EM NOME DO PAI E DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO

Junho 2, 2023

Ex 34,4b-6.8-9; Dn 3; 2 Cor 13,11-13; Jo 3,16-18

1. A oração e a bênção «em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo» pressupõem o anúncio de Deus, que é Pai, Filho e Espírito Santo, bem como a fé nesse Deus. O Nome de Deus é posto em relação com o conhecimento que temos dele. Deus manifesta o seu Nome, para que possamos conhecê-lo, para que nos possamos dirigir a ele e entrar em relação com ele. Jesus deu-nos a conhecer Deus como Pai, Filho e Espírito Santo, e é este o núcleo mais profundo da sua mensagem. Na verdade, Jesus dá-nos a conhecer Deus de uma forma não acessível antes dele. O Antigo Testamento conhecia o Deus Criador do céu e da terra, que tem diante de si apenas criaturas, infinitamente diferentes dele, e em que não se entrevê nenhum digno interlocutor de Deus. No plano divino, este Deus parece estar sozinho consigo mesmo habitando uma sublime solidão. Mas Jesus anuncia e manifesta um Deus que, no plano divino, tem um interlocutor de pleno valor: o Deus de Jesus não está sozinho, mas vive em comunhão. Diante do Pai está o Filho, ambos unidos entre si, conhecem-se, compreendem-se e amam-se reciprocamente na plenitude e perfeição divinas, por meio do Espírito Santo.

2. Dando um passo em frente, vê-se então que o Deus de Jesus, enquanto dádiva suprema fundante, princípio da doação, é o Pai. Mas a dádiva suprema do Pai, infinita riqueza, constitui o Filho, termo da doação, infinita pobreza, que tudo recebe. Mas, ao receber tudo, infinita receção, o Filho volta a dar tudo numa infinita doação sem defesa e sem limites. Dizer que Deus é também Filho parece escandaloso. Mas é, ao invés, maravilhoso: o facto de Deus se revelar, não apenas como Pai que dá a vida, mas também como Filho que a recebe e acolhe, e vem partilhar connosco, abre imensas e preciosas perspetivas para a nossa vida humana e espiritual. Levantando uma vez mais o olhar para Deus, Pai que se dá e Filho que se recebe, verificamos então que esta comunhão-comunicação-vida-amor de si-a-si, circular, vertiginosa, tranquila e imperecível, constitui o Espírito Santo, a Pessoa-Dom incriado, para o dizer com a bela expressão de S. João Paulo II na Carta Encíclica Dominum et vivificantem [1986].

3. Deus faz-se ver nos interstícios do nosso humilde chão quotidiano. Foi quanto Nicodemos pôde depreender ao ver os sinais (sêmeîa) que Jesus fazia (cf. João 3,2b-3). Todavia, daqui para a frente, não há passo racional, nosso, que possamos dar. Não resta a Nicodemos outra via (não Tomista) que não seja ir ao encontro de Jesus (cf. João 3,2a), não na sua condição de «o mestre de Israel» (ho didáscalos toû Israêl) (João 3,10), mas do discípulo que sabe depor as suas armas de mestre aos pés de Jesus, «o Mestre que veio de Deus» (apò theoû elêlythas didáskalos) (João 3,2b), o Mestre que não estudou em nenhuma das nossas escolas, como dizem e repetem, admirados, os insuspeitos Judeus (cf. João 7,15). As pequenas mãos de Nicodemos, e as nossas também, não dispõem de nenhum argumento ou instrumento de acesso que nos permita ir além da gélida impassibilidade das leis da natureza. Ora, naquele Jesus que Nicodemos via, havia claros sinais de que «Deus estava com Ele» (ho theòs met’ autoû) (João 3,2b). Em Jesus, era então visível um acesso à vida divina e eterna (zôê aiônios). E foi isso que levou Nicodemos a sair tremulamente do seu estudado quotidiano de «mestre de Israel», para ir ao encontro de Jesus, o Mestre que veio de Deus, e que não estudou em nenhuma das nossas escolas.

4. Chegado junto de Jesus – «o Mestre que veio de Deus» –, Nicodemos – «o mestre de Israel» – tropeça logo nos seus limites. De facto, ouve de Jesus que, para ter acesso à vida divina e eterna (Reino de Deus nos Sinóticos; em João só em 3,3.5), é preciso nascer de novo (ánôthen: «de novo», «do alto», «do princípio» (João 3,3.5.7). Fica completamente baralhado Nicodemos, de tal modo que chega a perguntar a Jesus se está a sugerir que «se pode entrar segunda vez no seio de sua mãe e nascer» (João 3,4). Jesus, que «fala do que sabe» (cf. João 3,11), explica que este novo início não pode ser uma repetição (seria uma contradição), nem o podemos alcançar pelos nossos meios. Não está nas nossas mãos poder chegar a ele. É dom de Deus. É-nos dado no batismo pelo poder criador de Deus. Mas Jesus esclarece ainda que, embora esta vida nova seja dom de Deus, dado por Deus, tal não significa, no que a nós diz respeito, que devemos ficar de braços cruzados, assumindo uma atitude meramente passiva. Na verdade, este início de vida nova, dom de Deus, dado por Deus, requer de nós que acreditemos no Filho Monogénito de Deus (João 3,16). A conexão entre nascer de Deus e acreditar no seu Filho está claramente afirmada em 1 João 5,1: «Todo aquele que acredita que Jesus é o Cristo, nasceu de Deus (ek toû theoû gegénnêtai)».

5. Daqui para a frente é todo o dizer do Evangelho deste dia (João 3,16-18). É, portanto, Jesus que se diz a Nicodemos. Não é a história ou a narrativa de um dizer livresco, amarelecido e anódino. É o Mestre que vem de Deus para dizer Deus a Nicodemos, a mim e a ti. Jesus não diz coisas; diz Deus. Não ensina conteúdos para aprender; dá-nos Deus que nos ama, e que, por amor, nos entrega o seu Filho Monogénito, Jesus, para acreditar, e muitos irmãos para amar. Portanto, Nicodemos fica sem jeito: não lhe compete apenas aprender o que Jesus lhe pode ensinar; compete-lhe receber Jesus, que Deus lhe entrega por amor. E compete-lhe ainda saber que esta enchente de amor, que vem de Deus, é para todos, e não apenas para ele, pelo que, responder a esta enxurrada de amor, passará sempre por amar também, no quotidiano, os seus irmãos.

6. Sim, é tal a grandeza do amor de Deus por nós, que, por amor de nós, entrega até o seu Filho Monogénito para assumir e absorver os nossos erros, saldar as nossas dívidas, suportar os nossos maus tratos e a nossa violência, poder ter mesmo que entregar a sua vida nas nossas mãos violentas e assassinas, sem deixar de nos amar, para nos salvar.

7. A afirmação de Jesus é absolutamente assombrosa, impensável, desarmante: «Deus amou de tal modo o mundo, que lhe entregou o seu Filho Monogénito» (João 3,16), o Filho do seu amor. Para que não nos passe ao lado a força do que acabámos de ouvir, talvez possamos perguntar: Quem é o pai ou a mãe (aqui presente) que está disposto a entregar o seu filho ou filha a um grupo de malvados para, com esse gesto de extrema ousadia, tentar retirar do mal aqueles malvados? Penso que não haverá (aqui) ninguém que se atreva a fazer uma coisa destas. O que nós não somos capazes de fazer, fê-lo Deus por nós, que não somos grande coisa! Entregou-nos o seu Filho querido, e nós cravámo-lo naquela Cruz!

8. O texto do Antigo Testamento que faz equilíbrio com o Evangelho deste Dia Solene da Santíssima Trindade é a chamada magna charta do amor de Deus, que hoje podemos ler no Livro do Êxodo 34,4-9. A primeira frase [«E passou (ʽabar) o Senhor diante dele (Moisés), e proclamou/invocou (qaraʼ): “Senhor, Senhor”»], é de ligação, mas reveste-se de grande importância. A ação de «passar», por parte de Deus, significa, por um lado, a sua presença livre, boa e bela, e, por outro lado, que nós não podemos pôr sobre Ele a nossa mão, controlá-lo, nossa permanente tentação. «E passou o Senhor» (Êxodo 34,6) cumpre a promessa boa de Deus a Moisés, feita em Êxodo 33,19, de fazer passar diante de Moisés toda a sua bondade e beleza (kol-thûbî). E que esta «passagem» é boa e bela vê-se em contraponto com as visões do Livro de Amós, em que Deus declara: «Veio o fim (qets) para o meu povo, Israel; não continuarei a passar para ele (loʼʽabar lô)» (Amós 8,2; cf. 7,8). E o facto de o Senhor aparecer a proclamar/invocar (qaraʼ) o seu próprio Nome é coisa única, única vez em toda a Escritura em que o Senhor é sujeito do verbo qaraʼ, na expressão qaraʼ beshem, «proclamar/invocar o Nome». Por norma, a locução qaraʼ beshem YHWH encontra-se nos lábios dos adoradores e suplicantes, e significa aí «invocar o Nome de YHWH». Posta na boca do próprio Deus, a locução há de significar, em primeiro lugar, proclamar, mas sem anular a beleza e a surpresa de o próprio Deus invocar também o seu Nome, a sua plenitude de Amor, de que todos recebemos graça sobre graça (cf. João 1,16). A exegese costuma, neste lugar, acentuar o «proclamar», deixando de lado o «invocar», querendo quase explicar que Deus não pode invocar o seu próprio Nome, isto é, rezar. Mas só este duplo dizer de Deus, de revelação e de oração, constitui a verdadeira revelação de Deus, e assenta as bases para que o crente possa invocar proclamando, ou proclamar invocando, anunciando, rezando, com doçura e estremecimento, este Nome, esta Presença Amante e Fiel. Tão extraordinária maneira de dizer deixa-nos, pois, não no domínio da metafísica, mas da revelação, da anunciação, da oração, da adoração, ato fundador e modelar da nossa oração, contemplação e ação.

9. Não será, neste contexto, de estranhar que, nesta exposição de Deus, Deus exposto diante de Moisés com toda a sua bondade e beleza, como acontece em Êxodo 34,6-7, e que não pode deixar de lembrar Jesus Cristo exposto (proétheto) na Cruz (cf. Romanos 3,25), «exposto por escrito (proegráphê) diante dos nossos olhos» (Gálatas 3,1), Moisés se tenha «apressado a responder ajoelhando-se (qadad) no chão e prostrando-se em adoração (hishtahawah, forma hitpael de shahah), e dizendo: “Por favor, se encontrei graça aos teus olhos (՚im-na՚ matsa՚tî hen beՙênêka), Senhor, vem, por favor, Senhor, para o meio de nós, que somos um povo de dura cerviz, e perdoa (salah) a nossa culpa e o nosso pecado”» (Êxodo 34,8-9).

10. Entre esta necessária aproximação teofânica centrada no essencial, e o essencial é sempre pessoal, que é a passagem boa e bela de Deus (Êxodo 34,6a), exposição de Deus, e a oração e adoração humana por ela provocada (Êxodo 34,8-9), sem os fenómenos exteriores habituais, como relâmpagos, trovões, tremores de terra, fogo devorador (cf. Êxodo 19,16 e 18), aí está, dentro do caixilho, o quadro central, que abre com a repetição do Nome «Senhor, Senhor», única vez em toda a Escritura, duplicação certamente com valor enfático, mas também litúrgico, orante, adorante. Deus diz-se a Si mesmo como nos diz a nós: «Moisés, Moisés» (Êxodo 3,4), «Samuel, Samuel» (1 Samuel 3,4), «Saulo, Saulo» (Atos 22,7), com Amor imenso e intenso, orante, comovido, exposto! Convenhamos que, neste tremendo dizer, não conta apenas o facto de Deus se dizer a Si mesmo. Conta também, e talvez sobretudo, o modo como Deus se diz a Si mesmo.

11. O Apóstolo traz-nos hoje, no final da sua correspondência com a comunidade de Corinto (2 Coríntios 13,11-13), a fórmula trinitária com que abrimos a nossa Eucaristia: «A graça do Senhor Jesus Cristo e o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós». É, de facto, em clave trinitária que vivemos e rezamos. É esta a vida eterna (zôê aiônios) a que, por graça, somos chamados e destinados: viver na graça de Jesus Cristo, no amor do Pai e na comunhão do Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém.

António Couto

Advertisement

SENHORA DA VISITAÇÃO

Maio 30, 2023

Senhora da Visitação,

Que corres ligeira sobre os montes,

Vela por nós,

Fica à nossa beira.

É bom ter a esperança como companheira.

Contigo rezamos ao Senhor:

Dá-nos, Senhor,

Um coração sensível e fraterno,

Capaz de escutar

E de recomeçar.

Mantém-nos reunidos, Senhor,

À volta do pão e da palavra.

Ajuda-nos a discernir

Os rumos a seguir

Nos caminhos sinuosos deste tempo,

Por Ti semeado e por Ti redimido.

Ensina-nos a tornar a tua Igreja toda missionária,

E a fazer de cada paróquia,

Que é a Igreja a residir

No meio das casas dos teus filhos e das tuas filhas,

Uma Casa grande, aberta e feliz,

Átrio de fraternidade,

De onde se possa sempre ver o céu,

E o céu nos possa sempre ver a nós.

António Couto


VISITAÇÃO DA VIRGEM SANTA MARIA

Maio 30, 2023

1. A Igreja celebra hoje, no último dia do mês de maio a ela dedicado, a Festa da Visitação da Virgem Santa Maria. O Evangelho desta Festa que o Povo de Deus dedica a Maria lembrando o episódio da sua Visitação a Isabel é tecido naturalmente com o texto da «Visitação» (Lucas 1,39-45), a que acresce o cântico da «Exultação» ou «Magnificat» (Lucas 1,46-56), um e outro exclusivos da pena de Lucas. No que ao episódio da Visitação diz respeito, note-se uma pequena diferença de tonalidade: o episódio evangélico que o Ocidente conhece por «Visitação», recebe no Oriente o nome de «Saudação» (aspasmós). E o episódio que precede e motiva esta «Visitação» ou «Saudação» recebe no Ocidente o nome de «Anunciação» e no Oriente o nome de «Evangelização» (euangelismós) (Lucas 1,26-38). Verdadeiramente o que transparece desta figura de Maria é a Leveza e a Alegria em trânsito, a caminho, ao ritmo do vento do Espírito, música nova, inefável e bendita. Vinda de Deus até Maria, até Isabel, até João Batista, outra vez até Deus na sublime oração de Maria. Lembra uma pequena parábola rabínica que, quando David andava fugido de Saul, buscando refúgio nas montanhas (1 Samuel 22 e seguintes), um dia dependurou a sua harpa numa árvore, e adormeceu. Mas o vento, passando, fez as cordas da harpa exalar uma suave melodia. Verdadeira música do Espírito. Tudo isto pode ver-se na figura ímpar de Maria.

2. É igualmente sugestiva a intuição dos Mestres judaicos, registada por Martin Buber nos seus «Contos dos Justos». Citando o Salmo 147,1, em que se lê: «É bom cantar ao nosso Deus», Buber apresenta logo a bela interpretação que Rabbi Elimelek dava deste versículo: «É bom se o homem faz cantar Deus nele». Música divina. Assim Maria correndo sobre os montes e saudando Isabel, em casa de quem permanece cerca de três meses, e cantando as maravilhas de Deus no Magnificat, assim Isabel bendizendo Maria e bendizendo Deus, assim João Batista, dançando ao som dessa nova música inefável, no ventre de Isabel.

3. Maria levantou-se e partiu apressadamente (Lucas 1,39a): aí está o lema para a cada vez mais próxima JMJ de 2023. Maria correndo sobre os montes (Lucas 1,39b): feliz evocação do mensageiro de boas notícias de Isaías 52,7: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia boas novas a Sião, exultação logo partilhada pelas sentinelas de Sião, na qual participam até as ruínas!…». Feliz evocação também do amado do Cântico dos Cânticos 2,8, assim cantado pela amada: «A voz do meu amado: ei-lo que vem correndo sobre os montes». Assim, com este simples acorde montanhoso, o grande retratista que é Lucas apresenta-nos Maria como uma Mulher Bela, Encantada, cheia de Alegria, Esposa Amada e Habitada por Notícias Felizes, pela Notícia Feliz, isto é, pelo Evangelho em Pessoa, Jesus, que Maria humildemente serve e ternamente apresenta, mais tarde a Senhora Odighítria, venerada nas Igrejas do Oriente, que com a mão aponta o caminho verdadeiro, o seu Filho Jesus, que leva ternamente ao colo.

4. Seria bom que nos demorássemos longamente a contemplar esta figura de Maria, bela, leve e feliz. Contemplando esta figura cheia de beleza e de leveza, estamos já a ver, em contraluz, o retrato dos Evangelizadores do Evangelho, também belos, leves e felizes e habitados por um amor novo: sem ouro nem prata nem cobre nem alforge nem duas túnicas. E, se olharmos agora um bocadinho para nós, verificaremos logo, em contraponto, que talvez levemos peso a mais!

5. Esta Mulher Bela, Esposa Amada e Feliz, saúda Isabel. Não pode senão encher de Alegria o mundo de Isabel, que irrompe naturalmente num hino de louvor, acrescentando mais umas palavras à oração da «Ave-Maria», iniciada pelo Anjo: «Ave [Maria], cheia de graça, o Senhor é contigo», disse o Anjo (Lucas 1,28). Acrescenta agora Isabel: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre [Jesus]» (Lucas 1,42), e aponta logo a seguir Maria como «Mãe do meu Senhor» (Lucas 1,43), desvelando o seu nome grande de «Mãe de Deus», começo da «[Santa Maria], Mãe de Deus».

6. Isabel continua com a aclamação: «Bendita tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre» [= «Bendita tu e bendito Deus»], lembra o duplo «Bendito» na aclamação de Judite (13,18). A locução maravilhada de Isabel: «E de onde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?» (Lucas 1,43), remete para o atónito dizer de David: «E de onde me é dado que venha ao meu encontro a Arca do Senhor?» (2 Samuel 6,9). E a «dança de João» reclama a dança de David na presença da Arca do Senhor (2 Samuel 6,5.14.16.21). E os «cerca de três meses» de permanência de Maria em casa de Isabel, regressando então a sua casa (Lucas 1,56), não são, como vulgarmente se pensa, para indicar que Maria está presente no nascimento de João Batista, pois este apenas é narrado no versículo seguinte (Lucas 1,57). É, antes, outra vez o acerto com a Arca do Senhor, que permanece cerca de três meses na casa de Obed-Edom (2 Samuel 6,11). Os acordes textuais evidentes mostram Maria como a Arca da Nova Aliança, como, de resto, é aclamada pelo Povo de Deus, quando recita a ladainha de Nossa Senhora.

7. O que verdadeiramente me extasia e inebria é esta música divina, alentando as cordas do nosso humano, e quase sempre orgulhoso, coração. Vem outra vez a propósito a velha sabedoria judaica, que nos legou esta bela pequena história: «Conta-se que, quando David terminou o Livro dos Salmos, se sentiu muito orgulhoso. Então disse para Deus: “Senhor do mundo, quem de entre todos os seres que criaste, canta melhor do que eu a tua glória?”. Naquele momento, apareceu uma rã que lhe disse: “David, não te envaideças. Eu canto melhor do que tu a glória de Deus”» (Sefer ha-Haggadah, 89b). Cantar a glória de Deus e as maravilhas de Deus é o que faz Maria que, no Magnificat, não se canta a si mesma. Só canta Deus em ação ontem, hoje e sempre.

8. E o Profeta Sofonias (3,14-18) mantém alta esta tonalidade festiva: «Rejubila, filha de Sião!,/ Solta gritos de alegria, Israel!»,/ «porque o Senhor está no meio de Ti!». Também este intenso convite é para nós, hoje, e deve ser vivido por nós, hoje e aqui, reunidos em assembleia litúrgica festiva, que confessamos uma e outra vez: «Ele está no meio de nós!».

9. Sempre em tom de festa e de alegria, o Salmo Responsorial, hoje um hino de louvor retirado de Isaías 12,3-6, deixa a nossa alma cheia de canções, fazendo-nos repetir (e nós repetimos o que amamos): «Povo do Senhor, exulta e canta de alegria!», ou «Exultai de alegria, porque está no meio de vós o Santo de Israel!». Sim, o povo de Deus, a sua Igreja Una e Santa, vive da música de Deus, cantando com um dos mais belos versos da inteira Escritura: «Minha força e meu canto Yah!» (Salmo 118,14; Isaías 12,2; cf. Êxodo 15,2). Yah de YHWH, como quando cantamos «Alelu-yah!» [= Louvai Yah], louvai Deus, o nosso Deus, Aquele que está no meio de nós, hoje e sempre, operando maravilhas.

António Couto


O ALENTO CRIADOR DO ESPÍRITO

Maio 26, 2023

O medo não habita a nossa casa.

O medo transforma a nossa casa em fortaleza,

Tranca portas e janelas,

Esconde-se debaixo da mesa.

Mas vem Jesus e senta-nos à mesa.

Começa a contar histórias e estrelas,

Leva-nos até ao colo de Abraão,

Até à Criação,

Sopra sobre nós um vento novo,

Rasga uma estrada direitinha ao coração:

Chama-se Perdão, Espírito, Amor, Nova Criação.

Varrido para o canto da casa pelo vento,

Rapidamente todo o medo arde.

Ardem também bolsas, portas e paredes,

E surge um lume novo a arder dentro de nós,

Mas esse não nos queima nem o podemos apagar.

Estamos lá tantos à roda desse vento, desse fogo,

Com esse vento, com esse fogo dentro,

Portugueses, ucranianos, russos e chineses,

Começamos a falar e tão bem nos entendemos,

Que custa a crer que tenhamos passaportes diferentes.

E afinal não temos.

Vendo melhor, maternais mãos invisíveis nos embalam,

Nos sustentam.

Sentimos que estamos a nascer de novo,

Percebemos que somos irmãos,

Filhos renascidos deste vento, deste lume.

E não é verdade que falamos,

Mas que alguém dentro de nós fala por nós,

Chama por Deus,

Como um menino pelo Pai.

António Couto


O ESPÍRITO SANTO E(M) NÓS

Maio 26, 2023

At 2,1-11; Sl 104; 1 Cor 12,3b-7.12-13; Jo 20,19-23

1. O Evangelho da Solenidade deste Dia Grande de Pentecostes (João 20,19-23) mostra-nos os discípulos de Jesus fechados num certo lugar, tolhidos e sedados pelo medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou impedir, nem as portas fechadas daquele lugar fechado, Vem e fica de pé no MEIO deles, o lugar da Presidência, e por duas vezes os saúda: «A paz convosco!» Claro que não é a paz feita pelas armas, como no mundo romano, nem a paz que é fruto de acordos entre as partes, como no judaísmo palestinense. Esta Paz que Jesus insiste em dar tem um aroma diferente: é dom de Deus! Jesus mostra-lhes então, não o rosto, mas as mãos e o lado, bilhete de identidade de Jesus, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, Vida dada por amor, para sempre e para todos, e vincula os seus discípulos à sua missão de dar a vida por amor: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô: tempo presente)» (João 20,21). O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): a sua missão começou e continua. Não terminou nem termina. Ele continua em missão. A nossa missão está no presente. O presente da nossa missão aparece, portanto, vinculado e agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). É-nos dito ainda que os discípulos ficaram cheios de alegria (o medo que os envolvia foi dissipado) ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo (João 20,8), também eles veem com um olhar histórico e a renovar todos os dias (indicações do tempo aoristo) a identidade do Senhor.

2. «Como o Pai me enviou, também Eu vos mando ir». Este como define o estilo da nossa missão de acordo com o estilo e a missão de Jesus. A missão de Jesus não nasce das suas ideias e jeito pessoal, nem é determinada pela sua própria vontade, mas sim pela vontade do Pai: tem o seu fundamento no Pai. Em tudo o que fez e disse, sempre Jesus manifestou, de forma clara, que era a sua comunhão com o Pai a nascente da sua missão. Portanto, assim como Jesus estava em tudo em comunhão com o Pai, também os discípulos devem estar em tudo em comunhão com Jesus. Decorre daqui que os discípulos enviados em missão não se devem apresentar em nome próprio nem agir segundo o próprio modo de pensar, fiando-se nas suas capacidades. Devem, antes, apresentar-se em nome de Jesus e sempre vinculados à missão que dele receberam. Devem ainda, como Jesus, para que a sua mensagem não soe a falso, identificar-se completamente com a mensagem proclamada O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão, Jubileu Divino do Espírito. Este sopro, este vento, este alento, só aparece neste lugar em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

3. O texto luminoso do Livro dos Atos dos Apóstolos 2,1-11, que enche e dá o tom ao dia de hoje, merece ser estendido diante de nós e por nós bem entendido. Ei-lo: «Ao ser completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. E veio de improviso, do céu, um ruído como de uma ventania impetuosa, que encheu toda a CASA onde estavam sentados. Fizeram-se ver a eles línguas como de fogo, que se dividiram, e sentou-se uma sobre cada um deles. E todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, como o Espírito dava a eles de se exprimir. Estavam então em JERUSALÉM judeus residentes, homens piedosos, vindos de todas as nações que há debaixo do céu. Tendo vindo, então, este som, convergiu a multidão e ficou perplexa, porque ouviam, cada um na própria língua, aqueles que falavam. Estavam fora de si e maravilhavam-se, dizendo: “Não são galileus todos estes que estão a falar? E como é, então, que nós ouvimos, cada um na nossa própria língua em que nascemos? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia vizinhas de Cirene, romanos residentes, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, ouvimo-los falar nas nossas línguas as maravilhas de Deus!”».

4. É fácil de ver que o texto se articula em duas vagas sucessivas: a primeira agrupa os v. 1-4, e a segunda os v. 5-11. Um único lugar no tempo, um único dia, o 50.º da Páscoa, marca as duas vagas, mas são dois os lugares no espaço que ocupam: a CASA, a sala alta do Cenáculo (v. 1-4), e a CIDADE aberta ao mundo (v. 5-12), que empresta à cena uma ressonância mundial. As duas vagas estão marcadas, logo a abrir (v. 2 e 6), pelo verbo grego gínomai, que é o verbo típico de um acontecimento que não podemos deduzir nem produzir, mas apenas constatar e descrever. Exatamente o contrário de uma doutrina, que se situa na esfera da demonstração e dedução. Qual é o acontecimento? O vento forte e o fogo que, vindos do céu, caem de improviso sobre todos os que estão sentados na casa, irrompendo depois para as praças e ruas da cidade.

5. Lá estamos nós, como se vê e era hábito, todos reunidos no Cenáculo. Mas somos logo varridos e recriados pelo vento impetuoso e incontrolável do Espírito, que varre as teias de aranha que ainda nos tolhem, e pelo seu fogo que nos purifica. O Espírito senta-se (kathízô) – bela e significativa expressão! – sobre nós, Mestre novo dos tempos novos, que orienta e guia a nossa vida, a nossa mente, coração, entranhas, mãos, pés… É o cumprimento da segunda das cinco promessas acerca da Vinda do Espírito feitas por Jesus no Evangelho de João: «Ensinar-vos-á todas as coisas e recordar-vos-á tudo o que Eu vos disse» (João 14,26). Realização em casa, no Cenáculo (Atos 2,1-4). Verificação na cidade e no mundo (Atos 2,5-11): eis-nos a falar outras línguas, dádiva do Espírito! Milagre: cessam incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças, e nasce um mundo novo de comunhão e comunicação plenas, pois todos nos entendemos tão bem como se se tratasse da nossa língua materna. Mas a nossa língua materna não é o português ou o francês ou o inglês ou o chinês, mas aquele perfeito entendimento que existe entre nós e a nossa mãe, quando somos bebés, do tempo da palavra antes das palavras, divina e humana lalação, que passa por sons e intuições, que não precisam de gramática nem sintaxe nem dicionário. Chame-se-lhe confiança, intimidade, ternura, amor. Impõe-se, nesta bela comunidade, uma atitude de vigilância permanente, pois será sempre grande a tentação de querer levar o Espírito à letra! E aí está a advertência vinda dos Coríntios, cujo falar em línguas ninguém entende (1 Coríntios 14,2), sendo preciso o recurso a intérpretes (1 Coríntios 14,28). Claro que não são as outras linguagens do Pentecostes ou do Espírito, em que todos entendem tudo tão bem! E em que todos consideraríamos um absurdo a existência de um intérprete entre a mãe e o seu bebé para traduzir aquela lalação que os dois tão bem entendem!

6. É esta divina lalação (stenagmòs alálêtos) (Romanos 8,26) do Espírito, única menção desta locução no Novo Testamento, que nos ensina a compreender que «Jesus é Senhor» (1 Coríntios 12,3) e que Deus é Pai (ʼAbbaʼ) (Gálatas 4,6; Romanos 8,15). Anote-se também a importante afirmação de que «a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum» (1 Coríntios 12,7) e «não para proveito próprio» (1 Coríntios 10,33), sendo que o que define o proveito comum é a edificação, não de si mesmo, mas dos outros (1 Coríntios 10,23-24).

7. A tradição situa no Cenáculo as duas cenas acima descritas. É a sala da Ceia Primeira (Lucas 22,12), do último serão de Jesus com os seus discípulos (Lucas 22,21-38), da Aparição do Senhor aos seus Apóstolos (Lucas 24,36), da eleição de Matias (Atos 1,26), da descida do Espírito Santo no Pentecostes (Atos 2,1-4), enfim, o primeiro lugar de encontro da primeira comunidade cristã reunida em oração com Maria (Atos 1,13-14), a primeira sede da Igreja nascente, a mãe de todas as Igrejas, a primeira domus-ecclesia [«casa-igreja»] do mundo cristão, situada uns duzentos metros a sul da muralha de Jerusalém, em local muito próximo da Porta de Sião. O atual edifício remonta ao trabalho dos Padres Franciscanos no século XIV, e sucedeu a outras construções sucessivamente edificadas e destruídas, desde a basílica da Santa Sião [Hagía Sion], do século IV. Sintomaticamente, por se encontrar no quarteirão sul de Jerusalém, o primitivo Cenáculo resistiu à destruição romana da guerra de 70, pois os romanos atacaram e destruíram a cidade a partir da parte norte, mais facilmente expugnável.

8. Associada às cenas acima identificadas, a sala superior do Cenáculo [15,30 metros por 9,40 metros] assemelha-se ao Sinai com os fenómenos então lá registados. Veja-se, a propósito, a bela descrição que deles faz Fílon de Alexandria (± 20 a.C.-50 d.C.): «Deus não tinha boca ou língua, mas, com um prodígio, fez que um rombo se produzisse no ar, que um sopro se articulasse em palavras pondo o ar em movimento. Este transformou-se em fogo que tinha forma de chamas […], e uma voz ressoava do meio no fogo e descia do céu, e esta voz articulava-se no idioma próprio dos ouvintes». Mas também Babel é evocada em contraponto: em Génesis 11,7, «ninguém compreendia mais a língua do seu próximo», mas em Atos 2,6, «cada um compreendia na sua própria língua materna».

9. O Espírito Santo é também enviado em missão. E é Aquele que recebe o que é do Filho (João 16,14 e 15), e que o Filho recebeu do Pai. O Filho é a transparência do Pai. O Espírito Santo é a transparência do Filho. O ensinamento do Espírito Santo é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), e processa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência e do coração de cada ser humano. Este ensinamento interior do Espírito Santo é comparado à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos sabeis (oídate)» (1 João 2,20); ou então: «a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 João 2,27). É a unção que lentamente penetra em nós, ocupa o nosso interior, suaviza as nossas asperezas, cura as nossas dores e faz nascer entre nós comunidade e comunhão. Maravilhoso saber que nos assemelha a Deus, que sabe e cuida de nós (Êxodo 2,25), e nos põe em confronto com Caim, que não sabe do seu irmão (Génesis 4,9), e com Pedro, que não sabe de Jesus (Mateus 26,70.72.74).

10. Ensinamento novo. Não exterior, com sons e palavras, mas diretamente nas pregas da inteligência e do coração. É assim que a linguagem nova do Espírito afeta ao mesmo tempo o português e o chinês, o inglês e o russo, o católico, o muçulmano e o hebreu. É como quando, em vez de se porem a falar cada um a sua língua incompreensível para o outro, o português e o chinês entregassem uma flor um ao outro! É assim que fala o Espírito, é assim que age o Espírito, Pessoa-Dom, fonte de dons (1 Coríntios 12,3-13).

11. Esta torrente de vida nova e não programada ou programável, esta ventania incontrolável, este fogo manso abalroa aquela casa e a cidade inteira, inunda sem aviso cada coração e move inteligências e vontades. Em plena cidade e a plenos pulmões, São Pedro traduz assim este vendaval manso: «Este Jesus, Deus o ressuscitou, e disso todos nós somos testemunhas. Exaltado à direita de Deus, recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e derramou-o sobre vós, e é isto o que vós vedes e ouvis» (Atos 2,32-33). Em pleno acordo com o dizer de Jesus em João 7,37-39: «Quem tem sede, venha a mim e beba. O que acredita em mim, como diz a Escritura, do seu seio jorrarão rios de água viva». E o narrador comenta com rigorosa precisão: «Isto dizia do Espírito que haviam de receber os que tinham acreditado nele, pois não havia ainda Espírito, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado». Sim, o Espírito Santo vem para nós da Humanidade glorificada do Senhor Jesus. Daí o importante inciso no início do cânon da Solenidade da Ascensão do Senhor, que refere esse dia como «O dia santíssimo em que Jesus Cristo, vosso Filho Unigénito, colocou à direita da vossa glória a nossa frágil natureza humana unida à sua divindade». Imprescindível. É desta humanidade glorificada do Senhor que vem o Espírito Santo para nós.

12. O Salmo 104 põe-nos a contemplar hoje as obras maravilhosas de Deus, cheias do seu alento, que são a alegria de Deus (Salmo 104,31), e a alegria de Deus é a nossa alegria (Salmo 104,34). De notar que a temática de Deus que se alegra é muito rara na Escritura. Aparece hoje no meio deste mundo novo e maravilhoso. Tema, portanto, para recuperar, pois é também a fonte da nossa alegria!

13. Nós somos do tempo da missão do Espírito. Note-se a fortíssima vinculação: «O Espírito Santo e nós» (Atos 15,28), «nós e o Espírito Santo» (Atos 5,32).

14. Deus habitando em nós (João 14,24). Deus connosco (Apocalipse 21). Cidade nova, Consolação nova, Bênção nova, Paz nova, não com a medida do mundo, mas de Deus (João 14,27; Salmo 67).

António Couto


HUMANIDADE GLORIFICADA DE JESUS

Maio 19, 2023

Com a sua Ressurreição e Ascensão aos Céus,

É glorificada a humanidade do Filho de Deus e de Maria,

Jesus,

E é desta humanidade glorificada,

À direita de Deus sentada,

Que vem o Espírito Santo para nós.

É, portanto, do vosso interesse, diz Jesus, que Eu vá,

Pois se Eu não for,

O Espírito Santo não virá para vós.

Com a Ressurreição, a Ascensão e o Pentecostes,

Celebramos, pois, a humanidade glorificada de Jesus,

Da qual,

Por contágio sacramental,

Recebemos o Dom de Deus, o Espírito Santo.

Senhor Jesus,

Enche a nossa frágil humanidade da riqueza da tua divindade,

E derrama no nosso humano coração

O Espírito da consolação,

Da paz e da alegria.

António Couto


ASCENSÃO DO SENHOR

Maio 19, 2023

At 1,1-11; Sl 47; Ef 1,17-23; Mt 28,16-20

1. A Ascensão do Senhor ao Céu põe diante de nós o «Senhor sem limites», Jesus, o Crucificado-Ressuscitado, Exaltado à direita do Pai e à sua direita Sentado: aí está exposta diante de nós a Humanidade Glorificada de Jesus, única fonte do Espírito Santo para nós (cf. João 7,39; 19,30; Atos 2,32-34). Embora em Deus tudo seja simultâneo e coeterno, no nosso discurso sobre Deus entende-se que a Ascensão precede o Pentecostes, e que não pode haver Pentecostes sem Ascensão: «É do vosso interesse que Eu vá; se Eu não for, o Espírito não virá para vós» (João 16,7). Na dinâmica da «economia» divina, foi necessário esperar a vinda deste terceiro tempo, ou tempo do Espírito, para sermos conduzidos à «verdade toda inteira» (João 16,13; cf. 14,26), que é precisamente a do Pai e do Filho. E é desta Díade divina com o Espírito, que é possível, a partir da letra da Escritura Santa, inferir a relação de consubstancialidade unida, mas não confusa, como se lê em João 10,30: «Eu e o Pai somos Um», não uma pessoa, mas uma realidade ou substância, como deriva do numeral neutro (hén), logo seguido por Mateus 28,19, com o batismo de todas as nações «no Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», Único Nome indicando a substância pessoal comum dos Três Unidos, o Único Deus, Três hypóstasis em plena e permanente synousía. É fácil perceber que esta ordem diacrónica, ou narrativa, é a ordem do nosso Credo. De facto, o caminho trinitário da Bíblia é o da sucessão, dito «económico», das três Pessoas divinas. Neste sentido, diz bem S. Gregório de Nazianzo (329-389), conhecido como «o Teólogo» (ho teólogos): «O Antigo Testamento proclamava manifestamente o Pai, o Filho de forma mais obscura. O Novo manifestou o Filho, e deixou entrever a divindade do Espírito. Agora o Espírito tem direito de cidadania (empoliteúetai) entre nós, e dá-nos uma visão mais clara de si mesmo».

2. Mateus 28,16-20 é a última página do Evangelho de Mateus, e é hoje, na Solenidade da Ascensão do Senhor, solenemente proclamada para nós. Encerra o Evangelho de Mateus, condensa-o e resume-o, e abre aos Discípulos e Irmãos do Ressuscitado novos e insuspeitados horizontes. Hoje vale a pena visitar atentamente o texto: «Então os Onze Discípulos partiram para a Galileia, para o monte que lhes tinha ordenado Jesus. E vendo-o, adoraram-no (proskynéô); alguns deles, porém, duvidaram. E aproximando-se, Jesus falou-lhes (laléô), dizendo: “Foi-me dada toda a autoridade (exousía) no céu e na terra. Indo (poreuthéntes), pois, fazei discípulos (mathêteúsate) de todas as nações, batizando-os no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar todas as coisas que vos ordenei. E eis que Eu convosco Sou (egô meth’ hymôn eimi) todos os dias até ao fim do mundo”» (Mateus 28,16-20).

3. Algumas notas surpreendentes enchem a página, o pátio, o átrio sempre entreaberto do Evangelho para o mundo: 1) a autoridade soberana e nova de Jesus [«Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra»], assente, não na distância, mas na proximidade e familiaridade; 2) a missão universal confiada a uma Igreja discipular, toda reunida à volta de um único Mestre e Senhor; 3) só nesta página é dito que os Discípulos devem, por sua vez, ensinar, não se tornando, todavia, Mestres, mas permanecendo Discípulos; 4) não ensinam, por isso, nada de próprio nem por conta própria, mas apenas «tudo o que Ele ordenou», como Jesus, o Filho, que só diz o que ouviu dizer (João 7,16-17; 8,26.38.40; 14,24; 17,8) e só faz o que viu fazer (João 5,19; 17,4), e como o Espírito Santo, que não falará de si mesmo, mas apenas o que tiver ouvido (Jo 16,13); 5) a Presença nova e permanente [= «todos os dias»] do Ressuscitado na comunidade discipular; 6) este é o tempo novo e cheio, pleno, plenificado, a transbordar de plenitude e universalidade, que abarca a totalidade, fazendo de Jesus «o Senhor sem limites»: daí a repetição por quatro vezes do adjetivo todo (pãs): foi-me dada toda a autoridade, fazei discípulos de todas as nações, ensinando-os a observar todas as coisas, convosco sou todos os dias.

4. A soberania nova, próxima e familiar, é já preparada pela cena anterior em que o anjo reorienta os passos das mulheres do túmulo para a Galileia, dizendo-lhes: «Indo depressa, dizei aos seus discípulos (toîs mathêtaîs autoû) que Ele ressuscitou dos mortos e vos precede (proágei hymâs) na Galileia» (Mateus 28,7). De forma grandemente significativa, o próprio Jesus surpreende as mulheres no caminho, e reformula assim o dizer do anjo: «Ide e anunciai aos meus irmãos (toîs adelphoîs mou) que partam para a Galileia, e lá me verão» (Mateus 28,10). Aí está a nascer a nova e indestrutível familiaridade: meus irmãos, diz Jesus, o Ressuscitado, apontando para nós e envolvendo-nos num imenso abraço fraternal. E chegados à Galileia, de acordo com o dizer de Jesus, e ao monte indicado por Jesus (Mateus 28,16), é ainda Jesus que toma a dianteira e se aproxima deles e de nós (Mateus 28,18). É sempre d’Ele a iniciativa. O monte lembra e reúne em analepse todos os montes que atravessam o Evangelho de Mateus: o monte da tentação (Mateus 4,8), o das bem-aventuranças (Mateus 5,1), o da oração (Mateus 14,23), o das curas (Mateus 15,29-31) e o da Transfiguração (Mateus 17,1), em que é sempre Ele que abraça e abre caminhos novos à nossa frágil humanidade.

5. Aquele «Indo, fazei discípulos de todas as nações» (Mateus 28,19) é a missão sem fim que é colocada diante dos nossos olhos, pois todas as nações são todos os corações. E «Indo» é não ficar aqui ou ali à espera. Implica mudança de lugar e de modo: não ficar aqui ou ali e não ficar assim, preparando já as palavras inteiras de S. João Paulo II na preparação do Grande Jubileu do ano 2000, e que Bento XVI evocou em 2005: «Paróquia, procura-te a ti mesma e encontra-te a ti mesma fora de ti mesma». É a estrada sem medida de Abraão que se abre à nossa frente. E se medida tem é a medida sem medida da eleição, da bênção e da missão. Mas não estamos sozinhos nessa estrada. Ele está connosco todos os dias. Aquele «Indo» (poreuthéntes), particípio aoristo, implica, pois, a nossa participação diária n’Ele e na missão d’Ele. O seu nome, a sua identidade, é estar connosco. É assim a terminar o Evangelho: «Eu convosco Sou todos os dias até ao fim dos tempos» (Mateus 28,20). Note-se a intensidade e a beleza da sanduíche: «Eu [convosco] Sou» (Egô [meth’ hymôn] eimi). É assim também a abrir o Evangelho: «Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um Filho, e chamá-lo-ão (kalésousin) Emanuel, que se traduz: “connosco Deus”» (Mateus 1,23). Connosco a abrir. Connosco a fechar. Então é assim todo o Evangelho, como indica a figura da inclusão literária. Mas a inclusão literária em paralelismo ou em confronto vai ainda da Galileia para onde se dirige Jesus (Mateus 4,12-17) à Galileia para onde se dirigem os Discípulos (Mateus 28,16), da visão do Menino pelos Magos (Mateus 2,11) à visão do Ressuscitado pelos Discípulos (Mateus 28,17), da adoração do Menino pelos Magos (Mateus 2,2 e 11) à adoração do Ressuscitado pelos Discípulos (Mateus 28,17), do (algum) poder deste mundo prometido pelo diabo a Jesus (Mateus 4,9) ao (todo) o poder sobre o céu e a terra dado por Deus ao Ressuscitado (Mateus 28,18). Sim, o Senhor sempre no meio de nós, Deus sempre connosco. Não apenas com alguns. Mas com todos. Note-se como o narrador, que está a citar Isaías 7,14, atualizou para o plural a forma verbal: de chamá-lo-ás (kaléseis) para chamá-lo-ão (kalésousin).

6. E aquele «ensinando» (didáskontes) discipular, e não magistral, apela mais à nossa fidelidade do que à nossa autoridade, iniciativa e capacidade. De resto, para evitar dúvidas e deixar tudo claro, lá está bem expresso o conteúdo deste ensinamento novo: «tudo o que Eu vos ordenei» (Mateus 28,20). Este «tudo» exclui qualquer acrescento a nosso gosto. É só permanecendo Discípulos fiéis que se pode ensinar. Discípulo define o estilo de vida de quem segue com fidelidade o Senhor que nos preside e nos precede sempre (Mateus 28,7). Portanto, «Vós, não vos façais chamar por Rabbî [literalmente «meu maior»], pois um só é o vosso Mestre (didáskalos), e vós sois todos irmãos» (Mateus 23,8). Irmãos e pequeninos. Tornemo-nos, pois, imitadores de Paulo, por sua vez imitador de Cristo (1 Coríntios 11,1): «Tornámo-nos crianças (nêpioi) no meio de vós, como uma mãe (trophós) que acalenta (thálpê) os próprios filhos (heautês tékna) (1 Tessalonicenses 2,7); «fiz-me escravo de todos», «fiz-me tudo para todos»; «tudo faço por causa do Evangelho» (1 Cor 9,19.22.23). Disse bem S. João Paulo II: «Quem verdadeiramente encontrou Cristo, não pode guardá-l’O para si; tem de O anunciar» (Novo Millennio Ineunte [2001], n.º 40).

7. É esta imensa, impenetrável notícia que os Discípulos de Jesus devem saber levar e semear de mansinho no subtilíssimo segredo de cada humano coração. Jesus Cristo, o Ressuscitado, vem visitar os seus Irmãos. Não. Não se trata de uma visita rápida, de quem está apenas de passagem. Ele vem para ficar connosco sempre, tanto nos ama. Imensa fraternidade em ascendente movimento filial, como uma seara nova e verdejante a ondular ao vento suavíssimo do Espírito, elevando-se da nossa terra do Alto visitada e semeada, ternamente por Deus olhada, agraciada, abençoada.

8. O Livro dos Atos dos Apóstolos 1,1-11 retoma esta lição. «E estas coisas tendo dito, vendo (blépô) eles, ELE foi Elevado (epêrthê), e uma nuvem O subtraiu (hypolambáno) dos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). E como tinham o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde ELE ia, eis (idoú) dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, e DISSERAM: “Homens Galileus, por que estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu”» (Atos 1,9-11). Entenda-se ainda bem que o Livro dos Atos é dedicado a Teófilo (Theóphilos), «amigo de Deus», e, por isso, Teófilo permanece de pé, com os olhos fixos no céu. Aí está o retrato do leitor e testemunha destes acontecimentos, não dobrado sobre si, incurvatus in se, como refere Lutero, amigo de si mesmo (phílautos), conforme o retrato em negativo que encontramos em 2 Timóteo 3,2.

9. Tanto VER. Da panóplia de verbos registados (blépô, atenízô, horáô, emblépô, theáomai), os mais fortes e intensos são, com certeza, atenízô [= «olhar fixamente»] e emblépô [= «perscrutar», «ver dentro»]. Ambos exprimem a observação profunda e prolongada, para além das aparências: VER o invisível (cf. Hebreus 11,27), VER o céu, VER a glória de Deus. Mas mais ainda do que o que se vê, estes verbos acentuam o modo como se vê. É para aí que apontam os dois homens vestidos de branco, de rompante surgidos na cena, para entregar um importante DIZER que interpreta e orienta tanto VER. Já os tínhamos encontrado no túmulo reorientando os olhos entristecidos das mulheres: «Por que () procurais entre os mortos Aquele que está Vivo? Não está aqui. Ressuscitou!» (Lucas 24,5-6). Dizem agora: «Por que () estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu» (Actos 1,11). Ao Arrebatamento de JESUS para o céu, os dois homens vestidos de branco agrafam a Vinda de JESUS. Importante colagem da Ascensão com a Vinda. E importante passo em frente para quem estava ali simplesmente especado. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Sim, Ver. Porque ELE Virá do mesmo modo que O Vistes IR. É, pois, importante guardar este Ver, viver este Ver, Ver com este Ver. Porque é Vendo assim que o SENHOR Virá. Vinda que não tem de ser relegada para uma Parusia distante e espectacular, mas que começa, hic et nunc, neste Olhar novo e significativo de quem Vê o SENHOR JESUS. Vinda que não é tanto um regresso, mas o desvelamento de uma presença permanente. Vinda já em curso, portanto, ainda que não plenamente realizada.

10. Guardemos este Olhar e prossigamos. Eis-nos no primeiro ATO propriamente dito dos Atos dos Apóstolos depois do Pentecostes: a cura de um coxo de nascença descrita em Atos 3,1-10: «Então Pedro e João subiam ao Templo para a oração da hora nona [= 15h00]. E um certo homem, que era coxo (chôlós) desde o ventre da sua mãe, era trazido e posto todos os dias diante da Porta do Templo, dita a Bela, para pedir esmola àqueles que entravam no Templo. Vendo (idôn) Pedro e João, que estavam a entrar no Templo, pedia esmola para receber. Então, fixando o olhar (atenísas) nele, Pedro, com João, disse: “Olha para nós” (blépson eis hemâs). Então ele observava-os (epeîchen), esperando receber deles alguma coisa. Disse então Pedro: “Prata e ouro não tenho, mas o que tenho, isso te dou: no nome de JESUS CRISTO, o Nazareno, [levanta-te e] caminha. E, tomando-o pela mão direita, levantou-o. Imediatamente se firmaram os seus pés e os calcanhares. Com um salto, pôs-se em pé, e caminhava, e entrou com eles no Templo caminhando e saltando e louvando a Deus. E todo o povo o viu (eîden) a caminhar e a louvar a Deus. E reconheciam que era aquele que, sentado, pedia esmola à Porta Bela do Templo, e ficaram cheios de admiração e de assombro por aquilo que lhe aconteceu» (Atos 3,1-10).

11. Outro impressionante condensado de olhares marca este primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos. Soam no texto cinco notas visuais, servidas por quatro verbos: horáô, atenízô, blépô, epéchô. Atenízô desenha o Olhar de Pedro e João fixado no coxo de nascença. Blépô retrata o Ver com que o coxo é mandado olhar o Olhar dos Apóstolos. Significativo agrafo: estes dois Olhares, com atenízô e blépô, só tinham sido usados antes, no Livro dos Atos dos Apóstolos, uma única vez, precisamente no relato da Ascensão (Atos 1,9-10). De resto, blépô conhecerá apenas mais quatro menções no Livro dos Atos dos Apóstolos: duas no relato da vocação de Paulo (Atos 9,8-9), a terceira no discurso de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia (Atos 13,41; cit. de Habacuc 1,5), e a quarta e última no decurso da viagem marítima de Paulo para Roma (Atos 27,12). Atenízô, por sua vez, far-se-á notar em lugares de relevo, sempre para expressar um Ver novo e significativo, um Ver sem haver: os membros do Sinédrio fixam os olhos (atenízô) em Estêvão, e veem-no semelhante a um anjo (Atos 6,15); Estêvão, por sua vez, fixa os olhos (atenízô) no céu, e vê a glória de Deus e JESUS, de pé, à direita de Deus (Atos 7,55); Cornélio fixa os olhos (atenízô) no anjo do Senhor, que o interpela (Atos 10,4); Pedro fixa os olhos (atenízô) na visão, vinda do céu, dos animais impuros (Atos 11,6); Paulo fixa os olhos (atenízô) no mago Elimas, de Chipre, para o fulminar pela sua falsidade e malícia (Atos 13,9), e o mesmo faz no Sinédrio, dando testemunho de JESUS (Atos 23,1).

12. É este Ver JESUS, Ver sem haver, sem poder, sem ouro nem prata (Atos 3,6), que se fixa sobre o coxo de nascença, mandado, por sua vez, olhar para este Olhar, Ver desta maneira. Como Abraão e Moisés, convidados a Ver para receber, e não para haver, a Terra Prometida: «a terra que Eu te farei Ver» (Génesis 12,1), «que YHWH lhe fez Ver» (Deuteronómio 34,1), «Eu a fiz Ver aos teus olhos» (Deuteronómio 34,4). O narrador anota mais à frente que o coxo de nascença, agora curado, tinha mais de 40 anos (Atos 4,22), tipologia do povo perdido no deserto antes de entrar na Terra Prometida. Como o homem doente havia 38 anos, que Jesus encontra junto da piscina de Bezetha, e que será curado (João 5,1-9).

13. É sintomático que o Ver da Ascensão e da Vinda do SENHOR JESUS seja o Ver que preenche por inteiro o primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos, com realce para Pedro. Mas é ainda grandemente sintomático que o primeiro ATO de Paulo, descrito em Atos 14,8-10, que é também o primeiro passo da missão perante o paganismo popular, em Listra, quase copie o primeiro ATO dos Apóstolos e de Pedro, certamente com o intuito de pôr em paralelo os dois grandes Apóstolos e os dois tempos da missão. Eis o texto referido de Atos 14,8-10: «E em Listra um homem estava sentado, sem força nos pés, coxo desde o ventre da sua mãe, e que nunca tinha andado. Este ouviu falar Paulo, o qual, tendo fixado os olhos (atenísas) nele, e tendo visto que tinha fé para ser salvo, diz com voz forte: “Levanta-te direito sobre os teus pés!” E ele deu um salto e caminhava» (Atos 14,8-10). Aqui temos o mesmo coxo de nascença, o mesmo Olhar significativo e diaconal, sem poder, sem ouro nem prata, Ver JESUS, o mesmo levantamento do coxo. E também aqui, na sequência do texto, temos o aceno à multidão que disperdia o olhar, vendo em Paulo e Barnabé deuses em forma humana, e a mesma correção, feita por Paulo, apontando JESUS (Atos 14,11-18).

14. Importante agrafo da Ascensão com a Vinda do Senhor. Tanto Ver. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Guardemos este Olhar cheio de Jesus e olhemos agora para esta terra árida e cinzenta, para tantos corações tristes e perdidos. Nascerá um mundo muito mais belo, novos corações pulsarão nas pessoas. Os olhos do coração iluminados, como diz o Apóstolo à comunidade mãe da Ásia Menor, Éfeso (Efésios 1,18). Um Olhar cheio de Jesus faz Ver Jesus, faz Vir Jesus!

15. Ponhamos tudo isto em imagem, como convém neste Domingo em que a Igreja celebra o Dia das Comunicações Sociais, instituição que tem as suas raízes diretamente no Concílio II do Vaticano (Decreto Inter Mirifica, n.º 18), e que foi celebrado pela primeira vez, com mensagem de Paulo VI, em 7 de maio de 1967. Eis então diante de nós, no cume do Monte das Oliveiras, um pequeno Templo, arredondado, chamado Imbomon [= «sobre o cume»], grecização do hebraico bamah [= «lugar alto»], a 818 metros de altitude, um pouco acima da Ecclesia in Eleona [= «no Olival»], que remonta a Santa Helena, hoje Pater Noster, e a curta distância de Jerusalém, a distância do caminho de um sábado (Atos 1,12), que é de 1892 metros. As construções cristãs do Imbomon remontam ao longínquo ano de 376, com reconstrução dos Cruzados em 1152, ocupadas depois, em 1187, pelos muçulmanos. A construção dos Cruzados, que respeitava a primitiva construção, tinha no centro um tambor encimado por uma cúpula aberta no centro, justamente para servir de suporte à imagem da Ascensão patente em Atos 1,9-11. Em 1200, os muçulmanos fecharam esse ponto de luz com uma cúpula de estilo árabe, escondendo assim a visão de Atos 1,11: «Porque estais aí a olhar para o céu?».

16. O texto de hoje da Carta aos Efésios 1,17-23 completa maravilhosamente as passagens da Escritura que já vimos. Depois do grande hino (vv. 3-14), em que se bendiz o Pai, mediante o Filho, no Espírito Santo a nós dado, cantamos agora, guiados sempre por São Paulo, o primado da Humanidade do Senhor, obra admirável do Pai, para proveito nosso. E começamos com a epiclese ao Pai para que nos dê o dom do Espírito, que é a Sabedoria divina, o «conhecimento profundo» (epígnôsis) das Realidades divinas (v. 17). Tudo provém do único e omnipotente Acontecimento divino: Jesus Cristo Ressuscitado e Sentado à direita nos Céus (v. 19-20). É assim que, da sua Humanidade glorificada vem para nós, por graça, o Espírito Santo, a verdadeira plenitude (v. 23).

17. O Salmo 47 é um Salmo da realeza de YHWH, que canta, com grande energia, a soberania de Deus sobre todos os povos (v. 1-3.7-10), sem deixar também de particularizar Israel (v. 4-5), «a mais bela entre todas as nações» (Ezequiel 20,6). Ajusta-se também perfeitamente, no mundo católico, à Festa da Ascensão de Cristo, sobretudo por causa do v. 6, em que lemos que «Deus se eleva por entre aclamações». Devido ao seu tom geral, Israel canta este Salmo sete vezes antes de soar o toque do shôphar para assinalar a entrada do Ano Novo.

António Couto


MÃE DE MAIO

Maio 13, 2023

Mãe de maio

Senhora da alegria

Mãe igual ao dia

Maria

Canto para ti

Ao correr da pena

A tinta é de açucena

A minha mão pequena

Pega em mim ao colo

Minha mãe de maio

Olha que desmaio

E caio

Pega em mim ao colo

O meu rosto afaga

Depois apaga a luz

Sou eu ou Jesus?

António Couto


AS DUAS MÃOS DO PAI

Maio 13, 2023

O Filho e o Espírito Santo são,

No dizer de Santo Ireneu de Lião,

As duas mãos do Pai,

Enviadas em missão

Para junto dos seus filhos de adoção.

À semelhança, claro,

Daquelas mãos de amor,

Que, no alvor da Criação,

Modelaram da terra pura o nosso coração,

E de misericórdia o vestiram.

Filhos no Filho, divina hyiothesía,

Hemorragia de graça e de alegria:

Jesus, o Filho, assume a nossa humana condição,

E dá-nos em herança a sua divina filiação.

E o Espírito, que une e distingue o Pai e o Filho,

Divina comunhão, sem confusão,

Toma conta do nosso coração de filhos recém-nascidos,

E faz circular em nós, já hoje, já esta manhã,

A mais bela lalação que há, o nome novo Ab-ba!

António Couto


DAR A RAZÃO DA NOSSA ESPERANÇA

Maio 12, 2023

At 8,5-8.14-17; Sl 66; 1 Pe 3,15-18; Jo 14,15-21 

1. O texto que o Evangelho deste Domingo VI da Páscoa (João 14,15-21) nos oferece enquadra-se naquele monumental Testamento que, no IV Evangelho, Jesus pronuncia, em ondas sucessivas, após a Ceia com os seus Discípulos (João 13,12-17,26). Neste imenso texto, cujas linhas temáticas vêm e refluem e voltam a vir e a refluir, à maneira das ondas do mar que vêm sobre a praia, refluem e voltam, assistimos hoje ao primeiro dos cinco dizeres de Jesus, no IV Evangelho, relativos à Vinda do Espírito Santo Paráclito (paráklêtos), isto é, Defensor [Advogado de defesa], Consolador e Intérprete. Este último significado deriva do aramaico paráklita, dos rabinos, que não tem o significado usual do grego (Defensor e Consolador), mas Intérprete, aquele que traduz Deus para nós e nós para Deus, fonte e ponte permanente de comunicação, compreensão e comunhão. O Espírito Paráclito é assim o grande construtor de pontes, comunhão e hifenização entre nós uns com os outros e com Deus. É, por isso, que Ele é o Amor, porque destrói todos os muros, preconceitos, ódios, divisões, incompreensões, asperezas, e faz nascer harmonia, amor, paz, comunhão, comunicação. Eis os cinco mencionados dizeres de Jesus, no IV Evangelho, sobre a Vinda do Espírito Santo, sempre dita no futuro: João 14,16; 14,26; 15,26; 16,7; 16,13-15.

2. O texto de hoje põe Jesus a dizer que, a seu pedido, o Pai nos dará outro Paráclito (állon paráklêton) (João 14,16). Outro. Este outro é o Espírito Santo. Mas o facto de Jesus dizer «outro Paráclito» faz-nos entender que Ele é também Paráclito, portanto, que é também nosso Defensor, Consolador e Intérprete, como de resto surge afirmado com todas as letras na Primeira Carta de S. João 2,1: «Temos um Defensor (paráklêtos) junto do Pai, Jesus Cristo, o Justo».

3. O primeiro enviado do Pai é então o seu Filho, Jesus, que cumpre e revela o conteúdo da própria missão. O segundo enviado é o Espírito Paráclito. O Filho e o Espírito são, no dizer do grande bispo e teólogo Ireneu de Lião (130-202), as duas mãos do Pai amorosamente estendidas e enviadas em missão à humanidade. O Pai é, em relação aos dois, o enviante; o Filho e o Espírito são, em relação ao Pai, ambos enviados. Confrontando os textos, vemos que há semelhança da relação entre o Pai e o Paráclito com a relação entre o Pai e o Filho: ambas são expressas pelo mesmo verbo «enviar» (pémpô). Mas, juntamente com a semelhança, deparamos também com diferenças. A primeira diferença está no facto de, em relação ao Filho, o verbo enviar estar no passado, encontrando-se no futuro em relação ao Paráclito. O envio de Jesus pelo Pai já se realizou, bem patente nas expressões: «O Pai que me enviou» (João 5,23.37; 6,44; 8,16.18; 12,49; 14,24) e «Aquele que me enviou» (João 4,34; 5,24.30; 6,38.39.40; 7,16.28.33; 8,26.29; 9,4; 12,44-45; 13,20; 15,21; 16,5). De modo diferente, o envio do Paráclito é anunciado, mas deve ainda realizar-se no futuro, como se verifica na expressão: «O Pai enviá-lo-á no meu nome» (João 14,26), do mesmo modo, que a sua tarefa de «ensinar» e «recordar» aparece igualmente enunciada no futuro (João 14,26). A segunda diferença reside no facto de o envio de Jesus ser feito diretamente pelo Pai, sem intermediários, enquanto que o envio do Espírito Paráclito é feito pelo Pai mediante a intervenção de Jesus, traduzida pela expressão «no meu nome» (João 14,26). E em duas das demais passagens relativas ao envio do Paráclito, é mesmo referido que o próprio Jesus é o sujeito direto do verbo enviar: «Eu enviá-lo-ei de junto do Pai» (João 15,26); «Quando eu for, enviá-lo-ei para junto de vós» (João 16,7). E o que se passa com o verbo «enviar» em termos de passado e futuro, passa-se também com o verbo «dar» (dídômi): «Deus (ho theós)… deu (édôken) o seu Filho unigénito» (João 3,16), e «dará (dôsei) a vós outro Paráclito» (João 14,16).

4. Sente-se, no monumental Testamento de Jesus, apresentado após a Ceia, em João 13,12-17,26, que a dor da separação física, provocada pela partida de Jesus, atravessa o coração dos discípulos de então. Se virmos bem, também no coração dos discípulos de hoje pode vir ao de cima a perceção de que Jesus está ausente, invisível, pouco percetível e dificilmente acessível. É verdade que a separação física, anunciada por Jesus, provoca nos seus discípulos de então uma dor difícil de ultrapassar. Mas é igualmente verdade que esta dor da separação revela o grande amor que une os discípulos a Jesus. As lágrimas e o amor traduzem a estreita ligação entre os discípulos e Jesus. Em contraponto com os discípulos, o Evangelho apresenta o mundo (ho kósmos), que não conhece Jesus, e, por isso, não o ama nem chora nem se apercebe de qualquer separação (João 14,19).

5. Mas Jesus diz-nos ainda que esta sua ida para o Pai, não só não redunda em prejuízo para nós, mas constitui até proveito e lucro, «pois se Eu não for, o Espírito não virá para vós», diz Jesus (João 16,7). E Jesus explica bem que também Ele nos ama e, por isso, não nos pode deixar abandonados e sós, como órfãos (orphanoí), mas virá outra vez para junto de nós (João 14,18), e ousa tratar-nos carinhosamente por filhinhos (teknía) (João 13,33). É verdade que agora Jesus se encaminha para a morte e morre de facto, mas não desaparece na morte. Vem e fica connosco na sua condição de Ressuscitado, para se fazer ver a nós por graça e nos comunicar a sua própria vida nova e eterna (zôê), o Espírito Consolador, que vem para nós da sua Humanidade Glorificada (João 7,39; Atos 2,33). Sim, com a sua morte, Ele desaparece aos olhos do mundo, que não o conhece, e que apenas sabe que Ele morreu numa Cruz. O mundo conhece apenas a morte, e nada sabe da vida verdadeira e eterna (zôê aiônios) (João 14,19). Eis toda a sabedoria do mundo, que só leva em conta o que se vê, como a natureza, onde tudo nasce, cresce, envelhece, perece, desaparece e esquece. Uma coisa é a natureza com as suas leis férreas. Outra coisa é o Deus Pessoal, Criador e Redentor, e as suas criaturas. É sabido que também aqueles discípulos não superarão por si sós a prova ou o teste da Paixão e Morte de Jesus. Por isso, quando viram que a morte era o destino de Jesus, todos o abandonaram e fugiram (Mateus 26,56; Marcos 14,50). Será Jesus, será sempre Jesus, Amor e Vida permanente e dissolvente, que reparará esta brecha, chamando de novo estes discípulos reprovados e desistentes (Mateus 28,7.10.16; Marcos 16,7). E eles, como nós, levando consigo toda a sua história anterior de amor e rutura, mas também de milagrosa cura, voltam para a Galileia, para um encontro novo com o Ressuscitado, de quem, agora sim, nunca mais se separarão.

6. O cúmulo. Filipe, que conhecemos à pressa como diácono (Atos dos Apóstolos 6,1-6), é afinal «o Evangelista» (ho euaggelistês) (Atos dos Apóstolos 21,8), e ei-lo que leva a Palavra de Deus à Samaria, exatamente àquele «estúpido povo que habita em Siquém» (Ben Sira 50,26), e houve por lá também grande alegria (Atos dos Apóstolos 8,5-8). Sim! Os pobres são evangelizados! Bendito seja Deus que nos surpreende sempre. Quando eu lá chego, às portas da cidade ou do coração do meu irmão, constato com espanto que Tu, Espírito de Amor, já lá estás há muito tempo, e já derrubaste portas e muralhas! Tu chegas sempre primeiro e já preparaste tudo! Escreveu o filósofo e poeta dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) num belo poema: «Falamos de Ti/ como se Tu nos tivesses amado primeiro uma só vez./ É, porém, dia após dia, a vida inteira,/ que Tu nos amas primeiro./ Quando acordo pela manhã e elevo para Ti a minha alma,/ Tu és o primeiro,/ Tu amas-me primeiro./ Se pela madrugada me levanto,/ e logo/ para Ti a minha alma e a minha oração elevo,/ Tu precedes-me,/ Tu já me amaste primeiro./ É sempre assim./ E nós, ingratos,/ Falamos como se Tu nos tivesses amado primeiro/ uma só vez…».

7. E, portanto, aí está a lição que São Pedro (3,15-18) aprendeu e viveu e hoje nos comunica: «estai sempre sempre prontos [atentos, preparados] para dar convictamente a quem vos pedir a razão da esperança que há em vós» (hétoimoi aeì pròs apologían pantì tô aitoûnti hymãs lógon perì tês en hymîn elpídos) (cf. 1 Pedro 3,15). Não se trata de «razões»; trata-se da «razão», do lógos. A razão, o lógos, não é aqui um terreno intelectual ou um objeto do pensamento, mas uma pessoa: Jesus Cristo. É Ele a razão, o lógos, «pelo qual tudo foi feito, e sem Ele nada foi feito» (João 1,3). Então, Ele habita e enche o universo inteiro e a nossa vida também. «É n’Ele que vivemos, nos movemos e existimos» (Atos dos Apóstolos 17,28). Nós com Ele, e Ele em nós, santuários vivos do Deus vivo. De forma intensa, como sempre, grita S. Paulo aos ouvidos dos cristãos de Corinto e aos nossos: «Não sabeis que sois Templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? (…). Na verdade, o Templo de Deus é Santo, e esse Templo sois vós!» (1 Coríntios 3,16 e 17). Sem equívocos agora: estar prontos a dar a razão é estar prontos a dar o lógos, isto é, Jesus, a razão de fundo da vida de Pedro e da nossa; a razão não são as razões, arrazoados; é a pessoa de Jesus, o lógos, o Verbo de Deus [kaì ho lógos sarx egéneto = «e o Verbo se fez carne»] (João 1,14). Estar prontos a dar a razão é estar prontos a dar a mão, isto é, o pão, compreensão, amor, esperança e confiança, sentido, engenheiros de um mundo novo, verdadeiro, credível, transparente.

8. Diz, de forma absolutamente maravilhosa, o velho comentário rabínico aos Salmos, dito Midrash Tehillîm, que, quando Israel estava no Sinai para fazer aliança com Deus, «o ventre das mulheres grávidas se tornou transparente como vidro, para que os embriões pudessem ver Deus e conversar com Ele». Oh admirável mundo novo!

9. O Espírito Santo faz nascer em nós esta transparência luminosa e maravilhosa. Luz que alumia, e não engana, Amor, só Amor, nada mais que Amor. Vem, Espírito de Luz, construtor e Senhor das mais belas transparências e vivências. Precisamos tanto de Ti nesta calçada enlameada e escura e escorregadia em que andamos. Esquecemo-nos tantas vezes de que é em ti que «vivemos, nos movemos e existimos».

10. Missão nossa será então cantar a glória de Deus e convocar a terra inteira para verificar as maravilhas operadas por Deus. Todos e cada um. A comunidade e eu de mãos dadas e levantadas para Deus, como acontece muitas vezes nos Salmos. Temos muito a relatar e a agradecer, repassando diante de nós, não apenas a paisagem bíblica, mas também a nossa paisagem humana. Também o Salmo de hoje começa em tom comunitário (Salmo 66,1-12) para nos mostrar depois também o papel do solista (v. 13-20).

António Couto


EU SOU O CAMINHO

Maio 5, 2023

«O lugar para onde Eu vou,

Vós sabeis o caminho para lá», diz Jesus.

«Nós não sabemos para onde vais,

Como podemos saber o caminho para lá?»,

Retorquiu Tomé.

Tomé é como nós:

Não sabe trabalhar sem metas e objetivos.

E é em função das metas e objetivos,

Que escolhe caminhos e metodologias.

Deus disse a Abraão: «Vai do teu país

Para o país que Eu te fizer ver».

E o narrador diz-nos que «Abraão foi».

Para onde? Para qual país?

Não interessa.

Interessa é saber que uma mão segura nos guia,

E que o caminho que trilhamos nos conduz sempre ao destino.

É assim que faz Jesus também.

Não nos indica no mapa o lugar do destino,

Mas mostra-nos o caminho para chegar lá.

Por isso nos diz: «Vinde atrás de Mim…».

É assim a procissão e a peregrinação.

Ele vai connosco e à nossa frente.

Ele é o caminho,

A mão segura,

A água pura,

O pão de trigo.

Ensina-nos, Senhor,

A caminhar contigo.

António Couto


UMA MÃE SABE TUDO MELHOR

Maio 5, 2023

At 6,1-7; Sl 34; 1 Pe 2,4-9; Jo 14,1-12

1. Os nomes JESUS e PAI juntam-se para entretecer uma rede finíssima que atravessa e extravasa o corpo do inteiro IV Evangelho, onde se ouvem respetivamente por 237 vezes e 124 vezes. Só no Evangelho deste Domingo V da Páscoa (João 14,1-12), pode contar-se o nome PAI (ho patêr) por doze vezes, onze das quais na boca de JESUS! Entenda-se: a vida de JESUS está completamente nas mãos do PAI, dele provém e para ele se orienta totalmente, de modo a JESUS poder dizer com verdade: «EU (egô) e (kaí) o PAI (ho patêr) somos um (hén esmen)» (João 10,30). A locução é audaz, mas clara e de extrema precisão. Não serve para indicar uma só pessoa: são claramente duas, uma indicada pelo pronome egô, e outra pelo nome masculino ho patêr. Duas pessoas distintas, não confusas, e que tão-pouco estão divididas e separadas. Indica esta não-divisão e não-separação a partícula copulativa «e» (kaì), a forma verbal plural «somos» (esmen) e o numeral neutro «um» (hén). O numeral neutro hén indica uma realidade, e não uma pessoa, o que pediria a forma masculina do numeral (heîs). Portanto, entre o PAI e o FILHO Monogénito há uma subsistência comum, indivisa, inseparável e, todavia, distinta e não confusa, relação vital interpessoal contínua. É desta «unidade» e «unicidade» de essência e subsistência concreta entre o PAI e o FILHO que decorre, no nosso texto, aquele límpido dizer de Jesus, dirigido a Filipe: «Quem ME vê, vê o PAI» (João 14,9). Esta plena comunhão de vida entre JESUS e o PAI fica bem expressa nas repetidas fórmulas de «imanência recíproca» ou de «unidade» do PAI e do FILHO, que soam: «Eu estou no PAI e o PAI está em MIM» (João 14,10.11).

2. Estabelecida esta perfeita unidade entre o PAI e JESUS, pode JESUS reclamar dos seus discípulos que acreditem nele (João 14,1b.11.12) como acreditam em Deus (ho theós) (João 14,1a), isto é, no PAI. Theós com artigo, no NT, é reservado ao PAI. «Acreditar» conserva aqui a aceção fundamental que já vem do AT, e que significa «apoiar-se firmemente em alguém» (Isaías 7,9; 28,16) que nos possa salvar. E é claro que a salvação de que aqui falamos consiste na nossa união com Deus, em apoiar-nos em Deus, único arrimo seguro de salvação. O problema consiste agora no nosso acesso a Deus em quem reside a salvação (cf. Isaías 12,2). E JESUS explica aos seus discípulos, nesta hora de despedida, que só há um acesso disponível: Ele próprio, dado que ELE está no PAI, e o PAI está nele. E usando agora a fórmula de apresentação ou de revelação, afirma: «Eu sou (egô eimi) o caminho e a verdade e a vida», a que acrescenta: «Ninguém vem ao PAI senão por MIM» (João 14,6). Claro que Jesus não é um caminho de terra batida ou uma estrada de asfalto. É um caminho pessoal, uma maneira de viver, com entranhas, pés, mãos e coração. Não é uma verdade de tipo filosófico, jurídico ou político, a usual adequação da mente à coisa (adequatio rei et intellectus). Não é uma coisa. A verdade bíblica [hebraico ʼemet] não responde à pergunta: «O que é a verdade?», à boa maneira de Pilatos (cf. João 18,38), mas à pergunta inédita e surpreendente: «QUEM é a VERDADE?» De facto, ʼemet deriva de ʼem [= mãe] e de ʼaman [= firmar, confiar], e remete para CONFIANÇA e FIDELIDADE. Não é uma verdade que se saiba. É uma atitude que se vive. É aquela verdade que uma criança vai aprendendo ao colo da sua mãe. Está ali ALGUÉM que a segura e que a ama, ALGUÉM em quem a criança pode confiar, que em caso algum a vai deixar cair ao chão, como bem refere a filósofa, de origem judaica, Edith Stein, depois Santa Teresa Benedita da Cruz. A VERDADE é ALGUÉM de fiar como uma MÃE, realidade bem patente na etimologia, dado que ʼemet [= verdade] deriva de ʼem [= mãe]. Não engana, portanto. É assim que JESUS, o FILHO, é também a VIDA (zôê) toda recebida (do PAI), vida divina, vida filial do FILHO de Deus, vida toda a nós dada.

3. Diz Jesus para os seus discípulos: «Para onde (ópou) EU vou, vós conheceis o caminho» (João 14,4), mas muda logo o lugar pela pessoa: «EU vou para o PAI» (João 14,12). Pelo meio, cruza-se a incompreensão ou incompetência expressa de dois dos seus discípulos: Tomé e Filipe, que o mesmo é dizer, a nossa incompreensão e incompetência. Tomé, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»], não sabe para onde vai JESUS; logo, não sabe o caminho para lá (João 14,5), e Filipe recebe de Jesus uma repreensão que também nos atinge, pois é proferida no plural, e soa assim: «Há tanto tempo que estou convosco, e não ME conheces, Filipe?» (João 14,9).

4. Tomé é bem Gémeo nosso, nosso irmão gémeo, muito parecido connosco, nesta passagem e em muitas outras. E Filipe, que significa «amigo dos cavalos», único nome verdadeiramente grego entre os Apóstolos de Jesus, também se manifesta muito semelhante a nós aqui e em outros lugares, como, por exemplo, João 6,5-7, onde é literalmente posto à prova por Jesus, e chumba claramente no teste. Na verdade, Jesus pergunta-lhe, para o pôr à prova: «Filipe, onde compraremos pão para que eles comam?» (João 6,5). E Filipe põe-se a contar o dinheiro, dizendo onde põe a sua confiança, e responde que não há nada a fazer, porque não há dinheiro que baste (João 6,7). Filipe, talvez como nós, ainda não sabia que o onde (póthen) a que Jesus se refere não é o shopping, mas é o PAI. Ainda não sabia a Escritura, e não conhecia Isaías 55,1-2, em que Deus nos convida a comprar a Ele pão, sem gastar qualquer dinheiro: «Todos vós que tendes sede, vinde às águas!/ Vós, que não tendes dinheiro, vinde!/ Comprai (agorázô LXX) cereal e comei!/ Comprai cereal sem dinheiro,/ e sem pagar, vinho e leite./ […] Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom!» (Isaías 55,1-2).

5. Filipe anda, de facto, bastante distraído, e tem dificuldade em sintonizar a onda de compreensão de Jesus, isto é, o PAI. À pergunta formulada por Jesus em João 6,5, Filipe responde literalmente: «Duzentos denários de pães não bastam (ouk arkoûsin) para que cada um receba uma migalhinha» (João 6,7). E no nosso texto de hoje, logo depois de Jesus ter afirmado: «Se ME tivésseis conhecido, também conheceríeis o meu PAI, e desde agora já O conheceis e já O vistes» (João 14,7), Filipe ainda ousa retorquir: «Senhor, mostra-nos o PAI, e basta (kaì arkeî) para nós» (João 14,8). Não deixa de ser sintomático que este verbo bastar (arkéô) só apareça duas vezes no NT, e as duas vezes apareça nos lábios de Filipe (João 6,7; 14,8). E é ainda mais sintomático que, após ter vivido o grande sinal dos pães e dos peixes realizado por Jesus, ainda não lhe baste agora a revelação de Jesus, mas pareça requerer uma revelação espetacular à maneira das manifestações de Deus no AT.

6. É assim também, maternalmente, que se entende a jovem e bela comunidade cristã nascente, atenta, outra vez como uma mãe, aos seus filhos que necessitam de assistência (Atos dos Apóstolos 6,1-7). Como é belo ver crescer, e cresce mesmo, uma comunidade de rosto maternal, de braços sempre abertos para acolher e abraçar, de mãos sempre abertas para receber, dar e acariciar. Tudo tão ao jeito e ao estilo de Jesus. Total dedicação à oração e ao serviço (diakonía) da Palavra de Deus (6,4). Total dedicação ao serviço (diakonía) da caridade. Atenção, porém: Filipe não aparece com o título de diácono (diákonos). O seu trabalho é evangelizar (Atos 8,26-40), e, se algum título lhe é atribuído, é o de «o evangelista» (ho euaggelistês), como se pode ver em Atos 21,8).

7. É claro, diz S. Pedro (1 Pedro 2,4-9), que Jesus é a pedra viva, base de um novo tipo de edifício, que nenhum arquiteto sabe desenhar ou projetar. É, na verdade, um edifício espiritual, feito de pedras vivas (!). E nós somos essas pedras vivas, esse Templo espiritual, que tem em Cristo a sua referência permanente. Um Templo novo e inédito com sangue, entranhas, mãos, pés e coração.

8. Enfim, o Salmo 34, que hoje cantamos, é um verdadeiro «canto novo» (shîr hadash) a fazer vibrar as fibras do nosso coração com a música do amor misericordioso que nos vem de Deus. Mas é também música sem palavras (terûʽah) (v. 2), jubilação, exultação, lalação de radical confiança da criança que em nós sorri e dança, porque Deus vela por nós. Comenta Santo Agostinho: «Já sabes o que é o canto novo: um homem novo, um canto novo».

9. Passa hoje também, neste Domingo V da Páscoa, o Dia da Mãe, que nos ajuda, com certeza, a entender melhor o Deus de Jesus e o Jesus de Deus da liturgia de hoje. Sobre esta terra exangue, fustigada pelos mísseis e pela insensatez, uma Mãe verdadeira ainda é o ícone mais belo do amor imenso e sem pauta nem medida, que não é meu, nem é teu, nem é nosso, que é de Deus, que atravessa os textos da liturgia de hoje, e se vê a palpitar em tantas páginas indescritíveis destes tempos ácidos e nebulosos. Nós sabemos isso. Mas uma Mãe sabe isso melhor. É por isso que é fácil, neste Dia da Mãe, ver cair pelo rosto de cada Mãe uma lágrima de tristeza ou de alegria! Melhor assim, Mulher e Mãe: sentirás a mão carinhosa de Deus a afagar o teu rosto e a enxugar essa lágrima, de acordo com a lição do Livro do Apocalipse 21,4.

António Couto


BOM PASTOR DA MINHA VIDA

Abril 28, 2023

Senhor Jesus Cristo,

Único Senhor da minha vida,

Bom Pastor dos meus passos inseguros

E do silêncio inquieto do meu coração,

Cheio de sonhos, anseios, dúvidas, inquietações.

Senhor Jesus,

Faz ressoar em mim a tua voz de paz e de ternura.

Eu sei que pronuncias o meu nome com doçura,

E me envias ao encontro daquele meu irmão que Te procura.

Fico contigo sentado junto ao poço.

Alumia o meu pobre coração.

Vejo que, de toda a parte, chega gente de cântaro na mão.

Dispõe de mim, Senhor,

Nesta hora de Nova Evangelização.

Que eu saiba, Senhor,

Interpretar bem a tua melodia.

Que eu saiba, Senhor,

Dizer sempre SIM como Maria.

António Couto


EU SOU O BOM PASTOR

Abril 28, 2023

At 2,14a.36-41; Sl 23; 1 Pe 2,20b-25; Jo 10,1-10

1. Domingo IV da Páscoa. Domingo do Bom, Belo, Perfeito e Verdadeiro Pastor. É este o significado largo do adjetivo grego kalós e do hebraico thôb, que qualifica o nome «Pastor». De notar que o Domingo IV da Páscoa, Domingo do Bom e Belo Pastor, é sempre também Dia Mundial de Oração pelas Vocações. E da mesa da Escritura deste Domingo transbordam tonalidades e sabores intensos, harmoniosos e deliciosos. Música encantatória. Água pura. Óleo perfumado. Verde prado em festa. Proximidade. Ternura. Confiança. Beleza em flor e fruto. Vida a transbordar. Tudo da ordem do sublime.

2. O Evangelho que marca o ritmo deste Dia Grande é João 10,1-10, que não deve ser visto apenas como um texto isolado, embora tenha sentido em si mesmo, mas sai enriquecido quando inserido no duplo enquadramento que lhe serve de contexto. Por um lado, situa-se no seguimento imediato de João 9,1-43, que analisámos no Domingo IV da Quaresma, e que trata da cura física e espiritual por Jesus de um cego de nascença. Por outro lado, devemos ter presente que o texto de João 10 tem o seu lugar no decurso da Festa judaica anual da Dedicação do Templo, como resulta da anotação de João 10,22.

3. Comecemos por olhar para o texto de João 10 no seguimento imediato de João 9, que trata da cura física e espiritual do cego de nascença. Esta cura, operada em dia de sábado, dá lugar a um confronto com os fariseus, que tudo fazem para desacreditar Jesus. O resultado é que, enquanto o cego vê cada vez melhor, os fariseus se vão tornando cada vez mais cegos. É com eles que Jesus fala no final, pondo à vista a sua acentuada cegueira (João 9,39-41). E é com eles que Jesus continua a falar em João 10, e é para eles que Jesus conta a parábola do rebanho e das ovelhas, que traz para a cena a figura do pastor em contraponto com a figura do ladrão ou salteador ou mercenário. Neste contexto, diz-lhes Jesus que as ovelhas ouvem e conhecem a voz do pastor, e seguem-no, mas não conhecem a voz do ladrão, e fogem dele. Está bom de ver que foi assim que fez o cego de João 9, que foi seguindo cada vez mais de perto Jesus, ao mesmo tempo que se foi afastando cada vez mais dos fariseus. A colocação de João 10, não à parte, mas no seguimento imediato de João 9 resulta, como se vê, grandemente esclarecedora, tornando-se mesmo obrigatório fazer esta ligação.

4. A figura do Pastor Bom enche muitas das páginas do Antigo Testamento, e traduz habitualmente a atitude cuidadosa e carinhosa de Deus, que é o Pastor Bom, para com as suas ovelhas, metáfora do seu Povo, quase sempre em confronto com os maus pastores, que esbulham e tratam em proveito próprio as ovelhas. Basta ver os textos de Ezequiel 34,1-23; Jeremias 23,1-4; Isaías 40,11; Salmo 23. Na página de João 10,1-10, ao dizer «Eu sou», Jesus assume a identidade e a atitude do Pastor Bom, que é Deus, e deixa aos fariseus o desempenho do papel de pastores maus. Ao dizer «Eu sou», Jesus está, em simultâneo, a dizer «vós sois» ou «vós não sois». Está a dizer «vós sois» para as suas ovelhas: está, portanto, a estabelecer uma relação pessoal direta de proximidade, confiança e intimidade com as suas ovelhas, relação bem expressa, de resto, pelos verbos «chamar pelo nome», «conhecer», «ouvir a voz», «conduzir», «caminhar à frente de», «seguir», «dar a vida». Mas está também a dizer «vós não sois» para os fariseus, colocados a conjugar os verbos «roubar», «matar», «destruir». Como esta página antiga e sempre nova de João 10,1-10 lê e desvenda «aqueles tempos» e os tempos de hoje!

5. Mas o texto grandioso de João 10,1-10 passa também mensagens intemporais que, em cada tempo e lugar, devem interpelar a comunidade cristã. Assim, quando Jesus diz: «Eu sou a porta», não está a usar uma linguagem da ordem da arquitetura e da carpintaria. É de uma porta pessoal que se trata. E esta porta pessoal tem um nome e um rosto: Jesus de Nazaré, Jesus de Deus. E esta porta serve para «entrar e sair». «Entrar e sair» é um merisma [= figura literária que diz o todo acostando duas extremidades] que traduz a nossa vida toda. É a nossa vida toda sempre em referência a Jesus Cristo. Entende-se, não com a atual criação industrial de gado, em que os animais estão quase sempre em clausura e o pasto lhes é fornecido em manjedouras apropriadas, visando sempre uma maior produtividade, mas com os «apriscos» [= mais abrir do que fechar, como indica o étimo aprire] antigos, em que os animais se recolhiam apenas para se protegerem do frio da noite e dos assaltos das feras ou dos ladrões, e procuravam fora o seu alimento, sempre conduzidos e sob a atenção vigilante do pastor.

6. Note-se ainda que os Evangelhos falam sempre de rebanho e de ovelhas, e não de ovelhas separadas. Quando falam de uma ovelha sozinha, é para descrever a situação negativa de uma ovelha desgarrada ou perdida, que se perdeu do rebanho ou da comunidade, e deixou de seguir o pastor e de ouvir a sua voz. Note-se ainda que as ovelhas «entram pela porta», mas não é para ficarem descansadas e recolhidas, fechadas sobre si mesmas, hoje diríamos «confinadas». É para sair, pois é fora que encontrarão pastagem. Lição para a comunidade dos discípulos de Jesus de hoje e de sempre: o trabalho belo que nos alimenta e nos mantém saudáveis espera-nos lá fora! Que Deus nos dê então sempre um grande apetite! A messe ondulante está à espera de ceifeiros que saibam cantar (Salmo 126,5-6), porque também sabem que é Deus o Senhor da messe.

7. Situemo-nos agora no âmbito da festa anual da Dedicação do Templo (cf. João 10,22), habitat da parábola do Bom Pastor, apresentada por Jesus aos fariseus. O selêucida Antíoco IV Epifânio tinha profanado o Templo de Jerusalém, introduzindo lá cultos pagãos. Este acontecimento remonta ao ano 167 a.C. Contra esta helenização e paganização do judaísmo lutaram os Macabeus, e, no ano 164 a.C., Judas Macabeu afastou os selêucidas, e procedeu à Purificação do Templo e à sua Dedicação ao Deus Vivo. É este importante acontecimento que deve ser celebrado todos os anos, durante oito dias, com a Festa da Dedicação, a partir do dia 25 do mês de Kisleu, que, no ano civil de 2023, no nosso calendário, terá lugar de 08 a 15 de dezembro.

8. A Festa da Dedicação, em hebraico hanûkkah, celebra-se durante oito dias, e tem como símbolo o candelabro de oito braços. Relata o Talmude que, quando os judeus fiéis entraram no Templo profanado pelos pagãos helenistas encontraram uma única âmbula de azeite puro (kasher) de oliveira para reacender o candelabro de sete braços, em hebraico menôrah, que é um dos símbolos de Israel, e que deve arder diante do Deus Vivo. Todavia, uma âmbula de azeite duraria apenas um dia, e eram precisos oito dias para preparar novo azeite puro. Pois bem, o azeite daquela única âmbula durou milagrosamente oito dias! Daí que, na Festa da Dedicação, se acenda um candelabro de oito braços, chamado hanûkkiyyah. Mas acende-se apenas uma luz por dia, depois do pôr-do-sol, aumentando progressivamente até estarem acesas as oito luzes. Além disso, e ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, que alumiam o interior do Santuário e da casa de família respetivamente, as Luzes do candelabro da Dedicação, refere o ritual, devem ser vistas cá fora: devem alumiar o ambiente social, político, comercial, cultural e todos os ambientes e situações. E também ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, não se acendem todas de uma vez, mas progressivamente uma por dia, porque, quando as condições são adversas (paganismo helenista e escuro), não basta acender uma luz e mantê-la; é preciso aumentar constantemente a luz. Mais luz. Mais luz. Mais luz.

9. Como este simbolismo é importante para os dias de hoje! Está escuro cá dentro e lá fora, o mundo parece desconstruir-se e reduzir-se a fragmentos soltos e à deriva, o paganismo é galopante! Mais do que nunca, é preciso, portanto, não apenas manter a luz, mas aumentá-la progressivamente. E é ainda necessário que esta Luz saia para fora: uma «igreja em saída», como sonha e pede o Papa Francisco! E está em maravilhosa sintonia com a Luz Grande que deve alumiar este Domingo do Bom e Belo Pastor, que é Jesus, verdadeira Luz do mundo, Dom do Amor de Deus ao nosso coração. Atear esta Luz de Jesus no nosso coração é também o segredo maior deste 60.º Dia Mundial de Oração pelas Vocações.

10. A cristalina melodia do Salmo 23, que hoje cantamos, entranha-se suavemente em nós, fazendo-nos experimentar os mil sabores da paz, do pão e da alegria que em cada dia recebemos do Pastor belo e bom que amorosamente nos guia. Ele é o companheiro para quem as horas do seu rebanho são também as suas, corre os mesmos riscos, experimenta a mesma fome e a mesma sede, o sol que cai sobre o rebanho cai também sobre ele. Deixemo-nos, portanto, conduzir pela mão carinhosa e pela voz maternal e melodiosa do Bom e Belo Pastor. Sim, Ele recebe bem os seus hóspedes: faz-nos uma visita guiada pelos seus prados muito verdes, cheios de águas muito azuis, unge com óleo perfumado a nossa cabeça, estende no chão do seu céu a «pele de vaca» (shulhan), que é a sua mesa, serve-nos vinhos generosos… Como é importante recitar e saborear esta alegria pessoal que nos traz o Pastor belo e bom que nos chama e nos inebria. Confessou o filósofo francês Henri Bergson: «As centenas de livros que li nunca me trouxeram tanta luz e conforto como os versos do Salmo 23».

11. E aí está outra vez Pedro a exortar-nos na manhã de Pentecostes: «Salvai-vos desta geração perversa» (Atos 2,40). «Vós éreis como ovelhas desgarradas, mas agora regressastes para o pastor e supervisor (epískopos) das vossas almas» (1 Pedro 2,25). «Segui, pois, os seus passos» (1 Pedro 2,21).

12. Concede-nos, Senhor, Belo e Bom Pastor, que nunca nos tresmalhemos do teu imenso amor, e que saibamos sempre levar o tom e o sabor da tua voz que chama e ama a cada irmão perdido em casa ou numa estrada de lama.

António Couto


AQUELA ESTRADA DE EMAÚS

Abril 21, 2023

Tristes, desanimados, pesarosos,

Trilhamos um caminho apenas de regresso,

De insucesso,

Confinamento,

Esvaziamento,

Em que não se vê nenhum acesso,

Nenhum ingresso.

Nenhuma luz

Se vê lá para os lados de Emaús.

Vem Jesus

E começa a caminhar connosco,

Vai connosco.

Não se apresenta,

Mas faz perguntas,

Corrige as respostas,

Abre as Escrituras,

Cura as fraturas,

Põe-nos a arder o coração,

Reparte o pão,

Parece que desaparece,

Mas fica afinal mais presente do que nunca,

E vê-se que transparece

Na nossa vida,

Antes caída, agora erguida,

Desconfinada,

Como uma estrada iluminada

Pela intensa Luz

Que brota daquela Cruz florida.

E pode recomeçar tudo aqui,

Pode recomeçar tudo aí,

Em Emaús,

Em casa e à mesa,

Ou mesmo na estrada,

Com Jesus.

António Couto


FICA CONNOSCO, SENHOR!

Abril 21, 2023

At 2,14.22-33; Sl 16; 1 Pe 1,17-21; Lc 24,13-35

1. O Evangelho deste III Domingo da Páscoa convida-nos a fazer aquela que pode ser considerada a mais bela viagem de doze quilómetros de toda a Escritura. Doze quilómetros vezes dois, dado que será uma viagem de ida e volta. A viagem que nos leva de Jerusalém a Emaús, atual aldeia palestiniana de nome El-Kubèibeh, que guarda a memória deste maravilhoso episódio de Lucas 24,13-35. Segue-se, todavia, a viagem de regresso a Jerusalém.

2. Aperceber-nos-emos, porém, rapidamente que se trata menos de uma viagem transitiva sobre o mapa, e mais, muito mais, de uma viagem intransitiva nas estradas poeirentas do nosso embotado coração. É assim que «dois deles» (dýo ex autôn) – e está aqui assinalada uma ruptura destes dois com a comunidade reunida em Jerusalém – saem da comunidade, passam a ser ex-membros da comunidade. O texto retrata-os bem: estão em dissensão com a comunidade, pelo caminho conversam familiarmente (homiléô) sobre as coisas acontecidas em Jerusalém (Lucas 24,14 e 15), mas também debatem (syzêtéô) (Lucas 24,15), e entram mesmo em dissensão um com o outro, opondo argumentos (antibállô) (Lucas 24,17). Esperaram até ao limite da esperança (três dias), mas deixaram-se vencer pela desilusão. Distanciam-se, pois, da esperança e de Jerusalém, mas não se conseguem distanciar do passado vivido com Jesus, que os encheu de tanta esperança, até que tudo se derreteu naquela cruz.

3. Desistiram então da esperança, e vão-se embora desiludidos, desencantados, desconcertados, dissentidos. Estando assim as coisas, narra o texto que um terceiro viandante, que é Jesus – informa-nos o narrador –, se aproximou deles e caminhava com eles (syneporeúeto autoîs), mas os seus olhos estavam impedidos (ekratoûnto) de o reconhecer (Lucas 24,15-16). Neste ponto preciso, impõem-se duas pequenas observações. Primeira: Jesus é sempre aquele que caminha com, faz conjunção, onde nós, e quando nós, estamos em disjunção. E não caminha connosco apenas algum tempo. Caminha connosco de forma continuada, pois o verbo grego está no imperfeito de duração (syneporeúeto): caminhava com. Segunda: não é a incapacidade deles ou a nossa que nos impede de reconhecer Jesus. Na verdade, o texto diz, na sua crueza gramatical, que os seus olhos estavam impedidos (ekratoûnto). A forma verbal grega está num imperfeito passivo. Entenda-se então corretamente: é Deus que impede os nossos olhos de o reconhecerem agora. É, portanto, Deus que conduz a ação. Esta preciosa indicação desperta a nossa atenção, e deixa-nos alerta para o momento em que Deus vai desimpedir os nossos olhos para o reconhecermos.

4. Este terceiro viandante, que caminha sempre connosco, e que faz conjunção sobre as nossas disjunções, é também aquele que conduz o nosso caminho. Ele é o Presidente. Preside sempre. Por isso, começa a fazer perguntas estranhas, que habitualmente nós não permitimos a um desconhecido que se intromete no meio de nós: «Que são estas palavras que opondes entre vós enquanto caminhais?» (Lucas 24,17). Ele é o Mestre que nos faz perguntas pedagógicas, para nós nos dizermos, e manifestarmos os nossos pontos de vista, e também o ponto de vida em que estamos. A primeira consequência em nós desta pergunta certeira é fazer com que digamos a nossa tristeza e desilusão: «E eles pararam com o rosto triste» (Lucas 24,17). E depois, atónitos, perguntamos: «Tu és o único (mónos) estrangeiro residente (pároikos) em Jerusalém que não conheces as coisas que nela aconteceram nestes dias?» (Lucas 24,18). E ele pergunta outra vez teimosa e pedagogicamente: «O que foi?» (Lucas 24,19). Duas anotações. Primeira: sem o sabermos, fazemos uma afirmação correta: de facto, ele é o único que não conhece as coisas como nós, mas as conhece de outra maneira. Segunda: quando ele pergunta: «O que foi?», os dois nada estranham porque não sabem quem é aquele que os está a interrogar, mas o leitor, que já sabe, até se sente incomodado, porque bem sabe que se há alguém que sabe o que lá se passou, é Jesus. Então se sabe, por que é que pergunta? Pergunta, não porque não saiba e queira saber, mas para nos levar a dizer a desilusão e o sem-sentido que nos habita. Ele é o Mestre que faz as perguntas, para depois poder corrigir as nossas respostas (Lucas 24,25-27). E nós lá dizemos que, pois, Jesus era com certeza um grande profeta, e que teve a sorte dos profetas: a morte (cf. Lucas 11,50-51). Mas quanto a ser o Messias que nós esperávamos, não, não pode ser, porque um homem que foi crucificado e morto não pode ser o Messias, pois este, estando em plena comunhão com Deus e possuindo a vida em plenitude, não só não vinha para sofrer e morrer, como vinha mesmo para nos libertar do sofrimento e da morte (Lucas 24,22-23). Jesus ouve os nossos lamentos, e mostra a nossa insensatez por desconhecermos os caminhos da Escritura! Se os conhecêssemos, diz Jesus, saberíamos que era preciso o Messias passar por tudo isto para entrar na glória de Deus. E a partir das Escrituras (Moisés e todos os profetas) explicou-lhes ponto por ponto o que a Ele dizia respeito (cf. Lucas 24,25-27). O caminho de Emaús é, afinal, o caminho das Escrituras! Levará o seu tempo até compreenderem que Jesus é o Messias exatamente enquanto Crucificado, que não é a manifestação do seu fracasso, mas da sua incondicional fidelidade à vontade do Pai.

5. Enquanto assim falavam entre a esperança e a desilusão, estranhamente guiados por um terceiro desconhecido, parece que o caminho se encurtou. Ei-los que estão em Emaús. E, chegados aí, Jesus fez como se (prosepoiêsato: aor. de prospoiéomai) fosse caminhar para mais longe (Lucas 24,28). «Fez como se» é uma finta pedagógica. O texto não diz que ele ia caminhar para mais longe. Diz que Ele «fez como se fosse…». Finta pedagógica, que provoca logo ali a nossa oração: «Fica connosco…» (Lucas 24,29). Atenção, portanto: também a nossa oração não é produção nossa; é provocada por Ele. Ele é o Mestre, o Presidente.

6. No seguimento do nosso pedido, ele entra para ficar connosco. Não, porém, apenas algum tempo, como fazemos nós quando visitamos os amigos. Ele entra para ficar connosco sempre, para presidir à nossa vida toda. Há quem estranhe que, entrando em casa alheia, ele se ponha a presidir à mesa, ato que competiria ao dono da casa. Quem assim pensa esquece-se de que, afinal, foi ele que presidiu ao caminho todo. Ele é, portanto, o Presidente, e é, nessa condição que preside também à nossa mesa: recebe o pão, bendiz a Deus, parte o pão e dava (epedídou: imperf. de epidídômi), imperfeito de duração. Atitude que continua ainda hoje a verificar-se. É aqui que são abertos (por Deus) os nossos olhos, antes impedidos por Deus de reconhecer Jesus. Decifração da Cruz. Ele está vivo e presente. A sua vida é uma vida a nós dada. Sempre a ser a nós dada. É por isso que Ele desaparece da nossa vista (Lucas 24,31), mas não da nossa vida, em que fica mais presente do que nunca, presente para sempre, sem sombra de ausência. Na verdade, se dar reclama a presença do dom que o doador ao donatário, dar-se reclama a presença do doador no donatário. Novidade imensa. Dando-se a nós, o Crucificado-Ressuscitado transparece em nós, passa para nós a suprema dignidade da sua manifestação: passamos a ser nós os mostradores da Vida Nova do Ressuscitado. Suprema dignidade. Alegria imensa. Responsabilidade imensa. É agora, e daqui, e deste modo, que vemos a luzinha que Ele acendeu já no nosso coração, no caminho… Não é o escuro da noite exterior que nos mete medo. O que nos mete medo é o escuro interior. Ei-los que partem em plena noite, em plena luz, para Jerusalém. Viagem da conjunção, fazendo o caminho inverso da primeira viagem da disjunção.

7. Ainda hoje é bom e salutar fazer esta viagem no mapa e no coração a Emaús (El-Kubèibeh). O peregrino encontra nesta aldeia palestiniana uma igreja à guarda dos Padres Franciscanos da Custódia da Terra Santa, que recorda os acontecimentos narrados no sublime episódio de Lucas 24, que acabámos de recordar. A atual igreja é uma construção de inícios do século XX, estilo românico-gótico de transição, que respeita as linhas e integra algumas pedras de uma igreja construída pelos Cruzados no século XII. Esta igreja encontrava-se ainda de pé no século XIV, mas estava já em ruínas no século XV, de acordo com o testemunho de peregrinos qualificados. A construção dos Cruzados enquadra aquilo que se pensa serem os fundamentos da casa de Cléofas, um dos dois que, naquele primeiro dia da semana (Lucas 24,1 e 13) se dirigiam para uma aldeia, chamada Emaús, que distava 60 estádios (11-12 km) de Jerusalém.

8. Nas paredes da igreja que hoje pode ser visitada, que data de princípios do sáculo XX, pode ler-se em várias línguas um belo e significativo poema, que aqui passa também a conhecer a versão portuguesa: «Todos os dias/ Te encontramos/ no caminho./ Mas muitos reconhecer-Te-ão/ apenas/ quando/ repartires connosco/ o Teu pão./ Quem sabe?/ Talvez/ no último entardecer».

9. E o poeta inglês Thomas S. Eliot (1888-1965) faz esta evocação da cena de Emaús: «Quem é o terceiro, que vai sempre ao teu lado? Se me ponho a contar, juntos vamos apenas eu e tu. Porém, se olho à minha frente sobre a estrada branca, vejo sempre outro que caminha ao teu lado. Quem é esse que vai sempre do outro lado?».

10. É o Senhor, que vós entregastes à morte, mas que Deus ressuscitou, responde Pedro, falando ao povo no dia de Pentecostes (Atos 2,14.22-33). Reside aqui, não apenas o essencial do anúncio, mas o anúncio essencial, sem glosas e sem filtros, que somos chamados a fazer, com alegria e determinação (Atos 2,23-24). Este veio fundamental percorre, como verdadeira filigrana, o Livro dos Atos dos Apóstolos: 2,23-24.32.36; 3,15-16; 4,10; 5,30-31; 10,39-40; 13,28-30; 17,31; 25,19. Chamemos-lhe «primeiro anúncio», ou, como já se diz hoje, nesta sociedade que já recebeu o «primeiro anúncio», mas que vive distante da seiva do Evangelho, «segundo (primeiro) anúncio». Sim, falamos desse Jesus, por vós crucificado, por Deus ressuscitado, à direita de Deus sentado na sua humanidade glorificada, de onde transborda o Espírito sobre nós derramado. É o que vemos e ouvimos, e devemos fazer ver e ouvir.

11. Pedro continua a ensinar-nos que vivemos aqui como «estrangeiros e hóspedes», isto é, como «paroquianos» (pároikoi, paroikía), mas que, como Jesus e à sua maneira, somos também filhos e chamamos a Deus «nosso Pai». E é neste Senhor Jesus que, conforme desígnio eterno do Pai, deu a sua vida terrena por nós, mas deu-nos também a vida eterna, temos posta a nossa fé e a nossa esperança, muito para além das coisas corruptíveis, como prata e oiro, e de tudo o que se avalia, mede ou pesa (1 Pedro 1,17-21). É-nos pedida, portanto, vida nova de acordo com o estatuto por graça concedido.

12. Portanto, «o Senhor sempre diante de mim», cantamos hoje com o Salmo 16,8. Só Ele nos pode guiar no caminho da vida. Na verdade, as pedras e as coisas, as casas e as terras, nunca devem ocupar, muito menos encher, o nosso coração. Os sacerdotes, descendentes de Aarão, não tinham terra distribuída em Israel. A sua herança era o Senhor (cf. Números 18,20). E nós também cantamos no nosso Salmo de hoje, o Salmo 16, «Senhor, Tu és a minha herança» (v. 5). No seu Sermão 344, Santo Agostinho comenta assim: «O salmista não diz: “Ó Deus, dá-me uma herança”. Diz antes: “Tudo o que me podes dar fora de Ti, é vil. Sê Tu a minha herança. É a Ti que eu amo… Esperar Deus de Deus, estar cheio de Deus. Basta-te Ele; fora dele, nada te pode bastar». Esta melodia deve encher o nosso coração e este Dia de Domingo, Dia do Senhor, de doação radical, total, ao Senhor. Entenda-se: é um caminho novo que se abre à nossa frente. Sem retrocessos, sem desvios, sem distrações, sem nostalgias, sem saídas de emergência ou de segurança!

António Couto


A MISERICÓRDIA. Lugar e modo

Abril 16, 2023

Na Abertura da Escola de Alta Formação Filosófica de Turim, em 2006, Jean-Luc Marion mostrou que a «questão filosófica» por excelência, a grande questão que se levanta do chão e do «eu», não é de ordem gnoseológica, que se situa no âmbito do eu que posso conhecer, mas de ordem erótica, que consiste em perguntar o que é o amor e se realmente existe alguém que nos ame a sério[1].

O Simpósio de Platão é uma narrativa sobre o amor, no sentido ascensional, o amor que do homem sobe a Deus, que é o sumo bem para o qual tudo tende, id quod omnia appetunt, diz Aristóteles[2].

A Bíblia transmite uma narrativa diferente, e apresenta o amor no sentido descensional, o amor que de Deus desce sobre o homem. É só neste sentido que se pode encontrar a misericórdia e o amor comovido e compassivo, não pelo valor atraente, apetecível, mas pelo desvalor, porventura até repugnante. A narrativa bíblica, toda ela, mas com particular incidência no Êxodo e na Paixão de Jesus, mostra-nos um Deus que, por amor misericordioso, se debruça sobre o oprimido e o pecador, e os liberta e perdoa, mostrando-nos uma liberdade nova, que não é fruto de auto libertação, mas de hétero-libertação[3].

A lição que Israel aprende percorrendo o chão bíblico é que viver, antes de ser projeto nosso, é recetividade, antes de ser ação nossa, é acolhimento, antes de ser cogito, é cogitor, antes de ser amo, é amor, antes de ser atividade, é passividade que, como gosta de dizer Levinas, é a passividade mais passiva de toda a passividade, dado que se trata da passividade a respeito do Bem, que não se escolhe, mas que nos escolhe, e escolhendo-nos, eleva-nos à liberdade e à responsabilidade[4]. Sempre neste sentido, vê-se bem que o amor a que somos chamados não é redamatio, isto é, a ação de retribuir o amor Àquele que nos amou primeiro, mas mandamento de Deus, que me manda amar como Ele ama (imitatio Dei), e que não soa: «porque Eu te amei, tu deves retribuir-me o teu amor», mas antes: «porque Eu te amei, tu deves amar o outro»[5]. Como? Se puseres a questão no Google, obténs mais de trezentos milhões de respostas[6]. Na Bíblia, as respostas são poucas, e reduzem-se mesmo a uma só: dar a vida. Por isso, na Bíblia, amar é amar o outro diferente de mim (o estrangeiro) e amar o outro contra mim (o inimigo)[7]. Em suma, amar o próximo, que não é aquele que é igual a mim, mas é aquele que agora está a passar por mim, aquele que agora está mais perto de mim, que é o significado do superlativo latino proximus[8].

Com esta introdução, fica logo dito, à entrada da porta, que o chão que pisamos é bíblico no conteúdo e no método. Impõe-se dizer ainda que, neste estudo sobre a misericórdia, nos esforçamos por manter o mais possível claros os campos semânticos e lexicais. A «misericórdia», que anda associada ao ventre materno, é sobretudo dita a partir da constelação hebraica raham/rehem/rahamîm/rahûm, que a versão grega dos LXX traduz sobretudo por oiktirmós (28 vezes), mêtra (22 vezes), eleéô (19 vezes), oiktírô (12 vezes). Rahûm quase sempre por oirktírmôn (12 vezes), e rahamîm quase sempre por oktirmoí (plural). Splágchna e splagchnízomai, literalmente «vísceras» e «movimentos viscerais intensos», serão no NT os principais e normais conversores de rahamîm, e da ternura maternal, visceral, ligada ao ventre e às entranhas maternais. A esta constelação semântica, claramente sediada no ventre materno, associa-se a «graça» do colo e do olhar maternais, ditos com a constelação hen/hanan/hannûn, que a versão grega dos LXX traduz o mais das vezes com cháris e eleéô, reservando para hannûn o adjetivo eleêmôn (12 vezes). Estes dois campos semânticos andam muitas vezes associados e entrançados, dado que os dois se completam e se fazem sentir de improviso, como uma vaga ou convulsão que nos assalta, e que nós não projetamos e tão-pouco controlamos. Acontece no caminho.

A raiz hesed, que a versão grega dos LXX traduz quase sempre por éleos, passa, ao contrário dos dois campos semânticos que acabámos de apresentar, não um amor espontâneo que nos toma de assalto no caminho, mas um amor fiel e comprometido, o amor da aliança, não espontâneo, mas pensado e deliberado, que pode ser comovido, mas é, sobretudo, devido. Habitualmente conhece, nas traduções, um variado leque de significados, desde o amor, à misericórdia, graça, fidelidade, benevolência, bondade, mas cada vez mais deve ficar restringido ao «amor» e à «fidelidade».

O presente estudo desdobra-se em três Capítulos. O primeiro mostra uma página e uma imagem seleta do Talmude da Babilónia: Deus a rezar. O segundo, o mais amplo, estende diante de nós a riqueza da magna charta do amor misericordioso de Deus nos seus treze atributos (Ex 34,6-7). A terceira faz-nos ver Jesus, transparência da misericórdia do Pai, em ação de misericórdia. Tudo é para ver, meditar, contemplar e imitar.

[O texto que acabei de transcrever é a Introdução que abre o livro que publiquei em 2016, intitulado Misericórdia. Lugar e modo, Lavra, Letras e Coisas, 2016, p. 5-8. Este livro foi escrito para assinalar o Jubileu do Ano Santo da Misericórdia, que teve início em 08 de dezembro de 2015 e fecho em 20 de novembro de 2016.]

António Couto


[1] C. DI SANTE, La bibbia. La sua verità e il suo linguaggio, Villa Verucchio, Pazzini, 2015, p. 19 e 26.

[2] C. DI SANTE, La bibbia, p. 22.

[3] C. DI SANTE, La bibbia, p. 19-34.

[4] C. DI SANTE, La bibbia, p. 35.

[5] C. DI SANTE, Responsabilità. L’io-per-l’altro, Roma – Fossano, Lavoro – Esperienze, 1996, p. 76.

[6] Z. BAUMAN, Lo spirito e il clic. La società contemporanea tra frenesia e bisogno di speranza, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2013, p. 23.

[7] C. DI SANTE, Fiducia, speranza, amore, Magnano, Qiqajon, 2015, p. 54.

[8] C. DI SANTE, Fiducia, speranza, amore, p. 47.


AS MÃOS E O LADO

Abril 14, 2023

Senhor Jesus,

Há tanta gente que Te procura à pressa e Te quer ver.

Mas quando dizem que Te querem ver,

Não é para Te conhecer.

É o teu rosto, a cor dos teus olhos e cabelos,

A tez da tua pele, a tua forma de vestir que os atrai e contagia.

Querem ver-te como se fosse numa fotografia.

Mas Tu, Senhor Jesus Ressuscitado,

Quando Te dás a conhecer a nós,

Não mostras o rosto,

Uma fotografia,

O cartão de cidadão.

Se fosse assim,

Mal seria que os teus amigos Te não reconhecessem.

E o facto é que,

Quando surges no meio deles,

Não Te reconhecem.

E em vez do rosto,

São, afinal, as mãos e o lado que apresentas.

Entenda-se: é a tua maneira de viver que nos queres fazer ver.

Na verdade, a tua identidade é dar a vida,

É dar a mão e o coração.

É essa a tua lição, a tua paixão, a tua ressurreição.

Senhor, dá-nos sempre desse pão!

António Couto


O RESSUSCITADO ENTRA EM NOSSA CASA

Abril 14, 2023

1. Novos percursos se abrem, e é aqui que se inicia o Evangelho do Domingo II da Páscoa (João 20,19-31), que o Papa S. João Paulo II, em 30 de Abril do ano 2000, consagrou como «Domingo da Divina Misericórdia». Os discípulos estão num lugar, com as portas fechadas, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter, vem e fica no MEIO deles, o lugar da Presidência e da Precedência, e saúda-os: «A paz convosco!». Mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e agrafa-os à sua vida e à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): está sempre em missão; o nosso está no presente, e passa. O presente da nossa missão aparece, portanto, agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). É-nos dito que os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo (João 20,8), também eles vêm com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão. João Batista tinha apresentado Jesus como Aquele que batiza com o Espírito Santo (João 1,33), que é a vida de Deus, a Dýnamis, o poder de Deus, imperecível, que só Deus pode comunicar. Este sopro só aparece aqui em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

2. A identidade do Senhor Ressuscitado está para além do rosto. Por isso, vê-lo, quando Ele por graça se faz ver, não implica necessariamente reconhecê-lo, como sucede em não poucas páginas dos Evangelhos. A identidade do Ressuscitado não é do domínio da fotografia. Não se capta deste lado, seja qual for a técnica aplicada. É-nos dado por graça reconhecê-lo. Reside na sua vida a nós dada por amor até ao fim, aponta para a Cruz, de onde jorra também a dádiva do Espírito (João 19,34; cf. 7,37-39; Atos 2,33). Por isso, Jesus mostra as mãos e o lado, que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, fazendo-nos ao mesmo tempo reconhecer que Ele ultrapassou a morte, vencendo-a. As mãos e o lado são sinais abertos para podermos entrar no sacrário da sua intimidade, dádiva infinita que rebenta as paredes dos nossos olhos embotados e do nosso coração empedernido. Entenda-se também que a missão que nos é confiada é mostrar Jesus Ressuscitado, soprando sobre nós o alento do Espírito, da Vida, da Paz e do Perdão. Está bom de ver que não basta exibir as capas do catecismo que mostram um Jesus de olhos azuis. Só o podemos mostrar com a nossa vida dele recebida, e igualmente dada e comprometida.

3. O narrador informa-nos logo a seguir que, afinal, Tomé (Toma’), chamado Gémeo (Dídymos), não estava com eles quando veio Jesus. Dídymos é, na verdade, a tradução literal, em grego, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»]. Mas os outros diziam-lhe repetidamente (élegon: imperf. de légô), imperfeito de duração, com a mesma linguagem da Madalena, mas no plural: «Vimos (heôrákamen: perf. de horáô) o Senhor!» (João 20,25). Portanto, também eles são testemunhas, pois viram e continuam a ver o Senhor, de acordo com o tempo perfeito do verbo grego. Mas Tomé quer tudo controlado e verificado, ponto por ponto, e refere: «Se eu não vir (ídô: conj. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) nas suas mãos a marca dos cravos, e não meter o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, não acreditarei» (João 20,25).

4. Novo desarme: oito dias depois, estavam outra vez os discípulos com as portas fechadas (mas o medo já não é mencionado), e Tomé estava com eles. Veio Jesus, ficou no MEIO, saudou-os com a paz, e dirigiu-se logo a Tomé desta maneira: «Traz o teu dedo aqui e vê (íde: imper. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) as minhas mãos, e traz a tua mão e mete-a no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crente!» (João 20,27). Aí está Tomé adivinhado, desvendado e desarmado. Também ele podia ter pensado: «E como é que ele sabia que eu queria fazer aquilo?». Tomé cai aqui, adivinhado e antecipado, por assim dizer, rasteirado, precedido por Aquele que nos precede sempre. Não quer tirar mais provas. Confessa de imediato: «Meu Senhor e meu Deus!» (João 20,28), uma das mais belas profissões de fé de toda a Escritura. E Jesus diz para ele: «Porque me viste e continuas a ver (heôrakás me), tempo perfeito de horáô, acreditaste e continuas a acreditar (pepísteukas), tempo perfeito de pisteúô; felizes (makárioi) os que, não tendo visto (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo), acreditaram (pisteúsantes: part. aor. de pisteúô)!» (João 20,29), tempo aoristo, fé e confiança, adesão no tempo da história, e no dia-a-dia renovada. Esta felicitação é para nós.

5. Notável o percurso dos Discípulos. Fechados e com medo, viram Jesus entrar e ficar no MEIO deles, sem que as portas e as paredes constituíssem obstáculo. Trocaram o medo pela alegria, e também eles começaram a ver de forma continuada o Senhor e a dizê-lo repetidamente. Notável e exemplar para nós o percurso de Tomé, chamado Gémeo: não estava com a comunidade, tão-pouco aceitou o seu testemunho; queria provas. Mas quando veio Jesus e o adivinhou, entrando dentro dele, precedendo-o e presidindo-o, rendeu-se completamente! Tomé, chamado Gémeo! Irmão gémeo! Irmão gémeo de quem? Meu e teu, assim pretende o narrador. De vez em quando, também nós não estamos com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. Por vezes, também duvidamos e queremos provas. Como Tomé, chamado Gémeo. Salta à vista que também devemos estar com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. E professar convictamente a nossa fé no Ressuscitado que nos preside (no MEIO) e nos precede sempre. Como Tomé, chamado Gémeo.

6. A lição do Livro dos Atos dos Apóstolos (2,42-47, mas ver também 4,32-35 e 5,12-16) deste Domingo II da Páscoa é outra vez soberba. Trata-se de uma visita guiada ao Cenáculo, a primeira Catedral da Igreja nascente, mas com ramificações em todas as casas, em todos os corações, bem assente em quatro colunas: o ensino dos Apóstolos (1), a comunhão fraterna (2), a fração do pão (3) e a oração (4). Com a boca cheia de louvor, os olhos de graça, as mãos de paz e de pão, as entranhas de misericórdia, a comunidade bela crescia, crescia, crescia. Não admira. Era tão jovem, leve e bela, que as pessoas lutavam por entrar nela!

7. Vem em nosso auxílio também a Primeira Carta de Pedro 1,3-9, que nos apresenta uma síntese feliz da visão nova da fé e da obra da misericórdia de Deus em nós, os dois grandes temas deste Domingo II da Páscoa ou da Divina Misericórdia. Filhos renascidos da grande misericórdia do nosso Deus, verificada pela Ressurreição de Jesus Cristo (1 Pedro 1,3), exultamos de alegria. E repetem-se temas importantes acerca da visão da fé na Ressurreição de Jesus, em que a expressão gramatical é outra vez importante. Não o tendo visto na história (ouk idóntes: part. aor2 de horáô), nós o amamos agora, e não o vendo agora com os nossos olhos (mê horôntes: part. pres. de horáô), acreditamos agora (pisteúontes: part. pres. de pisteúô).

8. Cantemos, por isso, o Salmo 118, que é o último canto do chamado «Pequeno Hallel da Páscoa» (113-118), mas que era seguramente cantado noutras festividades de Israel, nomeadamente na Festa das Tendas, tendo em conta o seu teor processional, e até a sua distribuição por coros. Este Salmo levanta-se do meio da alegria própria da Festa [«Este é o dia que o Senhor fez,/ nele nos alegremos e exultemos!»: v. 24], e eleva ao Deus sempre fiel uma grande Ação de Graças por todas as maravilhas que Ele tem realizado em favor do seu povo. Sim, toda a nossa energia e toda a melodia que nos habita é o próprio Senhor, conforme o belíssimo v. 14: «Minha força e meu canto YAH!», que soa assim em hebraico: ‘azzî wezimrat YAH. Além do nosso Salmo, a expressão densa e impressiva encontra-se ainda em Êxodo 15,2 e Isaías 12,2. YAH está por YHWH. O refrão que vamos cantar aparece a abrir e a fechar este grande Salmo, e constitui como que o envelope onde guardamos a bela melodia que cantamos. Soa assim: «Dai graças ao Senhor porque Ele é bom,/ porque é eterna a sua misericórdia!» (v. 1 e 29).

António Couto


O PERCURSO DE MARIA MADALENA

Abril 11, 2023

1. A narrativa de João 20 abre com a Madalena, que vai de manhã cedo, ainda escuro, ao túmulo de Jesus, e vê, com um olhar normal (verbo grego blépô) a pedra retirada (êrménos) para sempre e por Deus (João 20,1), tal é o significado imposto por êrménos, particípio perfeito passivo de aírô. Conforme a grandiosa narrativa, a Madalena tem diante dos olhos o inefável. Mas cega como está pelos seus preconceitos, falha a visão do inefável, e corre logo para trás, equivocada e baralhada, a levar a Simão Pedro e ao outro discípulo uma falsa notícia: «Retiraram (êran: aoristo de aírô) o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram» (João 20,2). Aquele «retiraram», no tempo histórico (aoristo grego), sugere que foram mãos humanas a roubar o cadáver de Jesus, lenda já astuciosamente fabricada e divulgada pelos judeus em Mt 27,64; 28,13-15. Mas o equívoco da Madalena não é de admirar, dado que ela anda pelo escuro, e, no IV Evangelho, quem anda no escuro ou na noite, não consegue ver a Luz.

2. Mas não acaba aqui o percurso da Madalena. Depois da inspeção ao túmulo levada a efeito por Simão Pedro e pelo outro discípulo, a Madalena muda de olhar (de blépô, um ver normal, para theôréô, um ver que dá que pensar) e de atitude, e volta a aparecer junto do túmulo. Agora vem a chorar e aproxima-se do túmulo, o que não tinha feito antes. Agora inclina-se e , com o tal ver que dá que pensar (verbo grego theôréô), dois anjos vestidos de branco (cor divina), estrategicamente colocados no túmulo, sentados no lugar onde foi deposto o corpo de Jesus, um à cabeceira e outro aos pés, como sinais. Perguntam à Madalena: «Mulher, por que choras?» (João 20,13). Na verdade, ela ainda está do lado da morte, do escuro, da dor, da tristeza. A paisagem em que se move, ou a página que a move, ainda é o Capítulo 19 de João, daquele Jesus morto, da Cruz retirado (êren: aoristo de aírô) pelas mãos de José de Arimateia (João 19,38), daquele Rei que os judeus pedem a Pilatos que o retire (âron: imperativo aoristo de aírô) (João 19,15[2x]), ou até daquela pedra do túmulo de Lázaro por mãos humanas retirada (êran: aoristo de aírô) (João 11,39 e 41). A Madalena, como tantas vezes nós, anda perdida por entre os pequenos episódios do tempo, pelos aoristos da história. Falhou o inefável que lhe foi oferecido logo na primeira vez que foi ao túmulo, e não soube ver a pedra retirada (êrménos) para sempre e por Deus (João 20,1), como indica o particípio perfeito passivo do verbo aírô. É ainda à procura de um corpo morto que ela anda. De um corpo morto a que ela se acha com direito de posse. Talvez seja este o preconceito que lhe tolhe o olhar e a impede de ver o inefável. Na verdade, responde assim à pergunta feita pelos dois anjos: «Retiraram (êran) o meu Senhor (tòn kýrión mou), e não sei onde o puseram» (João 20,13). Note-se outra vez o aoristo do verbo aírô. Mas note-se agora sobretudo o possessivo «meu» (mou) afeto a Senhor.

3. Voltando-se para o jardim, vê, outra vez com um ver que dá que pensar (theôréô), um homem de pé, que ela pensa ser o jardineiro, mas que, na verdade, é Jesus, que a deixa espantada com a segunda pergunta que lhe faz: «Mulher, por que choras? (normal, pois ela continuava a chorar); a quem procuras?». Esta segunda pergunta desvenda a Madalena, retirando-a dos preconceitos que a cegam. Precedendo-a, antecipando-se a ela, adivinhando-a com aquela pergunta direita ao coração, Jesus dá-se a conhecer à Madalena, deixando-a a pensar mais ou menos assim: «E como é que este desconhecido sabe que eu ando à procura de alguém neste jardim?». Compreendendo-se compreendida, a Madalena começa a sair aqui da sua cegueira, mas ainda precisa de algum tempo para mudar de paisagem, de margem, de página, do Capítulo 19 para o Capítulo 20 do Evangelho de João. A resposta que dá é elucidativa: «Se foste tu que o levaste, diz-me onde o puseste, e eu o retirarei» (João 20,15).

4. Ao responder com um pronome três vezes repetido, que esconde o nome, vê-se bem que a Madalena sabe que aquele desconhecido bem sabe quem ela procura. E confessa aqui o intento que desde aquela madrugada, ainda escuro, a movia: retirar para si aquele corpo morto! Manifesta que anda ainda perdida no Capítulo 19, quando responde «em hebraico» (hebraïstí) a Jesus que acabava de pronunciar o nome dela em aramaico: «Maria!» (João 20,16). A locução adverbial «em hebraico» (hebraïstí) é uma ponte para João 19,13 e 17. Equivocada e baralhada como anda, ainda quer reter o Ressuscitado, mas não pode: aprende ainda que nada nem ninguém pode reter o Ressuscitado, aquela vida nova, aquele modo novo de estar presente! Leva tempo até passar da margem da morte terrena para a margem da vida verdadeira! E finalmente vai anunciar aos discípulos, que Jesus significativamente chama «meus irmãos» (João 20,17), enviada pelo Ressuscitado: «Vi (heôraka) o Senhor!» (João 20,18). Nova mudança de olhar. O que ela diz agora é: Vi e continuo a ver o Senhor! É o que significa o verbo grego horáô, no tempo perfeito. É o olhar da testemunha que vê sem parar o inefável! Aqui termina a Madalena o seu longo e belo percurso, e sai de cena.

É o amor, ainda que imperfeito,

É o amor, ainda que com defeito,

É o amor que faz correr a Madalena.

É o amor, ainda que imperfeito,

É o amor, ainda que com defeito,

É o amor que faz chorar a Madalena.

Mas tu sabes, meu irmão da páscoa plena,

Tu sabes que há outro amor em cena,

E é esse amor que faz amar a Madalena.

António Couto