O AMOR NÃO VOLTA AO PÓ

 

 

1. «O Senhor-Deus modelou o homem do pó do solo, e soprou nas suas narinas um alento de vida, e o homem tornou-se um ser vivo» (Génesis 2,7).

 

2. Descrição de sonho. Um Deus que modela com as suas mãos o homem da nossa terra pura e fecunda. O húmus, a humildade, o homem. Tecido de húmus, de humildade, modelado e embalado pelas mãos maternais de Deus. Acariciado, mimado, animado, pelo sopro puro de Deus: beijo de Deus no rosto do homem. Eis o homem.

 

3. Alguns Livros à frente, no final do Deuteronómio, continuamos a ler, para feliz espanto nosso, que «Moisés, servo de Deus, morreu ali, na terra de Moab, à boca de Deus» (Deuteronómio 34,5), depois de, no Livro dos Números (12,8), Deus ter já aparecido a declarar: «Falo com ele (Moisés) boca a boca».

 

4. Nenhuma distância. Tamanha intimidade. Tanto carinho. Quando nasce. Durante a vida toda. Também na morte. Note-se bem que o homem não é só pó. É pó modelado e soprado,/ beijado,/ sustentado pelo alento puro e amoroso de Deus. O homem é, portanto, pó e amor. E o amor não volta ao pó, pois «o amor é forte,/ é como a morte» (Cântico dos Cânticos 8,6), «liberta da morte» (Tobias 12,9; Provérbios 10,2; 11,4; Dn 4,24). Quem acolhe o amor de Deus não fica, pois, perdido nas páginas do pó (Jeremias 17,13), mas é recolhido pelas mãos carinhosas de Deus nas páginas do livro da vida (Salmo 87,5; Isaías 4,3; Daniel 12,1; Malaquias 3,16; Lucas 10,20; Apocalipse 20,12).

 

5. Contrasta absolutamente com o que vemos descrito nos mitos mesopotâmicos antigos, nomeadamente no Enuma Elish e no poema de Atra-hasis. Também aí os deuses modelam o homem a partir da terra. Mas não se trata de terra pura e fecunda, carregada de humildade. É, antes, terra amassada com o sangue e restos dos deuses maus, assassinados pelos deuses ditos bons. Como se pudessem ser bons os deuses violentos e assassinos! De qualquer modo, nesses textos mitológicos mesopotâmicos, o homem nasce tristemente de uma acção de limpeza que os deuses levaram a efeito no seu seio. É fruto, não de mãos de amor, mas de mãos assassinas e ensanguentadas, que, depois de varrerem o lixo do seu seio, o despejaram no homem, como se de um saco de lixo ou de um contentor se tratasse! Nenhum amor nestes deuses violentos, nenhum amor neste homem, que não é mais do que o caixote de lixo da divindade. Fruto da violência, mal feito, feito de mal, este homem é mau e mesquinho e violento por natureza, marionete nas mãos dos deuses violentos, vítima revoltada e violenta de deuses tirânicos e prepotentes. Sem liberdade e sem graça, sem humanidade, sem humildade, sem amor. Uma espécie de robot violento e metalizado, irresponsável, impassível, insensível, inculpável. In-culpável: o mal que o afecta é um mal natural; não é sequer mal moral, pois este supõe e requer a liberdade.

 

6. Ler o homem e ler o mundo, ler este homem e ler este mundo: gesto que não pode ser feito sem respeitar a intencionalidade do criador, que me deu a mim mesmo por amor, para que eu me receba por amor, e me deu o mundo por amor, para que eu o receba por amor. Ao contrário do que possamos pensar, receber não é um gesto fácil; é um gesto difícil que requer inteligência e coragem. Implica que eu compreenda que não tenho em mim o meu fundamento, que não tenho nenhum direito sobre mim nem sobre o mundo, que eu não sou meu e que o mundo não é meu, que eu não sou dono de mim nem dono do mundo, que não posso dar-lhes o sentido que eu quiser.

 

7. Quando leio, por exemplo, os cantos dos Lusíadas, devo esforçar-me por compreender e respeitar a intencionalidade e o sentido que Camões lhes deu. Os cantos dos Lusíadas têm um sentido, antes de receberem o sentido que eu lhes possa, porventura, dar. É evidente que uma criança que vê o livro dos Lusíadas sobre a mesa, pode entreter-se a rasgar as suas folhas para fazer aviões, barquinhos ou chapéus. Essa actividade lúdica é também dar um sentido ao livro dos Lusíadas, mas não é certamente respeitar o sentido dos Lusíadas. Da mesma forma, um ignorante ou um mal-intencionado pode pegar no livro dos Lusíadas e atirá-lo para a fogueira ou para o lixo. Também não é certamente respeitar o sentido dos Lusíadas.

 

8. Note-se que eu posso fazer hoje mais ou menos a mesma coisa com o «livro da criação», o grande livro do homem e do mundo. Posso não respeitar o sentido da criação, e imprimir-lhe então o meu sentido, o sentido que me interessa dar-lhe segundo os meus desejos e caprichos.

 

9. Este mundo por amor criado e por amor dado ao homem, embrulhado em papel de presente, recebido pelo homem com amor e «reconhecimento», constrasta também absolutamente com o mundo dos mitos mesopotâmicos antigos, surgido da violência e morte. Aí, o céu e a terra são as duas metades da carcassa do monstro primordial Tiamat, vencido pelo deus Marduk. Mundo mau, mal feito, feito de mal, habitado pelo mal, por deuses maus e homens maus em permanente desassossego e luta, mundo sem solução, sem salvação.

 

10. Pergunto-me muitas vezes se este nosso mundo, este mundo que vemos hoje, não se parece mais com o mundo em negativo e cheio de sucata dos mitos mesopotâmicos do que com o mundo bom, sete vezes bom, criado e dado ao homem por amor, que encontramos nas páginas da Bíblia.

 

11. O sentido é o amor, que não volta ao pó. O amor liberta da morte, meu irmão de Novembro.

 

António Couto

1 Responses to O AMOR NÃO VOLTA AO PÓ

  1. Claudino Gomes diz:

    É isso, Amigo Bispo António Couto. Bem-haja por este belo texto, cheio de enamoramento pelo mundo, obra do Sopro do íntimo do Deus Vivo.
    A nossa missão continua a ser a de denunciar os planos e acções dos seguidores dos vários Tianmats contemporâneos anunciando com saber e audácia o valor do mundo e do humanos ,nele, e constituindo comunidades, onde a fraternidade faz do viver em comum um hino à beleza do Mundo, participação sempre nova na Beleza que é Deus.
    Continue a publicar, a falar, a ensinar com aforça do Espírito.