um nome passivo e recetivo, totalmente dedicado a Deus, conduzido por Deus, «compondo» com emoção os acontecimentos de Deus.

6. Esta é a Festa da Alegria e da Esperança acumulada e realizada. É a Festa da Luz. Simeão e Ana viram a Luz e exultaram de Alegria. Hoje somos nós que nos chamamos Simeão e Ana. Somos nós que recebemos esta Luz nos braços, e que ficamos a fazer parte da família da Felicidade e a viver pertinho de Deus, Rosto a Rosto com Deus, Escutadores atentos do bater do coração de Deus, movidos pelo Espírito de Deus, Recebedores de Deus, Anunciadores de Deus. Rezamos hoje para que, nesta sociedade de coisas e de números (cf. Isaías 5,8), os Consagrados vivam cada vez mais Rosto a Rosto com Deus, e deem testemunho no mundo deste Dom maravilhoso.

7. Por isso e para isso é que Ele vem, conforme a lição de Malaquias 3,1-4 e Hebreus 2,14-18. Vem de Deus, mas senta-se connosco. Em tudo semelhante aos seus irmãos. Lava-nos os pés e a alma. Apaga os nossos pecados. Põe-nos em comunhão com Deus. Tanta proximidade faz deste Dia a Festa do Encontro.

8. Não nos conformemos, pois, com as pedras e as pautas deste mundo (Romanos 12,2). Experimentemos viver em Hi-Fi, alta frequência, alta-fidelidade, alta dedicação, amor novo. Anda por aí uma música nova à nossa espera. É como um som que nunca se ouviu, como um silêncio que nunca se calou! Que Maria, a Mãe da Alegria, nos leve pela mão e nos ensine a subir e a descer a escadaria do coração.

9. Por isso, cantemos e aclamemos, com o Salmo 24, o Senhor do Universo e Rei da Glória, que vem e entra no seu Templo e na nossa frágil humanidade, que Ele glorifica. No último andamento deste Salmo (v. 7-10), justamente a parte Hoje cantada, as portas do Templo e as da nossa vida, personificadas, são convidadas a abrir-se e a levantar-se, para que possa entrar em nossa Casa o Rei, Senhor dos Exércitos, um título que a Bíblia regista por 279 vezes. Gerhard Ebeling (1912-2001) comenta assim este Salmo arcaico: «São três os pressupostos fundamentais do texto. O primeiro é que Deus criou o mundo, e é o seu Senhor. O segundo é que devemos comparecer junto de Deus e ser interrogados sobre o que fizemos. O terceiro é que Deus vem para o que é seu, e deseja ter livre acesso. Estas são três formas elementares da experiência de Deus e da relação com Deus: nós vivemos por obra de Deus, diante de Deus, e podemos viver com Deus». E o poeta francês Paul Claudel (1868-1955), recolhendo o último tema, o da vida com Deus, exclamava: «Aqui, Deus! Aqui, o nosso Deus, o Senhor dos Exércitos, que está empenhado, através dos séculos, em transferir-nos para a sua eternidade».

……….

Toda a vida consagrada

É uma vida com dedicatória

Obrigatória

Ao autor de cada madrugada

Perfumada,

Senhor de mim

E do meu sim.

……….

Desde sempre pensado e amado,

É-me dado um segmento de tempo

Para responder ao Amor,

E a eternidade inteira

Para viver à tua beira,

À tua maneira.

……….

Ó mar imenso do Amor,

A que eu chamo Senhor,

Obrigado por olhares por mim e para mim,

Tão humano e pequenino,

E por me dares por destino

O teu coração divino.

……….

Que eu seja, então, sempre Amor em cada dia,

Ao teu dispor,

Senhor da minha alegria.

……….

António Couto